Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0170/13.8BECBR
Data do Acordão:03/06/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:PREÇO REAL
PRESUNÇÃO
Sumário:I - O artigo 64.º do Código do IRC configura uma norma perfeitamente autónoma do regime dos preços de transferência, permitindo precisamente corrigir o preço praticado e declarado entre as partes em favor de um outro preço (presumido).
II - O artigo 139.º do Código do IRC é uma manifestação da prevalência da obrigação fundamental de tributar as empresas pelo respectivo rendimento real, presente no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição, e com prejuízo dos valores meramente presumidos.
III - O regime dos preços de transferência respeita ao fenómeno da elisão fiscal, ao passo que o regime do artigo 64.º respeita ao fenómeno evasivo: a adulteração da base tributável de IRC pela ocultação dos reais valores envolvidos na transacção de imóveis.
Nº Convencional:JSTA000P31994
Nº do Documento:SA2202403060170/13
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... , LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, que julgou procedente a impugnação judicial apresentada por A..., Lda. visando as liquidações adicionais de IRC relativas ao exercício de 2011 e juros compensatórios no valor total de € 61.726,45.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 188 a 202 do SITAF:
1. O Mmo. Juiz do Tribunal a quo julgou procedente a impugnação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do exercício de 2011 e respectivos juros de mora, no valor total de € 61.726,45 (sessenta e um mil setecentos e vinte e seis euros e quarenta e cinco cêntimos), após acerto de contas, nos autos acima identificados, por ter entendido que o procedimento inserto no art.º 139.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), se destina a que o contribuinte possa fazer prova do preço real e efetivo de venda de um determinado imóvel, afastando-o das demais regras referentes à consideração dos valores dos imóveis que constituem a regra geral e que é a do valor de mercado, devendo ter sido discutido e decidido nesse procedimento, qual o valor efetivo de venda e não o valor de mercado do imóvel.
2. Defendendo que houve uma distorção invalidante do critério que deve presidir ao citado procedimento, critério esse que tenta aproximar e a ajudar a determina a efetiva receita das empresas e, consequentemente, apurar com a verdade possível o lucro que venha a ser sujeito a tributação.
3. Concluindo que ocorreu uma errónea escolha do critério legal de decisão no mencionado procedimento, substituindo-o pela da ponderação dos elementos factuais e de prova disponíveis.
4. Com todo o respeito pela douta decisão a quo e reconhecendo a profunda análise efectuada pelo Mmo. Juiz, entende esta Representação da Fazenda existir erro na aplicação do direito, quanto considera que o procedimento inserto no art.º 139.º do CIRC, se destina, sem mais, a fazer prova do preço real e efectivo da venda de determinado imóvel, não tomando em conta as especificidades do negócio e o valor de mercado, ou pelo menos o valor patrimonial atribuído ao mesmo e concluindo que a AT fez uma errónea escolha do critério legal.
5. Pois o preço real e efectivo, não pode em situações específicas, como a dos presentes autos, bastar-se com o documentalmente demonstrado, sob pena de ficarmos por uma interpretação literal da norma, como esta Representação já defendeu em sede da contestação apresentada e cujos argumentos não foram, com todo o respeito, levados em conta na douta sentença.
6. Se o critério é o valor efectivo da venda, este não se pode traduzir, sempre e necessariamente em preço documentalmente provado, sob pena de se favorecer a elisão fiscal, privilegiando a forma sobre a substância, conforme defendeu, aliás, o Sr. Procurador da República no douto parecer que integra os autos.
7. É que entender o procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC, como um mero procedimento de prova de preço, é ficar por uma interpretação literal do preceito legal que não é admissível, pois, por absurdo, bastaria apresentar uma escritura de um euro, com um mútuo de um euro, provado documentalmente, para a Administração Tributária se ver forçada a aceitar tal valor.
8. Na interpretação jurídica há que ter em conta, para além da letra da lei, os elementos histórico, sistemático e teleológico, conforme dispõe o art.º 9.º, n.º 1 do Código Civil.
9. Tendo a condução do procedimento sido a mais correcta, tendo em conta tais elementos.
10.Com efeito, não se pode ignorar o elemento sistemático da interpretação jurídica, havendo necessidade de levar em conta o disposto no art.º 64.º do Código do IRC, norma inserida no regime dos preços de transferência e o disposto no imediatamente anterior art.º 63.º, que sob a epígrafe “ Preços de transferência” define no seu n.º 4 o conceito de relações especiais entre entidades, tratando-se claramente de normas anti-abuso.
