Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:015/20.2BEFUN
Data do Acordão:04/29/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
APRESENTAÇÃO DAS PROPOSTAS
PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
PROCEDIMENTO
Sumário:I - O número 4 do artigo 57.º do Código dos Contratos Públicos não exige que os poderes de assinatura da proposta sejam especificados na procuração conferida ao seu signatário, limitando-se a exigir que a mesma seja assinada por quem tenha poderes para obrigar o concorrente
II - Situando-se a questão no âmbito da interpretação do sentido da declaração contida na procuração junta pelo concorrente com a proposta, é suficiente, convocando as regras de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidas nos números 1 dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, que aqueles poderes tenham um mínimo de correspondência no seu enunciado escrito e que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir esse sentido daquele enunciado.
III - No domínio da contratação pública, deve observar-se o princípio do favor participationis, ou do favor do procedimento, que impõe que, em caso de dúvida, se privilegie a interpretação da norma que favoreça a admissão do concorrente, ou da sua proposta.
Nº Convencional:JSTA00071127
Nº do Documento:SA120210429015/20
Data de Entrada:03/10/2021
Recorrente:A................, LDA
Recorrido 1:B..............., UNIPESSOAL, LDA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:CONTRATO
Área Temática 2:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Legislação Nacional:COD CONT PUBL ART 1.º-A
COD CONT PUBL ART 57.º, 4
COD CONTRAT PUBL ART 146.º, 2, ALS. D) e E)
CCIVIL66 ART. 236.º, 1
CCIVIL66 ART 238.º, 1
Referência a Doutrina:RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, OS PRINCÍPIOS GERAIS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA, ESTUDOS DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA, CEDIPRE, COIMBRA, 2008, pág. 113
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. A………………., LDA. - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 15 de outubro de 2020, que negou provimento ao recurso interposto da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, de 8 de junho de 2020, que julgou procedente a ação proposta contra si e a REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA por B…………… UNIPESSOAL, LDA, e anulou o despacho do Vice-Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, de 5 de dezembro de 2019, proferido no âmbito do concurso público para a “Aquisição de serviços de acesso a base de dados e conteúdos jurídicos para vários organismos do Governo Regional”, de que foi adjudicatária.

2. Nas suas alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:

« 1 – Assume enorme relevância, jurídica e social, sobretudo nos dias que correm e mais ainda, nos que se avizinham, face à expectável e desejável iminente afluência de fundos para investimento e desenvolvimento da economia, com a concomitante celebração de contratos públicos, a definição, que resultará do acórdão a recair sobre o presente recurso, sobre se o n.º 4, do art. 57.º, do Código dos Contratos Públicos, impõe a total falta de senso comum, quiçá mesmo a acefalia como forma de interpretação e a redundância como forma de expressão escrita, frontalmente contra o que dispõe o n.º 3, do art. 9.º, do Código Civil, ou se, ao invés, se exige apenas rigor, sim, mas dentro das regras da hermenêutica e das normas de bom senso, sobretudo quando, como é o caso, o resultado que a norma pretende evitar há muito se encontra esconjurado.

