Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0223/01.5BTAVR
Data do Acordão:01/12/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28778
Nº do Documento:SA2202201120223/01
Data de Entrada:09/22/2021
Recorrente:A........,S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A………, S.A., (doravante “A………” ou “Recorrente”), tendo sido notificada do Acórdão datado de 11 de Março de 2021, constante de fls., e com ele não se conformando, vem do mesmo interpor RECURSO DE REVISTA, nos termos previstos nos artigos 285.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), por estar em causa a apreciação de questões que, pela sua relevância jurídica ou social, se revestem de importância fundamental ou ainda por a admissão e decisão do recurso ser claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.

Alegou, tendo concluído:
A. Nas alegações de recurso que a Recorrente apresentou junto do Tribunal a quo foi invocado que a sentença de primeira instância fez uma incorrectíssima aplicação do Direito, porquanto, à luz do n.º 1 e 2 do artigo 18.º do CIRC, e atendendo aos factos provados nos autos, jamais se poderiam reputar os juros como “proveitos imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos” em cada um dos anos de 1989 a 1993 para que pudessem ser imputados exclusivamente ao exercício de 1993. Por conseguinte, impunha o princípio da especialização dos exercícios que o valor dos juros fossem distribuídos pelos anos transactos independentemente do recebimento (que só ocorreu em 1994).
B. O TCA Norte negou provimento a este fundamento do recurso da Recorrente e ao decidir no sentido de que não deveriam os proveitos (juros) ter sido imputados e tributados em IRC em cada um dos anos de 1989 a 1993, consumou uma interpretação do princípio da especialização dos exercícios (artigo 18.º, n.º 1 e 2 do CIRC) insustentável e gravíssima, que não pode permanecer na ordem jurídica, quanto não seja pela profunda ruptura que tal significaria na jurisprudência totalmente consolidada sobre o axioma basilar do IRC que é a especialização dos exercícios.
C. Entendeu o Tribunal Recorrido que apenas com a comunicação “formal” do Sr. B………… e Presidente do Conselho de Administração …….. realizada em 15.12.1993 é que a A………….. terá tomado conhecimento do montante dos juros que a aplicação do sinal terá vencido e, por conseguinte, impunha-se que a tivesse tributado esse proveito integralmente em 1993 (e não, como entende a Recorrente, em cada um dos anos transactos).
D. A questão que se submete a Revista é precisamente a de saber se deve ser tido como proveito imprevisível ou manifestamente desconhecido, à luz do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, e assim justificar a sua tributação em IRC num determinado exercício que não aquele em que foi gerado, o proveito de exercícios transactos em razão de só ter existido uma comunicação formal ulterior por escrito do depositário quanto ao quantum desse proveito, pese embora o Presidente do Conselho de Administração fosse o próprio depositário e autor dessa comunicação e ele e mais dois administradores conhecessem o valor desse proveito gerado em cada um dos anos. O quesito em causa é invulgarmente simples (tal como é a sua resposta): um proveito conhecido pelos administradores de determinada sociedade deve ter-se por conhecido pela própria sociedade e, portanto especializado no(s) exercício(s) em que é gerado ou deverá ter-se como imprevisível ou manifestamente desconhecido nos termos do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC e tributar-se posteriormente apenas quando existir evidências de uma comunicação formal do seu depositário e Presidente do Conselho de Administração ao sujeito passivo a que preside?
E. Resulta inequivocamente demonstrado dos autos que, em 1989, a A…………, após ter recebido o sinal do sobredito contrato-promessa de compra e venda (USD 15.000.000), o confiou ao Presidente do Conselho de Administração, Sr. B……….., mediante contrato de depósito celebrado entre ambos, a sua custódia e aplicação (facto dado como provado n.º 12).
F. Em face destes factos, o Tribunal a quo afirma expressamente na fundamentação do Acórdão recorrido que “este proveito integrar-se-ia inelutavelmente no património da Recorrente quer esta fosse obrigada a restituir o valor do sinal e a pagar juros à promitente compradora, quer viesse a outorgar o contrato prometido, como efectivamente veio a fazer” (cfr. p. 55 do Acórdão recorrido). Significa isto que o Tribunal a quo percepcionou, e bem, que desde 1989 (data em que foi confiado o capital ao Sr. B…………) a Recorrente sabia que uma quantia bastante elevada (quinze milhões de dólares americanos em 1989…), estava a render juros por sua determinação e sob gestão de B…………... E defendia que aquela quantia, também como reconhecido pelo Tribunal a quo, iria mais tarde ou mais cedo (dependendo da data da celebração da escritura de venda da Herdade ………. à C………..) ser-lhe entregue definitivamente, como é conditio legis do contrato do depósito.