11.O art.º 64.º, n.º 1 do CIRC consagra o princípio do preço de plena concorrência, dispondo “Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre imóveis devem adoptar para efeito de determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver liquidação do imposto.”(sublinhado nosso).
12.Referindo PAULA ROSADO PEREIRA, “O Novo Regime dos Preços de Transferência” in Fiscalidade-Revista de Direito e Gestão Fiscal, acerca do referido princípio:” O preço entre entidades relacionadas deve ser aquele que seria praticado em operações semelhantes que fossem realizadas no âmbito de um mercado concorrencial, ou seja deve ser o preço que seria convencionado entre entidades independentes, em operações comparáveis e em circunstâncias semelhantes.”
13.E o elemento teleológico tem de ser tomado em conta, tanto mais que dispõe art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil: “Na fixação do alcance e sentido da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
14.Ora, com todo o respeito, não faz sentido que o legislador consagre um princípio e no artigo que permite elidir a presunção dele decorrente, permita que seja afastado, com uma simples prova de preço, pois o princípio perderia qualquer interesse prático, uma vez que o preço real, se inferior ao preço de plena concorrência, prevaleceria sempre e, consequentemente, estaríamos perante uma norma legal perfeitamente inútil.
15.Uma interpretação literal do art.º 139.º, n.º 1 do CIRC, é contraditória com o disposto em outros números do mesmo artigo: o número 2 que permite que a prova do preço seja efectuada com recurso a coeficientes de avaliação de imóveis, pois neste caso tal implicaria alcançar valores que não correspondem ao preço praticado e face à remissão do n.º 5, para o procedimento de revisão das correcções por métodos indirectos.
16.A perita da Administração tributária conduziu o procedimento, com total imparcialidade, no sentido de verificar se os elementos de prova produzidos pela impugnante correspondiam ao preço praticado pelas partes em condições de plena concorrência e fê-lo correctamente, porque face à interpretação que a AT defende, é precisamente isso que o legislador pretendia ao criar o procedimento.
17.E face aos elementos de prova, não colocando em causa que a ora impugnante autorizou a derrogação do sigilo bancário e demonstrou a venda pelo preço declarado, não poderia ter chegado a outra conclusão pois, não foram de forma inequívoca justificadas as condições anormais de mercado em que foi realizada a transmissão, de que resultou a fixação de preço inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel transmitido.
18.Ou seja, para a interpretação que pugnamos por correcta, salvo melhor opinião, há que ponderar os elementos factuais e de prova disponíveis, sem que tal enviese o objectivo, a ratio legis do preceito normativo em causa.
19.Há uma evidente relação especial entre a alienante do imóvel e o adquirente, pois este é gerente daquela e outorgou na escritura na qualidade de representante legal da alienante e adquirente do imóvel, referindo expressamente o art.º 63.º, n.º 4 do CIRC que “Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer directa ou indirectamente, uma influência nas decisões de gestão da outra o que se considera verificado, designadamente entre:…C) Uma entidade e os membros dos seus órgão sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes “.
20.Ora, existindo esta evidente relação especial e sendo o valor constante da escritura, que a Administração Fiscal não coloca em causa, substancialmente inferior ao Valor Patrimonial Tributário fixado com base em critérios objectivos, nos termos do CIMI e que o próprio perito da impugnante reconheceu em sede do procedimento não enfermar de qualquer vício, tanto mais que não requereu a realização de segunda avaliação, tal permite concluir, como foi concluído no Despacho n.º 5/2012, que só essa relação especial permitiu que tivesse sido estipulado como preço de venda o valor do empréstimo bancário de € 270.000,00, não incorrendo a decisão tomada em qualquer erro.
21.Tanto é assim, que o montante máximo garantido pela hipoteca que garante o mútuo concedido é de € 386.100,00 e em 03/10/2011 foi de novo o imóvel hipotecado para garantir o montante de € 40.000,00 e já em 18/05/2004 o imóvel havia sido hipotecado para garantir o montante de € 313.000,00.
22.Não constituindo esta referência à hipoteca de 2004, no Despacho 5/2012, fundamentação a posteriori, tendo apenas a função de realçar as conclusões alcançadas.
23.Sendo que, quer em sede do procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC, quer na presente impugnação a impugnante não forneceu qualquer elemento que demonstrasse que o preço pago pelo imóvel corresponde ao que seria, efectivamente, praticado em condições de livre concorrência.
24.Face ao exposto, entende ter esta Representação da Fazenda Pública, existir erro de julgamento na interpretação levada a cabo, na douta sentença a quo, do art.º 139.º do CIRC.

