Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11789/21.3T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
APÓLICE
RISCO
INCÊNDIO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
ÓNUS DA PROVA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Celebrado contrato seguro que tem por objecto a cobertura de danos causados nos bens seguros por diversos riscos, é ónus do segurado provar a ocorrência do risco coberto, bem como os danos sofridos, incumbindo à seguradora fazer a prova dos factos ou circunstâncias que sejam excludentes da cobertura contratada, a título de factos impeditivos.

II. Tendo sido expressamente clausulado no contrato de seguro a cobertura de vandalismo, tal cobertura é perfeitamente válida e eficaz, quer por ser feita como modo de obviar à exclusão da cobertura do incêndio nas situações em que o mesmo foi dolosamente provocado por terceiro, atenta a definição do sinistro “Incêndio” como “combustão acidental”, que por ser esse o sentido que decorre do disposto no artigo 236º, nº1 do CCivil, no que tange às regras de interpretação dos negócios jurídicos, aqui aplicável por força do artigo 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, ao reger que «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».

III. Vandalismo mais não é, afinal, do que a acção de destruir ou danificar uma propriedade alheia de forma intencional, seja esta pública ou privada, geralmente sem motivo aparente ou com o propósito de causar ruína.

IV. Pelo que, julgado provado que o incêndio ocorrido que provocou a destruição dos bens do recorrente teve como causa fogo posto por parte de alguém desconhecido (que transportou para o local um produto derivado de hidrocarbonetos de elevada capacidade de volatilização de modo a potenciar a combustão e uma fonte de calor externa), está demonstrada a atuação de alguém que visa danificar ou destruir bem alheio, como tal considerado ato de vandalismo.

V. A necessidade de ampliação da decisão de facto, omissa quanto a factualidade essencial à decisão do mérito da causa, justifica a anulação da decisão nos termos do artigo 662º nº 2 al. c) do CPC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível

I – RELATÓRIO

AA instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra “Ageas Portugal Companhia de Seguros, S.A.” e “Ilídio Dezoito Mediadores de Seguros, S.A.”, peticionando pela procedência da ação a condenação das RR. “a pagar ao A. a quantia de 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vincendos desde a citação até ao efetivo e integral pagamento”.

Para tanto alegou, em suma:

- ter celebrado com a 1ª R., através da 2ª R. a cujos serviços recorreu, um contrato de seguro do Ramo Multirriscos para proteção dos bens de sua pertença com o capital seguro de € 1.000.050,00, correspondente a bens de sua pertença e que descreveu, em 17º e 13º da p.i. (estes por referência ao doc. 3 junto com a p.i.);

- contrato este com início em 03/08/2018 e em cujas coberturas foi incluído (entre outros) o risco de incêndio e actos de vandalismo;

- os bens objecto do referido contrato de seguro encontravam-se no local descrito em 9º da p.i., por empréstimo do respectivo proprietário (vide 9º da p.i.);

- Em 04/09/2018 deflagrou no armazém onde o A. tinha depositado os mencionados bens, um incêndio do qual resultou a sua total perda;

- Feita a respectiva participação do sinistro à 1ª R. através da 2ª R., veio esta 1ª R. comunicar ao A. que anula o contrato “pela identificação de diversas inconsistências e inexatidões aquando da subscrição da apólice (...) considerando que, aquando da sua celebração foram prestadas declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco, nomeadamente, quanto ao ramo de atividade da empresa; condições e descrição do local de atividade da empresa; e indicadores económicos, financeiros e contabilísticos”, recusando-se a indemnizar o A..

- não aceitando o A. a anulação comunicada, está a 1ª R. obrigada a pagar a indemnização peticionada ao abrigo das coberturas contratadas;

- tendo o A. cumprido o seu dever de informação pré-contratual perante a 2ª R., a quem forneceu toda a informação relevante para a celebração do contrato de seguro, a verificar-se omissão ou inexatidão da informação transmitida à 1ªR., tal facto decorre da violação dos deveres contratuais da 2ª R., causando sério prejuízo ao A.;

- incorrendo assim a 2ª R. na obrigação legal de indemnizar o A. pelos danos infligidos, mormente a convicção formada no A. relativa à proteção dos seus bens no montante de € 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta mil euros).

Termos em que peticionou a condenação de ambas as RR. nos termos acima indicados.

Contestou a R., em suma impugnando parcialmente o alegado e no mais afirmando:

- Que cumpriu todos os deveres de informação que se lhe impunham enquanto medidor de seguros, inexistindo qualquer violação dos seus deveres contratuais.

- Mais alegou não fazer o A. prova dos danos por si elencados e respetivo valor.

Termos em que concluiu pela sua total absolvição do pedido.

Contestou a 1ª R. seguradora, em suma impugnando parcialmente o alegado e no mais, afirmando:

- Tendo recebido a participação do sinistro identificado pelo autor na p.i., após a recepção de toda a documentação necessária, concluiu a R. que à data da celebração do contrato, o segurado prestou declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco – nos termos que descreveu na contestação - motivo por que procedeu à comunicação ao A. de que o contrato era nulo e de nenhum efeito;

- Tivesse a Ré tido acesso a toda a informação, entretanto obtida, e jamais teria celebrado o contrato de seguro;

- O Autor sabia e não podia desconhecer da importância das informações prestadas, pelo que o incumprimento por parte do Autor do dever de declaração foi doloso;

- Se o Autor não tem prestado declarações falsas e inexatas e incompletas, a Ré jamais aceitaria celebrar o contrato de seguro;

- O incêndio deveu-se a causa intencional, decorrente de uma acção praticada a título de dolo directo, pelo que se não verifica o risco de incêndio como sendo uma combustão acidental;

- Tão pouco se tratando de acto de vandalismo, porquanto a ação intencional terá sido perpetrada por quem teve acesso ao espaço.

