Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
42/22.5SULSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
LEGÍTIMA DEFESA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A factualidade dada como provada, única que pode ser atendida, para efetuar a qualificação jurídico-penal no acórdão, não permite considerar o crime de homicídio cometido pelo arguido como qualificado (como pretendido pela recorrente assistente), nem tão pouco deduzir que o arguido agiu em legitima defesa da mãe ou que atuou dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa (como pretendido pelo recorrente arguido).

II. Considerando a imagem global dos factos dados como provados e a personalidade do arguido, não se pode deduzir que a prática dos crimes em questão nestes autos (crime de homicídio cometido com arma e crime de detenção de arma proibida) traduzam um desvio transitório e ocasional (próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil), o que mostra ser inviável formular um juízo de prognose favorável à atenuação especial prevista no art. 4.º do DL n.º 401/82, de 23.09, não se podendo desprezar a própria necessidade de defesa do ordenamento jurídico, concluindo-se pela não verificação dos pressupostos que justifiquem a aplicação do regime penal especial para jovens e dessa norma.

III. Todas as circunstâncias apuradas, inclusive as que eram favoráveis ao arguido (ao contrário do que o mesmo alega) foram devidamente ponderadas pela 1ª instância, tendo em atenção o conjunto dos factos dados como provados e a sua personalidade, sendo-lhes atribuído o valor adequado e ajustado, não merecendo censura a avaliação que delas foi feita na decisão sob recurso. O facto de o tribunal não dar a mesma relevância que o arguido/recorrente pretendia às circunstâncias que se apuraram, não significa que tivesse feito uma avaliação errada ou incorreta, antes revela que aquele (arguido/recorrente) parte de pressupostos errados, inclusive de factos não apurados e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente e de forma subjetiva, portanto, sem razão.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) nº 42/22.5SULSB do Juízo Central Criminal de ..., Juiz ..., por acórdão de 31.07.2023, o arguido AA foi condenado, além do mais ali decidido:

- na pena de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão pela autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, do Regime Jurídico da Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro;

- na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 1 (um) de detenção de arma proibida p. e p. nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do Regime Jurídico da Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e,

- Em cúmulo jurídico, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

2. Inconformado com essa decisão, o mesmo arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões1:

a) O arguido AA foi condenado em autoria material e em concurso efectivo pela prática de um crime de homicídio cometido com arma, previsto e punido nos termos do art. 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3 do RJAM e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do art. 86.º n.º 1 alínea c) do RJAM.

b) Decidiu o tribunal recorrido condenar o arguido nas penas parcelares de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão relativamente ao crime de homicídio cometido com arma, e na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, no que diz respeito ao crime de detenção de arma proibida, tendo a final, fixado e condenado o arguido AA na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

c) Não se conformando com a douta decisão condenatória, o Recorrente vem interpor o presente recurso, o qual visa matéria de facto e de direito.

d) O recurso sobre a matéria de facto apresenta-se, in casu, sob a forma de impugnação ampla da matéria de facto, não se restringindo, por isso, ao texto da decisão recorrida e alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.

e) O tribunal a quo valorou incorretamente a prova efectivamente produzida em audiência, nomeadamente os pontos 2 a 5 da matéria de facto provada, desde logo, não procedendo a uma análise cabal da dinâmica dos factos e dos motivos que levaram o arguido a agir relativamente ao crime de homicídio.

f) Da matéria de facto provada resulta, nomeadamente dos pontos 4 e 5 que “ De seguida BB e CC iniciaram uma discussão verbal e inclusive confrontos físicos, na sequência das quais decidiu intervir AA que, até então, permanecia no interior do veículo automóvel, sentado no banco dianteiro direito, vulgo lugar do pendura.” e que “5- Já nos exterior do veículo automóvel, o arguido AA, apercebendo-se que a sua mãe estava a ser agredida por CC, retirou do interior de uma bolsa que transportava consigo a tiracolo, uma arma de fogo, com percussão lateral, tipo pistola, que, a curta distância, apontou à figura de CC, executando um (01) disparo, cujo projéctil .22 o veio a atingir na região esternal, lateral esquerda.”

g) Mais deu como provado o acórdão recorrido o que consta do relatório social elaborado pela DGRSP, nomeadamente que: “ (…) No que diz respeito ao presente processo, AA embora consciente da gravidade dos factos em apreço e verbalizando sentimentos de arrependimento, apresenta uma atribuição causal externa. O arguido contextualiza as circunstâncias de que está acusado a uma reação de protecção relativamente à progenitora.(…)”

h) É verdade que o arguido tomou a decisão de acompanhar a sua mãe, no sentido de ser esclarecida uma falsa informação veiculada pela vítima relativamente à fidelidade da mãe do arguido (cfr. resulta dos pontos 2 e 3 da matéria de facto provada, conduta esta que não sendo ilícita se apresenta, ao invés, totalmente aceitável para quem vê sua honra ofendida. Acresce que,

i) Chegados ao local, é a mãe do arguido que buzina insistentemente para que os familiares descessem (nomeadamente a vítima), e é apenas a mãe do arguido que sai do carro para confrontar directamente a vítima sendo que o arguido não sai do carro, nem confronta a vítima em qualquer momento, como resulta dos factos n.º 4 e 5 da matéria de facto provada.

j) O arguido, como resulta de tal matéria dada como provada, ainda que armado, permaneceu no interior do veículo automóvel, sentado no banco dianteiro direito.

k) Dos factos dados como provados, e a dinâmica da sua ocorrência, extrai-se que o arguido não predeterminou a sua conduta, sendo que apenas decidiu actuar na sequência das agressões que a sua mãe estava a ser vítima.

l) Em idêntico sentido se pronunciou a Mma. Juiz de Instrução, em sede de despacho de pronúncia, quando afirma, entre o demais que: “É certo que o arguido se encontrava no local na posse de uma arma de fogo, mas também neste segmento, a dinâmica dos acontecimentos (o arguido sai do carro e dirige o disparo contra a vítima na sequência desta se confrontar fisicamente com o primeiro), obstaculiza a conclusão de que AA predeterminou a sua conduta (…) porquanto o que a sequência lógica indicia é que o arguido apenas decidiu e concretizou o disparo porque a sua mãe (arguida BB) se envolveu em agressões recíprocas com a vítima.(…) Ou seja, o arguido agiu impulsionado pela circunstância de a sua mãe estar envolvida em confronto físico com a vítima e não por desavenças familiares.

m) Não se pode descurar, nem desvalorizar, como faz o acórdão recorrido, a circunstância de o arguido ter agido impulsionado pelo facto de ver a sua mãe a ser agredida e apenas por esse motivo.

n) Por outro lado, não valorizou devidamente o tribunal a quo a intensidade da agressão que a mãe do arguido foi sujeita e que motivou a reação do mesmo (documentadas documentalmente) na cabeça, junto aos olhos, zona consabidamente sensível do corpo humano.

o) Aliás, da análise efectuada, em despacho prévio ínsito na acusação, pela Digna Procuradora da República é referido que: “ (…) Importa pois aferir se a conduta de AA foi efectuada em legítima defesa, ou seja, como meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita de si próprio e de terceiros, neste caso concreto da sua mãe, a arguida BB. (…) c) Segundo os elementos de prova recolhidos e já enumerados, não restam dúvidas que AA se deparou com uma agressão a interesses pessoais, nomeadamente a integridade física da sua mãe. d) Por outro lado, de igual forma parece claro que o arguido pretendeu defender a sua mãe e apenas actuou com essa intenção. (…) Face a todos os elementos descritos entendemos que o meio de defesa utilizado por AA foi excessivo para parar a atuação de CC (…) Considero, pois, que o facto praticado por AA foi excessivo para repelir a agressão actual e ilícita de interesses pessoais, juridicamente protegidos. O uso de um meio não necessário à defesa representa um excesso que determina a não justificação do facto por legítima defesa. É o chamado excesso de meios ou excesso intensivo de legítima defesa que nos termos do art.º 33.º, tem como consequência a afirmação da ilicitude do facto praticado. Pelo exposto, entendo que AA não atuou em legítima defesa, excluindo-se os pressupostos necessários ao seu enquadramento, previstos no art.º 32.º do código penal motivo pelo qual se deduz a acusação infra. (…)”.

p) O arguido também apresentou a sua contestação (relativamente à qual o tribunal recorrido, no acórdão que profere, não faz qualquer alusão ou exame crítico) onde admite como verdadeiros a generalidade dos factos ínsitos na acusação/pronúncia, reforçando que a sua actuação se deveu à intenção de defender a sua mãe, ainda que com excesso de meios.

q) O arguido, logo na sua contestação, admitiu como verdadeiros a generalidade dos factos que sobre si impendiam, razão pela qual procedeu a uma confissão integral e sem reservas dos mesmos em sede de audiência de julgamento.

r) Mas igualmente justifica a sua conduta como resultante da necessidade de protecção e defesa da sua mãe, o que objectivamente ressalta dos factos provados, o que em nada colide com o ponto 11 dos factos provados, ou seja, que “Considerando a zona que o arguido atingiu a vítima da forma descrita, o arguido actuou com a intenção de causar a morte à vítima, bem sabendo que ao executar o disparo com a arma de fogo em zona do corpo que visou, onde sabia encontra-se órgãos vitais, lhe provocaria lesões idóneas a causar a morte, como sucedeu.”

s) Conforme resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2010, proferido no processo 971/09.1JAPRT, consultável em www.dgsi.pt, em que é relator o Colendo Conselheiro Henriques Gaspar: “(…) É certo que se provou que o arguido «actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de disparar com a arma de fogo em causa, sobre uma pessoa humana, […] e de, assim, tirar-lhe a vida, bem sabendo que, à distância a que o fez, e face à zona para que disparou, quer o chumbo quero zagalote eram meios idóneos a causar a morte». Mas, como é indiscutido, a vontade de defesa não é incompatível com outras conjugações de vontade. A vontade de defesa concorrerá, necessariamente, quando objectivamente se verifiquem os pressupostos de actuação e quando o agente actue no quadro desses pressupostos. A confluência ou a agregação de elementos de vontade e de outras finalidades não exclui a vontade de defesa. Não pode, pois, perante as circunstâncias objectivas provadas, ser afastado o animus defendendi. (…)”

t) Os factos dados como provados, a dinâmica e sequência temporal dos mesmos, as agressões que a vítima infligiu à mãe do arguido, inerente relação de parentesco e grau de afeto, e o animus defendendi que despoletou a acção do arguido, consubstanciando uma diminuição de culpa, que se mostra mitigada, são bastantes para considerar adequada a atenuação especial com fundamento no disposto no artigo 33.º n.º 1 do Código Penal, devendo a pena parcelar a determinar relativamente ao crime de homicídio, ser alterada tendo em consideração tal normativo. Acresce que,

u) Apesar do arguido ter procedido a uma confissão integral e sem reservas dos factos ( como resulta dos pontos 14 e 15 da matéria de facto provada e do teor do acórdão) pelo tribunal recorrido “(…) não lhe foi conferida especial relevância, tanto que foi possível ao Tribunal apurar na inquirição das testemunhas do pedido de indemnização cível terem sido várias as testemunhas presenciais da sua actuação (o que era necessariamente do conhecimento do arguido), pelo que dificilmente teria ficado por apurar a autoria dos factos que levaram à morte de CC (…)

v) Para além da duvidosa fórmula legal de utilização de testemunhas civis para efeitos penais, a confissão integral e sem reservas apresenta-se, desde logo, como uma forma de manifestação da personalidade do arguido, funcionando como um acto de autocensura e auto-reprovação dos factos praticados, o que constitui um sinal poderoso no sentido da inexistência ou forte atenuação de necessidades preventivas.

w) No presente processo, as declarações de arguido foram o primeiro meio de prova a ser produzido, tornando - a confissão integral e sem reservas – desnecessária a produção de demais prova, com a inerente poupança de tempo e meios - atualmente uma preocupação transversal a todos os setores da atividade pública e estadual – bem como revelou respeito pelos familiares da vítima evitando o reviver judicial de uma situação trágica, cfr, bem anotado ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, anotação ao art.º 344º, p. 891 e no Ac. STJ de 09.10.1991 (proc. 042083), in www.dgsi.pt.

x) Para além da confissão do arguido consta-se que este expressou o seu sincero arrependimento, que consta inclusivamente na matéria de facto provada, e materializado na apresentação de um emocionado pedido de desculpa aos familiares da vítima.

y) E quem confessa e se mostra sinceramente arrependido, merece um tratamento jurídico-penal mais favorável, o que não se verifica na decisão sub judice, desde logo por falta de aplicação do regime previsto no art. 72.º n.º 2 alínea c) do Código Penal. Acresce que,

z) O tribunal a quo, decidiu afastar a aplicação do regime especial para jovens estabelecido no Decreto-Lei 401/82, de 23 de Setembro, apesar do próprio Ministério Público, em sede de alegações não se ter oposto à aplicação de tal regime, por entender, naturalmente, que se encontravam in casu verificados os pressupostos para a sua aplicação.

aa) Ao referir que o arguido revela uma profunda desconsideração pelos valores jurídicos protegidos, impostos a qualquer cidadão não teve em consideração a matéria de facto provada na sua globalidade que o arguido (ainda que com desproporção de meios) apenas actuou com intenção de defender a sua mãe, ou seja, ao abrigo de um animus defendendi, o que em bom rigor diminui fortemente a culpa do acto praticado.