1.1 – O acórdão recorrido fundou-se, expressamente, nas normas constantes dos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, por via das quais concluiu, “No caso em análise, foram expressamente concedidos a C……………… poderes para negociar propostas de contratos, para proceder ao seu envio e para outorgar os contratos referidos na indicada procuração. Conforme decorre do texto da procuração, não foram expressamente concedidos àquele representante poderes para proceder, em representação da A…………, à assinatura digital de propostas enviadas em sede de contratação pública, vinculando aquela empresa aos termos das propostas enviadas. Invoca o Recorrente que a procuração outorgada conferia tais poderes, ainda que não constem em termos expressos do seu texto, porque o referido instrumento deve ser lido em conjunto e como um todo coerente, como visando conferir poderes para todos os actos relativos ao procedimento em questão, as suas várias fases. Esta argumentação não colhe.”, enquanto o voto de vencido da mesma decisão com base exactamente nas mesmas normas da hermenêutica negocial, concluiu, integrando-as com os princípios “da i) proporcionalidade (…) ii) do favor do procedimento (…) e iii) da concorrência (…)” que tais normas e princípios “apontam para a necessidade de afastar uma solução de exclusão da proposta que, no caso em apreço, atentos os poderes conferidos pela procuração sub judice, à luz das normas de interpretação dos atos e negócios jurídicos, constantes dos art.s 236º e ss. do CC, se mostra, com o devido respeito pela posição que obteve vencimento, desadequada. Os mesmos princípios determinam que as regras do Código dos Contratos Públicos e da Lei n.º 96/2015, de 17.08 sejam interpretadas num sentido que permita evitar a exclusão de uma proposta cuja valia não vem questionada e a exclusão de um concorrente cuja vontade firme de contratar não é posta em causa, como consequência de uma irregularidade formal cuja existência, no caso em apreço, decorre apenas de uma das interpretações possíveis dos poderes conferidos pela procuração junta no procedimento. (…) considero que uma das interpretações possíveis do texto da procuração sub judice, à luz do citado art. 236.º do CC, conferindo “poderes bastantes para representar a sociedade mandante, nos seguintes actos e contratos: - na negociação e correspondente envio de propostas de contratos, bem como na outorga de contratos de prestação de serviços na área da informática jurídica – que é o caso -, ou da radiofusão de conteúdos do mesmo jaez, nomeadamente, no primeiro caso, no acesso às bases de dados, e, no segundo, a divulgação de informação jurídica, contratos estes que poderá outorgar, sejam a celebrar por instrumento público ou não e quer se tratem de entidades públicas, quer privadas, independentemente do valor do contrato e do seu tempo de duração; (...).”, inclui o poder para assinar as propostas, não devendo, pois, face a todo o exposto, ser excluída a proposta adjudicatária com esse fundamento, razão pela qual revogaria a decisão recorrida e manteria o ato impugnado.”. Afigura-se-nos imprescindível, para uma melhor aplicação do direito, dilucidar se o Código dos Contratos Públicos se integra numa ordem jurídica diversa, ou se, pelo contrário, as regras jurídicas e os princípios de direito que fundam e devem tutelar a confiança, quer dos diversos actores judiciários, quer de quem recorre aos tribunais e ao sistema em geral se mantêm, aplicando-se-lhe in totum, sem, naturalmente, perverter a respectiva ratio legis, dilucidação que só o acórdão aqui tirado poderá produzir.

1.2 - A decisão recorrida opera, como procuramos demonstrar, uma inversão absolutamente artificial e mesmo, contra natura, da dinâmica do contrato, por via da qual afirma, no fundo, correr o rio para a nascente, ao expressamente posicionar os poderes conferidos na procuração “para “negociar”, “enviar” propostas, ou para assinar os contratos celebrados11,” “a montante do poder de assinatura da proposta enviada,12” dizendo-os, a todos, “poderes menos exigentes que o poder de assinatura da proposta enviada”, deste modo traindo, aliás de forma perversa, as expectativas dos concorrentes e logo o princípio da confiança, acarretando o total desprestígio das Instituições, quer das entidades contratantes, obrigando-as a minudências pleonásticas, inadmissíveis em pessoas de meridiana cultura, autênticas redundâncias, por mera cautela, quer mesmo do Tribunal, que, a manter-se a decisão vigente, mais do que sancionar tal desfaçatez, acaba por exigi-la! Entendemos demandar, mesmo exigir, a melhor aplicação do direito – como também ensina Menezes Cordeiro, ibidem, a pgs. 236, “A decisão colhe a sua justeza na conformidade integral com o sistema jurídico que a propicia.” - a admissão e apreciação do recurso, mais quando, como é o caso, a contundência da divergência é tanta: a recorrente tem defronte uma decisão, fundamentada com evidência de pleno conhecimento das normas que invoca, em que é afirmada uma conclusão apodítica, no sentido da impossibilidade do apelo, concretamente, à vontade real das partes, “Quanto à vontade das partes, aqui não vale para contrariar o sentido da declaração, pois os poderes para a assinatura digital exigiam-se expressamente comprovados no âmbito da legislação da contratação pública”, determinada pelo art. 236.º do CCivil e a consequente invalidade da procuração para o efeito a que se destinava e uma outra, em que se determina precisamente o contrário, apelando às mesmas regras, integradas pelos princípios fundamentais do hodierno direito da contratação pública.