Respondeu o A., após para tanto convidado pelo tribunal a quo, às excepções invocadas pela R. seguradora, concluindo pela sua improcedência.

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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e elencados os temas da prova.


*


Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, julgando

“totalmente improcedente a presente ação intentada pelo A., AA, e absolve-se os RR. AGEAS PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e ILÍDIO DEZOITO MEDIADORES DE SEGUROS, LDA.do pedido.”


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Do assim decidido apelou o A., vindo a Relação do Porto a proferir a seguinte

Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em anular a decisão recorrida para ampliação da decisão de facto, com reabertura da audiência se considerado necessário e oportuna prolação de nova decisão, conhecendo das questões da validade do contrato e indemnização devida, sendo o caso”.


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Inconformada com esta decisão, veio a Ré AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., interpor recurso de revista, a presentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

A. O recurso ora interposto do douto acórdão proferido é apresentado na firme convicção de que a matéria de facto apurada nestes autos impunha ao Tribunal a quo a adopção de uma decisão diferente da seguida, designadamente, quanto à remessa dos Autos à Primeira Instância e, por conseguinte, quanto à interpretação que fez relativamente ao disposto no n.º 2 do artigo 665.º CPC.

B. Desde logo, face à decisão do Tribunal de Primeira Instância em julgar apenas uma das questões e não julgar as demais por as entender prejudicadas à luz da decisão proferida e entendendo o Tribunal a quo que se impunha a remessa dos Autos à Primeira Instância para jugar a questão relativa à validade do contrato de seguro, por maioria de razão também deveria ter ordenado quanto à questão da exclusão contratual referente aos actos de vandalismo.

C. Com efeito, só com a remessa à Primeira Instância para suprir a omissão de pronúncia relativamente a todas as questões estava o Tribunal a quo a respeitar as garantias decorrentes do princípio da imediação da prova na apreciação desta por parte daquele Tribunal de Primeira Instância.

D. Tudo isto num contexto em que se evidencia da sentença proferida em Primeira

Instância a convicção expressa por aquele Tribunal quanto ao depoimento de uma das testemunhas essenciais e que o mesmo teve por credível.

E. De igual modo, a decisão proferida pelo Tribunal a quo representa uma dualidade, pois que trata de forma diferente o que carecia de ser tratado de forma igual.

F. Em face do exposto, o Tribunal a quo não estava em condições de julgar a questão relativa à excepção de actos de vandalismo, pelo que se impunha a remessa dos Autos à Primeira Instância para suprir a omissão de pronúncia.

G. Ademais, a possibilidade prevista no artigo 665/2 CPC só faz sentido se o Tribunal da Relação entender substituir-se ao Tribunal de Primeira Instância quanto a tudo ao que aquele deixou de se pronunciar,

H. sob pena de se operar o total desvirtuar do equilíbrio e do iter processual, já que, sem qualquer valor maior que se impusesse, fica a Apelante sem o duplo grau de jurisdição que a lei lhe garante.

I. Ao decidir como decidiu, o Tribunal Recorrido violou o disposto no n.º 2 do artigo 665.º CPC, pelo que se impõe a revogação, nesta parte, da decisão proferida, impondo-se a remessa dos Autos à Primeira Instância, com reabertura da audiência se considerado necessário e oportuna prolação de nova decisão, onde se conheça das questões da validade do contrato e indemnização devida e da excepção referente aos actos de vandalismo.

Sem prejuízo

J. Dos factos dados como provados, em especial, factos 20) a 23), 42), 45), 46) e 57), analisados no seu conjunto, resulta que o incêndio não se tratou de um acto de vandalismo.

K. A circunstância das portas se encontrarem fechadas à chave; do produto utilizado ter elevada capacidade de volatilização de modo a potenciar a combustão e uma fonte de calor extrema; do produto ter sido deixado num local longe do portão de acesso ao edifício (no edifício adjacente) – resulta que, quem espalhou o produto, teve de o fazer dentro do edifício e dele sair, fechando as portas à chave, assim se afastando o acto de vandalismo.

L. Além disso, esta a questão é conexa com a relativa ao valor dos bens que foram adquiridos por 142.000,00€ e valorizados para efeitos de seguro em 1.000.000,00€.

M. Entende, por isso, a aqui Apelante que, ao invés do decidido na decisão em crise, deverá considerar-se, em face dos factos dados como provados, que o sinistro ocorrido se encontra excluído do contrato de seguro porquanto não se tratou de um acto de vandalismo.

N. Ademais, conforme resulta do acórdão em crise e, bem assim, do alegado em sede de contestação por parte da aqui Apelante, a cobertura 014 – actos de vandalismo - no ponto 2 relativo às exclusões remete para as exclusões previstas no artigo 5.º, mais concretamente a alínea e), que, por sua vez, refere que se encontram excluídos os actos ou omissões dolosos do Tomador do Seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis.

O. Além disso, Acto de vandalismo é o inverso: mercadoria adquirida por 142.000,00€;

P. O que resulta dos presentes autos é o inverso: mercadoria adquirida por 142.000,00€: celebração do contrato de seguro feita em termos que, na perspectiva da Ré Apelante, se mostra de tal forma viciada que deverá o contrato ser considerado nulo; sinistro ocorrido num curto espaço de tempo após a celebração do contrato; identificação de um valor seguro de um milhão para uma mercadoria adquirida por 142.000,00€.

