Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:015/23.0BALSB
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IVA
DEDUÇÃO
CÁLCULO PRO RATA
CRÉDITO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Sumário:I - Constitui pressuposto da apreciação do mérito do recurso a que alude o artigo 25.º, n.º 2 do RJAT a decisão arbitral recorrida esteja em oposição com outra decisão arbitral ou acórdão de tribunal superior quanto à «mesma questão fundamental de direito»;
II - Não há oposição quanto à mesma questão fundamental de direito se o acórdão arbitral recorrido apreciou a questão de saber se a administração tributária pode impor determinadas regras na determinação do direito à dedução e o acórdão arbitral fundamento apreciou a questão de saber se a administração tributária utilizou a referida prerrogativa e o fez com as formalidades que decorrem da lei.
Nº Convencional:JSTA000P31936
Nº do Documento:SAP20240221015/23
Recorrente:BANCO 1..., S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

BANCO 1..., S.A., com o número de identificação fiscal ...34 e sede na Av. ..., Porto veio, ao abrigo do disposto no artigo 25.º, n.ºs 2 e 3, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro [doravante “RJAT”] e do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão arbitral proferido em 3 de janeiro de 2023 no processo n.º 517/2021-T, do Centro de Arbitragem Administrativa [“CAAD”], que julgou totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral que apresentou com vista à declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa do ato tributário de (auto)liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) referente ao ano 2019, invocando oposição entre o ali decidido e o acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 885/2019-T, também do CAAD.

Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as conclusões que a seguir se transcrevem, com exceção das anotações em rodapé:

«(…)

A. O presente recurso tem como fundamento a Decisão proferida, em 3 de Janeiro de 2023, no âmbito do processo n.º 517/2021-T, por Tribunal Arbitral constituído no âmbito do CAAD, o qual julgou improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral apresentado pela ora Recorrente com vista à declaração de ilegalidade do acto tributário de (auto)liquidação de IVA, referente ao ano 2019, cuja componente da actividade da Recorrente aqui em juízo – componente de crédito com reserva de propriedade – ascende ao montante de € 2.027.255,73.

B. A Recorrente foi notificada da Decisão recorrida no passado dia 9 de Janeiro de 2023, tendo-se iniciado a contagem do prazo de 30 dias nesse mesmo dia, pelo que o presente recurso se afigura tempestivo.

C. O recurso baseia-se na contradição, sobre a mesma questão fundamental de direito, entre a Decisão Recorrida e a Decisão Arbitral de 26 de Julho de 2021, proferida pelo CAAD no âmbito do processo n.º 885/2019-T.

D. In casu, entende a Recorrente que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, existe contradição entre a Decisão Arbitral recorrida e a Decisão fundamento.

E. Com vista a demonstrar a existência de contradição, relativamente à mesma questão fundamental de direito, entre ambas as decisões aqui em confronto, em primeiro lugar, nota a Recorrente que se verifica uma identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões. De facto, em ambos os arestos aqui em confronto, a questão decidenda ou a questão colocada foi a de saber se, na aplicação do método de dedução do IVA incorrido na actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, deve ser considerado o valor da transmissão das viaturas no numerador e no denominador da fracção de cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pela Recorrente nos recursos de utilização mista – cf. página. 31 da Decisão recorrida e página 16 da Decisão fundamento.

F. Adicionalmente, nota a Recorrente que se vislumbra, também, uma identidade substancial das situações fácticas subjacentes a ambas as decisões. Especificamente, ambas as decisões versaram sobre uma instituição de crédito, configurando um sujeito passivo “misto” para efeitos de IVA, na medida em que na sua actividade adquire recursos que são utilizados, simultaneamente, em operações tributadas que conferem o direito à dedução do imposto (v.g., locação financeira mobiliária, locação de cofre e custódia de títulos) e operações isentas do imposto que não permitem a dedução do IVA incorrido (nomeadamente, concessão de crédito e operações associadas a pagamentos).

G. Assim, e como não podia deixar de ser, na Decisão recorrida e na Decisão fundamento, foi dado como provado que, tendo verificado que, no âmbito da sua actividade de CRP, a Recorrente não estava a exercer plenamente o direito à dedução de IVA que lhe assistia, procedeu ao recálculo da percentagem de dedução (para os anos 2019 e 2015, respectivamente), passando a considerar, no numerador e no denominador da fracção de cálculo, os montantes relativos à transmissão das viaturas relacionadas com a actividade de CRP. E que, na sequência daquele recálculo, a Recorrente apurou, para o ano 2019, uma percentagem de dedução (do coeficiente de imputação específico) de 14% (em vez dos anteriores 8%). Por outro lado, no acórdão fundamento, a entidade ali Requerente apurou, para o ano 2015, uma percentagem de dedução de 11% (em vez dos anteriores 9%). Deste modo, a Recorrente considera ter direito a deduzir o montante de IVA adicional de € 2.027.255,26; por sua vez, no acórdão fundamento, a Requerente entendeu ter direito a deduzir o montante adicional de € 475.446,90, relativamente à actividade de CRP, com referência ao ano 2015.

H. Em concreto, na Decisão Arbitral recorrida, referente ao IVA do ano 2019, foi dado como provado que: “[n]ão sendo viável encontrar um ou vários critérios objetivos passíveis de permitir, de forma minimamente rigorosa e segura, a determinação do IVA dedutível, através do método da afetação real (a que alude o n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA) nas aquisições de recursos de utilização mista, o Requerente (…) aplicou o critério de imputação específico, nos termos consagrados no Ofício-Circulado n.º ...08.

