Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02579/16.6BELRS
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cumprindo ao recorrente alegar e demonstrar a factualidade necessária para integrar a verificação dos referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).
II - Os juízos de facto efectuados pelo tribunal central administrativo não são sindicáveis em sede de revista, pois tais juízos não se inserem em nenhuma das hipóteses em que o n.º 4 do art. 285.º do CPPT concede poderes ao Supremo Tribunal Administrativo em matéria de facto.
Nº Convencional:JSTA000P31976
Nº do Documento:SA22024022802579/16
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 2579/16.6BELRS
Recorrente: “A..., S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, não se conformando com o acórdão proferido em 23 de Junho de 2023 nos presentes autos pelo Tribunal Central Administrativo Sul – que negou provimento ao recurso por ela interposto da sentença por que o Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e juros compensatórios relativas ao ano de 2013, efectuada por a AT ter desconsiderado os encargos suportados pela sociedade a título de royalties –, apresentou requerimento dizendo que «vem deduzir Recurso de Revista, nos termos do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» e juntou as respectivas alegações, com conclusões do seguinte teor:

«A. Nos presentes autos discute-se a (i)legalidade das liquidações de IRC, relativas ao exercício de 2013, motivadas pela desconsideração fiscal dos custos suportados pela B..., S.A. com o pagamento de royalties pela utilização das marcas ... e ... à sociedade polaca C... pertencente ao mesmo grupo de sociedades; no entender da AT, os encargos decorrentes do pagamento de royalties não devem concorrer para a formação do lucro tributário, por força do estatuído no artigo 63.º do Código do IRC e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, na redacção à data dos factos tributários em vigor.

B. Em primeira instância, o Tribunal decidiu que “a Administração Tributária afirma que, quanto ao pagamento de royalties, no presente caso, não foram praticadas condições idênticas às que seriam praticadas entre entidades independentes, em operações comparáveis, cabia-lhe demonstrar, à luz do disposto nos artigos 74.º, n.º 1, da LGT, 63.º, n.º 1, do Código do IRC e 1.º, n.º 1, 4.º e 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, quais foram as operações não vinculadas realizadas entre entidades independentes, nomeadamente os seus termos e condições, seleccionadas para a comparação exigida, bem como o grau e os factores de comparabilidade entre a operação vinculada e uma operação não vinculada, nos termos das disposições legais supra mencionadas, o que, no presente caso, não se verificou atenta a ausência de qualquer referência aos termos e condições celebrados em que operações comparáveis e entre que entidades independentes (actuantes no mesmo ou em semelhante ramo de actividade), pelo que se terá de concluir que não logrou demonstrar os pressupostos legais da aplicação do artigo 63.º do Código do IRC, quanto ao pressuposto de que entre os sujeitos passivos intervenientes na operação vinculada foram estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes em operações comparáveis”.

C. Desta decisão, a AT interpôs recurso de apelação junto do TCA Sul o qual considerou que a AT logrou, afinal, demonstrar que o contrato de licenciamento não tem arrimo na plena concorrência uma vez que o pagamento de royalties, pela cedência das marcas, associada à prestação não remunerada dos serviços de gestão e promoção das marcas em causa pela B... é uma situação desviante de mercado; considerou ainda que esta circunstância ou indício é bastante para a AT cumprir o seu ónus probatório, tendo, assim, desconsiderado em pleno os estudos de mercado facultados pela B... uma vez que se tratava de “operações e segmentos de mercado distintos daquele que está em causa nos autos”.
Na mesma senda concordou com a aplicação do método do fraccionamento do lucro (artigo 9.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21.12.2001) porque estarão em causa activos intangíveis, “pelo que a invocação da comparabilidade das transacções, em casos como o presente, não permite apreender as relações estabelecidas entre as empresas envolvidas”.