bb) Acresce que, a personalidade do arguido manifestou-se, mesmo em sede de audiência de julgamento, alicerçada em valores fundamentais para a vida colectiva em sociedade, sendo que, ao proceder a uma confissão integral e sem reservas dos factos por que vinha acusado, para além de capacidade de autocensura, revela honestidade, sinceridade e respeito pelos tribunais (evitando produção de prova desnecessária e poupando recursos do estado).

cc) O arguido demonstrou arrependimento ao pedir desculpa aos familiares da vítima, o que desde logo é revelador que o arguido interiorizou o desvalor da sua conduta, percebendo que as ações tomadas não foram as melhores, indicando uma vontade de um agir diferente no presente e no futuro.

dd) Por outro lado, manifesta-se totalmente incorrecta a afirmação efectuada pelo tribunal recorrido de que o meio familiar do arguido não é “revelador de um especial cuidado dos progenitores no que concerne à sua formação pessoal enquanto cidadão.”, porquanto resulta da matéria provada que o arguido “(…) está integrado num contexto familiar aparentemente funcional (…) mantém uma participação positiva e cooperante na dinâmica familiar, respeitando as regras (…) O pai e a madrasta apresentam um posicionamento crítico face à presente situação jurídico-penal do arguido, considerando que o mesmo terá de assumir as consequências do seu ato. Caracterizam o arguido como um jovem humilde e imaturo, e na perspetiva de ambos terá sido o sentimento de afeto que nutre pela progenitora e a cumplicidade mantida com esta que originou a sua situação jurídico-penal. Apresentam, contudo, uma postura de apoio ao arguido independentemente do desfecho do presente processo judicial.

ee) Acresce que, como o tribunal a quo refere, o arguido apenas regista, no seu certificado de registo criminal, uma condenação por um crime de estradal e de diferente natureza do âmbito do presente processo, onde foi condenado a uma pena de multa, pelo que o passado do arguido, para efeitos penais, não revela uma personalidade criminógena, não apresentando comportamentos desviantes ao normativo jurídico e socialmente aceites, tendo ainda ficado demonstrado que o mesmo, inclusivamente, deixou de consumir haxixe.

ff) Do cotejo dos factos dados como provados com o relatório social do arguido, que consta igualmente da matéria provada, bem como da própria posição manifestada pelo Ministério Público no sentido de não oposição à aplicação do regime especial para jovens, verifica-se, in casu, que se mostram verificados os pressupostos e vantagens para a sua aplicação, pelo que deverá o acórdão proferido ser substituído por outro que, para além do mais sindicado, mande aplicar o referido regime estabelecido no art.º 4 do D.L. 401/82 de 23 de Setembro, tendo em conta o espírito de tal regime, bem enquadrado no Ac. do STJ de 07-11-2007, no Proc. 07P3214, consultável em www.dgsi.pt.

gg) Ao não proceder a uma correcta ponderação da prova produzida, as penas parcelares e única encontradas, encontram-se desacertadas porquanto, e desde logo, a fixação da moldura penal abstracta deveria ter tomado em consideração as circunstâncias de atenuação especial que resultaram dessa mesma prova.

hh) São patentes três circunstâncias passíveis de desencadear a atenuação especial: aplicação do regime previsto no art. 33.º n.º1 do Código Penal; a existência de actos demonstrativos de arrependimento sincero por parte do arguido, nos termos do art.º 72.º n.º2 alínea c) do Código Penal; aplicação do art.º 4.º do D.L. 401/82 de 23 de Setembro (regime penal aplicável a jovens delinquentes).

ii) Acresce que os factos conducentes às três situações passíveis de atenuação especial, de per si, são respeitantes a uma concorrência de circunstâncias diferentes de atenuação, o que permite a sua dupla atenuação, cfr. referido em Ac. do STJ de 05-07-2007, em que é Relator o Colendo Conselheiro Simas Santos, proferido no Proc. 07P2300 e disponível em www.dgsi.pt.

jj) Contudo, considerando que o arrependimento, enquanto circunstância definidora da personalidade, será sempre valorado pela aplicação do regime especial para jovem, como se propugna, deverão ser tomadas em consideração a atenuação especial deste regime e a que resulta do art.º 33.º n.º1 do Código Penal. Assim,

kk) A pena abstracta do crime de homicídio simples de 8 anos a 16 anos de prisão, por força da agravação prevista no RJAM passou à pena maior de 10 anos e 8 meses e 21 anos e 4 meses, moldura penal esta fixada pelo tribunal recorrido.

ll) Contudo tal moldura abstrata deverá ser reduzida para a pena de 2 anos 1 mês e 18 dias (1/5 do limite mínimo) a 16 anos (redução de 1/3 do limite máximo) por força da atenuação imposta pelo artigo 33º do CP, bem como, sendo esta última novamente reduzida para a pena de 1 mês (73º e 41º nº 1 do CP) a 10 anos e 8 meses, por aplicação do regime especial para jovens.

mm) Assim, a moldura penal abstracta a determinar quanto ao crime de homicídio deve ser fixada entre o limite mínimo de 1 (um) mês de prisão e o limite máximo de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão.

nn) Na determinação da medida concreta da pena, atentos os factos dados como provados, importa atentar no bem jurídico protegido pelo tipo e o grau com que tal bem jurídico foi atingido, tendo em conta as finalidades das penas tal como definidas no art. 40º nº 1 do CP.

oo) O bem jurídico protegido pelas normas em causa é a vida humana, inviolável, nos termos do artigo 24º da CRP, pois que depois da vida, na morte, já nada existe, nada é recuperável para a vítima.

pp) O arguido praticou este crime, necessariamente a título doloso.

qq) Mais sabia o arguido que ao disparar sobre a vítima, a colocava indubitavelmente indefesa à sua mercê. Contudo,

rr) O arguido não só é filho da testemunha que a vítima estava a agredir, como desenvolveu ao longo dos anos um sentimento de exigência de protecção da mãe fora do comum por força das variadas circunstâncias de vida em comum referidas no relatório social.

ss) Estas circunstâncias reclamam, a título de prevenção geral positiva, o efectivo reforço da consciência jurídica comunitária e respectivo sentimento de segurança, ou seja, uma resposta que se coadune com as expectativas comunitárias acerca da validade do bem jurídico vida e da norma violada, que permitam verdadeiramente restaurar a paz jurídica, mas tendo sempre em conta o intuito protector do arguido, ainda que existente de forma exacerbada na sua personalidade alarmada durante as duas décadas da sua curta existência no mundo.

tt) Efectivamente, doutra parte, a “reintegração do agente na sociedade”, ou seja, a prevenção especial, é outra das finalidades das penas, sendo certo que estas não podem ultrapassar a medida da culpa (art. 40º nº 1 e 2 CP).

uu) Nos termos do art. 71º nº 1 do Código Penal a “determinação da medida da pena, dentro dos limites legais definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2, do Código Penal), bem como, devendo atentar em todas as circunstâncias alheias ao tipo de crime previstas no nº 2 do art. 71º do Código Penal.

vv) O grau de ilicitude é moderado na situação em concreto, atento o facto de o arguido não ter atuado com mero desprezo pelo bem jurídico protegido, mas ter antes agido com um único acto imaturo de precipitação e em protecção de outros bens jurídicos.

ww) Em declarações de arguido, com os seus inerentes direitos, confessou todos os factos e colocou-se à total disposição do tribunal entregando a sua jovem vida e personalidade imatura à justiça, demonstrou assim total e sofrível arrependimento face ao único episódio da sua vida em que atentou contra pessoas, não tendo antecedentes criminais pela prática de crimes contra as pessoas.

xx) Antes de ser preso preventivamente estava social, profissional e familiarmente integrado, sendo certo que esta inserção não o impediu de praticar os factos, sendo mesmo ao abrigo deste contexto familiar, mas em defesa, ainda que excessiva, da mãe, que os praticou.

yy) O arguido não ficou indiferente a tal atitude, percebendo o desequilíbrio da sua actuação em face dos valores em causa.

zz) O arguido teve dificuldade em face da sua história de vida em conter o seu instinto protector dentro dos limites das necessidades de defesa.

aaa) Existem assim, elevadas exigências de prevenção geral atento o valor vida e a utilização de arma de fogo que não se negam neste recurso, mas reduzidas necessidades de atenuação especial a partir do momento em que o arguido já se autocensura com o facto de ter tirado a vida a uma pessoa ainda que em defesa nervosa e desesperada da sua mãe.

bbb) A douta sentença aplicou a pena de 14 (catorze) e 6 meses anos de prisão pela prática do crime de homicídio cometido coma arma, desconsiderando quaisquer das atenuações legais supra referidas.

ccc) Foram dadas como provadas as circunstâncias subsumíveis à possibilidade de atenuação especial da pena, prevista no art. 72º do CP, como o arrependimento sincero manifestado pelo arguido.

ddd) Afigura-se, pois, como adequada a pena de 5 anos de prisão para o crime de homicídio em discussão, pois que surtirá os desejados efeitos gerais e individuais.

eee) Relembrando que a moldura abstracta para o crime de detenção de arma proibida, neste caso, é de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, e uma vez atenuada deve ser fixada em 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão ou com multa até 400 dias por força da aplicação da atenuação especial prevista no regime geral para jovens, dando o legislador penal preferência à pena não privativa da liberdade, deverá fixar-se pelas razões supra expostas, sendo o arguido jovem primário, tendo confessado e revelando total arrependimento, na pena concreta de 200 dias de multa de multa.

fff) O quantitativo diário, tendo em conta a precária situação económica do arguido, deverá ser de 6 euros, num total de 1200 euros de multa.

ggg) Procedendo ao cúmulo das penas parcelares numa pena única, a pena única deveria assim ter sido de 5 anos de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de 6 euros, o que se propugna.

hhh) Verifica-se, no entendimento supra propugnado, que ao fazer uma valoração incorreta dos factos dados como provados – nomeadamente aqueles que consubstanciam atenuações especiais da pena – e, por consequência, não os tomar em consideração para a fixação da moldura penal abstrata aplicável, penas parcelares e pena única, o tribunal recorrido violou as normas ínsitas nos art.ºs 33.º n.º1, art.º 72.º n.º 2 alínea c), do Código Penal, art.º 4.º do Decreto-Lei 401/82, de 23 de Setembro e art.º 73.º n.º1 alíneas a) e b), art.º 40.º n.º1 e 2, art.º 71.º n.º1 e 2 do Código Penal.

Termina pedindo o provimento ao recurso.

3. Por sua vez, a assistente DD também interpôs recurso do acórdão, apresentando as seguintes conclusões2:

Constitui jurisprudência assente que o objeto que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso o qual se delimita-se pelas conclusões sem prejuízo dos vícios de conhecimento oficioso dos vícios da decisão recorrida art410 nº2 CPP os quais devem recursar do texto desta por si só ou das regras da experiencia comum Porquanto :

1º- O Tribunal a quo andou mal no acórdão quando deveria considerar a condenação do arguido em sede de um crime de homicídio qualificado e não homicídio como o fez

2º- O Tribunal deveria ter ponderado pela existência dos elementos objetivos e subjetivos para tal qualificação tendo em consideração que o arguido premeditou o crime deslocou-se ao local com a sua mãe com propósito para o conflito com o arguido

3º- O arguido AA, munido da arma, municiada e pronta a disparar como o fez a escassos metros da vítima visionando sempre, a parte superior do tronco da vítima.

4º- O arguido AA premeditou o crime ponderou nos atos de execução que praticou seguindo o seu guião de desígnio de matar a vítima, como o fez.

5º- O Tribunal A Quo analisou os fatos provados pela confissão do arguido estribando-se somente nessa confissão omitindo o testemunho dos familiares da vítima que presenciaram o crime nomeadamente a sua irmã EE

6º- O tribunal não analisou e errou em sede de erro notório na apreciação da prova do art 410º CPP.

7º- O Tribunal não considerou os elementos da qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado; não considerou a premeditação, a frieza de animo o motivo torpe e fútil, a relação de parentesco por afinidade do arguido com a vítima; a fuga após o crime.

8º- O Tribunal A Quo não considerou a existência dos elementos objetivos e subjetivos do crime de omissão de auxílio

9º- Foi mal o Tribunal A Quo no seu Acórdão em sindicância de não ter comunicado nem considerado a alteração substancial dos fatos, no que concerne à qualificação do Homicídio e ainda à existência do crime de omissão de auxílio.

10º- O Tribunal A Quo, por tal omissão inquinou o Acórdão sob sindicância ferido de nulidade

11º- O Tribunal A Quo além da nulidade insanável por omissão da comunicação aos agentes processuais da alteração substancial dos fatos andou igualmente mal na apreciação da prova para a determinação da pena concreta aplicada ao arguido pelo crime de detenção de arma proibida

12º- O Tribunal A Quo andou mal e daí dever ser dado provimento ao presente recurso, quando determinou uma pena aplicada ao arguido pelo crime de “perigo”- detenção de arma proibida de 27 meses de prisão quando deveria ter determinado um apena nunca inferior a 3 anos e 6 meses de prisão

13º- O Tribunal A Quo deveria ter considerado a conduta do arguido AA em sede de omissão de auxílio e determinar-lhe pena nunca inferior a 1 ano e 6 meses, uma vez que foi ele o causador da situação em que a vitima se encontrava.