I.2 - Contra-alegações
Não foram proferidas contra alegações no âmbito da instância.

I.3 - Parecer do Ministério Público
Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, veio o Ministério Público emitir parecer com o seguinte conteúdo:
“A Fazenda Pública veio recorrer da douta sentença do TAF de Coimbra que julgou procedente a Impugnação Judicial apresentada por A..., Lda., contra as liquidações adicionais de IRC referentes ao IRC de 2011 e respectivos juros compensatórios.
Os fundamentos do recurso constam dos termos conclusivos das Alegações de Recurso apresentadas pela Recorrente – cujo teor aqui de reproduz se reproduz para todos os legais efeitos.
A questão “decidenda” reconduz a apreciar se a douta sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao ter concluído que a liquidação de IRC impugnada padecia do vício de violação de lei por ofensa ao disposto no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC por ter considera que o procedimento inserto no art.º 139.º do CIRC se destina a que o contribuinte possa fazer prova do preço real e efetivo de venda de um determinado imóvel, afastando-o das demais regras referentes à consideração dos valores dos imóveis que constituem a regra geral e que é a do valor de mercado pelo que o que teria que ter discutido e decidido em sede do apontado procedimento não era qual o valor de mercado a considerar, mas sim qual o valor efectivo de venda.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que assistirá razão à Recorrente.
Como resulta da matéria de facto provada, a impugnante solicitou a abertura do procedimento para prova do preço efectivo de venda do imóvel alienado pelo preço de 270.000,00 Euros (cujo valor tem directa influência no valor da matéria colectável que subjaz à liquidação do IRC impugnada) e, para o efeito, defendeu que o que estava em causa era a prova do preço efectivamente praticado tendo considerado este como o preço praticado pelos contraentes, conforme fotocópia da escritura e mútuo com hipoteca que apresentou e tendo indicado à AT que o critério que presidiu à determinação do preço de venda do imóvel foi o do valor do empréstimo bancário no valor de 270.000.00 Euros.
Igualmente, resulta da factualidade dada como provada que a AT decidiu manter o VPT como base da tributação tendo procedido às correções da parte correspondente ao valor do ajustamento previsto no n.º 2 do artigo 64 do CIRC, como estipula o n.º 4 do artigo 139.º do mesmo diploma legal, por ter considerado não ter o sujeito passivo efectuado o ónus da prova de que o preço efectivamente praticado, em condições de plena concorrência, seria inferior ao VPT, conjugado com as patentes relações especiais entre a vendedora e o comprador.
A AT fundamentou tal decisão da seguinte forma que a seguir se sintetiza:
- em resultado da avaliação efectuada ao imóvel em causa foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 502.930,00, não tendo sido promovida pela impugnante uma segunda avaliação nos termos e para os efeitos do consignado no artigo 76° do CIMI porquanto não tinha sido detectado qualquer erro aritmético ou de aplicação dos coeficientes previstos nos artigos 38° a 44º do citado diploma;
- verificou-se que a transmissão foi efectuada para uma entidade com quem a reclamante está numa situação de relações especiais, a que alude o artigo 63° do CIRC (neste negócio, o representante do vendedor é o sócio-gerente que detém 98,75% do capital e o comprador são a mesma pessoa) pelo que deviam ter sido contratadas e praticadas condições substancialmente idênticas às que normalmente seriam praticadas entre entidades independentes em operações comparáveis, ou seja em situações normais de mercado, ou seja, condições de plena concorrência;
- foi a relação especial entre vendedor e comprador que permitiu fixar o valor do mútuo no montante de € 270.000,00 e ser este o montante que foi declarado na escritura como sendo o valor de venda do referido imóvel, no entanto, se o referido imóvel fosse sujeito às leis de mercado, o sujeito passivo venderia, no mínimo, o imóvel por um valor idêntico ao valor patrimonial tributário que foi atribuído ao imóvel na avaliação;
- o montante máximo garantido pela hipoteca que garante o mútuo concedido é de € 386.100,00;
- determina o nº 1 do artigo 64.° do IRC que, no negócio de alienação de imóveis, devem ser adotados valores normais de mercado que não poderão ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos, reforçando o nº 2 que, sempre que nas transmissões onerosas o valor constante do contrato é inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este valor patrimonial tributário que deve ser considerado pelo alienante, para determinação do lucro tributável;
- no entanto, o n.º 1 do artigo 139.° do CIRC, permite que não seja aplicado o nº 2 do artigo 64.°, se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado foi inferior ao valor patrimonial tributário, não se aplicando neste caso o estipulado no n.º 2 do referido art.º 139.° uma vez que o imóvel alienado não foi construído pelo sujeito passivo.
- Assim, o contribuinte e o seu perito, deveriam ter demonstrado que o Valor Patrimonial Tributário atribuído ao imóvel alienado é superior ao valor de mercado que se obteria se o referido imóvel tivesse sido colocado no mercado e sujeito às condições de plena concorrência.
É certo que nos termos do artigo 74.° n.° 1 da LGT cabe à AT alegar e provar os factos constitutivos do direito que se arroga, no caso concreto, a aplicação de correcções ao lucro tributável.
No entanto, o que está em causa nos presentes autos é saber se para a prova do preço efectivo na transmissão de imóveis contemplada no artigo 139º, nº1 do CIRC é consentido à AT, no caso de estar em causa operação comercial efectuada entre o sujeito passivo e outra entidade com a qual esteja em situação de relações especiais, exigir a prova de que de que o preço que foi praticado correspondia ao valor do mercado, ou seja, seria o correspondente ao que seria efectivamente praticado em condições de livre concorrência, sendo tal valor inferior ao VPT.
Parece-nos que a resposta terá que ser positiva.
Estabelece o artigo 11ºda LGT, nos seus nºs 1 e 3 que:
“ 1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2 -
3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.”
Como defende a AT, o preço real e efectivo, não pode em situações específicas, como aquela que está em causa nos presentes autos, bastar-se com o documentalmente demonstrado, sob pena de ficarmos por uma interpretação literal da norma pois se o critério é o valor efectivo da venda, este não se pode traduzir, sempre e necessariamente em preço documentalmente provado, sob pena de se favorecer a elisão fiscal, privilegiando a forma sobre a substância.
A entender o procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC, como um mero procedimento de prova de preço, é ficar por uma interpretação literal do preceito legal que não é admissível pois, por absurdo, bastaria apresentar uma escritura de um euro, com um mútuo de um euro, provado documentalmente, para a Administração Tributária se ver forçada a aceitar tal valor, não se podendo ignorar o elemento sistemático da interpretação jurídica e havendo necessidade de levar em conta o disposto no art.º 64.º do Código do IRC, norma inserida no regime dos preços de transferência e o disposto no imediatamente anterior art.º 63.º, que sob a epígrafe “Preços de transferência” define no seu n.º 4 o conceito de relações especiais entre entidades, tratando-se claramente de normas anti-abuso. E, também o elemento teleológico tem de ser tomado em conta, já que art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil estabelece que “Na fixação do alcance e sentido da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Como bem refere a AT, uma interpretação literal do art.º 139.º, n.º 1 do CIRC, é contraditória com o disposto em outros números do mesmo artigo: o número 2 que permite que a prova do preço seja efectuada com recurso a coeficientes de avaliação de imóveis, pois neste caso tal implicaria alcançar valores que não correspondem ao preço praticado e face à remissão do n.º 5, para o procedimento de revisão das correcções por métodos indirectos.
Em consequência, entendemos que uma interpretação literal e restritiva do artigo 139º, nº1 do CIRC, não é permitida nem pela letra da lei nem pelos elementos interpretativos lógicos (cfr. art. 9º do C. Civil).
Assim, entendemos que a sentença recorrida não se pode manter na ordem jurídica devendo os autos baixar à 1ª Instância para apreciação dos demais vícios suscitados pela Impugnante.
Pelo exposto, emito parecer no sentido da procedência do recurso, devendo os autos baixar à 1ª Instância para apreciação dos demais vícios suscitados pela Impugnante.”