D. A Recorrente discorda do decidido pelo Tribunal a quo e entende que o Acórdão recorrido suscita três questões cuja apreciação do STA, em revista excepcional, se justifica:

a. A primeira questão a submeter a revista excepcional prende-se com as regras de distribuição de ónus da prova, especialmente complexas de definir em matéria de Preços de Transferência.
Impera obter-se resposta à seguinte questão: a circunstância de o pagamento de royalties, pela cedência das marcas, associada à prestação não remunerada dos serviços de gestão e promoção das marcas pelo licensee é suficiente para se concluir pela subversão do princípio de plena concorrência e bastará à AT uma mera invocação dessa circunstância ou indício? Ou terá a AT um ónus de demonstrar que outros sujeitos passivos, não relacionados, não teriam acordado nesse pagamento e concretizar, com dados em concreto, quais os factores mais comparáveis da operação análoga ou similar entre entidades independentes?

b. A segunda questão, que acaba por estar relacionada com a primeira sem prejuízo de apreciação em separado, visará responder ao seguinte: o que se deve entender por um segmento de mercado distinto susceptível de afastar a comparabilidade de situações convocadas pelo contribuinte no âmbito do regime de Preços de Transferência?

c. A terceira questão a submeter a revista visa obter a resposta à seguinte questão: em que termos e condições pode ser imposto pela AT ao sujeito passivo o método de fraccionamento do lucro?

Quanto à primeira questão:

E. No caso em apreço, além do pagamento da taxa de licenciamento (royalties), a B... obrigara-se ainda, nos termos do acordo celebrado, a investir 0,15% da respectiva facturação na promoção da marca cuja utilização lhes foi cedida através da criação de campanhas publicitárias institucionais e de outras iniciativas promocionais especiais.

F. Foi neste motivo que o Tribunal a quo incidiu para julgar procedente o recurso interposto pela AT. No entanto, ao assim decidir, entende-se que a correcta aplicação das regras de distribuição de ónus da prova saiu prejudicada à luz da leitura que se deve fazer das normas e princípios convocáveis para a situação vertente.

G. Perante uma situação como a aqui em causa, julga a Recorrente que a AT teria o ónus de demonstrar que outro sujeito passivo que não seja considerado uma entidade com relações especiais à luz do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC não acordaria naquele valor (contraprestação) a título de royalties se tivesse igualmente de suportar aqueles encargos e obrigações com promoção das marcas.

H. Assim, questiona-se, bastará à AT convocar as funções assumidas pelo sujeito passivo licensee para, com essas funções, suscitar o afastamento do princípio da plena concorrência, ou deverá ter de justificar que o valor do royalty, atendendo precisamente àquelas funções assumidas pelo licensee, jamais seria acordado por entidades não relacionadas seleccionando para o efeito entidades e operações comparáveis?

I. O n.º 1 do artigo 74.º da LGT determina a regra geral referente ao ónus da prova, numa lógica em tudo similar ao disposto no artigo 342.º do Código Civil: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Na mesma senda, o n.º 1 do artigo 75.º da LGT acolhe uma presunção de veracidade das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, apenas não se verificando nos casos especificadamente previstos no n.º 2 do mesmo artigo.

J. Por sua vez, na Portaria n.º 1446-C/2001 estatui-se no respectivo n.º 2 do artigo 3.º que, artigo 4.º e 5.º um conjunto de regras que corroboram o entendimento da Recorrente. Em especial, enquanto factores de comparabilidade elencados no artigo 5.º da Portaria 1446-C/2001, com especial relevância para a situação vertente, encontram-se “as funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os activos utilizados e os riscos assumidos” (cfr. alínea b) do citado preceito legal).

K. Apesar de escassa, a jurisprudência dos Tribunais Superiores que sobre esta matéria já verteu tinta tem esclarecido que “Fundando-se o juízo de comparabilidade de operações, exigido pelo n.º 3 do artigo 4.º da Portaria 1446-C/2001, num critério economicista, deve ser anulada a liquidação emitida ao abrigo do artigo 58.º do CIRC se a Administração Tributária não logrou demonstrar que, no caso concreto, as operações apresentam características económicas e financeiras relevantes suficientemente similares capazes de assegurar o elevado grau de comparabilidade legalmente exigido para que sejam realizadas correcções à matéria tributável por via do regime dos preços de transferência.” (Acórdão do STA, Processo n.º 02142/11.8BELRS de 15/12/2022).