14º- No que concerne ao crime de detenção de arma proíba na parte em que nunca entregou a arma; mantendo-se atual o perigo deste crime por se desconhecer o paradeiro da arma ou quem tem a sua posse.

15º- Deve ser dado provimento ao Recurso e ser o Acórdão de 31/7/2023 revogado e reenviado para o Tribunal A Quo no sentido de promover novo Acórdão tendo em consideração a alteração substancial dos fatos pela qualificação do homicídio pela existência de um novo crime.

Termina requerendo que o Acórdão de 31/7/2023 proferido pelo ...º juízo central criminal de ..., seja revogado e determinando-se que o Tribunal A Quo profira novo Acórdão efetuando cúmulo jurídico e aplicando ao arguido uma pena única nunca inferior em 21 anos e 6 meses de prisão.

4. O Ministério Público na 1ª instância respondeu aos dois recursos defendendo que não merecem provimento.

5. Subiram os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, a qual por decisão sumária de 23.11.2023, declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso, por estar confinado, exclusivamente, a matéria de direito, sendo competente para o efeito o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP.

6. Neste STJ, o Sr. PGA emitiu douto Parecer, tendo concluído da seguinte forma:

“I. É este STJ o Tribunal competente para apreciar os recursos interpostos pelo arguido e pela assistente, porquanto, para além de ter sido aplicada pena superior a 5 anos de prisão, nenhum dos recorrentes procede à impugnação especificada da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, limitando-se – ambos, embora com fitos opostos - a considerar ter ocorrido uma valoração incorreta dos factos dados como provados, pelo que haverá que entender como fixada tal matéria de facto (sem prejuízo da verificação de algum dos vícios referidos no artº 410º, nº 2, do CPP), subsistindo a apreciação das diversas questões de direito que são levantadas pelos recorrentes, para o que competente é, efetivamente, este Supremo Tribunal (artº 432º, nº 1, al. c), do CPP).

II. Não obstante o recurso interposto pelo arguido AA terminar com um elevado número de conclusões, que em muito não passam senão da mera reprodução do texto da motivação que as antecede, assim sendo violadas as exigências contidas nos nºs. 1 e 2 do artº 412º do CPP, tendo em conta que se entende quais os objetivos do recorrente, parece-nos não se justificar que se faça convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artº 417º, nº 3, do mesmo diploma.

III. Embora o arguido a dado momento (pontos 27 e 28 da motivação) refira circunstâncias que poderiam levar a entender-se pela existência de nulidade do acórdão consistente em falta de apreciação acerca de factos que teria alegado na contestação (nulidade referida no artº 379º, nº 1, al. c), do CPP), verifica-se que tal nulidade inexiste (sendo que, aliás, nem o recorrente a invoca expressamente), pois que o arguido, na sua contestação, não indicou qualquer facto a dar invocar a prática dos factos com «animus defendendi», ainda que com excesso de meios, matéria que o acórdão acaba por apreciar.

IV. Quanto ao recurso da assistente:

A. Inexiste qualquer nulidade insanável por omissão da comunicação aos agentes processuais de alteração substancial dos factos. A recorrente conclui pela existência desta nulidade, mas por o tribunal não ter procedido à alteração que pretendia ter ocorrido (verificação de factos que importariam o preenchimento de qualificativas do crime de homicídio e verificação do de omissão de auxílio).

Estamos dentro de questões de facto a que o presente recurso é alheio, sendo de lembrar que a matéria de facto dada como provada é a constante na acusação, que o arguido confessou integralmente, não tendo a defesa então reagido, não lhe sendo lícito fazê-lo agora.

B. Também ao contrário do invocado, não se verifica «erro notório na apreciação da prova do art 410º CPP», o que resultaria, mais uma vez segundo o entendimento da assistente, de não ter sido dada como provada matéria que levaria à qualificação do crime de homicídio e à verificação do crime de omissão de auxílio.

Este tipo de erro não se confunde com o pretendido pela recorrente, tendo de resultar do texto da decisão recorrida, o que nem é alegado.

C. Da matéria de facto dada como provada não resulta, ao contrário do solicitado no recurso, o preenchimento dos elementos necessários para se entender pela qualificação do crime de homicídio, nem para a verificação do crime de omissão de auxílio;

Pois que a decisão recorrida, na matéria de facto, nada contém que possa levar ao entendimento de estar verificada a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo artº 132º, nº 1, do Código Penal que, como se sabe não resulta automaticamente do preenchimento das alíneas do nº 2 do mesmo preceito.

E, quanto à pretendida prática do crime de omissão de auxílio é contraditória com a prática do crime de homicídio, pois que importaria exclusão do dolo relativamente a este.

D. Não se justifica a agravação da pena respeitante ao crime de detenção de arma proibida, antes a sua redução, como proposto mais abaixo, sendo que em lugar algum a recorrente fundamenta este pedido, parecendo-nos que esta total falta de fundamentação terá de levar a que o recurso seja, nesta parte, rejeitado por aplicação conjugada dos artºs 414º, nº 2 e 417º, nº 6, al. b), do CPP).

V. Recurso do arguido:

A. No que se refere à alegação relativa a ter atuado em legítima defesa de terceiro, tudo o que é referido no recurso é inconsequente, pois que não foi dada como provada matéria que integre tal situação, nem mesmo em excesso. Daqui que o pretendido pelo recorrente constitua a alteração do que não pode: a matéria de facto dada como provada (tal como a assistente pretende alterar a matéria no sentido da qualificação do crime de homicídio)

B. Já quanto à (não) atenuação especial da pena, entendemos assistir razão, num aspeto, ao recorrente:

a) Se entendemos que não pode levar à atenuação especial por aplicação do disposto no artº 72º do Código Penal por não se mostrarem preenchidas as respetivas exigências (a existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas deste, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena), o simples facto de ter confessado os factos e de se mostrar dos mesmos arrependido, já nos parece assistir-lhe razão no que se refere a estar-se perante um caso de atenuação especial atenta a idade, por aplicação do regime especial para jovens previsto no Dec-Lei nº 401/82, de 23 de setembro.

b) Com efeito, muito embora a elevada gravidade da factualidade provada (que acaba por ser reveladora do desajustamento do jovem no acatamento dos valores jurídicos) e alguns aspetos negativos ocorridos no seu percurso vivencial, entendemos que estes elementos, colocados em confronto com outros igualmente dados como provados e também referidos na decisão recorrida, não impedem, antes aconselham, a aplicação do regime especial em causa.

c) Estamos perante um arguido com apenas 20 anos de idade à data da prática dos factos (com 21 anos atualmente); o único antecedente criminal que possui não tem relevância para a situação, não podendo concluir-se no sentido da existência de propensão para a prática de ilícitos; a factualidade, – embora, obviamente, grave (senão, não constituiria a prática de crime) não revelou qualquer especial censurabilidade ou perversidade, tanto que a utilização da arma não foi índice para qualificar o crime, antes levando a punição autónoma; a atuação constituiu reação a situação de agressão de que a sua mãe estava a ser vítima, o que, se não justifica a verificação de legítima defesa, não deixa de relevar em termos de mitigar a culpa; confessou a prática dos factos de forma integral, mostrou-se arrependido, manifestando vontade de apresentar pedido de desculpa aos familiares da vítima; passou a exercer, desde os 18 anos, atividade profissional, colaborando no negócio do progenitor e da madrasta, em cujo agregado familiar se mostra integrado e tendo o respetivo suporte, não havendo referências a comportamentos desviantes posteriores, tendo revelado capacidade pessoal para cumprir a medida de coação de permanência na habitação, mantendo postura adequada para os técnicos que verificam o cumprimento da medida.

d) Face a isto, o juízo relativamente às condições do jovem arguido, permite concluir no sentido da existência de prognose favorável sobre o futuro desenvolvimento da sua personalidade, sendo-lhe benéfica a aplicação do regime em questão com vista a uma efetiva reinserção social, entendendo-se assim que deverá merecer procedência o pedido do arguido no sentido de lhe ser aplicado o regime especial para jovens previsto no Dec.-Lei nº 401/82, de 23 de setembro.

e) Pelo que, no caso do crime de homicídio, em que existe concorrência de modificativas agravantes e atenuantes, levando a moldura em que o limite mínimo é de 2 anos, 1 mês e 18 dias e o limite máximo de 14 anos e 2 meses e 20 dias de prisão, entende-se como adequada uma pena situada aproximadamente a meio daqueles limites, apontando-se para os 8 (oito) anos e 6 (seis) de prisão. E, quanto ao crime de detenção de arma proibida, numa moldura penal compreendida entre 1 mês e os 3 anos e 4 meses de prisão, se aponte como adequada uma pena de 1 (um) ano de prisão.

f) Em cúmulo jurídico destas penas, aponta-se uma pena única adequada como situada perto dos 9 (nove) anos de prisão, mantendo-se o demais – nomeadamente a condenação no pagamento do montante indemnizatório, que nem sofreu contestação – constante na decisão recorrida.”

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação

8. Consta da decisão sobre a matéria de facto do acórdão sob recurso3 o seguinte:

Produzida a prova e discutida a causa resultaram os seguintes Factos Provados:

Acusação Pública [consigna-se não terem sido reconduzidas à factualidade provada conclusões e alegações de direito]

1. No pretérito dia .../05/2022, cerca das 21h10m, por motivos relacionados com questões familiares, o arguido AA deslocou-se, com a sua progenitora BB, à área residencial da vítima CC, designadamente à Rua ..., em frente ao Lote 558, no Bairro ... J, ..., onde aquele residia, fazendo-se transportar no veículo automóvel da marca Renault, modelo Espace, com a matrícula AF-..-BN, conduzido por aquela [ponto 1 – rectificado quanto à data - cfr acta].

2. A deslocação do arguido e da sua progenitora BB pretendia esclarecer, clarificar e/ou desmentir informação, veiculada por CC, relativa à eventualidade de BB, à data companheira de FF (irmão de CC), ter sido vista na companhia de seu ex-companheiro, circunstância propensa a iniciar conflito familiar e entre o casal [ponto 2];

3. Chegados ao local, com a finalidade de desfazer eventuais equívocos e, para tal, confrontar diretamente CC, BB buzinou insistentemente, com o propósito de chamar ao exterior os familiares do seu companheiro, entre os quais a vítima CC, a qual, minutos volvidos, desceu, acompanhado por um amigo, a testemunha GG [ponto 3];

4. De seguida BB e CC iniciaram uma discussão verbal e inclusive confrontos físicos, na sequência das quais decidiu intervir AA que, até então, permanecia no interior do veículo automóvel, sentado no banco dianteiro direito, vulgo lugar do pendura [ponto 4];

5. Já no exterior do veículo automóvel, o arguido AA, apercebendo-se que a sua mãe estava a ser agredida por CC, retirou do interior de uma bolsa que transportava consigo a tiracolo, uma arma de fogo, com percussão lateral, tipo pistola, que, a curta distância, apontou diretamente à figura de CC, executando um (01) disparo, cujo projétil .22 o veio a atingir na região esternal, lateral esquerda [ponto 5 – concretização];

6. Após o disparo de projétil de arma de fogo, arguido AA iniciou fuga apeada, transportando consigo a arma de fogo, enquanto que a sua mãe BB se dirigiu, de imediato, para o interior do veículo automóvel, abandonando o local a alta velocidade [ponto 6];

7. A vítima CC, já em aflição, deslocou-se na direção da entrada do seu prédio, em cujo interior, após ter subido alguns lanços de escadas, veio a cair inanimado no patamar do 3º piso, face às lesões graves sofridas nos órgãos internos da cavidade torácica alvejada, nomeadamente, os pulmões, o coração e ainda vasos sanguíneos de médio / grave calibre [ponto 7];

8. Não obstante a pronta chegada ao local da ambulância dos Bombeiros Lisbonenses, bem como VMER do Hospital de ..., que após prestarem os cuidados prementes, procederam ao transporte da vítima para o Hospital de ..., unidade hospitalar onde deu entrada, pelas 22h17m, sob o registo de Episódio de Urgência n.º ......41, CC veio a falecer em sede hospitalar (Hospital ...), onde já deu entrada em paragem cardiorrespiratória, pelas 22h45m, do dia 12/05/2022 [ponto 7 – rectificado cfr acta];

9. Em consequência da atuação do arguido, a vitima sofreu [ponto 9]:

a) ao nível do hábito externo: ferida contuso-perfurante na região esternal pela linha média, com 0,5cm de diâmetro, correspondente a orifício de entrada de projétil e,

b) ao nível do hábito interno: um orifício no esterno com 0,5cm de diâmetro, em relação com a ferida sobre a região esternal; dois orifícios na face anterior e posterior do ventrículo esquerdo, em relação com a ferida sobre a região esternal; hemotórax de 700ml à direita e de 400ml à esquerda; orifício na hemicúpula direita do diafragma, com 0,5cm de diâmetro, em relação com a ferida sobre a região esternal; hemoperitoneu de 100ml e, no fígado, uma solução de continuidade no lobo direito em túnel, em relação com a ferida sobre a região esternal.

