Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0364/20.0BELRS
Data do Acordão:06/22/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário:I - Nos termos do preceituado no citado artº.615, nº.1, al.d), do C.P.Civil, é nula a sentença, além do mais, quando o juiz conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão advém de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma). Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no artº.608, nº.2, do mesmo diploma, o qual consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente). Ora, como se infere do que já deixámos expresso, o excesso de pronúncia pressupõe que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes. Por outras palavras, haverá excesso de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. Pelo que deve considerar-se nula, por vício de "ultra petita", a sentença em que o Juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que a parte colocou na base (causa de pedir) das suas conclusões (pedido).
II - No processo judicial tributário o excesso de pronúncia, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artº.125, nº.1, do C.P.P.Tributário, no último segmento da norma.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P29593
Nº do Documento:SA2202206220364/20
Data de Entrada:02/21/2022
Recorrente:A......., S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
"A………, S.A.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, constante a fls.347 a 396 do processo físico, a qual julgou improcedente a presente impugnação pelo recorrente intentada e visando, mediatamente, actos de autoliquidação de Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) e relativos ao ano de 2015.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.399 a 439 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-O Requerimento de interposição de recurso acompanhado das respectivas Alegações, apresentado nesta data, é tempestivo.
B-O objecto da Recurso é constituído pela Sentença proferida nos autos de impugnação judicial nº 364/20.0BERLS, em 29 de Setembro de 2021, no segmento decisório dedicado à apreciação do mérito e à consequente condenação da Recorrente em custas, concordando-se com a Sentença recorrida na parte em que o Tribunal a quo determina a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
C-A recorrente entende que a Sentença recorrida incorre, simultaneamente, em vício de excesso de pronúncia, por apreciar questões que não constituíam o thema decidendum dos presentes autos ao não se reconduzirem, nem sequer incidentalmente, à causa de pedir delimitada pela Recorrente em sede de Petição Inicial e reiterada em sede de Alegações escritas.
D-E, bem assim, em omissão de pronúncia, por não se debruçar, em toda a linha, sobre o único fundamento arguido pela Recorrente: a alegada violação da regra da especificação orçamental, geradora de ilegalidade abstracta ou inconstitucionalidade indirecta.
E-Com efeito, o Tribunal a quo delimitou a causa de pedir da Recorrente afirmando que a Recorrente alegou em síntese:
“a) Que a CESE se trata de um verdadeiro imposto e não de uma taxa ou contribuição financeira, com todas as consequências de inconstitucionalidade daí decorrentes;
b) Partindo da classificação constitucional e legal dos tributos, e dos princípios enformadores da correspondente dogmática, reitera o posicionamento da CESE no campo dos tributos não bilaterais ou sinalagmáticas e, portanto, enquanto verdadeiro imposto de natureza inconstitucional, por violar o princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade;
c) Sustenta a falsa natureza “extraordinária” e “transitória” da CESE, explicitada no respetivo regime jurídico, na medida em que todos os instrumentos pelo mesmo gizados, designadamente o Fundo de Sustentabilidade do Setor Energético, tendo uma natureza perene, e sendo a CESE a sua única fonte garantida de provisionamento, não poderá esta ter natureza diferente;
d) Considerando que a CESE constitui um imposto cujas receitas se encontram consignadas ao Fundo de Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, mais alega a violação do princípio da não consignação de receitas, ínsito no n.º 3 do artigo 105.º da CRP, nos termos do qual “o orçamento é unitário e específica as despesas segundo a respetiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos»”.
F-Configurando desta forma a causa de pedir dos presentes autos, decidiu o tribunal a quo por remissão para o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 7/2019, de 8 de janeiro.
G-Sucede que a Recorrente delimitou a causa de pedir dos presentes autos no título “§ 4.º Da Ilegalidade e da inconstitucionalidade (indirecta) do acto de autoliquidação por vício de não discriminação orçamental da CESE” com o que a integralidade dos vícios imputados aos atos controvertidos reconduz-se à violação de tais princípios orçamentais, não tendo a Recorrente tecido qualquer consideração quanto à potencial violação de outros princípios constitucionais, como sendo o princípio da capacidade contributiva, ou, ainda, quanto à natureza da CESE nem quanto à sua extraordinariedade (cf. Artigos 41º a 156º da Petição Inicial e integralidade das alegações escritas apresentadas pela Recorrente), tendo, inclusivamente, junto aos presentes autos quatro Pareceres Jurídicos que versam, unicamente sobre a violação dos princípios da discriminação e especificação orçamental (cf. Documentos nº 10, 11, 12 e 13 do Petição Inicial).