1.3 – Como começamos por mencionar, V. Exas., Exmos. Senhores Conselheiros, eventualmente até em idêntica Formação, mas ainda que assim não seja, também ela seguramente mui erudita, admitiram o recurso no douto acórdão desse Alto Tribunal, de 10.09.2020, tirado no proc. n.º 185/19.2BEPDL, com o seguinte fundamento: “A «quaestio juris» resolvida em sentidos opostos pelas instâncias cinge-se à interpretação do texto da procuração emitida pelo único gerente da sociedade recorrente a favor do terceiro que assinou manual e digitalmente os documentos integrantes da proposta dela. Aquele gerente conferiu ao terceiro assinante poderes para representar a sociedade «na negociação e correspondente envio de propostas de contratos, bem como na outorga de contratos de prestação de serviços» (aliás, «na área da informática jurídica», como era o caso vertente). Ora, enquanto o TAF considerou que tais poderes para negociar, enviar propostas e outorgar contratos incluíam o poder para assinar as propostas, o TCA encarou aquele envio de propostas como a mera submissão delas às plataformas electrónicas, sem a concomitante conferência de poderes para as assinar. E assim se vê que, no fundo, o TAF e o TCA dissentiram porque respectivamente fizeram uma interpretação sintética e uma analítica dos poderes conferidos através da procuração. O problema em aberto há-de certamente resolver-se à luz das normas de interpretação dos actos e negócios jurídicos, constantes dos arts. 236° e ss. do Código Civil. Mas, ao menos «prima facie», o resultado hermenêutico a que chegou o aresto recorrido é suficientemente controverso para induzir ao recebimento do recurso — a fim de se garantir uma exacta aplicação do direito. Nestes termos, acordam em admitir a revista.”; Hoje, a apreciação que se roga versa exactamente sobre a mesma questão, com a supra assinalada similitude.

2 – O gerente da recorrente concedeu ao mandatário, em conjunto, num todo coerente em que as diversas fases se integram e se complementam, poderes para negociar e enviar propostas contratuais, o que naturalmente inclui, além de os de enviar expressos, os de receber e responder às propostas que resultem dessas negociações e os de outorgar o contrato que materialize o resultado das mesmas, devendo, pois e por isso, tais poderes serem interpretados conjuntamente, e, sobretudo, lógica e sequencialmente, de acordo com os poderes precedentes e subsequentes, em ordem ao fim visado que é, afigura-se-nos indiscutível, a concretização do contrato a celebrar entre a mandante e a entidade que recebe os serviços por aquela prestados, nas condições acertadas.

2.1 – Mostram-se violadas as regras da hermenêutica negocial que decorrem dos art./s 236.º a 238.º do C.Civil, as quais impunham a interpretação da procuração como feita no mui douto voto de vencida, decorrendo de tal interpretação, de acordo com o princípio da eficácia da declaração negocial, emergente do disposto no art. 224.º, do C.Civil, em conjugação com os “efeitos da representação”, consignados no art. 258.º, do mesmo diploma legal, ser a procuração emitida pela recorrente plenamente válida e eficaz, não só para praticar todos os actos aqui postos em causa, como para neles obrigar plena e inquestionavelmente a mandante, produzindo, pois e por isso, todos os efeitos a que se destinava.

3 - A decisão vigente assenta em argumentos de mera forma, pretendendo fazer da forma, nos dias de hoje, um fim em si, repudiando a ordem jurídica no seu todo, mormente as pertinentes regras da hermenêutica da declaração negocial, onde indiscutivelmente se integra o mandato, as quais foram e muito bem, observadas no douto voto de vencida, primorosamente integradas pelos hodiernos princípios fundamentais do direito da contratação pública.