G. Naturalisticamente, não é possível contrariar que o Presidente do Conselho de Administração sabe o que ele próprio, depositário, também sabe, pelo que uma comunicação formal feita por ele próprio e tendo como um dos destinatários ele próprio só pode ser res nullius em relação a si.
H. Em primeiro lugar, há uma primeira presunção de experiência absolutamente manifesta, que afasta a hipótese de uma administração, direcção financeira e contabilidade, medianamente instruídas e diligentes, de ignorar durante quase quatro anos a evolução financeira de uma quantia de tamanha envergadura e relevância para a proprietária A…………, incluindo o Presidente do CA e depositário e dois administradores, se preocupasse com o depósito e a sua rentabilidade.
I. Em segundo lugar, a verdade é que nem era mister chamar estas presunções de experiência à colação; isto porque o conhecimento da valorização dos depósitos pelo Presidente do Conselho de Administração é o conhecimento pela sociedade, e mais ainda se mais dois dos administradores sabiam dessa valorização; não se percebe como é possível postular que assim não é, ou melhor, que não é forçoso assim ser!
J. Acresce que o tribunal de primeira instância estava plenamente ciente do conhecimento factual e directo que os ditos administradores tinham da valorização dos depósitos - o que não foi contrariado pelo órgão recorrido. Porém não é a inidoneidade dessa análise que é o cerne do gritante equívoco aqui em causa, mas a afirmação, in casu, de que o conhecimento de um Presidente do Conselho de Administração e dois administradores não é um equivalente fiscal de “conhecimento por parte da empresa”.
K. É amplamente reconhecido na jurisprudência e na doutrina que o princípio da especialização dos exercícios visa “tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram”. À data, rezava ainda o Plano Oficial de Contas: “os proveitos e os custos são reconhecidos quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento, devendo incluir-se nas demonstrações financeiras dos períodos a que respeitam” (cfr. Decreto-Lei n.º 408/89, de 21 de Novembro, par. 4, al. c.). Hoje tal princípio está vertido na estrutura conceptual do Sistema de Normalização Contabilística enquanto regime do acréscimo (§22).
L. Na situação vertente, quer a regra contabilística quer a fiscal ditam que os frutos (juros) da aplicação do capital sejam reconhecidos em estrito cumprimento do princípio da especialização, ie., em cada exercício deve registar-se o proveito independentemente do recebimento. De facto, o direito àquele recebimento vai-se formando à medida em que o capital está aplicado, tornando-se certo em função dos valores já vencidos.
M. O princípio da especialização consente, todavia, uma excepção que está contida no n.º 2 do artigo 18.º do CIRC de acordo com a qual “As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.
N. A impossibilidade e/ou o desconhecimento das componentes, para serem relevantes à luz do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, hão-de decorrer de situações externas que o sujeito passivo não pode controlar, ie., de uma imprevisibilidade ou desconhecimento objectivo e não subjectivo.
O. À luz da jurisprudência do STA que tem sido vertida sobre esta matéria, apenas é consentida uma violação ao princípio da especialização se o não reconhecimento do proveito (ou do custo) no exercício a que respeita se deveu a um factor externo e não controlado pelo contribuinte, logo não se pode dever a um erro contabilístico do próprio contribuinte uma vez que nessa situação não se pode afirmar o desconhecimento ou a imprevisibilidade; a omissão de reconhecer o proveito (ou o custo) no exercício a que respeita não pode ser intencional com o objectivo de manipular resultados e diminuir a carga fiscal.
P. Ingressando então mais fundo na questão que se submete à apreciação deste Venerando Tribunal, o entendimento vertido no Acórdão recorrido separa o que é inseparável, ie. a vontade da sociedade da da pessoa do seu Presidente do Conselho de Administração e demais administradores, a quem compete em exclusivo a representação e a vinculação da sociedade em todos os actos internos e externos.
