Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0375/22.0BEVIS
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - Em face da relevância social da questão (em face dos interesses sociais em causa, das instruções administrativas divulgadas pela AT e da capacidade de expansão da controvérsia) é de admitir a revista relativamente à questão de saber se, para efeitos de gozo dos benefícios fiscais concedidos às pessoas com deficiência, nos casos em que ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, a AT deve relevar o grau de incapacidade inicialmente fixado em 60% ou mais quando em exame de reavaliação esse grau vier a ser fixado abaixo dos 60%, ou seja, se o princípio da avaliação mais favorável, previsto nos n.ºs 7 a 9 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, tem aplicação quando ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
Nº Convencional:JSTA000P31972
Nº do Documento:SA2202402280375/22
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 375/22.0BEVIS
Recorrente: Administração Tributária e Aduaneira (AT)
Recorrido: AA

1. RELATÓRIO

1.1 A AT, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 26 de Outubro de 2023 ( Disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/190f2d3b4fef6b1a80258a9f005c85f0.) – que negou provimento ao recurso interposto da sentença proferida em 30 de Janeiro de 2023 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou procedente a acção administrativa interposta pelo ora Recorrido, tendo por objecto o despacho proferido em 3 de Maio de 2022 pela Chefe do Serviço de Finanças de Viseu, que indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos emitido em ../../2019 em sede de revisão/reavaliação de grau de incapacidade –, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«a) Nos presentes autos verificam-se os pressupostos para admissão de recurso de revista, consagrados no artigo 150.º do CPTA.

b) Designadamente, a presente Revista funda-se na violação do disposto nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96; o Acórdão em recurso reveste-se de uma inquestionável relevância social e jurídica; não limita os seus efeitos ao caso concreto, reflectindo-se muito além da esfera jurídica do Recorrido; afigurando-se indispensável a sua análise pelo Supremo Tribunal para uma melhor aplicação do direito.

c) Andou mal o Acórdão recorrido ao acolher in totum o entendimento do TAF de Viseu.

d) O Acórdão recorrido padece de evidente erro de julgamento, por erro sobre os pressupostos de direito e de facto, por notória interpretação deficiente do disposto nos números 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, e no artigo 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021.

e) Igualmente viola o disposto nos artigos 13.º e 103.º da CRP, por evidente violação dos princípios da igualdade, em todas as suas vertentes, e do princípio da legalidade, em particular no que respeita à excepcionalidade dos benefícios fiscais, mas também o princípio da unicidade do ordenamento jurídico.

f) A manutenção do Acórdão recorrido na ordem jurídica irá provocar desigualdades injustificáveis entre os contribuintes, com alguns deles, já recuperados, a deixar de contribuir, para todo o sempre, para a satisfação das necessidades financeiras do Estado o que, naturalmente, terá repercussões na justa repartição dos rendimentos e da riqueza, conforme determina o artigo 103.º da CRP.

g) Mais, se este entendimento a vingar, o que não se concede, poderá, numa situação limite, e embora possa parecer exagerada, acontecer que, num futuro próximo, mais de metade da população activa portuguesa, pelo simples facto de em determinado momento da sua vida ter padecido de doença que lhe conferiu um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, e não obstante ter entretanto recuperado, deixe de pagar impostos, abalando, desta forma, o próprio sistema fiscal.

h) Situação que a acontecer consubstancia uma violação gritante do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, pois que necessidades especiais e/ou particulares terá o Recorrido em detrimento de outros contribuintes a quem, por exemplo, pela primeira vez em 2023 lhe é atribuído um grau de incapacidade de 59%? Porque razão merecerá o Recorrido um tratamento privilegiado face aos demais?

i) O benefício fiscal em causa, e no que ao IRS diz respeito, tem por fim “compensar” a eventual perda de capacidade para obtenção de rendimentos, capacidade essa que, após uma reavaliação em que os médicos consideram ser inferior à inicialmente diagnosticada, será reabilitada. Se a capacidade é retomada, também a regra de tributação o deve ser.

j) É inquestionável que a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo prorroga de forma perpétua os benefícios fiscais daí advenientes, sem atender à verificação dos respectivos pressupostos.

k) E tal acontece porque o Tribunal a quo escudou-se unicamente na norma interpretativa que aditou os n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, e nas exposições de motivos que tiveram na base da aprovação da Lei n.º 80/2021, descurando o seu elemento histórico e, o próprio preceituado do diploma.

l) Errou também o Tribunal a quo ao reproduzir a argumentação do TAF de Viseu e ao não analisar a questão trazida em sede de recurso a propósito da idoneidade da jurisprudência invocada na decisão de 1.ª instância, que, como se disse, não se aplica à situação dos autos, considerando que naquele Acórdão4 [4 Acórdão TCA Norte, P. 00144/18.2BECBR, de 28/06/2019, disponível em www.dgsi.pt.] estava em causa uma avaliação e uma reavaliação feitas com base em tabelas diferentes, logo, com critérios técnicos distintos que justificam a conclusão ali alcançada.