L. No Acórdão do TCA Sul, prolatado no Processo n.º 339/13.0BELRA, de 06/30/2022, foi decidido que a AT “tem de concretizar qual ou quais as operações entre entidades independentes que serviram de termo de comparação à que foi efectuada pelo sujeito passivo impugnante, e, sendo o caso, quais os factores mais comparáveis dessa operação análoga ou similar entre entidades independentes foram tidos em conta ou relevados, depois de efectuados os ajustamentos necessários a assegurar o “mais elevado grau de comparabilidade”, como preconizado no citado n.º 2 do art. 58.º do CIRC” (realce nosso).

M. Não obstante estas disposições legais e jurisprudência, o Tribunal a quo considerou bastante neste campo a argumentação da AT constante do Relatório de Inspecção Tributária que sustentou que o contrato de licenciamento não seria suficiente para alicerçar uma remuneração de 0,6% a título de royalties por força da ausência de funções e responsabilidade da entidade licenciadora das marcas. Ou seja, a AT limitou-se, em boa verdade, a especular que o acordo em apreço não teria adesão à concorrência efectiva de mercado por força destes factores e com isso o Tribunal a quo se contentou.

N. Sucede que, neste campo, o ónus da prova da AT só se pode considerar cumprido quando esta demonstre (com dados concretos e operações comparáveis) que aquela contraprestação, em situações similares, não seria o acordado entre entidades não relacionadas, não bastando para o efeito depreender que a assunção de certas implicariam necessariamente um acordo entre entidades independentes distinto quanto à contraprestação praticada.

O. E tal não traduz uma prova impossível ou diabólica a cargo da AT. Muito pelo contrário, corresponde a uma prova muito razoável e perfeitamente possível. Para a AT lograr cumprir o seu ónus da prova e estar, então, habilitada a corrigir o lucro tributável da B..., bastaria elencar as situações de entidades independentes que pagam royalties e não têm encargos com promoção da marca, comparar as contraprestações aí acordadas com a acordada pela B... e assim concluir por uma distorção ou não (a AT verificaria se o valor acordado naquelas circunstâncias por entidades independentes sem obrigações de promoção de marca divergiria do acordado pela B... e C...).

P. Sucede que nada disso foi feito e, na situação vertente, a AT apenas colocou dúvidas acerca da exequibilidade do contrato por sujeitos independentes, e o Tribunal a quo julgou ser suficiente em matéria de ónus da prova.

Q. Precisamente no mesmo sentido, o ónus da prova que sobre a AT impende é clarificado pelo seu especial dever especial de fundamentação no âmbito de qualquer correcção referente a preços de transferência, o que implica, necessariamente, um trabalho probatório muito mais relevante e aprofundado do que aquele que por si foi desenvolvido.

R. Por tudo o exposto, conclui-se que não bastará à AT uma mera invocação de indícios ou circunstâncias relacionadas com os contornos dos contratos celebrados (e funções aí assumidas), devendo a AT concretizar, com dados em concreto, quais os factores mais comparáveis da operação análoga ou similar entre entidades independentes. Não o tendo feito, não pode substituir na ordem jurídica a jurisprudência exarada no Acórdão recorrido, devendo ser o presente recurso procedente quanto a essa questão o que determinará a anulação do acórdão recorrido ao se concluir pela anulação dos actos tributários por não ter sido cumprido, pela AT, o ónus da prova e o dever de fundamentação que lhe competia.

Quanto à segunda questão:

S. Visa-se responder ao seguinte: o que se deve entender por um segmento de mercado distinto susceptível de afastar a comparabilidade de situações convocadas pelo contribuinte no âmbito do regime de preços de transferência? Assim, e também à luz das normas e jurisprudência convocadas no subcapítulo precedente, deverá aferir-se como se deve distribuir o ónus da prova quanto à adequação da amostragem convocada pelo sujeito passivo para justificar que o preço praticado observa o preço de mercado.

T. Crê a Recorrente que a comparabilidade é afectada apenas se a amostragem contém entidades cuja dimensão, sobretudo, neste tipo de modelo, em termos de volume de negócio, é totalmente díspar pois o valor da contraprestação sai influenciado por esse valor (quanto maior é o volume de negócios, maior é oroyalty devido porque sobre este valor incide).