(…) O Requerente havia apurado inicialmente uma percentagem de dedução definitiva para o ano 2019 de 8% (…) quando, se no cálculo daquela percentagem de dedução, tivessem sido considerados, os valores relativos à transmissão das viaturas relacionadas com a atividade de CRP e os valores relativos às amortizações financeiras do leasing, tal percentagem ascenderia a 33% (ao invés de 8%)”. – cf. pontos l e r. da matéria de facto da Decisão recorrida (realce nosso).

I. E, na Decisão fundamento, referente ao IVA do ano 2015, nos mesmos moldes, foi dado como provado que: ““[p]ara determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, ou seja, aos recursos de “utilização mista”, o Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA, sendo que “[a] determinação da percentagem de dedução, (…), foi concretizada através do cumprimento do disposto no Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA”. Pelo que “(…) o Requerente apurou uma percentagem de dedução definitiva para o ano de 2015 de 7% (…)”. Não obstante, “[o] Requerente decidiu proceder à alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 no âmbito da actividade de crédito com reserva de propriedade e atendendo ao consumo de recursos necessários para o realizar passou a ter em consideração a componente de transmissão de viaturas no coeficiente de imputação específico. Da alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 resulta uma dedução adicional no montante de € 916.768,70” – cf. pontos 12, 13, 29 e 30 da matéria de facto da Decisão fundamento.

J. Na Decisão recorrida, referente ao IVA do ano 2019, foi dado como provado que “[p]ara determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, i.e., aos recursos de utilização mista, o Requerente aplicou o método geral e supletivo do critério de imputação específico, conforme determinado pelo Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009” – cf. ponto h da matéria de facto da Decisão recorrida.

K. Não obstante, “[n]a sequência de uma revisão de procedimentos relativos à sua atividade, o Banco, concluindo pela existência de erro no regime legal aplicável e que resultava do Ofício mencionado supra em l), peticionou a anulação da citada autoliquidação na parte referente ao IVA e que resultava da divergência de aplicação das percentagens aos bens e serviços de utilização mista, num total de € 8.446.898,69, relativa a i) contratos de reserva de propriedade” – cf. ponto n da matéria de facto da Decisão recorrida.

L. Nesse sentido, “verificou o Requerente existir erro na (auto)liquidação efetuada no ano 2019, em virtude de, com referência aos recursos de utilização mista adquiridos no âmbito das áreas de atividade referidas supra, não ter alegadamente procedido à dedução do IVA por si incorrido em conformidade com a legislação nacional e comunitária este imposto” – cf. ponto o da matéria de facto da Decisão recorrida.

M. Em concreto, que “com referência ao cálculo da percentagem de dedução relativa ao ano de 2019 – i.e. do coeficiente de imputação específico -, haviam sido desconsiderados (i) os valores relativos à transmissão das viaturas adquiridas no âmbito da atividade de CRP” – cf. ponto p da matéria de facto da Decisão recorrida.

N. Assim, “[o] requerente havia apurado inicialmente uma percentagem de dedução definitiva para o ano 2019 de 8%, (…) quando, se no cálculo daquela percentagem de dedução, tivessem sido considerados, os valores relativos à transmissão das viaturas relacionadas com a atividade de CRP e os valores relativos às amortizações financeiras do leasing, tal percentagem ascenderia a 33%” – cf. pontos q e r da matéria de facto da Decisão recorrida (nosso realce).

O. Por sua vez, na Decisão fundamento, referente ao IVA do ano 2015, foi dado como provado que “[o] requerente celebra contratos de crédito com reserva de propriedade que têm por objectivo a aquisição, por parte dos seus clientes, de veículos automóveis, novos ou usados, nos termos dos quais o cliente consta do registo de propriedade do veículo enquanto proprietário, mas é constituída a favor do Requerente uma reserva de propriedade” e que “[a] constituição da reserva de propriedade a favor do Requerente visa assegurar o integral pagamento dos montantes devidos pelo cliente referentes ao contrato de mútuo celebrado e permitir ao Requerente obter a expedita restituição do bem, no caso de falta de pagamento das prestações acordadas” – cf. ponto 23 e 24 da matéria de facto da Decisão fundamento.

P. Ademais, foi dado como provado que “[a]s aquisições de bens e serviços necessários ao desenvolvimento da actividade de crédito com reserva de propriedade consubstanciam recursos de utilização mista, comportando, na medida em que são alocados à actividade de crédito com reserva de propriedade (que confere o direito à dedução do IVA incorrido), IVA parcialmente dedutível” – cf. ponto 26 da matéria de facto da Decisão fundamento.

Q. E que, “[o] IVA correspondente a estes recursos de utilização mista não é objecto de dedução por via da aplicação do critério de imputação específico, porque o Requerente, na sequência de uma acção inspectiva da AT respeitante ao ano 2012, não tem vindo a considerar a actividade de crédito com reserva de propriedade neste rácio” – cf. ponto 28 da matéria de facto da Decisão fundamento.

R. E conclui que “[o] Requerente decidiu proceder à alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 no âmbito da actividade de crédito com reserva de propriedade e atendendo ao consumo de recursos necessários para o realizar passou a ter em consideração a componente de transmissão de viaturas no coeficiente de imputação específico”, sendo que “[d]a alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 resulta uma dedução adicional no montante de € 916.768,70” – cf. ponto 29 e 30 da matéria de facto da Decisão fundamento.

S. Nestes termos, com referência à caracterização da actividade de CRP desenvolvida pela Recorrente, - a qual é desenvolvida exactamente nos mesmos moldes desde sempre - ficaram provados os seguintes factos essenciais:

- o IVA incorrido nos recursos de utilização mista, necessários para a prossecução da actividade de CRP, não era objecto de dedução por via da aplicação do critério de imputação específico, que resulta do Ofício-Circulado n.º ...08 [página 26 Decisão Recorrida, página 10 Decisão fundamento];

- que em virtude de revisões de procedimento, foi decidido proceder à alteração da percentagem de dedução do IVA incorrido no âmbito da actividade de crédito com reserva de propriedade, passando a ser considerada a componente do valor da transmissão das viaturas no coeficiente de imputação específico [página 26 Decisão Recorrida, página 10 Decisão fundamento];

- da alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido resultou um incremento da mesma [de 8% para 14% referente ao IVA 2019 e de 9% para 11%, referente ao IVA 2015].