H-A mesma confusão havia sido realizada pela Fazenda Publica, em sede de Contestação, tendo a Recorrente informado os autos de tal lapso, por via do Requerimento apresentado em 26 de outubro de 2020, no qual requereu o desentranhamento da Constituição por esta não encontrar correspondência com a matéria de direito a ser apreciada nos presentes autos.
I-Considerando não ter a Recorrente levado à apreciação do Tribunal a quo a potencial violação do princípio da capacidade contributiva, a reputada extraordinariedade da CESE, a natureza da mesma ou a violação do princípio da não consignação, o Tribunal a quo, ao pronunciar-se sobre as mesmas, e apenas sobre elas, violou o disposto nos artigos 260º e 608º do CPC, inquinando a Sentença da nulidade prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do mesmo CPC, devendo, por isso, a mesma ser revogada.
J-Por outro lado, ao não se pronunciar, nem ao de leve, sobre a única causa de pedir dos autos de impugnação judicial: a violação dos princípios da discriminação e da especificação orçamentais preconizadas pelas normas que criam, regulam e mantêm a CESE em vigor no ano 2015, mormente das normas constantes dos nºs 1, 6 e 7, do artigo 11º, do Regime Jurídico da CESE, do artigo 228º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2014 – e do artigo 237º da Lei 82-B/2014, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento de Estado para 2015.
K-O Tribunal a quo incorre em claro vício de omissão de pronúncia.
L-Com efeito, nem mesmo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, à qual o Tribunal a quo declara aderir na totalidade, se dedica à apreciação questão de direito em causa nos presentes autos.
M-Assim, também nesta parte, a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 260º e 608º do CPC, ao não resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, incorrendo, assim, em omissão de pronúncia.
N-Pelo que antecede, padece a sentença recorrida de flagrante nulidade devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que se pronuncie sobre o thema decidedum efectivamente submetido à apreciação do Tribunal a quo.
O-Considerando que os autos, dispõem de todos os elementos necessários à apreciação da questão omissa, requer-se ao Tribunal ad quem que, caso assim o entenda, faça uso da prerrogativa concedida pelo disposto 665º, nº2 do CPC, e, assim, aprecie, em sede do presente recurso, a questão não conhecida pelo Tribunal a quo.
P-Considerando tal possibilidade, reitera a Recorrente que as normas contidas nos nºs 1, 6 e 7 do artigo 11º, do Regime Jurídico da CESE, ao disporem que a receita da CESE é consignada ao FSSSE, encontram-se inquinadas de ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado e de inconstitucionalidade, por violação de norma constitucional, pois que a receita da CESE não se encontra devidamente especificada, como se impunha, na Lei do Orçamento do Estado para 2015.
Q-Veja-se que decorre do artigo 11º, nºs 1,6 e 7, do Regime da CESE que a receita obtida com a cobrança deste tributo devia encontrar-se reflectida, e suficientemente discriminada, no Mapa V, o qual integra as “receitas dos serviços e fundos autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo”, ou, pelo menos, no Mapa VI, o qual integra as receitas dos serviços e fundos autónomos por classificação económica.
R-Da mesma forma, a norma constante do artigo 228º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2014 – padece dos mesmos vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade ao criar um tributo que viola, desde o momento da sua criação, a regra da discriminação orçamental.
S-Igualmente, também o artigo 237º da Lei 82-B/2014, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2015 – padece dos mesmos vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, ao prorrogar a vigência do regime que cria a CESE, reincidindo nas deficiências de discriminação orçamental apontadas às normas constantes do artigo 11º, nºs 1, 6 e 7, do Regime Jurídico da CESE e ao artigo 228º da Lei do Orçamento do Estado para 2014.
T-Veja-se que a receita proveniente da CESE não se encontra devidamente especificada nas Leis do Orçamento do Estado, desde que esta contribuição foi criada, (auto) liquidada e exigida – anos 2014 a 2021, pois não obstante ser eventualmente possível entender-se estar incluído no Mapa V das sucessivas Leis do Orçamento do Estado, o volume de receitas totais do FSSSE, no Mapa VI, não encontramos a discriminação da mencionada receita de acordo com o classificador económico respectivo.