U. No entanto, o Tribunal a quo considerou razoável o fundamento de que, uma vez que as entidades comparadas nos estudos apresentados pela Recorrente se encontram, segundo a AT, em diferentes segmentos de mercado, essa circunstância afasta, sem mais, os estudos apresentados pela Recorrente para justificar o preço praticado e que se considerou estar em consonância com o regime de Preços de Transferência.

V. Cumpre, pois, averiguar se a pertença a segmentos de mercado alegadamente distintos pode, por si só, afastar a comparabilidade entre entidades ou outros factores devem ser valorados e convocados pela AT para afastar as conclusões do estudo apresentado pelo sujeito passivo.

W. Ora, parece ser certo que a cedência (e correspectiva utilização) de uma marca pode ser efectuada por qualquer agente que actue no mercado, tendo, como contrapartida, o pagamento de royalties sendo que a comparabilidade entre operações não pode ter como único fundamento uma diversidade na actuação de mercado porquanto estas diferenças não produzem um efeito significativo na análise das entidades em causa. Como se exemplificou, seria muito mais significativo, em termos de abalar a comparabilidade, a dimensão das empresas e os respectivos volumes de negócio.

X. Nesta sede assume particular relevância o n.º 3 do artigo 4.º da Portaria n.º 1446- C/2001 que dita que serão comparáveis as operações sempre e quando as “diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas”.

Y. Assim sendo, sempre será de se considerar que a diferença do segmento de mercado não é per se condição suficiente para afectar de forma significativa os termos e condições de mercado e a comparabilidade entre os contratos celebrados pelas empresas em causa, implicando o incumprimento do ónus da prova por parte da AT na desconsideração dos estudos de comparabilidade.

Z. Sendo sempre relevante mencionar que a B..., ao solicitar os dois estudos que basearam o concreto caso, cumpriu a obrigação de “com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis”.

AA. Face ao exposto, admitindo-se a revista quanto a esta questão, caberá a este Tribunal determinar se este fundamento de incomparabilidade é ou não suficiente para afastar o preço praticado pelo sujeito passivo e se a AT cumpriu o ónus da prova que lhe incumbia apenas por ter aventado tal circunstância. E, como se explicou, entende a Recorrente que esse fundamento deve ser tido como incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo, procedendo a revista quanto a esta questão.

Quanto à terceira questão:

BB. Esta questão resume-se ao seguinte: em que termos e condições pode ser imposto pela AT ao sujeito passivo o método de fraccionamento do lucro?

CC. O regime dos preços de transferência tem como paradigma o princípio de plena concorrência, em torno do qual se foi firmando um amplo consenso internacional por se entender que a sua adopção permite não só estabelecer uma paridade no tratamento fiscal entre as empresas integradas em grupos internacionais e empresas independentes como neutralizar certas práticas de evasão fiscal e assegurar a consequente protecção da base tributável interna.

DD. Ora, a forma mais directa de verificar a paridade dos termos e condições praticados entre empresas relacionadas com aqueles que são acordados no mercado, consiste na comparação entre o preço debitado numa transacção vinculada e o preço facturado por uma entidade independente numa transacção de idêntica natureza. É, pois, este o método – denominado Método do Preço Comparável de Mercado – que o artigo 63.º do CIRC consagra como método-regra de aplicação do princípio de plena concorrência, por ser o que oferece o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e as operações não vinculadas e por ser o que depende de informação melhor e mais facilmente acessível aos contribuintes e às Administrações.

EE. A par deste método-regra, veio o legislador português prever que os sujeitos passivos (e as Administrações fiscais) pudessem utilizar o Método do Preço de Revenda Minorado ou o Método do Custo Majorado, apenas admitindo que, para além destes, se utilizassem outros métodos, designadamente os baseados no lucro da operação possível, como o Método do Fraccionamento do Lucro ou o Método da Margem Líquida da Operação, sempre que os métodos referidos não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam, o que, como veremos, sempre carecerá de expressa fundamentação.