Q. Por tudo isto, considerando-se o sinistro excluído do contrato, impõe-se a absolvição da aqui Apelante do pedido, pelo que, ao decidir como fez, o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação dos factos dados como provados à luz das condições contratuais em causa nos presentes Autos e, bem assim, do disposto no artigo 342.º do Código Civil e dos artigos 411.º, 413.º e 414.º, todos do CPC.

Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita uma verdadeira e sã JUSTIÇA!


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Contra-alegou o Autor AA, pugnando pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:

Se o Tribunal recorrido violou o o disposto no artº 665º, nº2 do CPC.

Se não estamos perante um acto de vandalismo e, como tal, se deve considerar que o sinistro se encontra excluído do contrato de seguro.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

“1) Por contrato de seguro titulado pela apólice 0095.10.102205 ramo Multi-Riscos Empresas, com início em 03-08-2018, o A. transferiu para a a responsabilidade multirriscos sobre o recheio existente no local de risco Rua ..., 27, ... ..., com o capital seguro de 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros), correspondente a Existências no montante de €1.000.000,00 (um milhão de euros) e Mobiliário no montante de 50,00 (cinquenta euros), cfr. apólice, condições contratuais e recibo de prémio, cfr. Docs.. Nºs 5, 6, e 7.

2) De acordo com a referida apólice, o capital seguro possuí as seguintes coberturas: Atos de vandalismo, Maliciosos ou de Sabotagem;

Aluimento de Terras; Assistência ao Estabelecimento; Avaria de Máquinas;

Choque ou Impacto de Objetos Sólidos; Choque ou Impacto de Veículos Terrestres; Danos em Bens do Senhorio;

Danos por Água;

Demolição e Remoção de Escombros;

Derrame Acidental de Óleo; Derrame de Sistemas de H.P.C.I; Equipamento Eletrónico;

Furto ou Roubo;

Furto ou Roubo Dinheiro em Caixa; Furto ou Roubo Dinheiro em Cofre; Greves/Tumultos/ Alteração O. Pública;

Incêndio, Ação Mecânica de Queda de Raio, Explosão; Privação de Uso do Local Arrendado ou Ocupado; Proteção a Clientes .- Acid. Pessoais;

Proteção a Clientes Roubo Din./Obj. Pessoais; Proteção do Seg./Empr. - Acid. Pessoais;

Proteção do Seg./Empr. - Roubo Din./Obj. Pessoais; Proteção Jurídica;

Quebra de Vidros e Pedras Ornamentais; Quebra ou Queda de Antenas;

Quebra ou Queda da Painéis Solares; Queda de Aeronaves;

RC Proprietário, Inquilino ou Ocupante; Responsabilidade Civil Exploração (Opção 1)

3) Por comunicação datada de 26 de novembro de 2019, a R., notifica o A. da conclusão das diligências respeitantes à instrução do processo de sinistro, bem como da sua respetiva análise, concluindo pela identificação de diversas inconsistências e inexatidões aquando da subscrição da apólice, motivo pelo qual, vem anular o contrato de seguro com o ..........05, considerando que, aquando da sua celebração foram prestadas declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco, nomeadamente, quanto ao ramo de atividade da empresa; condições e descrição do local de atividade da empresa; e indicadores económicos, financeiros e contabilísticos, conforme doc. 21 da p.i.

4) O A. é empresário em nome individual dedicando-se a diversos ramos de atividade, entre os quais a compra e venda e remodelação de imóveis.

5) Em 01/03/2018 o A. encontrava-se inscrito / coletado na Autoridade Tributária (AT) para o exercício da atividade de comércio a retalho de:

a) têxteis, estab. Espec. - com o CAE 47510;

b) ferragens e vidro plano, Estab.- com o CAE 47521;

c) tintas, vernizes e produtos similares com o CAE 47522;

d) materiais bricolage, equipamentos sanitários, LAD com o CAE 47523; e) carpetes, tapetes, cortinas REV.P/P - com o CAE 47530;

f) Eletrodomésticos, estab. Espec. - com o CAE 47540;

g) mobiliário e artigos de iluminação com o CAE 47591; h) louças, cutel. out.art.sim.p/uso com o CAE 47592;

i) outros artigos para o lar, n.e., est. - com o CAE 47593; j) artigos segunda mão, estb. espeq. - com o CAE 47790; k) jornais, revistas e art. papelaria com o CAE 47620; l) discos, CD, DVD, Cassetes e simil. - com o CAE 47630; m) art.desporto, campismo e lazer com o CAE 47640; n) jogos e brinquedos, estab. Espec. - com o CAE 47650;

o) vestuário para adultos, estab. Espec com o CAE 47711; p) vestuário para bebes e crianças, est. - com o CAE 47712; q) calçado, estab. espec. - com o CAE 47721;

r) marroquinaria e artigos viagem, es com o CAE 47722; s) rel. e art ourivesaria e joalharia com o CAE 47770;

t) outros prod. novos, estab. espec, n com o CAE 47784; cfr. Doc. 1 da p.i.

6) Para o desempenho da sua atividade comercial, o A. adquiriu num leilão eletrónico da AT, quantidade de mercadoria diversificada (quinquilharia, artigos para o lar, brinquedos, roupas, tintas, entre outros) com vista à sua revenda a terceiros.

7) A qual estava avaliada junto da AT na quantia de €2.703.019,84 (dois milhões, setecentos e três mil e dezanove euros e oitenta e quatro cêntimos), cfr auto de adjudicação da AT, sob doc. 2.