T. Em face do exposto, resulta evidente que a factologia relevante é totalmente coincidente nas Decisões Arbitrais aqui em confronto. De facto, tal não podia deixar de ser, dado estar em causa, em ambos os processos, (i) o mesmo sujeito passivo, aqui Recorrente, (ii) a mesma actividade de CRP, (iii) a mesma natureza de recursos afectos à actividade de CRP e (iv) o mesmo procedimento adoptado na determinação da medida de dedução do imposto.

U. Ora, conforme decorre expressamente das Decisões Arbitrais aqui em confronto, o normativo legal em juízo, em ambos os processos, respeita, essencialmente, às normas comunitárias e nacionais que consagram o regime do direito à dedução do IVA – i.e., artigos 173.º a 175.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (doravante, “Directiva IVA”) e artigos 19.º a 25.º, ambos do Código do IVA.

V. Não obstante as Decisões Arbitrais aqui em confronto terem decidido sobre a mesma questão fundamental de direito, assentando em iguais pressupostos de facto e aplicado o mesmo normativo legal, resultam das mesmas soluções jurídicas totalmente opostas.

W. Na Decisão recorrida, o Tribunal Arbitral começa por referir que “(…) na sequência de uma revisão de procedimentos relativos à sua atividade, o Banco, concluindo pela existência de erro no regime legal aplicável e que resultava do ofício (…) peticionou a anulação da citada autoliquidação na parte referente ao IVA e que resultava da divergência de aplicação das percentagens aos bens e serviços de utilização mista, (…) relativa a: i) contratos de reserva de propriedade” (cf. ponto n da matéria de facto da Decisão recorrida).

X. Acrescenta a Decisão recorrida que “[c]om referência ao cálculo da percentagem de dedução relativa ao ano 2019 – i.e., do coeficiente de imputação específico -, haviam sido desconsiderados (i) os valores relativos à transmissão das viaturas adquiridas no âmbito da atividade de CRP” (cf. ponto p da matéria de facto da Decisão recorrida).

Y. Deste modo, na Decisão recorrida, foi alegado que, no âmbito da actividade de CRP, não ficou provado que “a utilização dos bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo (o Banco) era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos respectivos contratos”.

Z. Tal entendimento resulta do facto de este Tribunal Arbitral na Decisão recorrida ter entendido que não há “diferenças substanciais, para efeitos de dedução do IVA incorrido nos custos de disponibilização das viaturas, entre a locação financeira e as situações de crédito com reserva de propriedade”.

AA. Acrescentado ainda que “a diferença dessas operações está, sobretudo ou essencialmente, no negócio ou contrato que é celebrado a seguir à aquisição e que, no caso de contrato de crédito com reserva de propriedade, está sujeito a regime diferente ou específico em termos de IVA”.

BB. Nesse sentido, entende o Tribunal Arbitral na Decisão recorrida que todas estas modalidades de negócios têm em comum a disponibilização da viatura e os custos associados. E que, “[d]epois, ou ocorre a venda do veículo ao cliente com reserva de propriedade para garantir o reembolso do crédito, ou haverá a operação de locação financeira ou leasing ou, noutros casos, a celebração de contrato de aluguer de longa duração”.

CC. Assim, conclui o Tribunal Arbitral na Decisão recorrida que, quanto ao segundo momento da operação, não há diferenças, pelo que, o regime previsto no Ofício Circulado nº ...08 se aplicará no âmbito da actividade de CRP, não devendo ter um tratamento fiscal diferenciado.

DD. Conclusão esta que se encontra em total oposição com a Decisão fundamento, na qual se concluiu que, para efeitos de IVA, existem diferenças substanciais entre a locação financeira e actividade de CRP.

EE. Acrescentando-se na Decisão Fundamento que “[o] IVA correspondente a estes recursos de utilização mista não é objecto de dedução por via da aplicação do critério de imputação específico, porque o Requerente, na sequência de uma acção inspectiva da AT respeitante ao ano 2012, não tem vindo a considerar a actividade de crédito com reserva de propriedade neste ráctio”, tendo, posteriormente, decidido “(…) proceder à alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 no âmbito da actividade de crédito com reserva de propriedade e atendendo ao consumo de recursos necessários para o realizar passou a ter em consideração a componente de transmissão de viaturas no coeficiente de imputação específico” – cf. ponto 28 e 30 da Decisão fundamento.

FF. Contudo, com base nestes mesmos factos provados, este Tribunal Arbitral na Decisão Fundamento conclui que “a autoliquidação de IVA objecto da presente acção arbitral enferma de erro nos pressupostos, na parte em que desconsiderou o valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade no numerador e denominador da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista”.

GG. Entendeu o Tribunal Arbitral na Decisão fundamento que “o exposto na presente decisão arbitral relativamente ao Acórdão Volkswagen Financial Services (Processo C-153/17) do TJUE, aplica-se igualmente às aquisições de viaturas no âmbito de contratos de reserva de propriedade, não obstante o referido acórdão pronunciar-se a propósito de operações de locação financeira”. (sublinhado nosso).

HH. Determinando assim que deve o ali Requerente, aqui Recorrente, considerar no numerador e no denominador da fracção de cálculo o valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade.

II. Conforme supra demonstrado, na Decisão fundamento o tribunal arbitral pronunciou-se sobre a inaplicabilidade do Ofício-Circulado n.º ...08 à actividade de CRP.