FF. É precisamente o que resulta do n.º 3 do artigo 63.º do Código do IRC, nos termos do qual “os métodos utilizados devem ser: a) o método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado; b) o método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam”.

GG. No caso concreto, o Tribunal considerou correcta a opção de recorrer (apenas) ao Método do Fraccionamento do Lucro por não ser possível o estabelecimento de qualquer índice de comparabilidade com operações não vinculadas.

HH. O artigo 4.º da Portaria 1446-C/2001 estabelece os diversos métodos para determinar os termos e condições “normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes”, devendo o sujeito passivo adoptar aquele que melhor satisfaça as necessidades do seu concreto caso.

II. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece que se considera “método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis”.

JJ. Sucede, porém, que, no caso em apreço, não só não é verdade que não seja possível estabelecer nexos de comparabilidade com operações não vinculadas (e, muito menos, é verdade que o estabelecimento desses nexos é impossível atento o universo da sua abrangência), como, ainda que o fosse, não seria esse um motivo suficiente para justificar o recurso àquele método de determinação de preços – o Método do Fraccionamento do Lucro – mediante o afastamento não fundamentado de todos os outros.

KK. De resto, o erro quanto aos pressupostos de aplicação dos métodos de determinação do preço de plena concorrência é, no presente caso, sobretudo realçado quando considerado o resultado da análise efectuada pela AT – é nulo o valor de plena concorrência para os royalties em causa –, e, bem assim, quando considerada a disparidade dos resultados decorrentes das análises efectuadas pela AT – através do recurso ao Método do Fraccionamento do Lucro – e pelas empresas independentes D... e E... – através do recurso ao Método do Preço Comparável de Mercado.

LL. Ora, como pode aceitar-se que o valor das operações de licenciamento em causa seja nulo se nunca a sua materialidade é questionada? Como pode aceitar-se que a concessão de uma licença para a utilização das marcas em causa possa valer zero, independentemente dos demais termos contratuais estabelecidos entre as partes?

MM. Ora, a AT opta pelo Método do Fraccionamento do Lucro sem, para o efeito, lograr testar a aplicação (ou sequer demonstrar a não aplicação) ao caso de outros métodos de determinação dos preços de transferência das referidas operações – em clara violação da lei e das orientações propostas pela OCDE nesta matéria.

NN. E entende-se que o devia ter feito, sob pena de consagrar uma violação do ónus da prova e do dever acrescido de fundamentação de selecção do método em matéria de preços de transferência que deve vingar.

OO. Por outro lado, a AT assumiu, como princípio inquestionável da sua análise, que inexistem no caso comparáveis de mercado susceptíveis de fundamentar o recurso a outros métodos para além do Método do Fraccionamento do Lucro, ignorando, para o efeito, que a própria utilização deste método pressupõe a existência, em certa medida, desses mesmos comparáveis, sendo essa também uma exigência básica da sua boa aplicação.

PP. E o Tribunal a quo não viu qualquer inconveniente à luz das regras consagradas nos artigos 74.º, n.º 1 e 75.º da LGT, no artigo 63.º do CIRC, na já convocada Portaria n.º 1446-C/2001.

QQ. Aliás, a AT opta pelo método que implica o maior (em vez do menor) ajustamento para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis, e por aquele que fornece a pior (em vez da melhor) e a menos fiável (em vez da mais fiável) estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, incumprindo, de um modo flagrante, as orientações da lei, designadamente as orientações do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, e as orientações da OCDE.

RR. Quer isto dizer que, ainda que existam métodos alternativos que podem ser adoptados porque darão uma melhor resposta ofereça às particularidades do caso concreto, sempre existirá uma obrigação de fundamentação do motivo pelo qual se escolheu um método ao invés de outro, e ainda haverá um dever de fundamentação acrescido sobre os motivos pelos quais há um afastamento das orientações da OCDE que, nesta matéria, recomendam à subsidiariedade do método de fraccionamento do lucro, assim como o indica a própria lei.