I.4 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1. - De facto
A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:
A – Em 17.01.2011, a Impugnante (A..., Lda.) alienou a favor de AA, gerente daquela, um imóvel pelo valor declarado de € 270.000,00, sendo aquele destinado a habitação e sito na A. ..., n.º ..., freguesia ..., em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...57 (cf. doc. a fls. 33 a 39 dos autos em proc. fls. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
B – Pela aquisição referida na alínea anterior o gerente supra indicado contraiu um financiamento bancário no valor de € 270.000,00 (cf. doc. a fls. 33 a 39 dos autos em proc. fls. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
C – Em 24.05.2011, o imóvel referido nas alíneas anteriores foi objeto de avaliação tendo-se sido atribuído o valor patrimonial tributário (VPT) de € 502.930,00 (cf. doc. a fls. 40 dos autos em proc. fls. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
D – Em 30.11.2011, a Impugnante apresentou uma exposição escrita junto dos serviços da AT solicitando a ¯…instauração de procedimento de prova do preço efectivo praticado na transmissão do imóvel…” (cf. doc. a fl. 41 a 42 dos autos em proc. fls. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
E – Na sequência do pedido formulado na alínea anterior foi aberto o procedimento respetivo na Direção de Finanças de Coimbra (cf. fls. 42 e segs. do PA).
F – No procedimento referido na alínea anterior, a Impugnante, através do seu gerente, assinou uma «Declaração» pela qual dava autorização à administração fiscal de acesso à informação bancária, indicando uma relação de contas bancárias (cf. doc. a fls. 83 a 84 do PA que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).
G – Em «ata» datada de 23.02.2012, emanada no procedimento supra referido, retira-se que:
“[…]
O Perito da Administração Tributária, também questionou o perito designado pelo contribuinte se tinha sido promovida uma segunda avaliação nos termos e para os efeitos do consignado no artigo 76° do CIMI. A esta questão foi respondido que não havia sido requerida segunda avaliação porque não tinha sido detetado qualquer erro aritmético ou de aplicação dos coeficientes previstos nos artigos 38° a 44º do citado diploma.
Verificámos, então, que em resultado da avaliação efectuada ao imóvel em causa foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 502.930,00, apurado nos termos do artigo 38° e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) de acordo com a fórmula:
[…]
Verifica-se assim, que o VPT a que alude o CIMI assenta em dados objectivos (dado serem independentes da vontade das partes intervenientes no negócio) destinados a fornecer uma aproximação ao valor de mercado.
Por outro lado, também se verificou que a transmissão foi efectuada para uma entidade com quem a reclamante está numa situação de relações especiais, a que alude o artigo 63° do CIRC, pelo que deviam ter sido contratadas e praticadas condições substancialmente idênticas às que normalmente seriam praticadas entre entidades independentes em operações comparáveis, ou seja em situações normais de mercado, ou seja, condições de plena concorrência.
É o número 4 do citado artigo 64° que estabelece que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra.
Na situação em apreciação a transacção foi efectuada para o próprio sócio-gerente, o qual detêm 98,75% (€39.500,00) do capital social da reclamante.
Do exposto, e no entendimento do Perito da Administração Tributária não tendo havido qualquer erro no cálculo do valor patrimonial tributário notificado ao contribuinte, sendo os coeficientes objectivos, bem como as percentagens previstos no CIMI, da competência da Comissão Nacional de Avaliação de Prédios Urbanos (CNAPU), não tendo também o sujeito passivo efectuado o ónus da prova de que o preço efetivamente praticado, em condições de plena concorrência, seria inferior ao VPT, conjugado com as patentes relações especiais entre a vendedora e o comprador, deverá manter-se o VPT como base de tributação.
O Perito do Contribuinte manifestou divergência com a posição da Perita da Administração Tributária indicando que no seu entender foi feita prova do preço efectivo de transmissão pelos elementos fornecidos pelo contribuinte, sendo esse e não o VPT que deve ser a base da tributação. Pelo exposto não foi possível ser alcançado acordo entre os Peritos. Assim, a resolução do procedimento será da competência do Exmo. Sr. Director de Finanças, por força do disposto no n.º 6 do artigo 92° da Lei Geral Tributária (LGT) e no artigo 4° do Decreto Lei n." 398/98, de 17 de Dezembro, que aprovou a referida Lei.
[…]”
(cf. doc. a fls. 55 a 58 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
H – No procedimento referido nas alíneas anteriores, em 12.03.2012, a Sra. Diretora de Finanças Adjunta proferiu o «despacho n.º 05/2012», do qual se extrai que:
“[…]
Assim, compete-nos decidir.
Analisados o pedido de revisão do contribuinte, os documentos por ele postos à disposição, as posições defendidas no decurso dos debates contraditórios entre o perito da administração e o perito do contribuinte verifica-se, tal como defende o perito da administração, que "não tendo havido qualquer erro no cálculo do valor patrimonial tributário notificado ao contribuinte, sendo os coeficientes objectivos, bem como as percentagens previstos no CIMI, da competência da Comissão Nacional de Avaliação Prédios Urbanos (CNAPU), não tendo também o sujeito passivo efectuado o ónus da prova de que o preço efetivamente praticado, em condições de plena concorrência, seria inferior ao VPT, conjugado com as patentes relações especiais entre vendedora e o comprador, deverá manter-se o VPT como base de tributação" folhas 3 da Ata n.º ...01....
Efetivamente, pelo perito da administração foi solicitado ao perito do contribuinte que apresentasse provas sobre qual o critério que presidiu à atribuição do valor de venda no montante de € 270.000,00, tendo o perito do contribuinte indicado que: "o critério para a determinação do preço de venda foi o valor do empréstimo bancário" (fls 2 da Ata n.º ...01...). Por outro lado, realçou também o perito do contribuinte “que, "o que estava em causa era a prova do preço efetivamente praticado" considerando este, o preço praticado pelos contraentes, conforme cópia de escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca anexa ao pedido de revisão" (fls 2 da Ata n.º ...01...).
Quanto ao valor patrimonial tributário atribuído ao imóvel na avaliação efetuada de acordo com o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), referiu o perito do contribuinte que "não havia sido requerida segunda avaliação porque não tinha sido detetado, qualquer erro aritmético ou de aplicação dos coeficientes previstos nos artigos 38° a 44° do citado diploma" (fls 3 da referida ata)