JJ. Nesse sentido, o Ofício-Circulado determina que as instituições financeiras que, a par de operações financeiras (como a concessão de crédito), desenvolvam igualmente actividades de leasing e de ALD tributadas, devem determinar o montante de IVA a deduzir com referência aos recursos de utilização mista de acordo com o método da afectação real (o ali designado “coeficiente de imputação específico”).

KK. Contudo, conforme se constata da leitura daquele Ofício, este não se afigura aplicável à actividade de CRP, pretendendo somente regular a dedução do IVA de recursos de utilização mista com referência às actividades de leasing e de ALD.

LL. Desta forma, não se compreende como é que na Decisão recorrida o Tribunal considera o regime previsto no Ofício aplicável à actividade de CRP, quando se afigura claro que tal entendimento não resulta dos requisitos de aplicação do Ofício.

MM. De facto, se a Decisão recorrida conduziu à manutenção na ordem jurídica da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, com vista à contestação do acto tributário de (auto)liquidação de IVA referente ao ano 2019, diferentemente, a Decisão fundamento não o fez e, por conseguinte, esta permitiu a dedução do imposto entregue em excesso pelo sujeito passivo.

NN. A par dos requisitos acima expendidos, nos termos do n.º 2 do artigo 25.º do RJAMT e do artigo 152.º do CPTA, de acordo com o n.º 3 do artigo 152.º do CPTA, o recurso não é admitido se a orientação perfilhada pela Decisão impugnada não esteja estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.

OO. Neste sentido, no que diz respeito à temática aqui em apreço, i.e., a questão de saber se, na aplicação do método de percentagem de dedução de imposto incorrido nos bens e serviços de utilização mista utilizados na actividade de CRP, devem ser considerados no numerador e no denominador da fracção de cálculo o valor da transmissão das viaturas da actividade de CRP, o Supremo Tribunal Administrativo ainda não se pronunciou.

PP. Termos em que, não havendo jurisprudência consolidada do STA sobre esta matéria, a ora Recorrente queda demonstrada, também, a verificação do requisito estatuído no n.º 3 do artigo 152.º do CPTA.

QQ. Assim, e por tudo o que ficou acima exposto, deverá o presente Recurso proceder, porque verificados todos os seus pressupostos, devendo, em consequência, ser anulada, no segmente sindicado (respeitante à actividade de CRP), a Decisão recorrida, proferida em 3 de Janeiro de 2023, no âmbito do processo n.º 517/2021-T, por Tribunal Arbitral constituído no âmbito do CAAD».

Concluiu pedindo fosse o recurso para uniformização de jurisprudência admitido, julgado procedente e, consequentemente, fosse parcialmente revogada a decisão arbitral recorrida, isto é, na parte referente à “CRP”.

O recurso foi admitido, com efeito suspensivo da decisão arbitral recorrida.

Foi cumprido o disposto no artigo 25.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e lavrou douto parecer, tendo concluído que não se mostram reunidos os requisitos para o conhecimento do mérito do presente recurso.

Tendo as partes sido notificadas do conteúdo do douto parecer a que alude o parágrafo anterior, nenhuma delas respondeu.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir, em conferência, no Pleno da Secção.


***

2. Dos fundamentos de facto

2.1. A decisão arbitral recorrida relevou e deu como provados os seguintes factos: «(...)

a. O Requerente é uma instituição de crédito que, no âmbito da sua atividade, realiza operações enquadráveis nas isenções constantes nas subalíneas da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto – tais como, operações de financiamento/concessão de crédito, operações associadas a pagamentos e, em geral, transações relativas à negociação e venda de títulos.

b. O Requerente realiza igualmente operações que conferem o direito à dedução deste imposto (cf. a alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA), designadamente, operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos, entre outras.

c. Uma vez que adquire recursos que são utilizados simultaneamente em operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem tal direito, o Requerente encontra-se abrangido por distintos regimes de dedução do IVA incorrido.

d. O Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas e aplicou consequentemente, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

e. Foi o que sucedeu no âmbito da aquisição de bens objecto dos contratos de locação financeira - v.g. a aquisição de uma viatura para subsequente locação financeira -, relativamente aos quais foi deduzido, na íntegra, o IVA incorrido, em virtude de tais bens estarem diretamente ligados a operações tributadas, realizadas a jusante pelo Requerente;

f. Em idêntico sentido, nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, o ora requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

g. Por outro lado, nas situações em que o Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objetivos do nível/grau de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

h. Para determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, i.e., aos recursos de utilização mista, o Requerente aplicou o método geral e supletivo do critério de imputação específico, conforme determinado pelo Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária do IVA.

i. O Banco considerou não exequível quantificar o IVA incorrido em cada um dos procedimentos e tarefas que compõem o leasing e...

j. ... adotou (ab initio) o coeficiente de imputação específico como método de dedução do imposto incorrido nos recursos de utilização mista.

k. Deste modo, relativamente a estes encargos comuns ou recursos de utilização mista não foi possível ao Banco proceder à aplicação de outro critério de afetação real, na medida em que tal implicaria uma clara distinção dos bens e serviços adquiridos para cada tipologia de operações, o que é impraticável face à natureza dos recursos (de utilização mista) em causa, nomeadamente, os consumos de eletricidade, de água, de papel, de material informático (hardware e software), de telecomunicações, entre outros.

l. Não sendo viável encontrar um ou vários critérios objetivos passíveis de permitir, de forma minimamente rigorosa e segura, a determinação do IVA dedutível, através do método da afetação real (a que alude o n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA) nas aquisições de recursos de utilização mista, o Requerente, conforme acima salientado, aplicou o critério de imputação específico, nos termos consagrados no Ofício-Circulado n.º ...08.