SS. Em especial, dispõe o artigo 9.º da referida Portaria que o método do fraccionamento do lucro pode ser utilizado quando “a existência de activos incorpóreos de elevado valor e especificidade torne impossível estabelecer um grau apropriado de comparabilidade com operações não vinculadas e não permita a aplicação dos restantes métodos” (cfr. al. b. do n.º 4 deste preceito). Coloca-se, assim, também aqui em evidência o especial dever de fundamentação para ser imposto este método ao contribuinte assim como a subsidiariedade recomendada face aos demais.

TT. Só cumprindo este dever acrescido de fundamentação será possível sindicar qual será o método mais apropriado de acordo com a supracitada disposição do n.º 2 do artigo 4.º da referida Portaria.

UU. Assim, há que concluir que cabe à AT explicitar os motivos pelos quais opta pelo método do fraccionamento do lucro, além de fundamentar os motivos pelos quais os demais métodos de preços de transferência são imprestáveis no caso em concreto, não podendo vingar a jurisprudência no Acórdão recorrido que não acolheu este entendimento.

VV. Por fim, quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista, importa mencionar que, quanto à relevância jurídica, as três questões colocadas à apreciação do Supremo Tribunal Administrativo apresentam manifesta complexidade e dificuldade especial de exegese jurídica, em face de se aterem sobre a matéria de ónus da prova (complexa o suficiente) no contexto de correcções em sede de Preços de Transferência (primeira questão).

WW. Acresce que o regime de preços de transferência não está especialmente analisado pela jurisprudência no tocante às questões aqui trazidas à colação, ie., quanto aos conceitos de segmento de mercado e comparabilidade ou não entre empresas de segmentos distintos (segunda questão) ou a subsidiariedade do método de fraccionamento do lucro e requisitos para ser oposto ao contribuinte (terceira questão). E o preenchimento destes conceitos requer uma análise jurídica que será inovadora e permitirá solucionar futuros outros casos que contendem com questões muito similares que convocarão esses precisos conceitos,

XX. Já no que se refere à sua relevância social, é absolutamente evidente e incontroverso que o problema ora em apreço ultrapassa o caso singular, envolvendo a análise de questões jurídicas associadas à interpretação das normas de distribuição do ónus da prova em matéria de preços de transferência, prática regular da vida societária actual, sendo, ainda assim, um tema tremendamente subexplorado, como já referidas, pela doutrina e jurisprudência e, como tal, sujeito a tremendas subversões por interpretações próprias da AT e dos diversos julgadores.

YY. Com efeito, a jurisprudência que se debruçará sobre as três questões terá a virtualidade de ser aplicada a um número indeterminado de situações, ou seja, a todos os sujeitos passivos que celebrem contratos de licenciamento de marcas, licenças, software, patentes e que assumam, enquanto licensees, determinados encargos e obrigações com a divulgação e promoção da marca ou do produto (primeira questão).

ZZ. Como terá impacto relevante em perceber o conceito de segmento de mercado e reflexos na comparabilidade (segunda questão) e, assim, incutir segurança no tráfego jurídico pois os contribuintes poderão perceber se o estudo que possuem passará no crivo da AT e dos Tribunais. Importa perceber, pois, qual a relevância e o nexo exigidos para uma comparabilidade entre empresas independentes e de que modo essa comparabilidade pode ser colocada em causa pela AT e Tribunais em face de minudências específicas do mercado em causa, como seja a diferença no segmento de mercado em que actuam as empresas em situações de concorrência efectiva.

AAA. Para além disso, a questão de determinar qual o método aplicável e a compreensão da eventual extensão da liberdade de escolha por parte da AT daquele que melhor se adequar (terceira questão) às vicissitudes do caso concreto, não pode deixar de relevar para uma maior segurança jurídica dos contribuintes que actuem neste espaço e se encontrem sujeitos a uma contingência de particularmente elevada como a que se verificar no concreto caso e em inúmeros outros.

BBB. A presente Revista tem, assim, o seu fundamento numa flagrante violação da lei substantiva, consubstanciada nas violações do n.º 1 dos artigos 74.º e 75.º da LGT, do artigo 63.º do CIRC e suas disposições, artigos 3.º, 4.º, 5.º e 9.º da Portaria n.º 1446- C/2001, tal como referenciados em cada uma das questões.