Ora, determina o nº 1 do artigo 64.° do IRC que, no negócio de alienação de imóveis, devem ser adotados valores normais de mercado que não poderão ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos, reforçando o nº 2 que, sempre que nas transmissões onerosas o valor constante do contrato é inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este valor patrimonial tributário que deve ser considerado pelo alienante, para determinação do lucro tributável.
No entanto, o n.º 1 do artigo 139.° do CIRC, permite que não seja aplicado o nº 2 do artigo 64.°, se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado foi inferior ao valor patrimonial tributário, não se aplicando neste caso o estipulado no n.º 2 do referido art.º 139.° uma vez que o imóvel alienado não foi construído pelo sujeito passivo.
Assim, o contribuinte e o seu perito, deveriam ter demonstrado que o Valor Patrimonial Tributário atribuído ao imóvel alienado é superior ao valor de mercado que se obteria se o referido imóvel tivesse sido colocado no mercado e sujeito às condições de plena concorrência.
Mas, como se constata, neste negócio, o representante do vendedor (o sócio gerente que detém 98,75% do capital) e o comprador são a mesma pessoa, tendo sido esta relação especial que permitiu fixar o valor do mútuo no montante de € 270.000,00 e ser este o montante que foi declarado na escritura como sendo o valor de venda do referido imóvel. No entanto, se o referido imóvel fosse sujeito às leis de mercado, o sujeito passivo venderia, no mínimo, o imóvel por um valor idêntico ao valor patrimonial tributário que foi atribuído ao imóvel na avaliação.
Ora, são estas situações de distorção de mercado que o art.° 64.° do CIRC pretende minimizar, porque a transmissão pode-se realizar pelo preço estipulado pelas partes, mas a Lei Fiscal apenas fornece este travão que impede que o preço estipulado, quando inferior ao valor patrimonial tributário, releve para efeitos da determinação do lucro tributável, prevalecendo assim o valor patrimonial tributário do bem transacionado quando superior ao valor estipulado pelas partes.
Por outro lado, a instituição bancária que concedeu o empréstimo, não aceitaria como garantia do pagamento de um empréstimo no valor de € 270.000,00, um imóvel que só tivesse esse mesmo valor de mercado, porque as instituições bancárias, ao conceder um determinado montante de empréstimo, salvaguardam sempre a possibilidade de reaver o montante emprestado e todos os custos que dai lhe advenham, através da venda do imóvel hipotecado.
Assim, não serve de argumento, para justificar o preço de venda do imóvel, referir o sujeito passivo e o seu perito, que o critério utilizado tenha sido o valor do empréstimo bancário, porque se, por um lado, o empréstimo concedido ao comprador foi de € 270.000,00, conforme documento do Processo Casa Pronta n.º ...11 - Título de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca, por outro, o montante máximo garantido, que consta no mesmo documento, já é de € 386.100,00.
No entanto, este valor máximo garantido de € 386.100,00 estipulado no contrato de hipoteca, não corresponde também ao valor de mercado do referido imóvel. Este valor é inferior ao valor que a instituição bancária espera realizar se o devedor (o comprador que é o sócio-gerente do sujeito passivo) não cumprir com os planos ele pagamento junto da instituição bancária, porque em 2011-10-03, o mesmo imóvel serviu, outra vez, como garantia de uma outra hipoteca no montante de € 40.000,00, conforme se verifica no sistema informático da administração fiscal, nas aplicações do Imposto sobre o Património - Actualização das matrizes (Mod 11), na opção "Consultar actos por Bem"
Por outro lado, a mesma instituição bancária (Banco 1..., Ldª - NIF ...82) em 2004-05-18, já tinha concedido ao sujeito passivo (pessoa coletiva) uma hipoteca no montante de € 313.000,00, tendo aceite como garantia este artigo matricial, conforme se constata pela consulta aqui referida efetuada aos atas por bem (Escritura de Hipoteca, registada no Livro .../138>...64 - ... Cartório Notarial ...). E, embora não se conheçam as condições estipuladas por este contrato, é certo que, já em 2004, a instituição bancária, tinha como garantido que, se os compromissos assumidos pelo sujeito passivo não fossem cumpridos, seria sempre possível ao banco reaver, no mínimo, os € 313.000,00.
Ora, como é sabido, as instituições bancárias aos concederem crédito aos seus clientes não se regem pelo seu VPT, mas sim pelo valor que pressupõem que, no mínimo, irão obter se tiverem que colocar o referido imóvel para venda no mercado para reaverem o montante do crédito concedido e todos os custos que lhe estejam inerentes.
De onde se conclui que, só a relação especial entre o vendedor e comprador é que permitiu que tivesse sido estipulado como preço de venda o valor do empréstimo bancário, declarando como valor de venda do imóvel o montante de € 270.000,00, dado que, como já aqui se referiu, este valor é bastante inferior ao valor de mercado do bem, porque só assim se justifica que a instituição bancária tenha aceite o referido imóvel como garantia, não tendo o perito do contribuinte demonstrado que, se o referido imóvel não tivesse sido transaccionado ao abrigo das relações especiais entre vendedor e comprador, o seu valor de mercado seria inferior ao Valor patrimonial tributário atribuído na avaliação.
Deste modo, determina o acima exposto, a nossa total adesão aos fundamentos e factos expendidos pelo perito da administração na Ata n.º ...01... - a qual aqui consideramos integralmente reproduzida - o que vale por não aceitar o valor constante do contrato de € 270.000,00, para determinação do lucro tributável do exercício de 2011.
Pelo que, sendo o valor do contrato de € 270.000,00, inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel inscrito no artigo matricial urbano n.º ...57, situado na Av. ..., freguesia ... - Coimbra, de € 502.930,00, vai ser este valor patrimonial tributário que, nos termos do n.º 1 do art. 64.º do CIRC, se irá utilizar para efeitos da determinação do lucro tributável de IRC, indeferindo-se o pedido.
Assim, e embora seja da competência da Administração Fiscal, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, proceder às correções da parte correspondente ao valor do ajustamento previsto no n.º 2 do artigo 64 do CIRC, tal como estipula o n.º 4 do artigo 139.º do mesmo diploma legal, neste caso, em que ainda não decorreu o prazo para entrega da declaração periódica de rendimentos (mod./22), do exercício de 2011, poderá o sujeito passivo efetuar a correção na declaração de rendimentos que irá apresentar no prazo estipulado no art. 120.º do CIRC.
[…]”
(cf. doc. a fls. 50 a 54 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
I – Do despacho referido na alínea anterior foi dado conhecimento à Impugnante por ofício dos serviços da AT, datado de 04.04.2012 e recebido a 09.04.2012 (cf. docs. a fls. 43 a 40 do PA que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).
J – A Impugnante recebeu a demonstração da liquidação do IRC, relativa ao ano de 2012, com o seguinte teor e menções:
“[…]