m) Como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, e igualmente dos seus trabalhos preparatórios, o aditamento dos n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, visou, tão só, salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que, estando sujeitas à realização de uma nova junta médica, com base na aplicação da nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, vissem diminuído o seu grau de incapacidade em consequência de diferentes critérios técnicos.

n) Ou seja, pretendeu adequar-se os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 202/96 às instruções previstas na nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, dado que o Decreto-Lei n.º 202/96 remetia para a revogada Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30/09.

o) Na situação objecto dos autos, quer a avaliação em 2014, quer a reavaliação em 2019, foi feita com base nos mesmos critérios técnicos consignados na actual Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, o que, desde logo, afasta a aplicabilidade do estatuído nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96.

p) O artigo 4.º-A aditado pela Lei n.º 80/2021 é uma norma interpretativa, que visou assegurar que situações similares às espelhadas nos Acórdãos invocados pelo Recorrido e pelo Tribunal a quo não se repetissem.

q) Não tem, nem pode ter, atenta a sua natureza meramente interpretativa, o alcance pretendido pelo Recorrido e acolhido pelo Tribunal a quo, de prorrogar indefinidamente, e sem que estejam preenchidos os respectivos pressupostos, os direitos adquiridos.

r) O que não invalida que o princípio do tratamento mais favorável não afaste a aplicação, por exemplo, do disposto no n.º 8 do artigo 8.º do CIRS e o estabelecido no artigo 12.º da LGT, e permita que um contribuinte que, a meio do ano, veja a sua incapacidade revista, para percentagem inferior à fiscalmente relevante, possa usufruir, até ao final desse mesmo ano económico, dos benefícios inerentes à incapacidade fiscalmente relevante anteriormente concedida.

s) A manutenção de um grau de deficiência anterior, igual ou superior a 60%, em detrimento do fixado à posteriori, inferior a 60%, só é justificável se a tabela de avaliação nos dois casos for distinta, sujeita a critérios de quantificação diferentes para a mesma patologia, o que não se verifica nos presentes autos, o Recorrido foi avaliado e reavaliado com base na nova TNI.

t) Entendimento diverso consubstancia uma situação socialmente inaceitável, de se considerarem totalmente irrelevantes as alterações no estado clínico de uma pessoa que se traduzissem numa melhoria da sua situação física, discriminando, de forma totalmente injustificável, todos aqueles que, em sede da nova tabela de incapacidades, vejam ser-lhes reconhecida uma incapacidade de percentagem inferior a 60%, mas, por exemplo similar, e até superior, à do aqui Recorrido.

u) Subjugando o próprio propósito do Decreto-Lei n.º 202/96 e dos benefícios fiscais que lhe estão subjacentes.

v) Nem o despacho objecto dos autos, nem a actuação da Recorrida, merecem qualquer censura, antes estão em plena sintonia com o enquadramento jurídico vigente e aplicável à questão em análise.

w) Juízo de não censurabilidade que não pode ser feito no que ao Acórdão recorrido concerne, antes sendo evidentes os erros em que o mesmo labora por deficiente interpretação das normas em causa.

x) Face a todo o exposto, o Acórdão recorrido padece de erro de julgamento por erro manifesto sobre os pressupostos de direito e de facto, e como tal não se pode manter na ordem jurídica.

Termos em que deve o presente recurso proceder e o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, com as legais consequências».

1.2 O Recorrido não contra-alegou.

1.3 A Desembargadora relatora no Tribunal Central Administrativo Norte, tendo verificado os requisitos formais de admissibilidade do recurso, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal proferiu parecer no sentido da admissão da revista. Isto, após enunciar os termos do recurso e os requisitos da admissibilidade da revista excepcional, com a seguinte fundamentação:

«3.1 A questão que vem colocada pelo impugnante e aqui Recorrente prende-se com a aplicação do disposto nos n.ºs 7, 8 e 9 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, em conjugação com o disposto no art. 4.º-A do mesmo diploma, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, e que o legislador apelidou de “norma interpretativa”.
E, especificamente, consiste em saber se, para efeitos de gozo de benefícios fiscais, nos casos em que o grau de incapacidade atribuído num exame de reavaliação for inferior ao anteriormente atribuído e implicar perda de benefícios fiscais, há ou não que atender ao anteriormente atribuído, com vista a preservar a melhor avaliação, independentemente dos dois actos avaliativos terem obedecido às mesmas regras e critérios técnicos da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.