Termos em que se requer a V. Exas. que admitam o presente recurso de revista e que o julguem totalmente procedente, assim se revogando o acórdão recorrido, e proferindo-se novo acórdão que, nos termos e com os fundamentos acima invocados, venha a julgar totalmente procedente a impugnação judicial.

Assim se fazendo inteira Justiça.».

1.2 A Recorrida não contra-alegou.

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Sul, tendo verificado a tempestividade do recurso e a legitimidade da Recorrente, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que «não compete ao Ministério Público, nesta fase, pronunciar-se quanto à admissibilidade ou não do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito e só no caso de este ser admitido».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, da admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 6 do art. 285.º do CPPT.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» ( Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Cumpre ter presente que, em sede de recurso excepcional de revista e nos termos do disposto no n.º 4 do art. 285.º do CPPT, as questões de facto, designadamente o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos, estão arredadas do âmbito do recurso, a menos que haja «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.1.5 Referidos que ficaram os pressupostos da admissibilidade da revista excepcional e o seu âmbito abstracto, passemos a verificar, preliminar e sumariamente (cfr. art. 285.º, n.ºs 1 e 6, do CPPT), se o recurso pode ser admitido, designadamente, se as questões enunciadas pela Recorrente podem ser reapreciadas com os contornos por ela delineados e à luz dos invocados requisitos de admissibilidade.