Q. A relevância dos administradores quanto à imputação dos actos de que têm conhecimento e que respeitam à sociedade é total e não pode ser afastada, o que resulta inequívoco do preceituado no n.º 3 do artigo 408.º do CSC (a redacção permanece igual actualmente): “as notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos administradores, sendo nula toda a disposição em contrário do contrato de sociedade”. Significa isto que pretendendo-se dar a conhecer qualquer facto à sociedade bastará dá-lo a conhecer a (qualquer) um dos administradores, considerando-se necessariamente a sociedade informada desse facto (não estamos perante uma presunção, mas sim perante uma ficção legal).
R. Inexiste, de resto, qualquer norma que imponha que o conhecimento de um determinado facto pelo Presidente do CA e/ou outros administradores só seja imputável à sociedade se suportado em comunicação endereçada ao Conselho de Administração, muito menos quando a única pessoa a quem cabe essa comunicação seja o próprio Presidente do Conselho de Administração na sua veste de depositário.
S. Subsidiariamente, ainda que, num exercício de pura teoria, se concebesse que a sociedade não teve conhecimento da valorização do depósito, jamais a AT poderia invocar desconhecimento ou imprevisibilidade - e portanto, a ausência de dever fiscal de especializar os ganhos em causa em 1989, 1990, 1991, 1992 e 1993, - sem provar que a Administração da Recorrente não pôde, sem culpa sua, ter conhecimento daquela valorização, (podendo munir-se de documentos ou testemunhas que demonstrassem que tentou fazê-lo mas que o depositário não forneceu a informação). Este seria um ónus da AT, pois que se trata de um facto impeditivo da aplicação da regra geral de que os proveitos são imputados ao ano a que respeitam, tal como se retira de toda a jurisprudência deste douto STA atrás citada.
T. A Recorrente considera estarem reunidos os requisitos legais do recurso de revista previstos no n.º 1 do artigo 285.º do CPPT (n.º 1 do artigo 150.º do CPTA). Não nos parece que este recurso se justifica tanto pela sua RELEVÂNCIA JURÍDICA, quando à mesma se associe complexidade ou dificuldade especial de exegese jurídica, quanto pela sua RELEVÂNCIA SOCIAL absolutamente evidente e incontroversa.
U. A questão ultrapassa, sem qualquer margem para dúvidas, o caso singular, envolvendo a análise de questões jurídicas associadas à interpretação do princípio da especialização dos exercícios, que é absolutamente enformador do IRC, e implica o preenchimento dos conceitos de “imprevisibilidade” e “manifesto desconhecimento” que permitem derrogar aquele princípio; a probabilidade de repetição de situações como a dos autos é enorme, dada a frequência de gastos e proveitos que têm repercussão plurianual na operação das empresas e a generalização de fenómenos de desresponsabilização dos sujeitos passivos pela devida especialização, a que se pode assistir, se a decisão recorrida tiver seguimento.
V. O tema da imputabilidade à sociedade por factos conhecidos pelos seus administradores por outra via que não a de uma comunicação formal tem uma transcendência que ultrapassa o plano fiscal, entrando no domínio criminal-tributário e comum, comercial, etc.. Socialmente, a percepção de que o conhecimento de um facto não endereçado formalmente a uma sociedade pode eximi-la de responsabilidade teria o potencial de alterar radicalmente a forma como se encara a actuação da administração das sociedades e de reduzir drasticamente o grau de exigência no cumprimento dos deveres dos administradores em geral.
W. Quanto ao requisito da necessidade de apreciação do recurso para uma melhor aplicação do direito, a solução perfilhada no Acórdão recorrido é particular e ostensivamente errada e juridicamente insustentável, contrariando não só o direito como as regras comuns da experiência; não exageramos se dissermos que colide frontalmente com a consciência jurídica vigente na nossa comunidade.
X. E servirá ainda o propósito de não atentar contra uma corrente jurisprudencial pacífica e reiterada sobre os conceitos de “imprevisibilidade” e “desconhecimento” nos termos do nº 2 do artigo 18º do CIRC, corolário que também compete ao nosso Supremo Tribunal salvaguardar o mais possível, a bem da estabilidade e previsibilidade da nossa jurisprudência.
Y. A presente Revista tem, assim, o seu fundamento numa flagrante violação da lei substantiva, consubstanciada nas violações do n.º 1 e nº 2 do artigo 18º do CIRC e do n.º 3 do artigo 408.º do CSC.
Termos em que se requer a v. exas. que admitam o presente recurso de revista e que o julguem totalmente procedente, assim se revogando o acórdão recorrido, e proferindo-se novo acórdão que, nos termos e com os fundamentos acima invocados, venha a julgar totalmente procedente a impugnação judicial.