8) Mas que dada a ausência de propostas pelo valor supra, o A. veio a adjudicar em 06/03/2018, pela quantia de €142.000,00, cfr. auto de adjudicação no processo executivo ..............92 junto sob o doc. 2.

9) O conjunto de mercadorias adquirida pelo A. era constituído por cerca de três milhões e oitenta e oito mil quatrocentos e noventa e cinco artigos, cfr. Doc. 3.

10) Que foram entregues ao A. em maio de 2018, com a consequente remoção do armazém onde estavam depositados, à ordem do sobredito processo de execução fiscal.

11) Perante a necessidade de armazenar os referidos artigos, o A. estabeleceu diversos contactos com vista a encontrar um espaço com a capacidade necessária para o efeito.

12) Assim, tendo surgido a oportunidade de usufruir a título de empréstimo, de dois pavilhões sitos num complexo industrial composto por sete, na Rua ..., lote 27, em ... (antigas instalações da F....), o A. de imediato aceitou a proposta do seu proprietário.

13) Tendo providenciado pelo transporte de todos os artigos para o referido local no decurso do mês de maio e até ao início do mês de junho de 2018.

14) No decorrer dos meses de junho e julho desse ano, o A. foi procedendo à classificação dos diversos artigos e, em simultâneo, estabelecia contactos para aferir do preço de venda dos mesmos, com vista a obter lucro.

15) E assim elaborou o A. a listagem dos diversos artigos por si adquiridos e ali armazenados, por género, quantidade, valor atribuído (pela AT) e valor de mercado (após dedução da sua depreciação), cfr. cópia que infra junta sob o doc. 3.

16) Com a conclusão da referida tarefa e após ter conferido individualmente cada lote dos milhares de artigos, o A. obteve uma estimativa do respetivo valor venal que ascendia aproximadamente a €1.000.000,00 (um milhão de euros), vide DOC. 3.

17) Em face do atribuído valor da mercadoria o A. resolveu proteger eventuais perdas e danos, incluído atos de furto ou roubo, por via da aquisição de um seguro com as referidas coberturas.

18) Para tal, recorreu aos serviços da R., a sociedade Ilídio Dezoito Mediação de Seguros, Lda., a qual lhe apresentou uma proposta de proteção multirriscos, com o ............05, com início a 03/08/2018, cuja cópia infra junta sob o DOC. 4.

19) A referida proposta foi aceite pelo A., que a subscreveu e a qual foi remetida pelo mediador, à seguradora, aqui e RR., respetivamente, para emissão da respetiva apólice.

20) Sucedeu que, em 04-09-2018, pelas 05:41 horas, deflagrou um incêndio no armazém onde o A. tinha depositado os supra referidos bens., cfr. Relatório da Ocorrência dos Bombeiros Voluntários das ..., junto como doc. 8.

21) Do qual resultou a perda total dos bens do A. ali armazenados, conforme Descrição da Ocorrência, constante do suprarreferido Relatório de Ocorrência, da qual consta expressamente que:

“INCENDIO EM ARMAZENS QUE CONTINHAM MATERIAL DIVERSO (MATERIAL ESCOLAR, BRINQUEDOS, ELETRODOMESTICOS, ENTRE OUTROS).

À NOSSA CHEGADA VERIFICAMOS INCENDIO DE GRANDE INTENSIDADE COM PAVILHAO COMPLETAMENTE TOMADO E O PAVILHAO ADJACENTE TAMBÉM COM INCENDIO DE PROPORCOES CONSIDERAVEIS.”

22) A Reportagem Fotográfica e Relatório do Exame Pericial elaborado pelo Gabinete de Perícia Criminalística da Polícia Judiciária do Departamento da Investigação Criminal de ..., enviada ao local a solicitação da Guarda Nacional Republicada das ..., que deu origem ao NUIPC 753/18.0..., mostra a magnitude do incêndio e do nível de destruição provocado pelo mesmo, conforme doc. 9.

23) E ainda da conclusão do referido Relatório Pericial, de 19 de setembro de 2018, pode ler-se que “Apesar do elevado grau de destruição e pela diversidade de materiais ali armazenados, foi possível perceber que o mesmo teve origem no armazém 2, não sendo possível determinar o ponto de início em concreto.”

24) Após a ocorrência, o A. deu conhecimento do sucedido ao mediador, aqui R., para participar junto da seguradora, R. por forma a acionar o referido seguro, o que aquela fez.

25) A R. solicitou realização de peritagem à V..., Lda., cfr docs. 10, 11 e 12.

26) O A. foi ouvido junto de Órgão de Polícia Criminal responsável pela investigação – Polícia Judiciária – Departamento de Investigação Criminal de ..., em 13-03-2019, na qualidade de lesado no âmbito do NUIPC nº 753/18.0..., em que corrobora todo a dinâmica relativa à aquisição dos referidos bens e subscrição da apólice de seguro para cobertura de eventuais danos, cfr cópia do Auto de Inquirição sob doc. nº 13.

27) Paralelamente foram trocadas diversas comunicações entre o A. e as RR., por referência ao processo de sinistro, como exemplificativamente as juntas sob os docs. 14 a 20.

28) O A. facultou à 2ª R. a morada respeitante ao local do risco, na qual se encontrava depositada a mercadoria a segurar e fotografias desta.

29) Por comunicação eletrónica de 01-10-2019, o A. já havia solicitado o pagamento de indemnização decorrente do sinistro, cfr doc. nº 20.

30) Em consequência da participação de comunicação de sinistro, a 1ª Ré procedeu à averiguação das causas do sinistro e, bem assim, a recolha de informação diversa a fim de lhe permitir tomar posição sobre o sinistro.