2.2 O CASO SUB JUDICE

Estamos perante uma liquidação adicional de IRC efectuada por a AT ter considerado que, com referência ao exercício de 2013 e em face do disposto no art. 63.º do Código do IRC (CIRC) e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, na redacção em vigor à data, ou seja, do regime interno de preços de transferência, não concorriam para a formação do lucro tributável da sociedade ora Recorrente os gastos por ela declarados relativamente ao pagamento de royalties a uma outra sociedade, por não terem sido contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, não tendo sido observado o princípio da plena concorrência
O Tribunal Tributário de Lisboa julgou a impugnação judicial procedente. Em síntese, considerou que «a Administração Tributária não logrou demonstrar os pressupostos legais da aplicação do artigo 63.º, n.º 1, do Código do IRC, quanto ao requisito de que entre os sujeitos passivos intervenientes na operação vinculada não foram contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, ficando prejudicado o conhecimento dos demais vícios invocados pela Impugnante quanto a esta correcção à matéria colectável».
A AT recorreu dessa sentença para o Tribunal Central Administrativo Sul, que, concedendo provimento ao recurso, revogou o decidido pelo Tribunal Tributário de Lisboa e julgou a impugnação judicial improcedente. Em resumo, considerou o Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão ora sob recurso que «[o] pagamento de royalties pela cedência de marcas, cuja criação, gestão, desenvolvimento e promoção compete à cessionária, sem qualquer contrapartida, no quadro de entidades membros de um grupo económico, consubstancia preços de transferência».
Ou seja, no essencial, as instâncias divergem no entendimento quanto à satisfação ou ao desincumbimento, pela AT, do ónus que sobre ela recai – não há dúvidas a este respeito, em face do disposto nos arts. 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), 63.º, n.º 1, do CIRC e 1.º, n.º 1, 4.º e 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001-, de demonstrar que no contrato de licenciamento em causa foram praticadas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes em operações comparáveis.
A Impugnante vem agora recorrer para este Supremo Tribunal, suscitando em sede de revista excepcional as três questões que enunciou na alínea D das suas alegações, acima transcritas: as duas primeiras respeitantes ao ónus da prova, mais concretamente, ao nível de prova que poderá ser exigível e ser tida como suficiente para que se considere que a AT se desincumbiu do ónus que sobre ela faz recair o art. 63.º do CIRC, designadamente, quanto ao pressuposto de que entre os sujeitos passivos intervenientes na operação vinculada foram estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes em operações comparáveis, ou seja, quanto ao quantum probatório ou standard de prova; a terceira questão que a Recorrente pretende submeter à apreciação deste Supremo Tribunal respeita aos termos e condições em que pode ser imposto pela AT ao sujeito passivo o método do fraccionamento do lucro.
Salvo o devido respeito, as duas primeiras questões não podem deixar de ser vistas como respeitando ao julgamento da matéria de facto e, por isso, indissociáveis do concreto julgamento que foi efectuado pelo Tribunal a quo. Na verdade, como deixámos dito, no âmbito da revista excepcional de revista as questões de facto, designadamente o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos, estão arredadas do âmbito do recurso, a menos que haja «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova», o que não é o caso (cfr. art. 285.º, n.º 4, do CPPT). Ou seja, a este Supremo Tribunal não compete a apreciação do julgamento da matéria de facto que as instâncias consideraram relevante para a decisão da questão, nem pode, pelas mesmas razões, sindicar as ilações de facto que as instâncias retiram dessa matéria.
Ora, as duas primeiras questões que a Recorrente pretende ver apreciadas por este Supremo Tribunal, tal como as configurou, não se afiguram dotadas da natureza normativa, nos termos requeridos, para integrarem a excepção prevista no citado n.º 4 do art. 285.º do CPPT (não se referem à «ofensa de uma disposição expressa de lei» que «exija certa espécie de prova para a existência do facto» ou que «fixe a força de determinado meio de prova»); essas questões porquanto não correspondem a um critério normativo que possa ser subsumido àquela excepção e, ao invés, constituem uma construção da Recorrente assente na sua visão das particularidades do caso concreto no contexto factual bem como na vertente casuística da decisão recorrida.
Por isso, a revista não pode ser admitida relativamente às referidas duas primeiras questões.
A Recorrente pretende ainda que este Supremo Tribunal aprecie a questão de saber se estava justificada a aplicação do método do fraccionamento do lucro, de entre os diversos métodos estabelecidos no art. 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro de 2001, considerando que o Tribunal Central Administrativo Sul, erradamente, entendeu «correcta a opção de recorrer (apenas) ao Método do Fraccionamento do Lucro por não ser possível o estabelecimento de qualquer índice de comparabilidade com operações não vinculadas».
Sustenta a Recorrente que «no caso em apreço, não só não é verdade que não seja possível estabelecer nexos de comparabilidade com operações não vinculadas (e, muito menos, é verdade que o estabelecimento desses nexos é impossível atento o universo da sua abrangência), como, ainda que o fosse, não seria esse um motivo suficiente para justificar o recurso àquele método de determinação de preços – o Método do Fraccionamento do Lucro – mediante o afastamento não fundamentado de todos os outros».
Salvo o devido respeito, também aqui a Recorrente pretende que este Supremo Tribunal sindique o juízo de facto formulado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, de que, uma vez que «[e]stão em causa activos intangíveis, […] a invocação da comparabilidade das transacções, em casos como o presente, não permite apreender as relações estabelecidas entre as empresas envolvidas» e de que «a empresa polaca recebedora dos Royalties assume uma margem mínima de custos com pessoal, sendo que os gastos com amortização de marcas representam 97,72% dos seus custos operacionais. De onde resulta o carácter não justificado das obrigações emergentes para a recorrida do contrato de licenciamento em apreço».
Os juízos de facto formulados pelo Tribunal Central Administrativo Sul, quanto a ser inviável a «comparabilidade das transacções, em casos como o presente» e quanto ao «carácter não justificado das obrigações emergentes para a recorrida do contrato de licenciamento em apreço», estão fora do âmbito dos poderes de sindicância deste Supremo Tribunal. Como deixámos já dito, tais poderes, em matéria do julgamento da matéria de facto, estão limitados pelo n.º 4 do art. 285.º do CPPT, sendo que a questão suscitada pela Recorrente não se insere em nenhuma das excepções aí previstas à impossibilidade de sindicância do julgamento da matéria de facto em sede de revista.
Por isso, a revista também não pode ser admitida quanto à terceira questão enunciada pela Recorrente.

2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Os juízos de facto efectuados pelo tribunal central administrativo não são sindicáveis em sede de revista, pois tais juízos não se inserem em nenhuma das hipóteses em que o n.º 4 do art. 285.º do CPPT concede poderes ao Supremo Tribunal Administrativo em matéria de facto.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 28 de Fevereiro de 2024. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Isabel Marques da Silva.