U-Ora, ao não se terem classificado, adequadamente, estas receitas, viola-se o princípio da legalidade ínsito no art.º 165º, nº1, al. i) e no art.º 105º da Constituição, na sua dimensão de princípio da tipicidade qualitativa.
V-E, não sendo cumprida a regra da especificação, ficam feridos de inconstitucionalidade os atos de liquidação e cobrança das mesmas, por violação das normas supramencionadas, não cumprindo estas receitas a dimensão da legalidade financeira, por não estarem inscritas no orçamento do Estado de forma adequada.
W-Consequentemente, estamos perante tributos que, se não são inexistentes, são equiparáveis a tributos inexistentes, dado que, como escreve Jorge Lopes de Sousa, “(…) A falta de inscrição orçamental de receita liquidada sujeita a tal inscrição será um vicio do acto tributário gerador da sua ilegalidade abstracta, equiparável aos vícios de inexistência do tributo”.
X-Nos termos do disposto na alínea k) do nº 2 do art.º 161º do CPA, são nulos quaisquer atos que gerem uma obrigação de pagamento não prevista na lei – com desrespeito do princípio da legalidade ou da tipicidade - garantindo-se, assim, que todas as receitas têm cabimento legal.
Y-A falta de previsão e a total ausência de especificação no orçamento do Estado para os anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, das receitas da CESE, colocou estas à margem de uma adequada pronúncia da Assembleia da Republica, o que pelo alto significado em sede da legitimidade politico-democrática da intervenção desta, envolve a preterição total do correspondente procedimento de previsão e especialização das receitas, um fundamento de nulidade consagrado na alínea I) do nº2 do art.º 161º do CPA.
Z-Assim, e em face de tudo quanto antecede, devem ser julgadas inconstitucionais as normas contidas no artigo 11º, nº1, 6 e 7, do Regime jurídico da CESE, no artigo 228º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 e, bem assim, no artigo 237º da Lei do Orçamento do Estado para 2015, ao criarem, e manterem em vigor, no ano 2015, um tributo de receita consignada em violação dos princípios da discriminação e da especificação orçamentais, em violação do artigo 105º da CRP, e ilegais por violação dos artigos 15º a 17º da LEO, sendo manifestamente ilegais e inconstitucionais (indirectamente que seja) os atos de autoliquidação impugnados nos autos de impugnação judicial, devendo os mesmos ser declarados nulos, nos termos das alíneas K) e l) do artigo 161º do CPA, com todas as consequências legais.
X
Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo provimento do recurso (cfr.fls.453 a 455 do processo físico).
X
Com dispensa de vistos legais (cfr.artº.657, nº.4, do C.P.Civil, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.350 a 352 do processo físico):
A-No dia 29-10-2015, a Impugnante entregou, junto dos serviços da Administração Tributária (AT), a declaração modelo n.º 27, relativa à CESE, do período de tributação de 2015, onde apurou o valor total a pagar de € 6.165.381,78 (cf. doc. 4 junto com a petição inicial);
B-No dia 30-10-2015, foi efectuado o pagamento da CESE identificada na alínea precedente (cf. doc. 6 junto com a petição inicial);
C-No dia 11-10-2018, a Impugnante entregou, junto dos serviços da administração tributária, a declaração modelo n.º 27 de substituição, relativa à CESE, do período de tributação de 2015, onde apurou o valor total a pagar de € 6.165.392,64 (cf. doc. 5 junto com a petição inicial;
D-Em 29-10-2019 a impugnante apresentou um pedido de revisão oficiosa tendo por objecto os actos de autoliquidação de CESE identificados nas alíneas A) e C) (cf. doc. 7 junto com a petição inicial);
E-Em 11-11-2019, a Impugnante foi notificada do Projecto de Decisão relativo ao Pedido de Revisão Oficiosa por si apresentado, tendo procedido ao exercício do seu Direito de Audição em 21-11-2019 (cf. doc. 8 e 9 juntos com a petição inicial);
F-Em 02-12-2019, a Impugnante foi notificada da Decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa referido na alínea D) (cf. doc. 1 junto com a petição inicial);
G-No dia 28-02-2020, a Impugnante entregou a presente impugnação judicial, junto deste Tribunal (cfr. pág. 1/SITAF).
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Nada mais foi provado com relevância para a decisão em causa, atentos o pedido e a causa de pedir…".
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do exame dos documentos, não impugnados, e das informações oficiais constantes dos autos e do processo administrativo tributário, que aqui se dão por integralmente reproduzidos…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou improcedente a presente impugnação, mais absolvendo a Fazenda Pública do pedido.