m. O Requerente procedeu, pela forma descrita, à (auto)liquidação de IVA relativa ao período de imposto de 2019/12 (dezembro), com dedução, segundo critérios provisórios, nas declarações periódicas referentes aos meses de Janeiro a Novembro de 2019, do IVA por si incorrido em recursos de utilização mista, e segundo critérios definitivos, na declaração periódica referente ao mês de Dezembro do mesmo ano (cf. o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA).

n. Ulteriormente, na sequência de uma revisão de procedimentos relativos à sua atividade, o Banco, concluindo pela existência de erro no regime legal aplicável e que resultava do ofício mencionado supra em l), peticionou a anulação da citada autoliquidação na parte referente ao IVA e que resultava da divergência de aplicação das percentagens aos bens e serviços de utilização mista, num total de € 8.446.898,69, relativa a i) contratos de reserva de propriedade (“CRP”); ii) contratos de locação financeira (“leasing”).

o. Em concreto, verificou o Requerente existir erro na (auto)liquidação efetuada no ano 2019, em virtude de, com referência aos recursos de utilização mista adquiridos no âmbito das áreas de atividade referidas supra, não ter alegadamente procedido à dedução do IVA por si incorrido em conformidade com a legislação nacional e comunitária deste imposto.

p. Assim, com referência ao cálculo da percentagem de dedução relativa ao ano 2019 – i.e., do coeficiente de imputação específico –, haviam sido desconsiderados (i) os valores relativos à transmissão das viaturas adquiridas no âmbito da atividade de CRP e (ii) os valores respeitantes às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira (ou leasing) por si celebrados. Mais concretamente:

q. O Requerente havia apurado inicialmente uma percentagem de dedução definitiva para o ano 2019 de 8%, a qual, quando aplicada ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 33.787.595,57) se materializou no valor de € 2.703.007,65 de IVA dedutível...

r. ... quando, se no cálculo daquela percentagem de dedução, tivessem sido considerados, os valores relativos à transmissão das viaturas relacionadas com a atividade de CRP e os valores relativos às amortizações financeiras do leasing, tal percentagem ascenderia a 33% (ao invés de 8%).

s. Na sobredita (auto)liquidação de IVA com referência ao ano de 2019 não foi assim deduzida a importância de € 8.446.898,89 (i.e., € 33.787.595,57 x 33% - € 2.703.007,65).

t. Quer o valor da renda (na locação financeira), quer a componente das comissões que são faturadas com IVA aos locatários, incluem o segmento respeitante aos custos comuns/gerais que o Banco estima incorrer com as prestações de serviços mistas, mas que não consegue segregar entre o que sejam atos de disponibilização de veículos e atos de gestão e de financiamento dos contratos,

u. ... assim como de entre o que são os custos comuns às atividades sujeitas e às atividades isentas de IVA.

v. Os custos comuns da Requerente são não apenas remunerados pelo débito de comissões junto dos clientes de locação financeira, como também através de componente da renda referente aos juros (remuneração do risco) e encargos.

w. O Banco apresentou reclamação graciosa nos termos previstos nos artigos 68º e 131º, do CPPT, em conjugação com o artigo 97º, do CIVA, contra o ato tributário de autoliquidação de IVA respeitante ao citado período de imposto de 2019/12 (dezembro), invocando a ilegalidade da autoliquidação, decorrente da ilegalidade do Ofício-circulado nº ...08, de 30 de janeiro de 2009 por este consagrar uma percentagem de dedução do IVA com base em critérios incompatíveis com o direito nacional e comunitário;

x. Por despacho da Diretora Adjunta da Unidade dos Grandes Contribuintes (por delegação de competência) de 25-5-2021, a AT indeferiu totalmente a reclamação mencionada com os fundamentos que constam dos documentos 1 a 7, juntos com o pedido de pronúncia arbitral apresentado em 30-8-2021.».

2.2. O acórdão arbitral fundamento deu como provada a seguinte factualidade: «(...)

1 - O Requerente é uma instituição de crédito com sede em território nacional cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro e objeto de sucessivas alterações).

2 - O Requerente está colectado com os Códigos de Actividade Económica (CAE), a título principal, de “Outra Intermediação Monetária” (CAE 64190) e, a título secundário, de “Atividades de Factoring” (CAE 64991).

3 - O Requerente está integrado no grupo dos contribuintes de elevada relevância económica e fiscal, nos termos previstos no artigo 68.º-B da LGT, cujo acompanhamento permanente e gestão tributária compete à Unidade dos Grandes Contribuintes, de acordo com o disposto no Anexo I do Despacho da Diretora-Geral da AT n.º 977/2019, de 28 de janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 19, Parte C, de 28-01-2019.

4 - Para efeitos de IVA o Requerente é um sujeito passivo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, encontrando-se enquadrado no regime normal de periodicidade mensal, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA.

5 - O Requerente realiza operações que conferem o direito à dedução, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA (operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos entre outras).

6 - O Requerente como instituição de crédito, no âmbito da sua atividade, realiza operações enquadráveis na isenção prevista no n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA que não conferem o direito à dedução (operações de financiamento/concessão de crédito, operações associadas a pagamentos e, em geral, transações relativas à negociação e venda de títulos).

7 - O Requerente caracteriza-se por ser um sujeito passivo “misto” (realiza operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem esse direito) procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do Código do IVA.

8 - O Requerente adquire recursos que são utilizados simultaneamente em operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem tal direito encontrando-se abrangido por distintos regimes de dedução do IVA incorrido.

9 - Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

10 - Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objectivos do nível/grau de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

11 - Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, o Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

12 - Para determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, ou seja, aos recursos de “utilização mista”, o Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

13 - A determinação da percentagem de dedução, referida no n.º anterior, foi concretizada através do cumprimento do disposto no Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA.

14 - Nas declarações periódicas de IVA referentes aos meses de janeiro a novembro de 2015, o Requerente procedeu provisoriamente à dedução do imposto por si incorrido em recursos de utilização mista com base na percentagem de dedução do ano anterior, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.