[IMAGEM]

(cf. doc. a fls. 24 dos autos em proc. fis. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
K – A Impugnante recebeu a demonstração da liquidação de juros, com o seguinte teor e menções:
[…]

[IMAGEM]


(cf. doc. a fls. 25 dos autos em proc. fis. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
L – A Impugnante recebeu a demonstração de acerto de contas, com o seguinte teor e menções:
[…]

[IMAGEM]
(cf. doc. a fls. 26 dos autos em proc. fis. e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
M - A p.i. do presente meio processual deu entrada neste Tribunal via SITAF em 05.03.2013 (cf. fls. 2 a 51 dos autos em proc. fls.).


II.2 – De Direito
I. Vem o presente recurso interposto pela FAZENDA PÚBLICA da douta sentença proferida pelo TAF de Coimbra, a qual julgou procedente a pretensão da impugnante, ora recorrida, A..., LDA e considerou que a liquidação impugnada padece do vício de violação de lei por ofensa ao disposto no n.º 1 do artigo 139.º do CIRC, quando sistematicamente conjugado com o artigo 64.º do mesmo Código.
O tribunal a quo ao dar razão à ora recorrida, anulando as liquidações impugnadas, decidiu, em síntese, que “…ao contrário do entendimento perfilhado pela AT, entendemos que o procedimento inserto no art.º 139.º do CIRC destina-se a que o contribuinte possa fazer prova do preço real e efetivo de venda de um determinado imóvel, afastando-o das demais regras referentes à consideração dos valores dos imóveis que constituem a regra geral e que é a do valor de mercado. Assim, o que teria que ter discutido e decidido em sede do apontado procedimento não era qual o valor de mercado a considerar, mas sim qual o valor efetivo de venda. Ou seja, houve uma distorção invalidante do critério que deve presidir ao citado procedimento, critério esse que tenta aproximar e a ajudar a determina a efetiva receita das empresas e, consequentemente, apurar com a verdade possível o lucro que venha a ser sujeito a tributação (conforme o ditame constitucional previsto no n.º 2 do art.º 104.º da CRP)”