10. A morte de CC, foi devido às lesões traumáticas tóraco-abdominais por projétil de arma de fogo disparado pelo arguido [ponto 10];

11. Considerando a zona que o arguido atingiu a vítima da forma descrita, o arguido atuou com a intenção de causar a morte à vítima, bem sabendo que ao executar o disparo com a arma de fogo em zona do corpo que visou, onde sabia encontrar-se órgãos vitais, lhe provocaria lesões idóneas a causar a morte, como sucedeu [ponto 11];

12. O arguido conhecia as caraterísticas e natureza da arma que possuía e que utilizou para efetuar os disparos contra o ofendido e ainda assim quis detê-la, bem sabendo não estar administrativamente autorizado a fazê-lo, ainda assim não se inibindo de atuar [ponto 12];

13. Em todas as suas condutas, o arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei [ponto 13];


***


Mais se provou

14. O arguido assumiu a autoria dos factos que lhe foram imputados;

15. Declarou pretender apresentar um pedido de desculpa aos familiares da vítima;


***


(condições pessoais, sociais e antecedentes criminais)

16. Do relatório social elaborado pela DGRSP, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 370º e 1º, alínea g), do CPP, fez-se constar que:

“I – Condições sociais e pessoais

O processo de desenvolvimento de AA decorreu no Bairro Social ... em ... (conotado com diversas problemáticas sociais), num contexto familiar materno, assente em dificuldades na imposição de regras.

O arguido é fruto da relação estabelecida pelos pais, que não mantiveram vivência conjugal, e que terminaram o relacionamento amoroso, após o nascimento da segunda filha (atualmente com 13 anos de idade). Para além da irmã germana, o arguido tem dois irmãos consanguíneos (com 18 e 3 anos de idade) e dois uterinos (gémeos, com 8 anos de idade), fruto de outros relacionamentos dos progenitores.

Na história familiar do arguido salienta-se (aos 9 anos de idade), os três anos de reclusão do progenitor por tráfico de estupefacientes, e as duas relações maritais da progenitora (quando o arguido tinha 13 e 16 anos de idade), cuja dinâmica foi marcada por atos de violência física e/ou verbal, pelos padrastos sobre a mesma (na presença do arguido) e pelas alegadas condutas antissociais destes, que resultaram em condenações e cumprimento de penas efetivas de prisão. Alegadamente, o segundo companheiro da mãe (irmão da vítima do presente processo) encontra-se atualmente preso. As referidas condições, aparentam ter criado entre o arguido e a mãe criação de laços relacionais de suporte e significância afetiva.

Embora o progenitor (residente no mesmo bairro), não fizesse parte do agregado do arguido, até à data da sua reclusão em 2011, conviveu regularmente com o filho e contribuiu para a sua subsistência.

Segundo o referido, após a sua restituição ao meio livre (por imposição da progenitora), os contactos com o filho passaram a ser pontuais. As referidas vivências aparentam ter originado significativa instabilidade emocional no arguido, que se refletiu no meio escolar revelando desinteresse pelas atividades, problemas disciplinares, absentismo e insucesso. A partir da adolescência o arguido passou a ocupar o seu tempo na socialização com grupo de pares (no meio escolar e residencial), alguns dos elementos conotados com condutas desviantes, com quem iniciou aos 15 anos de idade consumos de haxixe, que refere ter cessado quando deu entrada no estabelecimento prisional no âmbito do presente processo.

As referidas circunstâncias conduziram à intervenção da CPCJ de ..., tendo sido encaminhado para uma turma PIEF – Programa Integrado de Educação e Formação na escola E.B. 2+3 ... para certificação de 6º ano de escolaridade, que refere ter concluído aos 16 anos de idade, momento em que se desvinculou do ensino escolar. Posteriormente refere ter estado integrado na Unidade W+ - Serviço da Santa Casa da Misericórdia de ..., onde desenvolveu várias atividades (nomeadamente teatro) e onde se manteve por cerca de um ano. A referida unidade está direcionada para o acolhimento de jovens de risco, com vulnerabilidade psicológica.

Na história de vida do arguido destaca-se ainda, a problemática de saúde diagnosticada em 2016, (... tipo 1), com a necessidade de efetuar tomas diárias de insulina injetável e a paternidade não planeada, ocorrida quando contava 17 anos de idade. Segundo referiu, a namorada e o filho (atualmente com 3 anos de idade) foram acolhidos na Associação ..., embora o namoro tenha terminado (por motivos que não ficaram claros), refere que até à data da sua detenção, visitava-os com regularidade.

No período que antecedeu a sua constituição como arguido, a progenitora e os irmãos residiam em ..., numa moradia arrendada pelo companheiro da mãe. O arguido então com 18 anos, passou a residir sozinho na habitação familiar no Bairro .... O estilo de vida do arguido estava centrado na sociabilização com a rede paritária da sua área residencial e não desenvolvia atividades estruturadas, sendo a sua subsistência assegurada pelo apoio financeiro dos progenitores.

Ainda com 18 anos de idade, passou a colaborar no negócio do progenitor e da madrasta, numa loja de cosmética/estética, denominada “M.... ....”, AA fazia trabalhos de entrega e levantamento de produtos ao domicílio e nos ..., para expedição, auxiliando por vezes, no próprio espaço comercial. O arguido não regista antecedentes criminais, contudo existe junto da DGRSP, uma anterior intervenção, nomeadamente no âmbito Tutelar Educativo, tendo também sido acompanhado pelos Serviços de Reinserção Social, no âmbito de uma Suspensão Provisória do Processo, no ano de 2021 (condução de veículo em estado de embriaguez).

À data dos factos em julgamento, AA continuava a residir sozinho e mantinha a atividade desenvolvida no negócio da família. Alegadamente o seu estilo de vida estava centrado no trabalho sendo também relevante para si os momentos de convívio social que mantinha com a rede paritária da sua área residencial, ocupando também alguns períodos de lazer a jogar playstation.

No que diz respeito ao presente processo, AA embora consciente da gravidade dos factos em apreço e verbalizando sentimentos de arrependimento, apresenta uma atribuição causal externa. O arguido contextualiza as circunstâncias de que está acusado a uma reação de proteção relativamente à progenitora.

O seu funcionamento indica a existência de défices comportamentais e emocionais particularmente em situações de tensão/conflito, com tendência para atuar de forma pouco assertiva e sem antecipar as consequências dos seus atos. Revelou ainda dificuldades de descentração e de resolução de problemas de natureza conflitual.

À ordem do presente processo, AA ficou sujeito a prisão preventiva até 05ago2022, data em que iniciou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE).

O arguido passou a residir no distrito de ...), integrado no agregado do progenitor e da madrasta num contexto familiar aparentemente funcional. Este agregado integra também a irmã do arguido, que passou a residir com o progenitor, por recearem represálias relativamente à família da vítima. De acordo com o referido, AA mantém uma participação positiva e cooperante na dinâmica familiar, respeitando as regras e participando nas tarefas domésticas.

Vinculado ao confinamento habitacional as 24 horas diárias, o arguido tem revelado capacidade pessoal para cumprir a presente medida de coação, assim como uma postura adequada com os técnicos desta equipa.

O pai e a madrasta apresentam um posicionamento crítico face à presente situação jurídico-penal do arguido, considerando que o mesmo terá que assumir as consequências do seu ato. Caracterizam o arguido como um jovem humilde e imaturo, e na perspetiva de ambos terá sido o sentimento de afeto que nutre pela progenitora e a cumplicidade mantida com esta, que originou a sua situação jurídico-penal. Apresentam, contudo, uma postura de apoio ao arguido independentemente do desfecho do presente processo judicial. AA avança com a possibilidade do cumprimento de uma pena de prisão efetiva, situação que lhe causa elevado sofrimento, tendo em conta a anterior experiência em meio prisional, mas que perspetiva com alguma conformação.

II – Conclusão

No processo de desenvolvimento de AA de 21 anos de idade, assinala-se como dados especialmente relevantes a prisão do progenitor quando tinha nove anos de idade, e o contexto em que ocorreu o seu crescimento, que foi perturbado precocemente por um quadro familiar desajustado/conflituoso, que o marcou negativamente. O seu estilo de vida não se definiu de forma estruturada, com a assunção de objetivos e responsabilidades, registando-se insucesso escolar, uma precocidade ao nível da paternidade e a progressiva adesão à rede social de pares, junto da qual veio a iniciar consumos de haxixe e a apresentar comportamentos problemáticos, nomeadamente no meio escolar.

Atendendo à natureza do ilícito em julgamento, identificaram-se como fatores desprotetores: o seu funcionamento não assertivo em situações de tensão emocional (não antecipando consequências); bem como dificuldades de tolerância à frustração e ainda tendencialmente uma atribuição causal externa.

Em termos dos fatores protetores presentes salienta-se: a existência de suporte/apoio familiar aparentemente adequado; a consciencialização da gravidade dos factos em apreço no presente processo judicial; a inexistência de indicadores de que tenha antecedentes criminais; e a capacidade revelada durante a execução da OPHVE, para cumprir as regras/obrigações da medida de coação.

Atendendo ao referido, caso AA seja condenado nestes autos, considera-se necessária uma intervenção intensiva que incida nos fatores desprotetores detetados na presente avaliação”.

17. O arguido concluiu o 6º ano de escolaridade;

18. No ano lectivo 2017/2018 estava inscrito em estabelecimento de ensino com vista à frequência do 7º, 8º e 9º ano de escolaridade, que não concluiu;

19. Ponderou iniciar o curso de ..., mas não o chegou a fazer;

20. Colabora na actividade desenvolvida no estabelecimento de ... dos familiares;

21. Reside em casa do pai, onde também residem a companheira do pai e dois irmãos menores;

22. Tem um filho menor de idade, que reside com a mãe, não suportando qualquer prestação alimentícia;

23. Foi-lhe aplicada medida tutelar educativa pelo período de 1 ano com vista à reinserção em meio escolar;

24. Por sentença de 6 de abril de 2022, transitada em julgado no dia 7 de Junho de 2022, no processo abreviado n.º 945/21.4..., JLPC de ..., Juiz 4, foi condenado na pena de 30 dias de multa, pela prática no dia 18 de Agosto de 2021, de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º n.º 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;


***


Do pedido de indemnização cível [consigna-se apenas terem sido considerados os artigos n.º 69.º a 94.º e não ter sido reconduzida à factualidade provada matéria conclusão e/ou alegações de direito]

25. No dia ... de ... de 2022, a CC tinha 43 (quarenta e três anos) anos de idade,

26. Era uma pessoa alegre e tolerante;

27. Apenas resultou provado, que era solidário, dedicado à família e à ...;

28. Não lhe sendo conhecida qualquer doença incapacitante;

29. O pai da vitima estava presente e assistiu ao homicídio;

30. Apenas resultou provado, que o pai da vitima tem estado deprimido desde a morte do filho;

31. Antes pessoa alegre tem agora dificuldade de socializar com terceiros;

32. O homicídio foi presenciado por uma irmã EE e um filho menor desta, HH.

33. Ambos se encontram deprimidos por terem presenciado o homicídio, sentirem-se impotentes para conseguir impedir o mesmo e verem-se privados para sempre da companhia do irmão e tio;

34. Sendo que a relação entre a irmã EE e o falecido CC era de grande proximidade.

35. Apenas resultou provado, que o HH acompanhava o tio CC quase diariamente, sendo o seu grande confidente;

36. Em todas as suas condutas, o arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;


***


Do pedido de reembolso de despesas hospitalares

37. O “Centro Hospitalar Universitário Lisboa, Central, E. P. E.” é uma pessoa colectiva de direito público integrada no Serviço Nacional de Saúde;

38. Na sequência das lesões sofridas por CC, foi-lhe prestada assistência hospitalar que implicou num custo de €140.07 (cento e quarenta euros e sete cêntimos);

39. O “Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, EPE” emitiu no dia 24 de Novembro de 2022, a factura n.º ......27 no montante de 142,07 (cento e quarenta e dois euros e sete cêntimos) em nome do demandado;


***


Da contestação [consigna-se não terem sido alegados factos que devessem ser julgados]

***


Factos Não Provados

Da acusação pública

Inexistem.

Do pedido de indemnização cível

a) Em especial aos 4 filhos;

b) Desfrutava de um estilo de vida saudável;

c) Gozava de boa saúde;

d) O pai da vítima é doente oncológico;

e) O facto de ter presenciado o homicídio agravou o seu estado de saúde;

f) A vítima CC deixa quatro (4) filhos sendo que dois (2) são menores;

g) Os quais sofrem com a ausência definitiva do pai falecido com quem tinham uma grande relação de amizade e companheirismo;

h) Auferia aproximadamente €900,00 mensais;


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Motivação da decisão de facto

Nos termos do disposto no artigo 374.º do Código de Processo Penal, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Impõe-se neste momento ao julgador, proceder ao exame crítico das provas que, aferido com critérios de razoabilidade, permita aos destinatários da decisão avaliar cabalmente as razões da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao seu conteúdo.

Assim, no apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração critica e conjugada dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, atentas as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal), designadamente os seguintes:

Declarações de arguido

Informado o arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 343.º n.º 1, do CPP, dispôs-se a prestar declarações, o que fez de imediato, apresentando uma declaração confessória, integral e sem reservas, quanto aos factos que lhe são imputados na acusação pública.