15 - A declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro do ano de 2015, com o n.º ...39, foi apresentada, em 08-02-2016, tendo sido substituída pela declaração, com o n.º ...40, entregue em 29-12-2017.

16 - Na declaração periódica de IVA, referente ao mês de dezembro de 2015, o Requerente procedeu ao ajustamento/regularização das deduções operadas mensalmente ao longo do ano de 2015, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.

17 - Através do procedimento supra referido, o Requerente apurou uma percentagem de dedução definitiva para o ano de 2015 de 7%, a qual quando aplicada ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano no montante de € 23.772.345,00, se materializou no valor de € 1.664.064,15 de IVA dedutível.

18 - O Requerente apurou a dedução de IVA incorrido em recursos de utilização mista na actividade de gestão de carteira de títulos própria através da aplicação do coeficiente de imputação específico mencionado no Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009.

19 - Posteriormente o Requerente decidiu proceder à alteração do método de dedução do imposto incorrido no ano 2015 no âmbito da actividade de gestão da carteira própria de títulos por considerar que a utilização do coeficiente de imputação específico para a determinação da capacidade de dedução do IVA incorrido não se afigurava adequada por objetivamente não permitir demonstrar a real utilização dos referidos recursos em cada uma das tipologias de operações desenvolvidas pelo Requerente.

20 - O Requerente procedeu à determinação de um critério de dedução do IVA incorrido nos recursos quer exclusivos quer partilhados adquiridos pela actividade de gestão da carteira própria de títulos e à revisão do cálculo do coeficiente de imputação específico do ano de 2015, tendo apurado um valor de IVA não dedutível de € 34.128,08, e posteriormente procedeu à regularização a favor do Estado desse montante, e desconsiderou, no cálculo do coeficiente de imputação específico, os proveitos referentes a esta área.

21 - Da alteração do método de dedução do imposto, incorrido no ano 2015, no âmbito da actividade de gestão da carteira própria de títulos resulta uma dedução adicional no montante de € 441.321,82 [(€ 23.772.345,00 X 2%) - € 34.128,08], conforme quadro apresentado infra:

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22 - A AT considerou que a aplicação do método de afetação real integral na atividade de gestão da carteira própria de títulos utilizado pelo Requerente não fere o quadro jurídico em vigor, assente no disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA e no Oficio-Circulado n.º ...08 (vd., VI, n.º 27 da Informação n.º ...19, de 13-09-2019, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, que consta do Processo Administrativo integrante dos presentes autos arbitrais).

23 - O Requerente celebra contratos de crédito com reserva de propriedade que têm por objectivo a aquisição, por parte dos seus clientes, de veículos automóveis, novos ou usados, nos termos dos quais o cliente consta do registo de propriedade do veículo enquanto proprietário, mas é constituída a favor do Requerente uma reserva de propriedade.

24 - A constituição da reserva de propriedade a favor do Requerente visa assegurar o integral pagamento dos montantes devidos pelo cliente referentes ao contrato de mútuo celebrado e permitir ao Requerente obter a expedita restituição do bem, no caso de falta de pagamento das prestações acordadas.

25 - Na atividade de crédito com reserva de propriedade existem duas operações distintas, autonomizadas e com diferente enquadramento em IVA: (i) operação de transmissão de viaturas tributada nos termos gerais; e (ii) operação de concessão do crédito isenta de IVA, nos termos da alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA.

26 - Para o desenvolvimento da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, o Requerente recorre à sua rede de balcões, bem como a diversas direcções (Direcção de Financiamento Automóvel, Direcção de Marketing Empresas, Direcção de Planeamento, Direcção de Operações, entre outras), utilizando, por conseguinte, um conjunto de recursos (exclusivos e mistos) e o consumo de um leque de recursos humanos e técnicos que compõem a sua estrutura.

27 - As aquisições de bens e serviços necessários ao desenvolvimento da actividade de crédito com reserva de propriedade consubstanciam recursos de utilização mista, comportando, na medida em que são alocados à actividade de crédito com reserva de propriedade (que confere o direito à dedução do IVA incorrido), IVA parcialmente dedutível.

28 - O IVA correspondente a estes recursos de utilização mista não é objecto de dedução por via da aplicação do critério de imputação específico, porque o Requerente, na sequência de uma acção inspectiva da AT respeitante ao ano 2012, não tem vindo a considerar a actividade de crédito com reserva de propriedade neste rácio.

29 - O Requerente decidiu proceder à alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 no âmbito da actividade de crédito com reserva de propriedade e atendendo ao consumo de recursos necessários para o realizar passou a ter em consideração a componente de transmissão de viaturas no coeficiente de imputação específico.

30 - Da alteração da percentagem de dedução do imposto incorrido no ano 2015 resulta uma dedução adicional no montante de € 916.768,70 (€ 441.321,82 relativos à área de gestão de carteira própria de títulos, conforme explanado e € 475.446,90 relativos à variação percentual, de 9% para 11%, do coeficiente de imputação específico, conforme quadro apresentado infra:

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31 - A tabela referida no n.º anterior inclui tanto no numerador como no denominador do coeficiente de imputação específico, os valores referentes aos proveitos com a transmissão dos veículos no montante de €18.723.381,55, que fez passar o numerador inicial de € 64.970.607,51 para € 83.695.989,06, bem como o denominador de € 784.833.544,74 para € 803.558.926,29.

32 - No cálculo da percentagem de dedução definitiva relativa aos contratos de locação financeira, o Requerente aplicou o critério estabelecido no Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA, nos termos do qual deve ser excluído o valor das amortizações financeiras contidas na renda.