II. A FAZENDA PÚBLICA não se conforma com o assim decidido, sustentando, no essencial que existe “…erro de julgamento na aplicação do direito, quanto considera que o procedimento inserto no art.º 139.º do º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), se destina, sem mais, a fazer prova do preço real e efectivo da venda de determinado imóvel, não tomando em conta as especificidades do negócio e o valor de mercado, ou pelo menos o valor patrimonial atribuído ao mesmo e concluindo que a AT fez uma errónea escolha do critério legal.”
No seu entender e com base nos elementos factuais, é evidente que existe uma relação especial entre a alienante do imóvel e o adquirente, sendo este gerente daquela, ao outorgar a escritura na qualidade de representante legal da alienante e adquirente, a impugnante, ora recorrida “…não forneceu qualquer elemento que demonstrasse que o preço pago pelo imóvel corresponde ao que seria, efectivamente, praticado em condições de livre concorrência.”

III. Aqui chegados, a questão que vem colocada pela Fazenda Pública/Recorrente encontra-se claramente delimitada e reconduz-se a saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao concluir pela ilegalidade das liquidações, o que passa por saber se a douta decisão errou, por errónea interpretação e aplicação do direito, ao ter concluído que a liquidação de IRC impugnada padecia do vício de violação de lei por ofensa ao disposto no n.º 1 do artigo 139.º do CIRC, ao não atender ao preço efetivo da transacção de imóveis.
Vejamos, então.

IV. Encontramo-nos, portanto, diante a necessidade de determinar a função desempenhada pelo artigo 139.º do Código do IRC, sendo que se perfilham duas teses.
A Recorrente julga que tal norma tem de ser interpretada associadamente com o artigo 64.º do mesmo Código, o qual é, por seu turno, uma mera manifestação do regime dos preços de transferência, de que, supostamente, faz parte – é, igualmente, a posição sufragada pelo Parecer do Ministério Público junto aos autos.
Já a sentença recorrida entendeu que tal dispositivo tem por desiderato, ao invés, a prevalência do valor real das transacções de imóveis sobre o valor resultante da avaliação fiscal em que se traduz o VPT.
Já adiantamos que tem razão a sentença recorrida.

V. Como já tivemos oportunidade de deixar escrito numa outra sede, “Uma solução distinta para lidar com o mesmo problema [da evasão fiscal] pode encontrar-se num grupo de casos onde, em função do objeto da transação (transmissão de imóveis) e dos valores normalmente envolvidos, e pela especial propensão para a evasão fiscal registada nesta área, se justifica a aceitação de desvios à regra do preço efetivo.
Nos termos do nº 1 artigo 64º do Código do IRC, estabelece-se: “Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adoptar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.”
Assim, ao invés dos valores pelos quais a transação foi efetivamente efetuada, vale antes como valor mínimo o valor resultante da avaliação que tem lugar em sede de IMT, o designado valor patrimonial tributário (VPT), o qual é determinado a partir de fórmulas genéricas (as quais raramente coincidirão com o valor efetivamente adotado pelas partes); e, no caso de o VPT ser superior ao valor adotado pelas partes enquanto preço para a transmissão do imóvel, será aquele valor a prevalecer sobre este para efeitos do lucro tributável, sendo a diferença fiscalmente irrelevante. Assume-se, pois, que se o valor da transação foi inferior ao VPT ocorreu evasão fiscal .
Todavia, como existe o risco sério de tal solução conduzir à determinação de lucros tributáveis – e, logo, a valores de imposto a pagar – para os quais não existe capacidade contributiva real, o legislador adotou um processo de ilisão da presunção de evasão. (GUSTAVO LOPES COURINHA, Manual de IRC, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 146-7.)
Quer isto dizer, como bem entendeu a sentença recorrida, que o artigo 139.º do Código do IRC adota um mecanismo de ilisão daquela presunção, como modo de fazer prevalecer a verdade da situação patrimonial real da empresa – o valor real/efectivo da transacção – sobre um valor standard, que toma por referência o Valor Patrimonial Tributário, apurado pelo Código do IMI e importado, para este específico efeito, para o Código do IRC.
Neste preciso sentido, o artigo 139.º do Código do IRC é uma manifestação da prevalência da obrigação fundamental de tributar as empresas pelo respectivo rendimento real, presente no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição, e com prejuízo dos valores meramente presumidos.
Foi aquilo que este Supremo Tribunal – a par de vasta jurisprudência dos Tribunais Centrais Administrativos – deixou claro no Acórdão lavrado no Processo n.º 989/12, de 6 de fevereiro de 2013, onde se pode ler, peremptoriamente, que: “II – O regime do art. 129.º do CIRC (hoje 139.º) permite ao sujeito passivo de IRC a prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre imóveis foi inferior ao VPT, obviando assim à aplicação do disposto no art. 58º-A, n.º 2, do CIRC (correcção ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis).” – disponível em www.dgsi.pt.