3.2 Decorre dos autos que a Administração Tributária emitiu a respeito desta matéria dois ofícios circulados, que constituem a sua posição sobre a interpretação e aplicação dos normativos em causa:
- Ofício Circulado N.º: ...3;
- Ofício Circulado N.º: ...9.
Em ambos os ofícios, a ATA adoptou uma posição não consentânea com a interpretação e aplicação que as instâncias adoptaram.
Não localizamos jurisprudência relevante sobre a matéria para além do acórdão do TCA Norte e 28/06/2019, proc. 00144/18.2BECBR, citado na sentença de 1.ª instância, e que contempla uma situação de facto diversa da apreciada nos autos (estava em causa a aplicação de regras de avaliação diversas).
A questão em si não é isenta de dúvidas, designadamente sobre a interpretação e aplicação do disposto no art. 4.º-A do Dec.-Lei n.º 291/2009, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, e que o legislador apelidou de “norma interpretativa”. E como invoca a Recorrente a questão reveste importância jurídica e social, seja pelo universo das pessoas a que se aplica, seja pelo número de litígios que pode despoletar.
Afigura-se-nos, assim, que se justifica a intervenção deste tribunal à luz do disposto no artigo 285.º do CPPT».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 150.º do CPTA.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 150.º do CPTA, a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, não basta ao recorrente invocar a existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, incumbindo-lhe também alegar e demonstrar a excepcionalidade susceptível de justificar a admissão do recurso, i.e., que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Vejamos, pois, se a revista pode ser admitida quanto à questão de saber se, para efeitos de usufruir de benefícios fiscais, nos casos em que o grau de incapacidade atribuído num exame de reavaliação for inferior ao anteriormente atribuído e ficar abaixo do limiar para a concessão daqueles benefícios (leia-se, se o grau incapacidade permanente atribuído em reavaliação ficar abaixo de 60%), há ou não que relevar o grau de incapacidade anteriormente fixado, ainda que ambas as avaliações tenham obedecido às mesmas regras e critérios técnicos da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI), o que passa por averiguar da aplicação a esses casos do princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, previsto nos n.ºs 7, 8 e 9 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, em conjugação com o disposto no art. 4.º-A do mesmo diploma, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, e que o legislador apelidou, na respectiva epígrafe, de “norma interpretativa”.