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Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em primeiro lugar, que delimitou a causa de pedir dos presentes autos no título, constante do articulado inicial, "Da Ilegalidade e da inconstitucionalidade (indirecta) do acto de autoliquidação por vício de não discriminação orçamental da CESE". Que os vícios imputados aos actos controvertidos se reconduzem à violação de tais princípios orçamentais, não tendo o apelante tecido qualquer consideração quanto à potencial violação de outros princípios constitucionais, como seja o princípio da capacidade contributiva, ou, ainda, quanto à natureza da CESE. Que a sentença recorrida ao apreciar a potencial violação do princípio da capacidade contributiva, a reputada extraordinariedade da CESE, a natureza da mesma ou a violação do princípio da não consignação, enferma de nulidade por excesso de pronúncia, porquanto, conhece de questões enformadoras de concretas causas de pedir conducentes à procedência da acção, e apenas sobre elas, as quais não haviam sido articuladas na respectiva petição inicial, mais não sendo de conhecimento oficioso (cfr. conclusões C) e E) a I) do recurso), com base em tal argumentação pretendendo concretizar uma nulidade da decisão recorrida, devido a excesso de pronúncia.
Analisemos se a decisão recorrida padece de tal pecha.
Nos termos do preceituado no citado artº.615, nº.1, al.d), do C.P.Civil, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (seja por que foram alegadas pelas partes, seja por que são de conhecimento oficioso, nos termos da lei) ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma). Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no artº.608, nº.2, do mesmo diploma, o qual consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente). Ora, como se infere do que já deixámos expresso, o excesso de pronúncia pressupõe que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes. Por outras palavras, haverá excesso de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. Pelo que deve considerar-se nula, por vício de "ultra petita", a sentença em que o Juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que a parte colocou na base (causa de pedir) das suas conclusões (pedido). No entanto, uma coisa é a causa de pedir, outra os motivos, as razões de que a parte se serve para sustentar a mesma causa de pedir. E nem sempre é fácil fazer a destrinça entre uma coisa e outra. Com base neste raciocínio lógico, a doutrina e a jurisprudência distinguem por um lado "questões" e, por outro, "razões" ou "argumentos" para concluir que só a falta de apreciação das primeiras (ou seja, das "questões") integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das "razões" ou "argumentos" invocados.
E recorde-se que o objecto do recurso está dependente do objecto inicial da acção definido, essencialmente, a partir da conjugação entre o pedido e a causa de pedir, elementos que, por seu lado, são submetidos a apertadas regras a respeito da sua alteração, nos termos dos artºs.264 e 265, do C.P.Civil (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.49 a 58 e 143 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.690 e seg.; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. Edição, Almedina, 2009, pág.57; José Lebre de Freitas e Outro, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 4ª. Edição, Almedina, 2021, pág.737).
No processo judicial tributário o excesso de pronúncia (vício de "ultra petita"), como causa de nulidade da sentença, está previsto no artº.125, nº.1, do C.P.P.Tributário, no último segmento da norma (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 15/09/2010, rec.1149/09; ac.S.T.A-2ª. Secção, 10/03/2011, rec.998/10; ac.S.T.A-2ª.Secção, 11/07/2019, rec.557/07.5BECBR; ac.S.T.A-2ª.Secção, 3/06/2020, rec.546/11.5BEBRG; ac.S.T.A-2ª.Secção, 10/03/2021, rec.492/16.6BESNT; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.366 e seg.).
Por último, relembre-se que a petição inicial, à semelhança de outros articulados, reveste a natureza de acto jurídico, sendo interpretada, por força do disposto no artº.295, do C.Civil, em conformidade com as regras atinentes à interpretação da declaração negocial, para tanto devendo chamar-se à colação o regime de interpretação do negócio jurídico previsto no artº.236 e seg. do citado diploma. O nomeado artº.236, do C.Civil, consagra a teoria da interpretação do negócio jurídico vigente na nossa ordem jurídica, a qual parte de uma base objectivista, levando em consideração a declaração negocial e o sentido que da mesma tem um declaratário normal. Já no que diz respeito a negócios formais, o artº.238, do C.Civil, elege, em princípio, uma perspectiva interpretativa da declaração negocial que deve ter um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil, quanto à interpretação da lei), ainda que imperfeitamente expresso, assim consagrando uma teoria com um cunho mais objectivista no que se refere à interpretação das declarações negociais formais, normalmente apelidada pela doutrina como teoria da manifestação (cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª. Edição, Coimbra Editora, 1989, pág.444 e seg.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª. Edição, Coimbra Editora, 1982, pág.222 e seg.; Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Universidade Católica Editora, 2017, 5ª. Edição, II, pág.443 e seg.; ac.S.T.J., 20/02/2001, proc.01A048; ac.S.T.J., 25/03/2004, proc.04B107; ac.S.T.A-2ª.Secção, 13/10/2010, rec. 0241/10; ac.S.T.A-2ª.Secção, 9/12/2021, rec.1954/16.0BEPRT).