31) Após ter recebido a documentação necessária, a Ré decidiu declarar nulo e de nenhum efeito o contrato de seguro celebrado, porquanto à data da celebração do contrato, o segurado prestou declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco – cfr. doc. 21.

32) De acordo com as informações prestadas pelo segurado, relativo à atividade da empresa, foi identificado o CAE 46491 referente a comércio por grosso de artigos de papelaria.

33) Sendo que, depois, se veio a verificar que o segurado não se encontrava inscrito/coletado para o comércio por grosso.

34) Aquando da apresentação da proposta foi indicado um volume de negócios de 100.000,00€, quando, o mesmo não tinha qualquer atividade e qualquer volume de negócios. 35) Foi identificado um volume anual de salários de 12.000,00€, quando se veio a

verificar que não existia salário algum.

36) O Autor declarou o início da atividade já depois de ter apresentado proposta de adjudicação, pois que a venda no processo executivo ocorreu no dia 06.03.2018.

37) No que ao edifício diz respeito foi identificado que o edifício havia sido construído em 1985, quando se trata de um complexo que foi inaugurado em setembro de 1967.

38) Já quanto ao vigamento do telhado isolado por placa, separação entre pisos (placa) e teto falso (materiais incombustíveis) – a tudo isto o segurado respondeu afirmativamente, o que não se verificava.

39) Eram dois edifícios devolutos desde 2008, abandonados, com deteriorações.

40) A que acresce a falta de instalação de luz e de quaisquer sistemas de autoproteção e vigilância do espaço – ainda que o Autor tenha, também, identificado a sua existência.

41) A declaração de não existência de produtos inflamáveis superiores a 500KG, quando os bens seriam todos inflamáveis e, em conjunto, tinham um peso bem superior a 500KG.

42) O Autor declarou, ainda, que os objetos a segurar teriam o valor de 1.000,000€ quando os bens haviam sido adquiridos por 142.000,00€.

43) Aquando da proposta de seguro, o proponente Autor confirma a exatidão das informações prestadas e declara não ter omitido nada e que seja significativo para a apreciação do risco cfr. doc. 4.

44) E, depois, o 2 estabelece que tal é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.

45) Os bombeiros tiveram necessidade em arrombar os portões e proceder à abertura de espaços nas fachadas para terem acesso ao interior dos edifícios.

46) Os portões encontravam-se fechados e com os sistemas de fecho ativos aquando da chegada dos bombeiros para o combate, os quais tiveram necessidade de arrombar os portões.

57) O incêndio teve como causa fogo posto por parte de alguém desconhecido que transportou para o local um produto derivado de hidrocarbonetos de elevada capacidade de volatilização de modo a potenciar a combustão e uma fonte de calor externa.

58) Aquando da averiguação foi alegado que o material corresponderia a 1.800 paletes.

59) Considerando as 4 áreas de armazenagem (duas por pavilhão) teríamos uma área total de 560m2 de área ocupada.

60) A 2.ª interveio, enquanto mediadora de seguros, na contratação de diversos seguros pela empresa T..., seus representantes e respetivos familiares.

61) No âmbito dessa relação comercial, a 2.ª era frequentemente contactada por trabalhadora daquela empresa de nome BB.

62) Em data que não consegue precisar, mas que situa em finais de julho de 2018, a 2.ª foi contactada por BB, a qual solicitou a obtenção de uma simulação para um seguro de danos sobre coisas móveis com o capital seguro de €1.001.000,00 (um milhão e mil euros) para o tomador de seguro aqui Autor.

63) A 2.ª solicitou, então, uma relação dos bens a segurar e fotografias dos mesmos.

64) Nessa sequência, foi enviada à 2.ª Ré, por e-mail de 01.08.2018, uma relação dos bens a segurar cfr. e-mail de 01.08.2018 junto como Doc. 1.

65) No mesmo e-mail de 01.08.2018, foi a 2.ª informada do nome completo do tomador do seguro, o aqui Autor, e respetivo NIF; cfr. Doc. n.º 1.

66) E da morada do armazém onde ficaria depositada a mercadoria objeto do seguro cfr. Doc. n.º 1.

67) Mais acrescentou que o referido armazém se situava junto ao Call Center da Meo/Altice, sendo a entrada exterior comum aos dois espaços cfr. Doc. n.º 1.

68) Referiu, ainda, que o Call Center tem videovigilância cfr. Doc. n.º 1.

69) Telefonicamente, foi a 2.ª informada de que os bens a segurar haviam sido adquiridos em leilão eletrónico junto da AT.

70) A 2.ª informou então, desde logo, que o capital seguro poderia não corresponder ao valor da indemnização em caso de sinistro.

71) Tendo esclarecido que, em caso de sinistro, a indemnização corresponderia ao dano efetivo registado, até ao montante do capital seguro por referência ao valor de aquisição das mercadorias seguras.

72) Na mesma data, foram remetidas à 2.ª alegadas fotografias da mercadoria a segurar e a morada completa do local onde a mesma estaria depositada: Rua ..., n.º 27, ... ... cfr. e-mail que se junta como Doc. n.º 2.

73) Para preenchimento da simulação de proposta de seguro, foram facultados à 2.ª os dados de identificação do Autor: nome, morada, número de identificação fiscal, data de nascimento, número de documento de identificação e telemóvel.

74) Foi indicado à 2.ª que o Autor se dedicava à atividade de comércio, com o CAE 46491;

75) Que o valor anual de faturação era de €100.000,00;

76) Que tinha ao seu serviço 1 (um) trabalhador, com o valor anual de salários de €12.000,00.