2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.1 Estamos perante recurso de acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que, negando provimento ao recurso interposto pela AT, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou procedente a acção administrativa interposta pelo ora Recorrido, tendo por objecto o despacho por que a Chefe do Serviço de Finanças de Viseu indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos em sede de revisão/reavaliação de grau de incapacidade e condenou a AT a proceder ao averbamento no cadastro do aí autor da incapacidade resultante da reavaliação.
No acórdão recorrido a questão decidenda foi enunciada como respeitando à «interpretação e aplicação ao caso do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, no art. 4.º-A do mesmo diploma, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, e nos art. 13.º e 103.º da CRP».
Em síntese, o Tribunal Central Administrativo Norte confirmou o entendimento do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de que «resultando provado que em 2014 foi reconhecida ao Recorrido uma incapacidade de 60% (cf. ponto M. da fundamentação de facto), tendo o mesmo, por força dessa incapacidade, usufruído de vários benefícios, nomeadamente em sede tributária, e que essa incapacidade foi reavaliada em 2019 em 44%, tendo origem na mesma patologia e constando do atestado médico de incapacidade multiuso, no campo referente ao “D.L. n.º 202/96 c/a redacção do DL n.º 291/2009, de 12/10 (Artigo 4.º, n.º 7)”, que “o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 05 de Agosto de 2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23-10-2007 o grau de incapacidade de: 60% (sessenta por cento)” (cf. ponto N. da fundamentação de facto) não resta senão concluir que se encontram preenchidos os requisitos previstos na lei para que o mesmo beneficie da avaliação mais favorável. Com efeito, é o que expressamente decorre do disposto no n.º 7 do art. 4.º, do DL 202/96, de 23 de Outubro, em conjugação com o n.º 8 da mesma disposição legal, sendo inquestionavelmente esse o sentido que o legislador pretendeu conferir ao regime, como resulta do disposto na norma interpretativa constante no art. 4.º-A, aditado ao citado diploma pela Lei 80/2021, de 29 de Novembro».
Mais acrescentou o acórdão recorrido que «…decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, o facto de, precisamente, incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através o Ofício Circulado n.º 20215 ...03 da Autoridade Tributária e Aduaneira, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respectivos trabalhos preparatórios – consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado. Importará também recordar que a lei interpretativa se integra na lei interpretada, tal como decorre do disposto no n.º 1 do art. 13.º do Código Civil».
O acórdão recorrido explica ainda por que entende que o art. 4.º-A não pode ser interpretado senão no sentido que lhe foi conferido pelas instâncias, deixando dito:
«Com efeito, não se vê qual seria o sentido útil da interpretação preconizada no art. 4.º-A, caso a mesma nada acrescentasse ao que decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, no extracto citado pela Recorrente, assim se esclarecendo que o princípio da avaliação mais favorável extravasa as situações em que a divergência na avaliação da incapacidade se deve apenas à aplicação de critérios técnicos diferentes.
Por outro lado, também não procede o argumento de que deste modo é violado o princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da CRP.
Com efeito, é manifesto que não está na mesma situação o cidadão portador de deficiência que por ser de 60% lhe permite aceder a um conjunto de benefícios, sendo posteriormente avaliada numa percentagem inferior, e o cidadão portador de deficiência ao qual, pela primeira vez é reconhecida uma incapacidade inferior a 60%, que não lhe permite usufruir desses benefícios.
Esta questão não deixou, aliás, de ser endereçada nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 80/2021, quando nos mesmos se refere que “O facto de em determinado momento existir uma evolução positiva da doença não quer dizer que deixe de existir doença ou que os impactos sociais e económicos da mesma tenham desaparecido. (…) Alguém que está a recuperar de uma doença grave e incapacitante continua a ter despesas acrescidas na área da saúde e em muitos casos mantém dificuldades para o trabalho e na reintegração no mercado de trabalho.” (cf. projecto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).
O mesmo se diga relativamente ao argumento que adianta quanto à alegada concessão ad aeternum do benefício fiscal.
De facto, e como igualmente se refere nos trabalhos preparatórios da lei interpretativa que originou o aditamento do art. 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de Outubro, “O que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito” (cf. projecto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333)».
A Recorrente discorda desse entendimento e sustenta que o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro.
Se bem interpretamos as alegações, a Recorrente entende que os referidos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro – aditados pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro – visaram, exclusivamente, regular as situações em que a primeira e a segunda avaliações não foram efectuadas em obediência às mesmas regras, aos mesmos critérios técnicos, ou seja, quando a primeira avaliação foi efectuada no domínio da vigência da TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, enquanto a reavaliação foi efectuada de acordo com a TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro (que revogou a anterior TNI).
Pretende, pois, a Recorrente que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a questão de saber se, para efeitos de gozo dos benefícios fiscais concedidos às pessoas com deficiência, nos casos em que ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, a AT deve relevar o grau de incapacidade inicialmente fixado em 60% ou mais quando em exame de reavaliação esse grau vier a ser fixado abaixo dos 60%; ou seja, se o princípio da avaliação mais favorável, previsto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, tem aplicação quando ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.

2.2.2 A nosso ver, a revista é de admitir, pois a questão, atentos os interesses sociais em causa e os interesses particulares das pessoas com deficiência, revela especial capacidade de repercussão social e, em face da posição assumida pela AT no Ofício Circulado n.º ...44, de 29 de Agosto de 2022 – ou seja, ulteriormente à introdução, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, do art. 4.º-A no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro –, a decisão a proferir por este Supremo Tribunal extravasa os limites do caso concreto.
Vejamos:
As instâncias fizeram uma cuidada e ajustada enunciação do quadro jurídico aplicável e interpretaram o disposto nos n.ºs 7 a 9 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e, essencialmente, o disposto no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, de acordo com as regras hermenêuticas canónicas e com apoio nos trabalhos preparatórios, que expressamente citaram e que parecem afastar expressamente o entendimento da Recorrente.
No entanto, em face da posição adoptada pela AT no Ofício Circulado n.º ...44, de 29 de Agosto de 2022 – e tendo em conta o disposto no art. 68.º-A da LGT–, impõe-se a intervenção deste Supremo Tribunal, enquanto órgão de cúpula da jurisdição fiscal, porque a questão assume especial capacidade de repercussão social e é previsível que a controvérsia se venha a repetir em futuros casos do mesmo tipo.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Em face da relevância social da questão (em face dos interesses sociais em causa, das instruções administrativas divulgadas pela AT e da capacidade de expansão da controvérsia) é de admitir a revista relativamente à questão de saber se, para efeitos de gozo dos benefícios fiscais concedidos às pessoas com deficiência, nos casos em que ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, a AT deve relevar o grau de incapacidade inicialmente fixado em 60% ou mais quando em exame de reavaliação esse grau vier a ser fixado abaixo dos 60%, ou seja, se o princípio da avaliação mais favorável, previsto nos n.ºs 7 a 9 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, tem aplicação quando ambas as avaliações foram efectuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em admitir o presente recurso.

Custas a determinar a final.

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Lisboa, 28 de Fevereiro de 2024 – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Isabel Marques da Silva.