Ainda que o crime cuja prática foi imputada ao arguido seja punido com pena de prisão superior a 5 anos, em face da prova documental e pericial junta aos autos, que de seguida identificaremos, decidiu o Tribunal não dever ter lugar à produção de prova quanto aos factos confessados (art. 344.º n.º 4, ex vi n.º 3, alínea c), do CPP).

Esclareça-se, que considerando o Tribunal não estar perante qualquer alteração não substancial de factos, que devesse ser comunicada, nos termos do disposto no artigo 358.º do CPP, procedeu à concretização do facto enunciado no ponto 5 da acusação nos exatos termos consignados na fundamentação.

Apesar de não ter sido apreendida a arma de fogo com a qual foi feita o disparo, não podemos deixar de relevar a declaração confessória, integral e sem reservas prestada pelo arguido (onde fez incluir o ponto 5 da acusação) e, bem assim, a declaração que se fez constar no relatório de autópsia médico-legal, página 5, designadamente, “procedeu-se a recolha de projétil de arma de fogo extraído do torax para entrega a PJ”, sendo certo que, conforme se lê na conclusão do relatório de exame pericial, de fls. 535 a 540, o projétil enviado e examinado constitui-se como um elemento de calibre .22 long rifle, equivalente a 5,6mm no sistema métrico – de percussão lateral.


***


Documental

- auto de Apreensão, fls. 25 [uma (1) cápsula deflagrada, de provável calibre .22, deformada, encontrada na via pública, em frente ao Lote 559 da Rua ..., ... – ...];

- informação clínica, de fls. 189 a 191 [relativa a CC];

- fotogramas da mãe do arguido (lesões);

- certificado do registo criminal, de fls. 485;

- relatório da DGRSP;

- factura apresentada pelo CHL;


***


Pericial

- relatório de autópsia médico-legal, fls. 372 a 375;

- relatório de exame pericial, de fls. 535 a 540 [calibre .22];


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Testemunhal [pedido de indemnização cível]

II, companheira do sobrinho (HH) da vítima, prestou um depoimento toldado por forte carga emocional, tendo-se referido ao sofrimento dos pais de CC, salientando que a mãe da vítima deixou de conseguir manter por si a exploração do estabelecimento de .... Disse tratar-se de uma família muito unida e que o seu companheiro e o pai de CC assistiram a toda a situação, descrevendo a vítima como uma pessoa alegre, que não fazia mal a ninguém.

HH, sobrinho da vítima, que assistiu à situação reportada, referiu-se ao estado de tristeza dos seus avós, negando que o seu tio tivesse agredido a mãe do arguido, sendo que o seu depoimento se revelou pouco consistente nessa parte, porquanto manifestamente contrariado pela documentação junta aos autos, designadamente fotogramas de folhas 48, que espelham às lesões da mãe do arguido) e, bem assim, da própria irmã da vítima (infra).

EE, irmã da vítima, também disse ter assistido à situação, referindo que os dois se envolveram, tendo sido a própria quem os separou (mãe do arguido e vítima). Também se reportou ao sofrimento dos pais e que os sobrinhos da vítima ficaram muito revoltados, esclarecendo que o pai ficou cerca de uma hora junto do filho já baleado.

JJ, também irmã da vítima, referiu-se a CC como sendo uma criança, que convivia muito com os sobrinhos e que não tinha problemas com ninguém, residindo com o pai.


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No que concerne à factualidade não provada, com referência ao pedido de indemnização cível, não podemos deixar de salientar estarmos perante uma manifesta insuficiência de prova, que devesse ter sido produzida e que pudesse sustentar os factos alegados. Referimo-nos, nomeadamente, à inexistência de prova documental que pudesse comprovar a situação clínica do pai da vítima e, acima de tudo, prova documental (assentos de nascimento) que estabelecesse a filiação dos ditos filhos do arguido e, bem assim, a idade dos mesmos.

***


9. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

De todo o modo, quanto ao recurso do arguido, nota-se o elevado número de conclusões apresentadas, que constituem praticamente a reprodução da sua motivação, revelando o não cumprimento das exigências contidas no art. 412.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP, mas porque se percebem os seus objetivos e questões suscitadas, decide-se não o convidar a aperfeiçoar as mesmas, nos termos do art. 417.º, n.º 3, do mesmo código (tal como também sustentou o Sr. PGA).

Quanto ao recurso da assistente nota-se que há uma parte (assinalada igualmente no parecer do Sr. PGA) que, por lapso, ficou a constar na motivação do recurso ora em apreço, apesar de pertencer a outra peça processual, como claramente se percebe da sua leitura integral.

Posto isto, consigna-se que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP.

As questões colocadas no recurso da assistente são as seguintes:

1ª- erro na subsunção dos factos ao direito (pugnando pela condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 132.º, n.º 1, al. e), g), h) e j) do CP e por um crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP, considerando que, ao assim não ter entendido, o tribunal a quo valorou erradamente a prova, existindo dessa forma erro no julgamento quanto a fatos não valorados mas confessados, que constituiriam o dito crime de omissão de auxílio, o que justificaria o reenvio do processo para uma nova decisão, por erro notório na apreciação da prova, além de uma alteração substancial de factos pela convolação do crime de homicídio simples em crime de homicídio qualificado e pela imputação do crime de omissão de auxílio);

2ª- discordância quanto à medida da pena (que considera excessivamente benévola quanto ao crime de detenção de arma proibida que deveria ser uma pena não inferior a 3 anos e 6 meses de prisão, tanto mais que nunca entregou a arma do crime e o perigo mantém-se, devendo ser aplicada uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de omissão de auxílio por ter sido ele o causador da situação em que a vítima se encontrava e, em cúmulo jurídico com a pena do crime de homicídio qualificado, deve ser-lhe aplicada pena única não inferior a 21 anos e 6 meses de prisão).

Por sua vez, as questões colocadas no recurso do arguido são as seguintes:

1.ª- erro na subsunção dos factos ao direito (pugnando pela atenuação especial resultante de ter agido com intenção de defender a mãe, ainda que com excesso de meios, sustentando também a falta de exame crítico de factos que diz ter alegado na contestação, relacionados com essa sua intenção defensiva, o que significa, na sua perspetiva, que o tribunal a quo fez uma incorreta valoração da prova, alegando impugnar amplamente a matéria de facto);

2ª- discordância quanto à medida da pena (que considera excessiva, não só por ter sido incorretamente valorada a sua confissão integral e sem reservas, bem como arrependimento e demais circunstâncias favoráveis, como também por não ter sido aplicado o regime especial para jovens, por estar em condições para dele beneficiar, devendo, ser reduzidas as penas parcelares e a pena única, sendo adequada a pena de 5 anos pelo crime de homicídio e a pena de 200 dias de multa à taxa diária de 6 euros pelo crime de detenção de arma proibida, sendo em cúmulo jurídico aplicada a pena de 5 anos de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de 6 euros).

10. Vejamos então, as questões colocadas, tendo em atenção que este STJ é o tribunal competente para conhecer de ambos os recursos face ao disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º, do CPP, uma vez que visam exclusivamente o reexame de matéria de direito.

De esclarecer que, apesar de o arguido, no seu recurso, referir que impugna amplamente a matéria de facto, o certo é que não deu cumprimento aos ónus previstos no art. 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP, como lhe incumbia, o que significa, que essa mera alegação é inócua, não produzindo qualquer efeito (daí que, como bem diz o Sr. PGA, esteja justificada a decisão sumária proferida pela Relação de Lisboa, quando se declarou incompetente para conhecer dos recursos).

De resto, não basta referir que se recorre da matéria de facto da decisão que se pretende impugnar, para a mesma poder ser alterada.

A alteração de facto poderia ocorrer, caso se verificasse qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, os quais até são de conhecimento oficioso.

Quanto aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, dispõe esta norma:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Assim, os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum4.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”5

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, al. b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.

O erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”6

De esclarecer que a invocação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, não se confunde com a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, efetuada no âmbito do art. 412.º, n.º 3 e n.º 4 do CPP (sendo certo que, neste processo, nenhum dos recorrentes deu cumprimento a esses ónus, caso pretendessem invocar o chamado “erro de julgamento”).

Também não se pode confundir o “erro notório na apreciação da prova” (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP) com a alegada errada subsunção dos factos ao direito, como o fazem os recorrentes - quer a assistente quando, no seu recurso, sustenta, que foi valorada erradamente a prova, que houve erro de julgamento quanto a factos não valorados, mas confessados, que constituiriam o dito crime de omissão de auxilio, o que justificaria o reenvio do processo por erro notório na apreciação da prova, quer o arguido, quando invoca que o tribunal fez uma incorreta valoração da prova, socorrendo-se de meios externos ao texto da decisão, o que não pode ser, confundindo, valoração da prova com o suposto erro de direito, alegando, abstratamente e de forma inconsequente, que impugna amplamente a matéria de facto.

Ora, o que se verifica do texto da decisão sob recurso, concretamente da decisão sobre a matéria de facto, é que para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se deteta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (nem sequer foi exposto qualquer raciocínio ilógico ou contraditório na fundamentação que apontasse para decisão contrária à da condenação do arguido/recorrente), sendo certo que a apreciação feita pelo Tribunal da 1ª instância não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro relevante de que o homem médio facilmente se desse conta.

Assim, analisado o texto da decisão sob recurso, podemos concluir facilmente que não se verificam os vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP e não havendo nulidades de conhecimento oficioso, está definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

11. Em ambos os recursos, a primeira questão colocada relaciona-se com o invocado erro na subsunção dos factos ao direito.

Nesse aspeto, consta da decisão recorrida o seguinte:

ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Sendo esta a factualidade assente por provada, cumpre verificar se pode ser subsumida no enquadramento jurídico-penal constante da acusação, confirmada na pronúncia.

Ao arguido foi imputada a prática, como autor material e em concurso efectivo:

- 1 (um) crime de homicídio cometido com arma, previsto e punido nos termos do artigo 131.º do Código Penal e 86.º, n.º 3 do RJAM,

- 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM.


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Do crime de homicídio

Dispõe o artigo 131º do Cód. Penal, subordinado à epígrafe “Homicídio” que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”, sendo a expressão da garantia, no âmbito criminal, do direito à vida constitucionalmente consagrado no artigo 24º da Constituição da República.

O direito à vida funda-se na norma constitucional que consagra a sua inviolabilidade e proíbe a pena de morte, sendo também inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.

Objecto do crime de homicídio é outra pessoa, portanto, qualquer pessoa diferente do agente do crime.

“Tratando-se de um crime de resultado, por sua própria natureza e pela expressão legal matar outra pessoa, põem-se aqui em toda a sua extensão os problemas da definição do nexo de causalidade que deve ligar o comportamento do agente causador ao resultado causado” – [Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado].

No que concerne ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, em qualquer das suas formas – directo, necessário ou eventual.

Por seu turno, estabelece o n.º 3, do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – “Regime Jurídico das Armas e Munições”, que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.

Resultou provado, que o arguido AA, actuou com intenção de matar CC, tendo recorrido ao instrumento que julgou adequado a alcançar o resultado pretendido, designadamente uma arma de fogo, com a qual fez um disparo, idóneo a provocar a morte da vítima, tal como, aliás, veio a suceder.

Querendo a sua conduta, relativamente ao ofendido, agiu o arguido com dolo directo, encontrando-se preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime em causa.

Não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade, fica demonstrado que o arguido cometeu no dia 12 de Maio de 2022, em autoria material, um crime de homicídio “cometido com arma”, p. e p. pelos artigos 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – “Regime Jurídico das Armas e Munições”.


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Do crime de detenção de arma proibida

A Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro aprovou o regime jurídico de armas e munições ao estabelecer as regras relativas ao fabrico, montagem, reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação, comércio, aquisição, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de armas, seus componentes e munições, bem como o enquadramento legal das operações especiais de prevenção criminal (artigo 1.º, n.º 1).

Relativamente ao preenchimento do tipo de crime cuja prática é imputada arguido, importa considerar as disposições da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril, sendo de salientar, que o arguido retirou do interior de uma bolsa que transportava consigo a tiracolo, uma arma de fogo, de percussão lateral, que a curta distância apontou diretamente à figura de CC, executando um (01) disparo de projéctil .22., causando-lhe a morte.

Não tendo sido apreendida a arma de fogo com a qual o arguido fez o disparo, importará ter presente que:

- quanto a armas de fogo e seus componentes, a alínea ab), do n.º 3, do artigo 2.º do RGAM, define de “percussão anelar ou lateral” o sistema de ignição de uma munição em que o percutor atua sobre um ponto periférico relativamente ao centro da base da mesma;

- quanto à classificação das armas, munições e outros acessórios, dispõe a alínea e), do n.º 5, do artigo 3.º do RJAM, que as armas de fogo unicamente aptas a disparar munições de percussão anelar, são classificadas como armas da classe C.

Por seu turno, dispõe o artigo 86º da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril que, quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

O crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo abstracto, que visa tutelar a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas (cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999).

Os crimes de perigo caracterizam-se pela não exigência típica de efectiva lesão do bem jurídico tutelado, razão pela qual a consumação se basta com o risco (efectivo ou presumido) da lesão do bem jurídico, risco que se consubstancia numa situação de perigo, a qual só por si é tutelada.