3.1 – A interpretação do n.º 4 do art. 57.º, com as consequências prescritas nas al./s d) e e), do n.º 2, do art. 146.º do Código dos Contratos Públicos, levada a cabo na decisão vigente, é inconstitucional, por trair o princípio da confiança dos cidadãos no funcionamento das instituições e das regras estabelecidas na ordem jurídica, transformando o processo, obrigatoriamente equitativo, em iníquo, violando, por isso, os artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 1, 204.º que impede o tribunal de sancionar tal interpretação – da Constituição da República Portuguesa e n.º 1, do art. 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ex vi do art. 8.º daquele diploma fundamental.»

3. A Recorrida contra-alegou, no que ao mérito do recurso diz respeito, nos seguintes termos:

«A) Na posição de um declaratário normal, não era possível apreender do texto da procuração que foram conferidos poderes para assinar propostas de contratos e vincular a sociedade mandante;

B) Caso fosse essa a vontade da Recorrente A…………… constaria essa mesma menção expressa na procuração.

C) A procuração outorgada pela Recorrente A………….. não confere poderes ao Sr. C………………. para vincular a sociedade, nomeadamente, assinar propostas em procedimentos de contratação pública;

D) Pelo que a proposta da Recorrente A…………… viola o disposto no n.º4 do artigo 57.º do CCP, o que deve acarretar a exclusão da mesma nos termos do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP.»

4. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 18 de fevereiro de 2021, por se entender que «ao menos “prima facie”, o resultado hermenêutico a que chegou o aresto recorrido é suficientemente controverso para induzir ao recebimento do recurso - a fim de se garantir uma exata aplicação do direito».

5. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, «por nele se ter feito errada interpretação jurídica do disposto nos arts.º 57.º, n.º 4, do Código dos Contratos Públicos, e 236.º a 238.º e 258.º, do Código Civil».

6. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos da alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

7. Dá-se aqui por integralmente reproduzida toda a matéria de facto dada como provada pelo acórdão recorrido, para o qual se remete, nos termos do número 6 do artigo 663.º do CPC.


III. Matéria de direito

8. O que se discute neste recurso é se o mandatário da contrainteressada, ora Recorrente, tinha ou não poderes para assinar a respetiva proposta de contrato no concurso público sub judice e, em função da resposta a essa questão, se houve ou não erro de direito por violação do número 4 do artigo 57.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).
As instâncias entenderam que a procuração apresentada não lhe conferia poderes suficientes para o efeito.
No acórdão recorrido afirmou-se, a este propósito, que
«no âmbito dos procedimentos de contratação pública os poderes para a assinatura digital das propostas, que são enviadas electronicamente, exigem-se referidos em termos expressos e explícitos no respectivo mandato.
Quanto aos poderes que foram conferidos ao procurador da A………………, para negociar propostas de contratos, para proceder ao seu envio e para outorgar os contratos, referidos na indicada procuração, não se confundem com os poderes para a assinatura digital das propostas. A legislação relativa à contratação pública trata estes actos como actos diferentes, que não são de uma mesma categoria e exige que sejam especificamente conferidos aos representantes dos concorrentes os poderes para a indicada assinatura digital da proposta.
No caso, atendendo à procuração que foi junta ao procedimento concursal, esses poderes não foram expressamente conferidos a C………………. Logo, há que concluir que C…………….. não detinha poderes para submeter e assinar electronicamente a proposta da A………….., assim vinculando este concorrente.»
O Recorrente não se conforma com esse entendimento, alegando, em oposição, que
«o gerente da recorrente concedeu ao mandatário, em conjunto, num todo coerente em que as diversas fases se integram e se complementam, poderes para negociar e enviar propostas contratuais, o que naturalmente inclui, além de os de enviar expressos, os de receber e responder às propostas que resultem dessas negociações e os de outorgar o contrato que materialize o resultado das mesmas, devendo, pois e por isso, tais poderes serem interpretados conjuntamente, e, sobretudo, lógica e sequencialmente, de acordo com os poderes precedentes e subsequentes, em ordem ao fim visado que é, afigura-se-nos indiscutível, a concretização do contrato a celebrar entre a mandante e a entidade que recebe os serviços por aquela prestados, nas condições acertadas. »