77) Ainda na mesma ocasião e para o mesmo efeito de preenchimento da simulação de seguro, a 2.ª foi informada pelo Autor, que o recheio a segurar se encontrava em edifício construído em 1985.

78) Que a estrutura, cobertura e teto falso do edifício eram compostas por materiais incombustíveis.

79) Que não existiam produtos inflamáveis superiores a 500 Kg ou 500 litros no local onde se encontrava o recheio a segurar.

80) Que o vigamento do telhado era isolado por placa, bem como a separação entre pisos;

81) Que o referido edifício dispunha de extintores portáteis como sistema de prevenção / proteção contra incêndios.

82) Mais foi a 2.ª informada que o valor a segurar era de €1.001.000,00 referente a recheio, sendo o valor em novo do mobiliário, deduzido da depreciação pelo uso ou estado, de €1.000,00 e o valor de aquisição das existências de €1.000.000,00.

83) Que o risco proposto não esteve total ou parcialmente seguro.

84) Que o risco proposto não registou algum sinistro nos últimos 3 anos.

85) E que não existem outros fatores que sejam significativos para a apreciação do risco.

86) Na posse destas declarações, a 2.ª preencheu, no dia 03.08.2018, a simulação de Seguro Multirriscos Empresas “Segurtrade” na plataforma eletrónica da 1.ª Ré, a que a 2.ª acede através da inserção de dados identificativos confidenciais cfr. cópia do relatório de simulação junto como Doc. n.º 3.

87) A referida simulação foi enviada pela 2.ª ao Autor cfr. e-mail junto como Doc. n.º 2.

88) O Autor aceitou a referida simulação, tendo dado instruções à 2.ª para a emissão da proposta de seguro com alteração do capital seguro para €1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros) referente a recheio, sendo o valor em novo do mobiliário, deduzido da depreciação pelo uso ou estado, de €50,00 e o valor de aquisição das existências de €1.000.000,00.

89) No dia 03.08.2018, a 2.ª acedeu à plataforma da 1.ª através das suas credenciais e emitiu a referida proposta de seguro com o capital seguro de 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros) cfr. proposta junta como Doc. n.º 4 da PI.

90) A referida proposta foi enviada ao Autor, por e-mail da mesma data cfr. e-mail junto como Doc. n.º 4.

Acompanhada do documento “SEGURTRADE INFORMAÇÕES PRÉ-CONTRATUAIS” – cfr. consta do Doc. n.º 4 da P.I.

91) O Autor confirmou o teor da referida proposta e das informações pré-contratuais à mesma anexas e nela apôs a respetiva assinatura cfr. Doc. n.º 4 da P.I..

92) Tendo, no dia 07.08.2021, sido remetido à 2.ª a referida proposta de seguro assinada pelo Autor cfr. Doc. n.º 5.

93) O que originou a emissão da apólice de seguro Multi-Riscos Empresas 0095.10.102205, regulada pelas condições contratuais constantes do Doc. n.º 6 da P.I.

94) O original da proposta de seguro assinado pelo Autor foi posteriormente, em data que não se consegue precisar, encaminhado pela 2.ª à 1.ª por via de comercial ao serviço desta última.

95) Ao longo deste processo desenvolvido na plataforma da 1.ª não foi originado qualquer bloqueio.

96) Tendo sido pago pelo Autor o respetivo prémio de seguro.

97) Ao longo do referido processo de contratação do seguro, não foi solicitada pela Seguradora, aqui 1.ª Ré, ao medidor de seguros, aqui 2.ª quaisquer outras informações / elementos que não os constantes do formulário disponível na plataforma.

98) Não tendo a Seguradora, aqui 1.ª Ré, sequer solicitado a relação de bens a segurar e/ou fotografias dos mesmos.

99) A 2.ª preencheu todos os campos do formulário disponível na plataforma eletrónica da 1.ª de acordo com as declarações que lhe foram fornecidas pelo Autor.

100) Caso o formulário não tivesse sido submetido completo ou registasse qualquer anomalia / insuficiência no seu preenchimento, a plataforma da 1.ª originaria um bloqueio.

101) A submissão do formulário pela 2.ª não acionou qualquer bloqueio, que a ter ocorrido, o que não foi o caso, impediria a emissão da proposta e/ou da apólice.

102) Seguindo-se, nesse caso de bloqueio, um processo, da iniciativa de funcionário comercial da Seguradora, de solicitação de documentação ao mediador de seguros que, por sua vez, diligenciaria pela sua obtenção junto do proponente tomador de seguro; 103) Culminando na rejeição da proposta pela seguradora ou na sua aceitação através do levantamento do bloqueio e emissão na referida plataforma eletrónica da proposta e/ou da apólice pelo mediador de seguros.

104) Na ausência de tal bloqueio, foi emitida a proposta e de seguro e a apólice n.º .............5.”


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Resultou não provada a seguinte factualidade:

“a) O conjunto de mercadorias adquirida pelo A. era constituído por cerca de três milhões e duzentos mil artigos.

b) O A. tenha prestado toda a colaboração e esclarecimentos necessários a instruir a peritagem elaborada pela V..., Lda..

c) O A., previamente à celebração do contrato de seguro, forneceu à R., com exatidão todas as circunstâncias necessárias à apreciação do risco pelo segurador.”.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

I. Da alegada violação, pelo Tribunal recorrido, do disposto no artº 665º, nº2 do CPC

Não se vislumbra qualquer violação do citado artº 665º, nº2 do CPC, que rege sobre a “substituição do tribunal recorrido”.

Reza este preceito:

“1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.

2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.”1.