Não existe ainda uma qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou para os bens patrimoniais de grande valor, sendo também um crime de perigo comum, porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.

O tipo subjectivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta culposa, sendo punível o facto praticado com dolo, em quaisquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal,

Subsumindo o ora exposto, verificamos que o arguido, sem se encontrar autorizado, detinha uma arma da classe C no interior de uma bolsa que transportava a tiracolo, conhecendo as características e natureza da mesma, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo e, ainda, assim, não se inibiu de o fazer, actuando de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Encontram-se assim preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de detenção de arma proibida, pelo que, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade, fica demonstrado que o arguido cometeu no dia 12 de Maio de 2022, em autoria material e na forma consumada, 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM.


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11.1. Recurso da assistente

1ª questão (erro na subsunção dos factos ao direito)

Invoca a assistente que existe erro na subsunção dos factos ao direito uma vez que perante o que foi dado como provado o arguido deveria ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 132.º, n.º 1, al. e), g), h) e j) do CP e de um crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP.

Na sua perspetiva, o arguido agiu com premeditação, quando se deslocou para o local da contenda com a sua mãe, já munido da arma municiada e pronta a disparar, fazendo-o a escassos metros da vítima, visando matá-lo, como era sua intenção, atingindo-o na zona do tórax, atuando com frieza de ânimo, motivo torpe e fútil, para além de ter cometido o crime de omissão de auxílio, como está patenteado nos factos dados como provados e confessados.

Acrescenta que, ao assim não ter entendido, o tribunal a quo valorou erradamente a prova, existindo dessa forma erro no julgamento quanto a fatos não valorados mas confessados, que constituiriam o dito crime de omissão de auxílio, o que justificaria o reenvio do processo para uma nova decisão, por erro notório na apreciação da prova, além de uma alteração substancial de factos pela convolação do crime de homicídio simples em crime de homicídio qualificado e pela imputação do crime de omissão de auxílio patenteado nos autos e confessado.

Vejamos então.

Começaremos por esclarecer a recorrente assistente que, ao contrário do que alega, a circunstância de na audiência de julgamento de 10.07.2023 (como a ata documenta), perante a confissão integral e sem reservas dos factos pelo arguido, o Ministério Público ter prescindido do depoimento das testemunhas de acusação, tendo a mandatária da assistente apenas não prescindido do depoimento das testemunhas do pedido cível, tendo o tribunal deferido o promovido, bem como a requerida inquirição de testemunhas, não significa que tivesse havido errada valoração da prova, nem tão pouco que existisse erro notório na apreciação da prova e, muito menos, que fosse caso de reenvio do processo para nova decisão.

Com efeito, perante a confissão integral e sem reservas, fora de qualquer coação, feita pelo arguido, presenciada pelo Coletivo, pelo Ministério Público, pelos Mandatários intervenientes, que também a ela não se opuseram e tiveram conhecimento da posição da acusação relativamente à prova (como está documentado na ata de 10.07.2023), era nessa audiência que a assistente deveria ter suscitado a questão, caso pretendesse ouvir outras testemunhas, para além das do pedido cível, tal como requereu nesse ato.

Nada tendo requerido a assistente, na altura própria, que era a audiência de 10.07.2023 (sendo que no final já foi designada a leitura do acórdão, o que veio a suceder em 31.07.2023), quanto à inquirição de testemunhas, que foram prescindidas e que o próprio tribunal também entendeu não ter necessidade de ouvir, perante a confissão integral e sem reservas dos factos que constavam da acusação, que eram os definidos no despacho de pronúncia (que remeteu para aquela peça), é extemporâneo invocar agora que deveriam ter sido ouvidas, ainda para mais, quando foram dados como provados todos os factos objeto do julgamento, que foram delimitados no despacho de pronúncia.

Improcede, pois, essa questão suscitada pela recorrente assistente uma vez que não tem cabimento a repetição do julgamento.

Igualmente, como acima já foi esclarecido, não existe qualquer erro notório na apreciação da prova, pois, para além do que já se disse, todos os factos que faziam parte do despacho de pronúncia foram dados como provados, por via da referida confissão integral e sem reservas feita pelo arguido em julgamento.

Também não existem os alegados erros de valoração e/ou erro de julgamento, uma vez que todos os factos objeto da pronúncia foram dados como provados, sendo, além disso, errada a afirmação da recorrente assistente quando alega que, houve factos não valorados apesar de confessados, que até seriam estruturantes do crime de omissão de auxílio e, como tal, deveria ser ordenado o reenvio do processo para nova decisão.

Aliás, como bem refere o Sr. PGA, se a recorrente pretendia alterar a decisão sobre a matéria de facto apenas lhe restavam duas vias: a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, cumprindo os ónus do art. 412.º, n.º 3 e n.º 4 do CPP (o que não fez), ou fundamentando os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que como acima vimos, também não ocorrem.

Portanto, estando fixados os factos dados como provados, é a partir deles que se pode fazer o respetivo enquadramento jurídico-penal.

Sustenta a recorrente que os factos apurados permitiam imputar ao arguido um crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 132.º, n.º 1, al. e), g), h) e j) do CP e um crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP e que, ao assim não ter procedido, o tribunal cometeu uma nulidade insanável, por omissão de comunicação de alteração substancial de factos.

Antes de mais, incumbe esclarecer, que há um vício no raciocínio da recorrente assistente, uma vez que se esqueceu de qual foi a qualificação feita pelo Coletivo e, se tivesse atentado na mesma, verificava que coincidia com a que consta no despacho de pronúncia (que remete integralmente para as razões de facto e de direito enunciadas no despacho de acusação, a saber, autoria material, e em concurso efetivo de um crime de homicídio cometido com arma, previsto e punido nos termos do artigo 131.º do Código Penal e 86.º, n.º 3 do RJAM e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM) e, nessa conformidade, não ocorre qualquer nulidade por alteração da qualificação jurídica, por ser a mesma.

Por isso, não lhe assiste razão quando invoca a existência da nulidade insanável, por omissão de comunicação de alteração substancial de factos7.

Mas, voltando à questão da qualificação jurídico-penal dos factos dados como provados.

Discorda a recorrente dessa qualificação por, na sua perspetiva, a conduta apurada do arguido integrar a prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 132.º, n.º 1, al. e), g), h) e j) do CP e de um crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP.

Os únicos factos que se podem atender são os dados como provados e não quaisquer outros, referidos no recurso da recorrente, mas que não constam como provados.

Alega a recorrente de forma genérica e abstrata que, o arguido agiu com motivo fútil, sendo o móbil do crime despropositado, sem sentido perante o senso comum, irrelevante, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante e, considerando a sua base mesquinha, que eram familiares, que conviviam diariamente e participavam em vários eventos familiares juntos, a conduta do arguido integra-se dentro da esfera legal do art. 132.º, n.º 1, al. e), g), h) e j) do CP.

Pois bem.

Importa, agora, verificar se está ou não preenchida alguma das circunstâncias qualificativas invocadas no recurso da assistente.

Circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. e), do Código Penal

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

Na síntese de Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette8 “O motivo torpe ou fútil como gerador duma certa actuação, deve sempre considerar-se pesadamente repugnante, baixo e gratuito.”

E, como assinala Paulo Pinto de Albuquerque9, «O motivo torpe ou fútil (…) é o motivo incompreensível ou mesmo revelador de um baixo carácter (…). Para aferir da baixeza de carácter e da futilidade do motivo devem ter-se em conta, por um lado a desproporção entre a conduta da vítima e a reacção do agente e a responsabilidade do agente pela situação criada e, por outro lado, as características pessoais do agente, como, por exemplo, as representações culturais do seu país de origem quando se trate de estrangeiro ou a sua história pessoal como vítima de maus-tratos”.

Ora, como resulta dos factos provados, o que levou o arguido a sair do veículo automóvel onde se encontrava foi ver a mãe e a vítima em confrontos físicos e, foi nessa sequência, já no exterior da viatura, que apercebendo-se da sua mãe estar a ser agredida pela vítima, que então o arguido retirou do interior de uma bolsa que transportava consigo a tiracolo, uma arma de fogo, com percussão lateral, tipo pistola, que a curta distância, apontou diretamente à figura da vítima, executando um disparo, cujo projétil .22 o veio a atingir na região esternal lateral esquerda.

Isto significa que houve um motivo para a atuação do arguido, que não se pode considerar fútil, gratuito, apesar da gravidade da conduta do arguido, que com a sua atuação causou a morte da vítima.

Ainda que as consequências do crime fossem gravíssimas, não se pode concluir (como o faz a recorrente) que o móbil do crime foi despropositado, sem sentido perante o senso comum, irrelevante, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante.

Tão pouco resulta dos factos provados que o arguido e a vítima fossem familiares (apesar da vítima ser irmão do companheiro da mãe do arguido) ou que convivessem diariamente e/ou participassem em vários eventos familiares juntos.

Considerando todo o circunstancialismo apurado, visto o que se estava a passar entre a vítima e a mãe do arguido, que chegaram ao confronto físico, concluímos que, apesar de não estar de modo algum justificada a conduta do arguido, também não se pode considerar que ocorra o exemplo padrão do “motivo fútil” ou do “motivo torpe”.

Circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. g), do Código Penal

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;

Como referem Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette10 “cura-se, essencialmente, de contributo, reforço e/ou garantia em ordem à execução do facto, ao encobrimento do facto, à fuga do agente ou à impunidade do agente, com apoio em vontade contumaz susceptível de conduzir a uma indiscriminada utilização de meios, ainda os mais perigosos ou imorais. De toda a maneira, o homicida não tem de ser «agente de outro crime» e, nas perspectivas da fuga e da impunidade «do agente de um outro crime», está em causa uma situação de favorecimento ou auxílio (cfr. Figueiredo Dias, ibidem, 34).”

Realça Paulo Pinto de Albuquerque11 que «A instrumentalidade do crime de homicídio, ou seja, o cometimento do crime de homicídio com vista à preparação, facilitação, execução ou encobrimento de “outro crime” (…) supõe uma proximidade temporal e espacial entre o tipo de homicídio e o “outro crime”. O outro crime pode ser doloso ou negligente, tentado ou consumado, cometido por acção ou por omissão. Não é sequer necessário que o “outro crime” se tenha verificado e nem mesmo que seja realizável. É suficiente que na representação mental do agente, o crime de homicídio seja útil para a consecução de um “outro crime”, quer este outro crime tenha sido ou venha a ser cometido pelo próprio agente ou por terceiro».

No caso em análise, perante os factos dados como provados não resulta que o cometimento do crime de homicídio pelo arguido tenha qualquer relação, conexão ou propósito de preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime.

É, pois, manifesto que, os factos apurados não permitem concluir pelo preenchimento do exemplo padrão previsto no art. 132.º, n.º 2, al. g), do Código Penal, pelo que nessa parte improcede a argumentação da recorrente assistente.

Circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. h), do Código Penal

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

No que aqui interessa, como assinala Jorge de Figueiredo Dias12, “Utilizar meio particularmente perigoso é, como acaba de pôr-se em relevo, servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de um crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (…) Para além do que fica dito, deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso.”

Continua o mesmo Professor, que “Crimes de perigo comum são os constantes dos arts. 272.º a 286.º, sendo certo que a ligação entre este exemplo-padrão e o tipo de culpa agravado deve fazer-se através da falta de escrúpulo em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum. Que, a partir deste ponto de vista, a outros meios se possa atribuir estrutura análoga à dos descritos (v.g.: analogia entre crimes de perigo comum e alguns dos crimes contra a segurança das comunicações, art. 287.º ss.); e que, por outra parte e sobretudo, a utilização de qualquer um destes meios não determine por si o tipo de culpa agravado (mas até mesmo, possivelmente, um tipo privilegiado), é coisa que mal se tornará necessário enfatizar.”

Ora dos factos dados como provados não resulta preenchido sequer este exemplo-padrão, apesar do arguido ter utilizado a referida arma de fogo, com percussão lateral, tipo pistola para matar a vítima, que devendo ser classificada como um meio perigoso (que é utilizado não só para ferir, como para matar), não é todavia particularmente perigoso (note-se que a arma nem sequer foi apreendida); por outro lado, as circunstâncias em que foi utilizada, também não revelam aquela falta de escrúpulo exigida para se considerar que a forma como foi usada revela uma especial censurabilidade do facto, pela criação ou produção de um perigo comum.

De resto, apenas se provou (tal como foi pronunciado) que foi só o arguido que cometeu o crime de homicídio.

Daí que, os factos apurados não permitem concluir pelo preenchimento do exemplo padrão previsto no art. 132.º, n.º 2, al. h), do Código Penal, improcedendo nessa parte a argumentação abstrata da recorrente assistente.

Circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. j), do Código Penal

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

De forma resumida, seguindo o ensinamento de Jorge de Figueiredo Dias13, dir-se-á que “O CP de 1982 reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos que diferentes ordenamentos lhe conferiam” e, por isso, passou a englobar a “frieza de ânimo”, “a reflexão sobre os meios empregados” e a “persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” neste exemplo padrão.