9. Assim colocada, a questão controvertida neste recurso tem que ver única e exclusivamente com a interpretação do enunciado do texto da procuração junta pelo concorrente com a sua proposta, e não com o facto de a mesma ter sido submetida eletronicamente.
Na verdade, não está aqui em causa a qualificação da assinatura digital do mandatário, na medida em que a respetiva procuração foi junta com a proposta, permitindo assim «relacionar o assinante com a sua função e poder de assinatura», como exige o número 7 do artigo 54.º da Lei n.º 96/2015, de 17 de agosto – sobre a qualificação digital da assinatura, v. também o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto.
Também não está em causa, neste processo, a forma de carregamento da proposta, e as implicações que a mesma pode ter no modo de assinar digitalmente a proposta, nomeadamente quando seja adotada a modalidade denominada de «carregamento progressivo ou de ficheiro aberto».
Nem, em rigor, se discute nos autos a questão da submissão da proposta por terceiro credenciado, e legitimado, para o efeito pelo concorrente, na medida em que o mandatário da contrainteressada, ora Recorrente, assinou a proposta e os documentos que a integram arrogando-se ter recebido dela, mandante, os poderes suficientes para a obrigar, nos termos exigidos pelo número 4 do artigo 57.º do CCP.

10. A questão que aqui se discute não é nova na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, e já foi julgada pelo Acórdão da Secção do Contencioso Administrativo, de 19 de novembro de 2020, proferido no Processo n.º 185/19.2BEPDL, que, aliás, opõe as mesmas duas partes privadas – A……….. e B…….. – sobre a interpretação da mesma procuração.
Nesse acórdão se decidiu o seguinte:
«A respeito da verificação dos poderes para representar a sociedade no procedimento desmaterializado: i) do termo “negociação” conclui o TAF (...) que, ainda que imperfeitamente expresso, é possível retirar, enquanto declaratário normal, o sentido de que ao mandatário foram conferidos os “poderes necessários à realização de todos os atos preparatórios necessários à celebração dum [sic] determinado negócio jurídico, como sejam, a formulação de propostas contratuais, ou, no caso da contratação pública, a elaboração dos atributos da proposta”; ii) do termo “correspondente envio de propostas de contratos”, infere aquele tribunal que o mesmo “abrange a apresentação da proposta ao outro contraente e não à sua mera submissão eletrónica, a qual não tem qualquer suporte no texto da procuração, ou o seu envio postal, para o qual era absolutamente irrelevante”; e daí conclui que “[S]endo conferidos poderes de elaboração da proposta e poderes de apresentação da mesma, neles têm que se entender incluídos os poderes de assinatura da proposta”.
E este juízo não nos merece censura, seja na mobilização dos artigos 236.º e 238.º do C. Civ., uma vez que, estando em causa a interpretação de um documento que consubstancia um negócio jurídico privado, são aquelas as regras jurídicas que podem e devem ser utilizadas para a respectiva interpretação; seja no resultado da interpretação a que se chega e que é o adequado segundo as regras mobilizadas.
Acrescentamos ainda, segundo as mesmas regras (artigos 236.º e 238.º do C. Civ.), que também um declaratário normal terá de concluir das expressões [poder para] “outorga de contratos de prestação de serviços na área da informática jurídica” e “contratos estes que poderá outorgar, sejam a celebrar por instrumento público ou não e quer se tratem de entidades públicas, quer privadas, independentemente do valor do contrato e do seu tempo de duração”, que o gerente único mandatou o representante de poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida e à futura celebração do contrato.
O procedimento de contratação pública, sendo formal e as suas regras de teor vinculado para as entidades adjudicantes, ainda assim impõe que a interpretação das mesmas (das regras da contratação pública) se tenha de fazer em consonância com os princípios enunciados no artigo 1.º-A do CCP, pelo que a interpretação do teor da procuração nos termos do disposto nos artigos 236.º e 238.º do C. Civ – como resultou da decisão do TAF (...), que aqui se reitera – é também a solução que se alcança de uma interpretação do artigo 57.º, n.º 4 do CCP em conformidade com os princípios da boa-fé e da concorrência. Com efeito, importa ser rigoroso na verificação dos poderes do representante para submeter a proposta, mas essa verificação tem de obedecer a critérios de materialidade e de razoabilidade.»