Ora, o que, in casu, se passou foi que a Relação, apesar de considerar afastada a cobertura do seguro pelo risco incêndio, definido contratualmente como combustão acidental – em sintonia, aliás, com o estatuído no AUJ do STJ de 19.10.2022 (proc. 933/15.0...-A), - entendeu, porém, que tal cobertura estava abrangida por outra via, isto é, por se estar perante um acto de vandalismo, dado que tal abrangência nas garantias da apólice foi expressamente clausulada (cfr. cobertura 014 das condições gerais da apólice) a cobertura de vandalismo, precisamente, como modo de obviar à exclusão da cobertura do incêndio nas situações em que o mesmo foi dolosamente provocado por terceiro, atenta a definição de “incêndio” como “combustão acidental”.

Independentemente da bondade, ou não, dessa conclusão a que chegou a Relação – o que melhor será apreciado na questão seguinte – , entendeu a Relação que, face aos factos provados e se mais não houvesse, então, a acção teria de proceder.

Porém, nas alegações da apelação foi invocada pela seguradora a excepção da nulidade do contrato de seguro celebrado com sustento na alegação de que o Autor terá prestado declarações falsas e omitido informações relevantes que condicionaram o contrato celebrado, nos termos que a seguradora havia especificado na sua contestação.

Ora, embora se tendo provado a inexactidão das declarações prestadas pelo Autor (cfr. factos provados 31 a 35, 37 a 41 e 74 a 80), o certo é que não está demonstrado que o Autor tenha levado a cabo tais declarações inexactas com a consciência da sua inexactidão e relevância para a celebração do contrato (o que se torna relevante para efeitos do dolo).

Isso mesmo é dito no acórdão recorrido, “Acresce que a sua relevância para a seguradora avaliar o risco e consequente erro em que alegou ter sido induzida pelas respostas dadas, não consta nem dos factos provados nem dos não provados.

A R. seguradora imputou ao A. o conhecimento e consciência da inexatidão dos factos alegados. Bem como a sua relevância para a celebração do contrato, conforme já demos nota.

Mas a decisão de facto é completamente omissa quer quanto a este conhecimento e consciência por parte do A., quer quanto à relevância destes factos apurados para a celebração do contrato na perspetiva da R. recorrida – não obstante igualmente alegado (vide artigos 23º, 30º a 32º, 39º e 45º da contestação da R. seguradora).”.

Daqui decorre, à evidência, que a Relação, ao decidir anular a decisão da 1ª instância para ampliação da decisão de facto, agiu no respeito pelo plasmado no artº 655º, nº2 do CPC, pois a Relação só podia conhecer dessa excepção suscitada pela Ré seguradora, precisamente – como reza tal normativo – “sempre que disponha dos elementos necessários”.

Conhecimento que, como visto, não estava ao seu alcance, para tal sendo necessário que a pertinente factualidade (reitera-se, alegada pela Ré seguradora na sua contestação) fosse carreada aos autos e sujeita ao pertinente crivo probatório.

Assim improcede esta questão.


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2. Da factualidade provada resulta não estarmos perante um acto de vandalismo, dessa forma se devendo considerar o sinistro excluído do contrato de seguro?

Diferentemente entendeu o acórdão recorrido, considerando que os factos provados mostram, à evidência, que o que despoletou ou conduziu ao incêndio, foi, precisamente, um acto de vandalismo, donde, nos termos da apólice, o seguro cobrir o ressarcimento dos danos sofridos pelo Autor por via desse sinistro – a faculdade de as partes contratarem adicionalmente a cobertura de actos de vandalismo, como forma de proteger o segurado quando o seu património é alvo de incêndio com origem não acidental / causado dolosamente por terceiro é, até, expressamente assinalada no AUJ citado supra como o meio de o consumidor médio interessado e diligente que entende estar protegido pela cobertura de incêndio apenas quando o incêndio é acidental na sua causa, poder “designadamente através de um esforço patrimonial acrescido que se disponha a fazer, cobrir igualmente os atos dolosos - maliciosos ou de vandalismo - que se concretizem em atos de fogo posto, e que implicam por si um agravamento do risco para a entidade seguradora no âmbito de cobertura da apólice).”

Justificou, assim, a Relação a subsunção dos factos provados ao conceito de acto de vandalismo, para, dessa forma, considerar abrangido pela cobertura do seguro:

«Remetendo ainda, sobre o “conceito de atos de vandalismo para efeito da cobertura ou exclusão do contrato de seguro” para o Ac. do TRL de 31/05/2007, processo nº 2146/07.8, publicado in www.dgsi.pt, do qual se extrai a interpretação – seguindo as regras da teoria da impressão do destinatário (artigo 236º do CC) – de que atos de vandalismo têm como pressuposto a atuação de alguém que visa danificar ou destruir bem alheio.

Precisamente a situação dos autos. Estando provado que o incêndio teve como causa fogo posto por parte de alguém desconhecido (vide facto provado 57), está demonstrada a atuação de alguém que visa danificar ou destruir bem alheio, como tal considerado ato de vandalismo.

Para afastar esta cobertura, alegou a recorrida que o incêndio em causa foi perpetrado com a conivência do segurado.

O que retira da prova de que os portões se encontravam fechados e com os sistemas ativos aquando da chegada dos bombeiros para o combate ao incêndio, que para tanto tiveram necessidade de arrombar portões [vide factos provados 45 e 46]. Assim convocando as exclusões previstas no artigo 5º al. e) por remissão do ponto 2 das exclusões desta cobertura.