"In casu", no articulado inicial (cfr.p.i. junta a fls.5 a 65 do processo físico), a sociedade impugnante e ora recorrente estruturou como fundamentos/causas de pedir para a presente impugnação (recorde-se que a causa de pedir se pode definir como o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, não bastando a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão para que se verifique o preenchimento de tal exigência legal - cfr.artº.581, nº.4, do C.P.Civil; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª.Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.245; José Alberto dos Reis, Comentário ao C.P.Civil, II Volume, Coimbra Editora, 1945, pág.369 e seg.; António Santos Abrantes Geraldes e Outros, Código de Processo Civil Anotado, I Volume, Almedina, 2019, pág.605):
1-A anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa identificado na al.F) do probatório supra, devido a vício de violação de lei, nomeadamente, em virtude de flagrante violação do direito de audição da impugnante no âmbito do identificado procedimento gracioso (cfr.artºs.13 a 40 do articulado inicial);
2-A anulação dos actos de autoliquidação da CESE identificados nas als.A) e C) do probatório supra, devido a vício de violação de lei, em virtude da ilegalidade e inconstitucionalidade (indirecta) dos mesmos actos de autoliquidação, derivados da não discriminação orçamental de tal tributo (cfr.artºs.41 a 156 do articulado inicial);
3-A restituição do montante pago pela sociedade impugnante (cfr.al.B) do probatório supra), acrescidos de juros indemnizatórios, devido a existência de erro imputável aos serviços no âmbito do procedimento de revisão oficiosa (cfr.artºs.157 a 186 do articulado inicial).
Na sentença objecto do presente recurso o Tribunal "a quo", após fazer referência ao regime jurídico da CESE, criado pela Lei 83-C/2013, de 31/12, remete e acolhe, na íntegra, o teor do acórdão do Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, proc.141/16, aresto em que o mesmo Tribunal conclui pela natureza de "contribuição financeira extraordinária" do citado tributo, tal como pela não violação, do respectivo regime legal, dos princípios da capacidade contributiva, da equivalência e da proporcionalidade. Em sede de dispositivo, julga a presente impugnação improcedente e absolve a Fazenda Pública do pedido, conforme supra mencionado.
Ora, é manifesto que as matérias examinadas pelo identificado acórdão do Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, não estão abarcadas pelo objecto do presente processo, acima concretamente delimitado.
Donde se conclui que a decisão recorrida incorreu em excesso de pronúncia e, consequentemente, na nulidade a que se refere o artº.615, nº.1, al.d), do C.P.Civil, e artº.125, nº.1, "in fine", do C.P.P.Tributário, sendo que a nulidade em análise contende com a totalidade do segmento decisório da sentença objecto do presente recurso.
Por último, recorde-se que o S.T.A. é um Tribunal de revista (cfr.artº.12, nº.5, do E.T.A.F.), com exclusiva competência em matéria de direito, em regra (cfr.artº.26, al.b), do E.T.A.F.).
Rematando, julga-se procedente o presente esteio do recurso, prejudicado ficando o exame dos demais, e, como corolário, declara-se a nulidade da sentença recorrida, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
X
DISPOSITIVO
X
Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM:
1-CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO e declarar a nulidade da sentença recorrida, devido a excesso de pronúncia, ao abrigo do artº.125, nº.1, do C.P.P.Tributário;
2-ORDENAR A BAIXA DOS AUTOS ao Tribunal Tributário de Lisboa com vista ao exame e decisão dos fundamentos da presente impugnação, se a tal nenhuma outra nulidade, questão prévia ou excepção obstar.
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Condena-se a entidade recorrida em custas (cfr.artº.527, do C.P.Civil), mais a dispensando do pagamento da taxa de justiça na presente instância de recurso, visto não ter produzido contra-alegações.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 22 de Junho de 2022. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (em substituição).