E, em síntese, como também explicam Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette14, “Há frieza de ânimo quando ocorre «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar» (BMJ, 358/260), ao nível específico da execução a frio: frigido pacatoque animo. A reflexão, que precede ou acompanha a execução, indicia, doutra banda, «uma acrescida perigosidade» (FIGUEIREDO DIAS, ibidem, 39) e traduz maior intensidade do dolo. O decurso do tempo, com «persistência na intenção de matar» é, de sua natureza, revelador de intensa vontade criminosa. De resto, como em todos os casos, e agora muito particularmente, cabe sempre um cuidadoso exame no concreto, para que, v.g., se não tome a resistência à ideia do crime ou o sobrestar antes de começar como exasperação da culpa.”

Ora dos factos dados como provados não resulta que o arguido tivesse agido com premeditação ou que tivesse persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Tão pouco se extrai dos factos apurados que o arguido tivesse refletido sobre o meio (arma de fogo) que empregou, ainda que o tivesse levado consigo, quando foi na viatura com a sua mãe até à residência da vítima, tendo contudo ficado dentro do mesmo veículo, no lugar do pendura, enquanto a sua mãe saiu para ir discutir com a vítima, tendo então ambos (vítima e mãe do arguido) se envolvido em confrontos físicos, sendo nessa altura que o arguido saiu e, já no exterior, vendo a sua mãe a ser agredida pela vítima, é que retirou a arma de fogo da bolsa que trazia a tiracolo e, a curta distância disparou contra a vítima, matando-a.

Do circunstancialismo apurado antes resulta que a resolução criminosa de matar a vítima e a concretização foram quase simultâneas (como, aliás, também foi dito no despacho de pronúncia), o que afasta a reflexão sobre os meios empregues, a premeditação ou o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas e, a forma como atuou, tendo em atenção os momentos que precederam a sua atuação, afastam igualmente a frieza de ânimo.

As ilações e conclusões abstratas e genéricas que a recorrente retira, não encontram apoio nos factos provados e não podem ser atendidas.

Analisando os factos dados como provados e as ilações que deles se podem retirar em termos objetivos é bom de ver que, os mesmos não permitem o preenchimento desta qualificativa, em qualquer das suas vertentes.

Ou seja, não há quaisquer dúvidas que os factos apurados não permitem o preenchimento do exemplo padrão previsto no art. 132.º, n.º 2, al. j) do Código Penal, pelo que nessa parte é manifesto que improcede a argumentação da recorrente/assistente.

Por último, assinala-se (tal como adiantado pelo Sr. PGA) que, nem dos factos dados como provados ressalta a possibilidade de se poder entender que se mostra “verificada a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo art. 132.º, n.º 1, do Código Penal que, como se sabe” (basta ler a jurisprudência e a doutrina, que é abundante e unânime nesta matéria) “não resulta automaticamente do preenchimento das alíneas do n.º 2 do mesmo preceito. Aliás, a assistente repete aqui pedido efetuado anteriormente no processo, quando pediu a abertura de instrução visando, entre o mais, precisamente que fosse entendido como qualificado o crime de homicídio, sem sucesso.”

Daí que se conclua, tal como a 1ª instância, que o arguido cometeu, em autoria material e em concurso efetivo, um crime de homicídio p. e p. no art. 131.º do CP e art. 86.º, n.º 3 do Regime jurídico das Armas e Munições e um crime de detenção de arma proibida p. e p. no art. 86.º, n.º 1, al. c), do RJAM.

Por sua vez, quanto à verificação do crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP, também não assiste razão à recorrente (apesar de não indicar em que factos se apoia para chegar a tal conclusão).

Com efeito, o que resulta dos factos provados, tal como bem descreve o Sr. PGA, é que “sabendo o arguido que havia atentado contra a vida da vítima, fugiu do local, não prestando àquele socorro que evitasse a morte. Ora, se pretendia esse mesmo fim (e por isso foi condenado), nunca se pode, obviamente, entender que estava obrigado a evitá-lo.

Dir-se-á até (tal como o Sr. PGA) que, neste caso concreto, “a pretendida prática do crime de omissão de auxílio é contraditória com a prática do crime de homicídio, pois que importaria exclusão do dolo relativamente a este” e, não propriamente arrependimento como sugere a recorrente.

De resto, nem sequer foram alegados factos na acusação, para a qual remetia a pronúncia, que preenchessem os elementos objetivos e subjetivos do crime de omissão de auxílio (bem se percebendo porquê).

Com efeito, o que resulta dos factos provados é que a vítima, quando desceu de sua casa para ir ter com a mãe do arguido (ponto 3 dos factos provados) fê-lo acompanhado de um amigo e, além disso, após o referido disparo, o arguido iniciou fuga apeada, transportando consigo a arma, enquanto a sua mãe se dirigiu de imediato para o interior do veículo automóvel, abandonando o local a alta velocidade (ponto 6 dos factos provados), sendo que a vítima, já em aflição, deslocou-se em direção da entrada do seu prédio, em cujo interior, após ter subido alguns lanços de escadas, veio a cair inanimado no patamar do 3.º piso, face às lesões graves sofridas (…) (ponto 7 dos factos provados) e, apesar da pronta chegada ao local da ambulância dos Bombeiros Lisbonenses, bem como VMER do Hospital de ..., que após prestarem os cuidados prementes, procederam ao seu transporte para o Hospital, onde deu entrada pelas 22h17 e vindo a falecer pelas 22h45 (ponto 8 dos factos dados como provados), o certo é que também houve outras pessoas que assistiram ao sucedido, como se verifica pela motivação da decisão recorrida (depoimentos das testemunhas HH e EE).

Ou seja, retira-se dos factos apurados que o auxílio à vítima foi prestado de imediato, não se podendo concluir, assim, pelo preenchimento dos pressupostos do crime de omissão de auxílio, que, aliás, nem foram alegados, sendo, por isso, que o arguido não foi acusado por esse crime.

As especulações da recorrente a propósito do possível cometimento desse crime de omissão de auxílio pelo arguido são irrelevantes perante os factos dados como provados, improcedendo, pois, essa argumentação.

11.2. Recurso do arguido

1ª questão (erro na subsunção dos factos ao direito)

Na perspetiva do arguido agiu com intenção de defender a mãe, ainda que com excesso de meios, pelo que lhe deve ser atenuada especialmente a pena, sustentando também a falta de exame crítico de factos que diz ter alegado na contestação, relacionados com essa sua intenção defensiva, o que significa, na sua perspetiva, que o tribunal a quo fez uma incorreta valoração da prova, alegando impugnar amplamente a matéria de facto.

Pois bem.

Como acima já se esclareceu, apesar de o arguido, no seu recurso, referir que impugna amplamente a matéria de facto, o certo é que não deu cumprimento aos ónus previstos no art. 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP, como lhe incumbia, o que significa, que essa mera alegação é inócua e, não se verificando os vícios do art. 410.º, n.º 215, do mesmo código, nem nulidades do conhecimento oficioso, os factos já estão definitivamente fixados.

Mesmo a alegação feita da falta de exame crítico de factos que diz ter alegado na contestação, é errada uma vez que o tribunal da 1ª instância pronunciou-se sobre a contestação na decisão recorrida, inclusivamente, na decisão sobre a matéria de facto, quando fez menção à contestação, consignando “não terem sido alegados factos que devessem ser julgados”.

Isto significa que não há qualquer omissão de pronúncia, nem qualquer suposta nulidade (como refere o Sr. PGA, invocando o art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP), uma vez que o tribunal se pronunciou sobre todas as matérias concretas colocadas pelo recorrente, sobre as quais tinha a obrigação de se pronunciar (não se pode é confundir factos concretos com conclusões, afirmações genéricas, abstratas, desprovidas de conteúdo concreto, como o faz o recorrente).

Aliás, como bem assinala o Sr. PGA, resulta mesmo do acórdão recorrido, que se pronunciou de forma completa sobre tais matérias colocadas pelo arguido na contestação, como se pode ler do seguinte extrato do seu douto Parecer:

“Antes o acórdão acaba por afastar expressamente a existência de qualquer justificação para a prática dos factos pelo arguido, ao referir «ainda que o arguido tenha assistido ao envolvimento físico da sua mãe com a vítima, ocorrência que deve ser atendida quanto aos motivos da acção do arguido, nada ficou demonstrado quanto à necessidade da sua intervenção (muito menos com recurso à arma de fogo que trazia consigo) no sentido de fazer cessar o envolvimento físico, sendo certo que também o arguido decidiu confrontar a vítima, para o que decidiu acompanhar a sua mãe ao local da residência de CC, transportando consigo uma arma de fogo guardada na sua bolsa», sendo que – também expressamente a pronunciando-se, assim, acerca da questão – refere não se verificarem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem faltar qualquer condição de punibilidade.”

Mesmo a alegação na contestação de que teria cometido o crime na forma privilegiada, conforme dispõe o art. 133.º do CPP, desacompanhada de alegação de factos era inconsequente e, como bem refere o Sr. PGA, no seu Parecer, não permitindo ao Coletivo “dar resposta em termos de matéria provada ou não provada”.

Mas, alega o recorrente, socorrendo-se de elementos externos à decisão sob recurso, como seja de partes da decisão instrutória, anteriores ao despacho de pronúncia e de partes do despacho prévio à acusação, que agiu com intenção de defender a mãe, ainda que com excesso de meios, pelo que lhe deve ser atenuada especialmente a pena (ver arts. 32.º e 33.º do CP16).

Porém, não é isso o que resulta dos factos provados e é ao texto da decisão recorrida e à matéria de facto apurada que se pode atender para efetuar os respetivo enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, que até foi por ele confessada integralmente e sem reservas.

Com efeito, para além de não resultar dos factos apurados qualquer vontade de defender a mãe, antes o que efetivamente se provou (ver ponto 11) foi a intenção do arguido causar a morte da vítima, bem sabendo que ao executar o disparo com a arma de fogo em zona do corpo que visou, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, lhe provocaria lesões idóneas a causar a morte, como sucedeu.

Do circunstancialismo fáctico apurado, resultante da confissão integral do arguido, não decorre que tenha agido com animus deffendendi, nem tão pouco que tivesse agido (como se alega na resposta do Ministério Público na 1ª instância) “por perturbação, medo ou susto não censuráveis”.

Ao contrário do que o arguido alega no recurso, nem sequer o JI, nem o MP, concluíram que aquele tivesse atuado em legítima defesa.

De resto, o arguido entra em consideração com factos (designadamente lesões supostamente sofridas pela sua mãe) que não constam dos dados como provados, para fazer a sua construção, de ter agido em legítima defesa, embora com excesso de meios, o que não pode ser.

Tais factos não apurados não podem ser atendidos.

Mesmo tendo-se apurado que, o arguido decidiu intervir, saindo da viatura automóvel, onde estava sentado no lugar de pendura (sendo certo que tinha acompanhado a mãe para o local, área residencial da vítima, levando consigo a referida arma de fogo pronta a disparar, dentro da bolsa que tinha a tiracolo, por motivos relacionados com questões familiares, pretendendo esclarecer, clarificar e/ou desmentir informação veiculada pela vítima relativa à eventualidade da mãe do arguido, à data companheira de um irmão da vítima, ter sido visto na companhia de seu ex-companheiro, circunstância propensa a iniciar conflito familiar entre o casal), quando já no exterior a mãe e a vítima tinham iniciado discussão verbal e inclusive confrontos físicos, daí não resulta que, mesmo apercebendo-se que a mãe estava a ser agredida, quando o arguido resolveu retirar a arma de fogo que trazia consigo e disparou a curta distância, apontando diretamente à figura da vítima, atingindo-o em zona letal, tivesse outra intenção, que não fosse a de matar a vítima.

Aliás, se tivesse a intenção de defender a mãe, atento o motivo pelo qual foram ambos para a área da residência da vítima (motivo que também não é compreensível, pois a melhor atitude do arguido até teria sido convencer a mãe a não ir para o local, nem colocar-se a buzinar daquela forma), nunca o arguido deveria ir armado (com arma de fogo pronta a disparar e matando a vítima de forma como o fez, próximo dele, atingindo-o em zona vital, bem sabendo que assim lhe causava a morte, como causou) e teria atuado de outra forma, tentando separá-los, por exemplo, no que até poderia ser ajudado por outras pessoas que estavam no local.

Como bem diz o Sr. PGA, o que o recorrente arguido pretende é alterar a matéria de facto dada como provada, o que não pode fazer desta forma (tal como a recorrente assistente também não pode alterar a matéria de facto dada como provada no sentido da qualificação do crime de homicídio, invocando erro de direito).

Portanto, nem a factualidade apurada permite deduzir que o arguido agiu em legitima defesa da mãe, nem tão pouco se pode extrair que tenha atuado dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa17.

Assim improcede a argumentação do recorrente quanto ao invocado erro de direito.

12. Medida da pena (recursos da assistente e do arguido)

Como acima se viu, ambos os recorrentes questionam a medida da pena aplicada ao recorrente.

Com efeito, a recorrente assistente entende ser excessivamente benévola a pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, a qual na sua perspetiva deveria ser uma pena não inferior a 3 anos e 6 meses de prisão, tanto mais que o arguido nunca entregou a arma do crime e o perigo mantém-se, devendo ser aplicada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de omissão de auxílio por ter sido ele o causador da situação em que a vítima se encontrava e, em cúmulo jurídico com a pena do crime de homicídio qualificado, que entende ter sido por ele cometido, deve ser-lhe aplicada pena única não inferior a 21 anos e 6 meses de prisão.