(…)

Julgado provado que o incêndio ocorrido que provocou a destruição dos bens do recorrente (vide factos provados 20 e 21) teve como causa fogo posto por parte de alguém desconhecido que transportou para o local um produto derivado de hidrocarbonetos de elevada capacidade de volatilização de modo a potenciar a combustão e uma fonte de calor externa (vide fp 57) enquadra-se esta situação em ato de vandalismo e como tal na cobertura 014 acima analisada.».

Concorda-se inteiramente com esta análise/conclusão.

Vandalismo mais não é, afinal, do que a acção de destruir ou danificar uma propriedade alheia de forma intencional, seja esta pública ou privada, geralmente sem motivo aparente ou com o propósito de causar ruína. Termo que inclui danos à propriedade, sem a permissão do dono.


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E não se diga (como faz a Recorrente) que a Relação não podia decidir como decidiu – ou seja, anular a sentença, para ampliação da matéria de facto, nos sobreditos termos – porque “a factualidade em causa não foi alegada pelo apelante nas suas alegações de recurso.

Não foi por ele, obviamente, mas foi-o…pela Apelante/Seguradora – como não podia deixar de ser, pois foi ela quem invocou a nulidade do contrato de seguro (decorrente da alegada prestação de declarações inexactas), carreando aos autos, na sua contestação, os inerentes factos.

E, como reza o artº 662º do CPC, a anulação pela Relação da decisão da 1ª instância, “quando considere indispensável a ampliação” da matéria de facto, deve ter lugar “mesmo oficiosamente”.


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Atento o exposto, e porque foi expressamente contratada entre as partes a cobertura relativa a actos de vandalismo, a Relação apenas não decidiu logo pela procedência da acção porque considerou haver necessidade de apurar da veracidade dos factos alegados pela Ré seguradora atinentes àquela excepção que invocara na sua contestação – a prestação, pelo autor, aquando da outorga do seguro, de declarações inexactas (cfr. factos provados 31 a 35, 37 a 41 e 74 a 80) com a consciência de tal inexactidão.

Daí a decisão de mandar baixar os autos à 1ª instância para ampliação da matéria de facto, nos sobreditos termos.


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A cobertura dos actos de vandalismo parece mais que evidente.

Com efeito, nas condições gerais do contrato de seguro reza assim a cobertura 014 “Atos de Vandalismo, Maliciosos ou de Sabotagem”:

1. O Segurador, nos termos desta cobertura, garante ao Segurado o pagamento de uma indemnização pelos danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de:

a) atos de vandalismo, maliciosos ou de sabotagem; (...)

2. Exclusões além das exclusões previstas no artº destas condições gerais, ficam também excluídos desta cobertura as perdas ou danos que resultem de:

“a) furto ou roubo, direta ou indiretamente relacionado com os riscos cobertos pela presente cobertura;

b) interrupção, total ou parcial, do trabalho ou cessação de qualquer processo de laboração em curso, demora ou perda de mercado, e/ou quaisquer outros prejuízos indiretos ou consequenciais de igual natureza.

(...)

5. Franquia Em caso de sinistro, haverá que deduzir ao montante da indemnização a liquidar, o valor da franquia indicado nas Condições Particulares”.

Artigo 5º al. e) das condições gerais que exclui os danos que derivem de “atos ou omissões dolosos do Tomador do seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis”.

Com relevo para esta questão (nomeadamente para efeitos indemnizatórios), veja-se, ainda, o constante do Anexo a estas condições, sob a epígrafe “Quadros de Limites de indemnização e franquias” (cfr. doc. 6 junto com a p.i.), onde figuram as coberturas base (bem assim os limites de indemnização e franquias), designadamente, e precisamente, para o caso de Incêndio (001) e Atos de Vandalismo Maliciosos ou de Sabotagem (0142).

Aliás, à conclusão de que os actos de vandalismo estavam incluídos na cobertura do seguro se chegaria recorrendo às regras de interpretação dos negócios jurídicos – interpretando o contrato celebrado entre Autor e Ré seguradora, conforme o clausulado supra referido, no qual, como vimos, se clausulou expressamente essa mesma abrangência (“Atos de Vandalismo”), assim fazendo impender sobre a seguradora Recorrente o risco decorrente do sinistro.

Efectivamente, decorre do disposto no artigo 236º, nº1 do CCivil, no que tange às regras de interpretação dos negócios jurídicos, aqui aplicável por força do artigo 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».

A interpretação nos negócios jurídicos surge-nos, assim, como uma actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo do seu conteúdo, determinando o conteúdo das declarações que o suportam e, consequentemente os efeitos que visam produzir3

Ora, tendo como boa a doutrina da impressão do destinatário, posição esta adoptada pela doutrina e pela jurisprudência como a mais razoável e mais justa na interpretação negocial, temos que, quer o tipo contratual - seguro de incêndio -, quer a factualidade apurada, afasta qualquer outra interpretação que não seja a de que, no caso concreto em que o sinistro teve origem num acto de vandalismo, o mesmo se encontra expressamente abrangido pela cobertura da apólice.


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Porque nenhuma outra questão tendo sido suscitada na revista, o veredicto não pode ser outro que não a improcedência do recurso.

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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 29 de fevereiro de 2014

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 1º Adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. Destaque nosso.

2. Destaque nosso.

3. Cfr MOTA PINTO, Teoria Geral Do Direito Civil, 3ª edição, 444/445; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral Do Direito Civil, 6ª edição, 546/547; ibidem, Contratos Atípicos, 5; inter alia, os Ac do STJ de 4 de Junho de 2002; 22 de Setembro de 2016; de 5 de Janeiro de 2016; de 12 de Maio de 2016; de 6 de Setembro de 2017, in www.dgsi.pt..