33 - No âmbito da actividade de locação financeira o Requerente incorre em despesas respeitantes à contratação e gestão dos contratos de locação financeira, que ocorrem no período inicial de disponibilização do bem e continuam ao longo de todo o período de usufruto do bem locado, que em média superam os 5 anos, em função das diversas vicissitudes que ocorrem, tais como pagamento coimas ou outras taxas administrativas.

34 - As despesas, referidas no n.º anterior, são incorridas pelo Requerente através da sua rede de 400 balcões, direcções centrais (v.g. Direção de Financiamento Automóvel, Direção de Riscos de Crédito, Direção de Operações, Direção Jurídica, Direção de Contabilidade, Direção de Marketing, Direção de Comunicação e Gestão da Marca, Direção de Recuperação de Crédito), call centers e aplicações de gestão do negócio (software).

35 - Nas situações de incumprimento dos contratos pelos clientes a Direção de Gestão dos Bens Recuperados tem intervenção directa nas operações de leasing desenvolvidas pelo Requerente.

36 - A participação activa de diversos Serviços/Direcções do Requerente, no período inicial de disponibilização do bem e depois ao longo de todo o período de usufruto do bem locado, originam despesas gerais de funcionamento, tais como energia, combustíveis, material de consumo corrente, material de higiene e limpeza, serviços de comunicações, serviço de reparação nas instalações, serviços especializados (advogados, solicitadores, leiloeiras, consultores e auditores externos, avaliadores externos), serviços de informática, serviços de segurança e vigilância e serviços de limpeza.

37 - Da alteração da percentagem de dedução das operações de locação financeira resulta o montante adicional, relativo às amortizações financeiras dos contratos de leasing celebrados, correspondente à variação percentual de 11% na percentagem de dedução do ano de 2015, conforme quadro infra:

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38 - A percentagem de dedução apurada para o ano de 2015 seria de 22%, e o valor de IVA dedutível na aquisição de recursos de utilização mista seria de € 5.195.760,82 se o Requerente tivesse: (i) desconsiderado, na determinação da percentagem de dedução definitiva do ano 2015, os recursos utilizados na actividade de gestão da carteira própria de títulos e, ao invés, adoptado o método da afectação real integral para a dedução do imposto vertido nos recursos afectos a esta área de actividade (ii) incluído, na percentagem de dedução do ano de 2015, os valores relativos à transmissão das viaturas por si adquiridas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade; (iii) incluído, na percentagem de dedução, no ano de 2015, os montantes respeitantes às amortizações financeiras dos contratos de leasing celebrados.

39 - O Requerente, em 27-12-2017, dirigiu ao Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes reclamação graciosa, que recebeu o n.º ...79, ao abrigo do disposto no 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e do artigo 98.º do Código do IVA, onde alegou erro na autoliquidação de IVA, referente ao ano de 2015, no montante de € 3.531.726,67.

40 - Através do ofício da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 26-08-2019, o Requerente foi notificado para exercer o direito de participação na modalidade de audição prévia, previsto no artigo 60.º da LGT, relativamente ao projeto de decisão da reclamação graciosa.

41 - O Requerente não exerceu o seu direito de participação na modalidade de audição prévia sobre o projeto de decisão da reclamação graciosa (vd., VII n.º 47 da Informação n.º ...19, de 13-09-2019, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, que consta do Processo Administrativo integrante dos presentes autos arbitrais).

42 - Através do ofício da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 16-09-2019, o Requerente foi notificado do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, identificada no n.º 39 supra, proferido pelo Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes, ao abrigo de Subdelegação de competências, em 13-09-2019 e exarado na Informação n.º ...19, com a mesma data, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes.».


***

3. Dos fundamentos de Direito

A primeira questão a decidir é a de saber se estão reunidos os pressupostos substantivos do conhecimento do mérito do recurso.

Com efeito, o presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 25.º, n.º 2, do RJAT, o que significa que tem no seu fundamento a oposição entre decisões e inclui na sua finalidade a uniformização de jurisprudência.

Ora o recurso interposto com tal fundamento pressupõe – como a própria norma indica – que a decisão arbitral recorrida se oponha a outra decisão arbitral ou a acórdão do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo quanto à mesma questão fundamental de direito.

O que significa que o recurso só deve prosseguir para a apreciação do seu mérito quando os arestos em confronto tenham apreciado a mesma questão fundamental de direito e a tenham decidido de forma oposta.

Estando disso bem ciente, a Recorrente fundamenta o presente recurso na identidade da questão de direito, dizendo que a questão decidenda ou questão colocada em ambos os arestos, expressamente identificada pelos Tribunais Arbitrais respetivos, consistia em saber se, na aplicação do método de dedução de IVA incorrido na atividade de concessão de crédito com reserva da propriedade do automóvel, deveria «ser considerado o valor da transmissão das viaturas no numerador e no denominador da fracção de cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Recorrente nos recursos de utilização mista» (ponto 17.º das doutas alegações de recurso).

A Recorrente tem razão em observar que, na determinação da questão que um aresto identificou como «questão decidenda» e o outro como «thema decidendum» não há diferenças substanciais.

Mas já não tem razão em concluir que na resposta a tal questão, os dois arestos decidiram «em sentido antagónico» (ponto 52.º das doutas alegações de recurso).

Na essência, porque o acórdão arbitral fundamento não decidiu, nesta parte, a questão que previamente enunciou.

Em vez disso, decidiu por remissão para outro acórdão arbitral (tirado no processo n.º 646/2018-T, também do CAAD), que apreciou questão distinta.

Aliás, os elementos que a Recorrente convoca para demonstrar que se decidiu em oposição estão completamente descontextualizados.

Assim, a parte da decisão fundamento que a Recorrente transcreve no ponto 61.º das doutas alegações de recurso não alberga nenhuma resposta à questão de direito que atrás identificou, porque traduz a resposta à matéria de facto.