VI. Esta conclusão implica que se contestem os dois pressupostos em que a Recorrente, claramente, estriba as suas alegações.
Desde logo, a asserção de que “5. Pois o preço real e efectivo, não pode em situações específicas, como a dos presentes autos, bastar-se com o documentalmente demonstrado”: ora bem, assim formulada a crítica à sentença recorrida, parece que o artigo 139.º respeitaria a uma suposta exigência de uma determinada medida ou meio de prova, que não se bastaria com o “documentalmente demonstrado”.
E esta asserção está duplamente errada.
O artigo 139.º do Código já se basta em impor que o ónus da prova corra pelo contribuinte, não vem exigir que, ademais, este tenha de fazer uma prova plena, por recurso a supostos meios de prova que vão, inclusivamente, além da prova documental – a qual, em qualquer caso, sempre seria prova por via de documento autêntico – com o efeito associado que se lhe conhece – atenta a solenidade documental que acompanha a transmissão de bens imóveis.
Em simultâneo, recorde-se que o legislador já colocou nos ombros do contribuinte que queira fazer a elisão daquele presunção quantitativa a obrigação de conceder à AT uma autorização de derrogação do sigilo bancário, o que equivale a uma enorme exposição do mesmo na sua esfera privada, traduzida na totalidade das operações financeiras em que incorre.
Em conclusão, temos dificuldade em exigir um grau de prova maior do que este.

VII. Segunda asserção errónea em que a Recorrente estriba o seu raciocínio é a de que, na interpretação correta do artigo 139.º do Código do IRC há “necessidade de levar em conta o disposto no art.º 64.º do Código do IRC, norma inserida no regime dos preços de transferência e o disposto no imediatamente anterior art.º 63.º, que sob a epígrafe “ Preços de transferência” define no seu n.º 4 o conceito de relações especiais entre entidades, tratando-se claramente de normas anti-abuso.” sublinhando que “11.O art.º 64.º, n.º 1 do CIRC consagra o princípio do preço de plena concorrência”, e para concluir, algumas conclusões depois e em termos absolutamente lapidares, que “19.Há uma evidente relação especial entre a alienante do imóvel e o adquirente, pois este é gerente daquela e outorgou na escritura na qualidade de representante legal da alienante e adquirente do imóvel, referindo expressamente o art.º 63.º, n.º 4 do CIRC que “ Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer directa ou indirectamente, uma influência nas decisões de gestão da outra o que se considera verificado, designadamente entre:…C) Uma entidade e os membros dos seus órgão sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes .“
Ora, mais uma vez, mal andou a Recorrente.
O artigo 64.º do Código do IRC configura uma norma perfeitamente autónoma do regime dos preços de transferência, permitindo precisamente corrigir o preço praticado e declarado entre as partes em favor de um outro preço (presumido), como cabalmente explica o n.º 2 daquele artigo, “Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel,”, caso em que, estatui o artigo, “é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.
Assim, não só este regime do artigo 64.º não se integra no regime dos preços de transferência como, ademais, opera autonomamente e na absoluta ausência das condições de que depende a operacionalização do artigo 63.º do mesmo Código, a saber, a existência de uma relação especial entre as partes contratantes. Por fim, de sublinhar que o regime dos preços de transferência respeita ao fenómeno da elisão fiscal, ao passo que o regime do artigo 64.º respeita ao fenómeno evasivo, no seu estado mais puro: a adulteração da base tributável de IRC pela ocultação dos reais valores envolvidos na transacção de imóveis.

VIII. Tudo isto significa, in casu, que o artigo 64.º não carece da demonstração da existência de relações especiais entre os envolvidos na transmissão do imóvel e que, atenta uma tal factualidade, poderia a AT ter corrigido a operação por utilização do regime especial dos Preços de Transferência, constante do artigo 63.º do Código do IRC; e não pelo artigo 64.º do mesmo Código, como fez.
Em suma, tendo embora à sua disposição os meios para intervir na correção do preço efetivamente praticado – demonstrada que fosse a existência de uma relação especial entre as partes (o que é, para efeitos dos presentes autos e neste momento, irrelevante), podia e devia a AT ter corrigido o valor da transacção, fundando a correção proposta no artigo 63.º do Código do IRC. Mas teria de o fazer em tempo, e nunca a posteriori.

IX. Por todo o exposto, nenhum vício é assacável à sentença recorrida, sendo, por isso, de negar integralmente provimento ao recurso.


III. CONCLUSÕES
I - O artigo 64.º do Código do IRC configura uma norma perfeitamente autónoma do regime dos preços de transferência, permitindo precisamente corrigir o preço praticado e declarado entre as partes em favor de um outro preço (presumido).
II - O artigo 139.º do Código do IRC é uma manifestação da prevalência da obrigação fundamental de tributar as empresas pelo respectivo rendimento real, presente no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição, e com prejuízo dos valores meramente presumidos.
III - O regime dos preços de transferência respeita ao fenómeno da elisão fiscal, ao passo que o regime do artigo 64.º respeita ao fenómeno evasivo: a adulteração da base tributável de IRC pela ocultação dos reais valores envolvidos na transacção de imóveis.


IV. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Supremo Tribunal em negar provimento ao presente recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 6 de Março de 2024. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Pedro Nuno Pinto Vergueiro.