11. Não se encontram razões para decidir o presente recurso de forma diferente da decisão que foi proferida naquele outro processo, não tendo, além do mais, a Recorrida B……………. aduzido nos autos argumentos novos que justifiquem uma mudança de posição deste Tribunal.
O número 4 do artigo 57.º do CCP não exige que os poderes de assinatura da proposta sejam «referidos em termos expressos e explícitos no respectivo mandato», limitando-se a exigir que a mesma seja assinada por quem tenha poderes para obrigar o concorrente.
Daí que, situando-se a questão no âmbito da interpretação do sentido da declaração contida na procuração junta pelo concorrente com a proposta, seja suficiente, convocando as regras de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidas nos números 1 dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, que aqueles poderes tenham um mínimo de correspondência no seu enunciado escrito e que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir esse sentido daquele enunciado.
E não nos oferece qualquer dúvida que, quem tem poderes para negociar a proposta de contrato e proceder ao seu envio, bem como para outorgar o mesmo contrato, tem também poderes para assinar a respetiva proposta. Negociar a proposta de contrato envolve, necessariamente, um poder de disposição sobre o conteúdo da mesma que não pode ser dissociado do poder para a formular.
O facto de a lei permitir que, em certos casos, se estabeleça uma distinção entre a «submissão» da proposta e a sua «assinatura» não significa que se deva necessariamente interpretar a expressão «envio» com o sentido de «submissão» e que apenas se reconheça a existência do poder de «assinatura» quando o enunciado do texto o explicite.

12. Acresce ainda que, no domínio da contratação pública, ali onde a lei não faça exigências formais, deve observar-se o princípio do favor participationis, ou do favor do procedimento, que impõe que, em caso de dúvida, se privilegie a interpretação da norma que favoreça a admissão do concorrente, ou da sua proposta, em detrimento da sua exclusão – sobre o referido princípio, v. Rodrigo Esteves de Oliveira, Os princípios gerais da contratação pública, in Estudos de Contratação Pública, CEDIPRE, Coimbra, 2008, p. 113.
Como é evidente, não está em causa o igual respeito pelo princípio da adequação formal do procedimento, sempre que a lei estabeleça exigências formais que sejam essenciais, o que, como se sabe, é a regra em matéria de formalidades do procedimento. Mas no caso dos autos, ressalvada que esteja a garantia de que o concorrente se obriga plenamente à proposta apresentada, não há razões substantivas para excluir uma proposta cuja admissão apenas favorece a concorrência.
A função do procedimento não é dificultar a admissão dos concorrentes e suas propostas, mas antes assegurar que a Administração dispõe do maior leque de opções possíveis para satisfazer a necessidade pública que o objeto do concurso, direta ou indiretamente, visa concretizar, e que está em condições de fazer a escolha mais adequada a essa finalidade.

13. Deste modo, conclui-se que o acórdão recorrido julgou mal ao considerar que a procuração apresentada não conferia ao mandatário do ora Recorrente poderes suficientes para o obrigar ao cumprimento da proposta apresentada, tendo feito errada interpretação do número 4 do artigo 57.º do CCP, que não exige que os poderes de assinatura da proposta de contrato sejam explicitamente especificados.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em revogar o acórdão recorrido.

Custas do processo pela Recorrida. Notifique-se


Lisboa, 29 de abril de 2021

O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, tem voto de conformidade com o presente Acórdão de todos os restantes juízes que integram a presente formação julgamento, nomeadamente os Conselheiros José Veloso e Ana Paula Portela.

Cláudio Ramos Monteiro