Não foram produzidas contra-alegações.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto levada ao probatório da decisão recorrida.

Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.
Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 - A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5- Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.
6- A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.
Como claramente resulta do disposto no artigo 285º, n.º 3 do CPPT, neste recurso de revista, apenas é permitido ao Supremo Tribunal Administrativo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não devendo o recurso servir para conhecer, em exclusivo, de nulidades da decisão recorrida ou de questões novas anteriormente não apreciadas pelas instâncias.
Igualmente não pode servir o recurso de revista para apreciar estritas questões de inconstitucionalidade normativa, que podem discutir-se em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.

No essencial a recorrente pretende que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a questão de saber se deve ser tido como proveito imprevisível ou manifestamente desconhecido, à luz do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, e assim justificar a sua tributação em IRC num determinado exercício que não aquele em que foi gerado, o proveito de exercícios transactos em razão de só ter existido uma comunicação formal ulterior por escrito do depositário quanto ao quantum desse proveito, pese embora o Presidente do Conselho de Administração fosse o próprio depositário e autor dessa comunicação e ele e mais dois administradores conhecessem o valor desse proveito gerado em cada um dos anos.

Lido atentamente o acórdão recorrido, facilmente se surpreende que a questão que vem colocada resultou da análise da matéria de facto considerada assente pelas instâncias e, bem assim, das ilações de facto que dela se retirou.
Na verdade, escreveu-se a esse propósito no acórdão recorrido:
Como a própria Recorrente alega, o valor do sinal foi entregue ao depositário, que passou a agir como se seu proprietário fosse e dos juros que resultaram da aplicação financeira desse capital, pelo que tais montantes não só não estavam na sua disponibilidade desde meados de 1989 a final de 1993, como o valor dos juros não era do seu conhecimento. E tanto, assim, é que em 15.12.1993 o depositário comunicou à Recorrente que o montante do sinal vencera “juros acumulados à taxa corrente de mercado‖, nos anos de 1989, 1990, 1991, 1992 e 1993, e que este computou em “USD 4.074.022,00”( cfr .ponto 16 da matéria assente).
Claudica, assim, a tese esgrimida pela Recorrente de que sempre conhecera o montante dos juros que o valor do sinal ia vencendo, ao longo dos diversos exercícios, pois, se assim fosse, que necessidade haveria de o depositário comunicar expressamente em 1993 o valor dos juros? E se, como refere a Recorrente, tal comunicação teve apenas como propósito satisfazer os credores da sua sócia, à data em processo de insolvência, e a impetrante, como alega, já conhecia tal informação, porque a não forneceu ela mesma? E porque não foram juntos aos autos quaisquer documentos reveladores desse conhecimento (as alegadas folhas elaboradas em programa ”exel“ a que os Administradores tinham acesso)?
Não deixa de causar alguma estranheza que a Recorrente alegue ter conhecimento do valor dos juros e afirme que, nas reuniões do Conselho de Administração, fazia-se o acompanhamento e andamento do investimento do valor do sinal, identificava-se o montante dos juros que aquele capital proporcionara e “definiam-se as directrizes a seguir quanto às aplicações para o período seguinte”, quando, como resulta da missiva subscrita pelo depositário, o valor do sinal estaria a vencer juros acumulados (pasme-se) ”à taxa corrente de mercado”! Então, para quê definir as propaladas directrizes quanto às aplicações se a natureza do investimento não sofrera qualquer mutação naquele período e encontrava-se aplicado em “produto” que apenas frutificava à taxa normal de mercado?
Não colhendo a tese aventada pela Impetrante de que sempre conhecera o montante de juros que o valor do sinal em causa proporcionara, falece a tese propugnada no sentido de que a AT apenas podia ter “imputado os juros aos proveitos de cada um dos anos ainda em aberto, podendo liquidar quando e se tal lhe fosse ainda permitido em face das regras da caducidade do direito à liquidação”.

Ou seja, a solução encontrada no acórdão recorrido não se reconduziu a uma mera interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis ao caso dos autos, foi mais além, face à matéria de facto disponível, e em momento anterior ao da interpretação e aplicação das normas, concluiu-se que os factos tidos como assentes não permitiam que deles se retirassem as ilações, de facto, necessárias para que se pudesse interpretar e aplicar as normas no sentido pretendido pela recorrente.
Efectivamente, só a singularidade concreta da específica situação dos autos é que permitiu que o Tribunal recorrido concluísse do modo como o fez, não se vislumbrando que se trate de questão que possa ter repercussão para outros casos, a não ser que se repetisse novamente a mesma situação fáctica e da mesma se retirassem as mesmas ilações de facto.
Por outro lado, ainda que de modo perfunctório, não se vislumbra que a questão de direito tenha sido erradamente julgada, face á matéria de facto disponível, pelo que, também não é possível admitir o presente recurso para melhor aplicação do direito.
Conclui-se, assim, que o recurso não pode ser admitido.

Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
Custas do incidente pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 12 de janeiro de 2022. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – José Gomes Correia.