E a parte da decisão fundamento que a Recorrente transcreve no seu ponto 62.º não pode ser desenquadrada do entendimento expresso no acórdão arbitral para que acima remete e que lhe dá um sentido completamente distinto.

Constituindo, por isso, a conclusão formulada no seu ponto 64.º uma verdadeira extrapolação do que o Tribunal Arbitral ali disse efetivamente e que o demais fundamentado não confirma ter querido dizer.

Vamos por partes.

A questão fundamental que ambos os acórdãos enunciaram que teriam que decidir traduzia-se, globalmente, em saber se a administração tributária podia obrigar o sujeito passivo a considerar o valor da transmissão das viaturas (relativo à atividade de concessão de crédito para aquisição de automóvel com reserva de propriedade) no numerador e no denominador da fração do cálculo percentagem de dedução aplicado ao IVA incorrido pelo mesmo sujeito passivo nos recursos de utilização mista.

Sendo que, para responder a esta questão, o Tribunal Arbitral considerou necessário – no caso da decisão recorrida – saber se existe identidade substancial entre as operações de concessão e crédito com reserva de propriedade e as operações de locação financeira realizadas pela mesma instituição de crédito.

Ou seja, para apreciar a questão fundamental que acima enunciou, esse Tribunal Arbitral considerou necessário formular uma questão conexa, que consistia em saber se são idênticos os dois tipos de operações, ao menos para este efeito.

Se bem interpretamos, porque queria saber se os critérios enunciados no Ofício-Circulado n.º ...08, de 30 de janeiro de 2009, também podiam ser convocados para efeitos de dedução do IVA incorrido nos custos de disponibilização das viaturas correspondentes.

Tendo sido ali decidido que não havia fundamento para distinguir as situações desde que, também ali, a utilização de bens ou serviços de utilização mista não fosse sobretudo determinada por serviços relacionados com atos de disponibilização de veículos.

Razão porque foi ali considerado essencial saber se, no caso da atividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, os custos comuns do Banco eram sobretudo determinados pelos serviços conexos com os atos de disponibilização dos veículos.

Tendo sido concluído que, também no caso desta atividade, «tal prova não foi feita» (ver o parágrafo 96).

Já no caso da decisão arbitral fundamento, o Tribunal Arbitral tratou logo de advertir, apropriando-se das palavras do acórdão que transcreve parcialmente, que não estava em causa «desreconhecer a faculdade conferida à AT pelo artigo 23.º/3 do Código do IVA aplicável, nem, muito menos, as disposições comunitárias que legitimam a consagração no ordenamento nacional daquela faculdade, nos termos que emergem da jurisprudência do TJUE».

Deixando, por isso, em aberto a possibilidade de a administração impor a utilização de um método como o que acima enunciou, também neste âmbito.

No que, como vimos, nem divergia do caminho trilhado na decisão arbitral recorrida.

O que sucede é que aquele Tribunal Arbitral também entendeu que devia formular uma questão que considerou conexa: a questão de saber como é que a administração deve usar dessa prerrogativa.

Tendo sido ali entendido que a administração tributária, não admitindo o método supletivo previsto na lei, tinha o ónus de densificar os critérios objetivos a adotar no método a aplicar.

Em decorrência lógica de tal entendimento, o Tribunal Arbitral respetivo considerou essencial saber se, naquele caso, a administração tributária tinha usado de tal prerrogativa.

Tendo sido concluído que não porque, naquele caso, a administração tributária tinha pretendido fazer valer para o exercício em causa o entendimento manifestado em procedimento inspetivo relativo a exercício anterior. E porque não resultava desse procedimento inspetivo «uma determinação vinculativa» nos termos que acima enunciou.

Decorre do sobredito que a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento acabaram por enfrentar questões que, apresentando alguma conexão com a previamente enunciada, diferem entre si.

Na decisão arbitral recorrida, respondeu-se à questão de saber se a atividade de concessão de crédito com reserva de propriedade e a atividade de locação financeira reclamam, nas circunstâncias descritas, o mesmo tratamento fiscal (isto é, o mesmo método de dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista).

Na decisão arbitral fundamento, respondeu-se à questão de saber se, no caso que tinha em mãos, a administração fiscal obrigou o sujeito passivo a proceder de acordo com o n.º 2 do artigo 23.º e o fez nos termos que ali se considerou serem impostos por esse dispositivo e pelos princípios de segurança e de certeza jurídicas (isto é, cumpriu o ónus de densificar os critérios objetivos a observar no método a utilizar).

Num caso, temos o problema de saber se a administração pode impor um determinado método. No outro, o problema de saber se o impôs efetivamente e se o fez de forma adequada.

Deve, por isso, concluir-se que os Tribunais Arbitrais acabaram a apreciar questões distintas. Apelando também – e por isso mesmo – a factualidade distinta para as decidir.

Pelo que não estão reunidos os pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso.


***

4. Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

4.1. Constitui pressuposto da apreciação do mérito do recurso a que alude o artigo 25.º, n.º 2 do RJAT a decisão arbitral recorrida esteja em oposição com outra decisão arbitral ou acórdão de tribunal superior quanto à «mesma questão fundamental de direito»;

4.2. Não há oposição quanto à mesma questão fundamental de direito se o acórdão arbitral recorrido apreciou a questão de saber se a administração tributária pode impor determinadas regras na determinação do direito à dedução e o acórdão arbitral fundamento apreciou a questão de saber se a administração tributária utilizou a referida prerrogativa e o fez com as formalidades que decorrem da lei.


***

5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pela RECORRENTE, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, atendendo à simplicidade da decisão e a coberto do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.

Registe, notifique e comunique ao CAAD.

Lisboa, 21 de fevereiro de 2024. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - José Gomes Correia – Joaquim Manuel Charneca Condesso - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo - Fernanda de Fátima Esteves.