Por sua vez, o recorrente arguido considera excessivas as penas individuais e única que lhe foram aplicadas por, na sua perspetiva, terem sido incorretamente valoradas a sua confissão integral e sem reservas, bem como arrependimento e, demais circunstâncias favoráveis, como também por não ter sido aplicado o regime especial para jovens, por estar em condições para dele beneficiar, pugnando pela redução para 5 anos de prisão pelo crime de homicídio e pela redução para 200 dias de multa à taxa diária de 6 euros pelo crime de detenção de arma proibida, sendo em cúmulo jurídico aplicada a pena de 5 anos de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de 6 euros.

Vejamos então.

A este propósito, na fundamentação sobre a escolha e determinação das penas concretas aplicadas ao arguido, escreveu-se na decisão impugnada:

III – MOLDURA PENAL - ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DAS MEDIDAS CONCRETAS DAS PENAS

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora proceder à fixação concreta da medida das penas.

- crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, do RJAM: pena de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses a 21 (vinte um) anos e 4 (quatro) meses de prisão [pena de 8 a 16 anos de prisão agravada em um terço nos limites mínimo e máximo];

- crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM: pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.


***


Do concurso de crimes

Vejamos, agora, em conformidade, aliás, com a posição assumida pelo Ministério Público (confirmada na pronúncia), se o arguido haverá de ser condenado, pela prática, em concurso efectivo (real), de acordo com a peça acusatória (e confirmada na pronúncia).

Perante uma concreta conduta ou uma pluralidade de condutas, podemos estar perante uma situação de:

-concurso efectivo de crimes, que será real, quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções) e, ideal, quando através de uma mesma acção se violam diversas normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção);

-concurso aparente de crimes, onde as leis penais concorrem só na aparência, excluindo umas as outras, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção;

“No âmbito do chamado concurso efectivo de infracções, haverá concurso real sempre que à pluralidade de crimes corresponder uma pluralidade de acções e concurso ideal sempre que a mesma acção viole diferentes tipos (concurso ideal heterogéneo) ou um só tipo de crimes (concurso ideal homogéneo).

Do concurso efectivo de infracções se distingue o concurso aparente ou impuro, em que a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos legais, mas por via da interpretação das normas conclui-se que, por vezes, essa conduta é exclusiva e totalmente absorvida por um só tipo, de modo tal que todos os demais devem ceder.

No concurso aparente de infracções há um feixe de normas legais em convergência, em concordância, de tal modo que em consequência de uma conexão entre elas, a aplicação de uma norma importa a exclusão de aplicação de outra, na observância das regras da especialidade, da consumpção, da subsidiariedade, do facto ulterior não punível, pois os diversos crimes podem mostrar-se conexionados por essas diversificadas relações entre si.

Por força das regras da especialidade um dos tipos aplicáveis - tipo especial - abrange - já elementos essenciais de outro, também abstractamente aplicável - o tipo base -, ao qual, em vista dos interesses a proteger e da sua especialidade, se aditaram elementos suplementares ou especializadores, recriando um novo tipo, mais ajustasdo às circunstâncias do caso, mercê da regra lex specialis derogat legi generali.

A aplicação da regra da consumpção não abdica da consideração de que o preenchimento do tipo mais grave engloba o preenchimento de outro menos grave e, quando tal sucede as disposições legais encontram-se numa posição em que uma consome a protecção legal já conferida por outra, a lei mais ampla, a lex consumens, que é a mais eficaz e a aplicável por força do princípio ne bis in idem, do que a lei menos ampla, a lex consumpta, que não cobra aplicação.

Por aplicação das regras da subsidiariedade certas normas apenas se aplicam quando o facto não é punido por outra mais grave, casos havendo em que essa é mesmo a formulação da acção típica, o ditame legal está enunciado nesses precisos moldes” [sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 2004, in dgsi, Proc. n.º 1795/04 - 3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Rua Dias Pires Salpico Sousa Fonte].

Ora, revertendo aos concretos tipos legais de crimes cometidos pelo arguido, nomeadamente no que aos bens jurídicos protegidos se refere, conforme supra já se referiu, não é coincidente relativamente aos crimes de homicídio e de detenção de arma proibida.

Também não nos é possível concluir, que qualquer uma dessas condutas subsumíveis nos indicados tipos legais de crime fosse um meio (pelo menos necessário) para a concretização de um outro ilícito, que (porventura) o pudesse “absorver”.

“O arguido não foi punido pelo crime de homicídio simples, mas pelo crime de homicídio agravado pelo uso de arma, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006. E também aqui não se pode concluir pela inadmissibilidade do concurso de crimes. Trata-se da punição de condutas distintas — enquanto que a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, pune de forma mais grave uma conduta com uma maior ilicitude sempre que o agente usa na prática do crime uma arma, independentemente de a arma ser proibida ou não, ser legal ou não; no crime de detenção de arma proibida são punidos todos aqueles que detém arma fora das condições legais e independentemente de a arma ser ou não usada na prática do crime” [ac. do STJ, de 30 de Outubro de 2014, Helena Moniz, in dgsi].

Assim, concluímos pela verificação de concurso efectivo (real) quanto aos crimes de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, do Regime Jurídico da Armas e Munições e de detenção de arma proibida p. e p. nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM.


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Do Regime Especial para Jovens

Importa desde logo considerar a circunstância de ser o arguido menor de 21 (vinte um) anos na data da prática dos factos.

Impõe-se, assim, equacionar se lhe é de aplicar o Regime Especial para Jovens, contido no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

Dispõe o artigo 4.º: “Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.”

O Regime Especial para Jovens assenta na ideia de que o jovem delinquente é merecedor de um tratamento penal especializado, não só porque a sua capacidade de ressocialização é mais fácil – por se encontrar no limiar da maturidade – como ainda porque se deve evitar, em princípio, um tratamento estigmatizante.

Todavia, o Regime Especial para Jovens não é de aplicação obrigatória ou automática, nem decorrente apenas da idade.

Foi pensado tendo em vista uma realidade que tem um campo de aplicação privilegiado de aplicação nas situações em que o cometimento do crime constitui um episódio isolado na vida do jovem.

São os critérios de prevenção especial de socialização que devem presidir à decisão de aplicação da atenuação especial da pena de prisão prevista no artigo 4º do Decreto-lei n.º 401/82, de 23 de Setembro a um caso concreto.

Tudo dependerá do juízo que se formular quanto às vantagens da atenuação especial da pena para a reinserção do jovem.

Imprescindível será sempre um juízo de prognose favorável objectivamente fundado no carácter evolutivo e na capacidade de ressocialização do jovem.

Isto é, o Tribunal apenas lançará mão da aplicação do Regime Especial para Jovens, quando esteja convencido de que aquela medida traz reais vantagens para a reintegração social do jovem delinquente – juízo este que não radica num mero subjectivismo, antes devendo assentar em elementos factuais provados que conduzam à conclusão de que a moldura penal comum não cumpre, por excessiva, os fins da socialização do jovem condenado.

“Está hoje perfeitamente adquirida na jurisprudência a ideia de que o poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever, isto é, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o tribunal não pode deixar de investigar se se verificam as sérias razões a que se refere o DL nº 401/82 de 23/09 e se tal acontecer não pode deixar de atenuar especialmente a pena” – [Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 3 de Abril de 2017, Fernando Chaves, in dgsi].

Releva para a aplicação ou não do diploma, o próprio facto criminoso, na medida em que é a revelação do maior ou menor desajustamento do jovem ao acatamento dos valores jurídicos, a inserção do jovem na sociedade, a sua estabilidade familiar e profissional, as suas condições pessoais e económicas bem como a conduta anterior e posterior ao facto praticado.

O acto cometido pelo arguido revela uma absoluta desconsideração pelos valores cujo respeito é imposto a qualquer cidadão, que pretenda viver inserido na sociedade, sendo que o arguido sofreu intervenção por parte do Estado quando jovem devido ao alheamento revelado relativamente à escolaridade obrigatória, sofreu uma anterior condenação, pese embora pela prática de um crime de natureza diferente (“estradal”) e manteve consumo de estupefacientes desde os 15 anos, que apenas terá cessado quando foi sujeito a prisão preventiva, sendo certo, que actualmente se mantém sujeito a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (sendo possível que os tenha retomado).

O facto criminoso praticado revela elevadíssimo desajustamento do arguido quanto ao acatamento dos valores jurídicos protegidos, sendo a própria vida do cidadão, não sendo o meio familiar do arguido revelador de um especial cuidado dos progenitores no que concerne à sua formação pessoal enquanto cidadão, sendo de salientar o comportamento da mãe na data da ocorrência dos factos, tendo o AA optado por abandonar os estudos ainda muito cedo, mantendo um vínculo profissional precário.

Desta feita, não é possível formular um juízo de prognose favorável objectivamente fundado no carácter evolutivo e na capacidade de ressocialização do arguido, motivo pelo qual, decide o Tribunal afastar a aplicação do indicado regime especial para jovens estabelecido no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.


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Escolha da Pena

Como vimos, no que concerne ao crime de detenção de arma proibida está prevista pena alternativa de multa e de prisão.

Decorre do artigo 70.º do Código Penal que o Tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, dependendo a escolha entre a pena de prisão e a alternativa unicamente de considerações de prevenção geral e especial.

Assim, o legislador dá preferência a pena não privativa da liberdade sempre que esta puder realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade.

Perante duas penas principais previstas em alternativa, a primeira operação consistirá na escolha, em determinar qual das duas espécies de penas eleger no caso concreto, após o que competirá proceder à determinação da medida concreta da espécie de pena já escolhida.

A pena não privativa de liberdade só será preferível se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, casos havendo em que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às exigências de prevenção.

Face ao que preceitua o artigo 40.º n.º 1, do código penal, a aplicação das penas e das medidas de segurança, visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Encontram-se assim expressas no referido preceito as finalidades subjacentes à aplicação de sanções de índole penal: fins de prevenção geral e de prevenção especial.

A protecção de bens jurídicos – prevenção geral – traduz-se numa forma de prevenção positiva, com vista a dissuadir o agente da prática de futuros crimes.

A prossecução desse objectivo obtém-se através da criação de expectativas na comunidade, mediante as quais se pretende assegurar o cumprimento do postulado nas normas penais, quer por essa mesma sociedade às quais se dirigem, quer ao nível individual de cada cidadão.

Recordemos a este propósito o Acórdão do STJ de 2-3-94, designadamente onde refere que “Na prevenção geral visa-se proteger as expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da validade da norma infringida e reforçar a consciência jurídica da mesma comunidade”.

Nessa confluência, a prevenção geral actua, não tanto por via da intimidação, mas também e sobretudo por via da integração da norma.

Por seu turno, no que concerne à reintegração do agente na sociedade, - prevenção especial pretende-se através da aplicação de sanções penais, que o mesmo se sinta actuarem sobre si e se sinta motivado a repensar, a reajustar o seu comportamento às exigências da vida em sociedade.

Os fins de prevenção especial pressupõem por isso a vertente intimidativa da consciência da seriedade da ameaça penal.

Revertendo ao caso dos presentes autos, no concerne ao crime com penas alternativas, temos por muito elevadas as exigências de prevenção geral, impondo-se criar na comunidade a expectativa de um sério e efectivo controlo das condutas, com a consequente punição das mesmas.

Na verdade, tem-se verificado um aumento inusitado na detenção (e utilização) de armas de fogo, com conhecimento da sociedade em geral, adquirido através da divulgação nos meios de comunicação social, nomeadamente reportagens televisivas, onde é dado a conhecer ao cidadão comum, por exemplo, que também eles podem ser baleados quando se encontram no interior de centros comerciais ou em momentos de lazer nas praias da área metropolitana de Lisboa.

Impõe-se ao Tribunal concluir que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às referidas exigências de prevenção, pelo que teremos que optar por uma pena de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida.


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Determinação da medida concreta das penas

Nos termos do artigo 71º n.º 3, do Código Penal, “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

No mesmo sentido, o n.º 1, do artigo 375º do CPP prevê que “a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidem à escolha e à medida da sanção aplicada”.

No que concerne à determinação da medida das penas concretamente a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no art. 71.º/1 do Código Penal, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Assim, constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (art.40.º/2 do Código Penal), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial.

No mais, a medida da pena, além de determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e especial, deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele, devendo o Tribunal atender, nomeadamente, ao grau de ilicitude do facto, à culpa do agente, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas.

Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, verificamos que:

- são muito elevadas as necessidades de prevenção geral que os crimes cometidos revelam, considerando desde logo que a norma incriminadora violada pelo arguido (homicídio) consagra e protege o bem supremo e mais valioso – vida humana, valor que para além da protecção legal assume dignidade constitucional.

A preocupação e a apreensão do cidadão comum, quanto à mera detenção e quanto aos crimes cometidos com recurso a armas em plena via pública, marcam a expectativa da comunidade na reafirmação das normas violadas.

- temos por moderadas (e não reduzidas) as necessidades de prevenção especial, uma vez que apesar de o arguido “apenas” apresentar um antecedente criminal registado pela prática de crime estradal, ainda é jovem (não tendo tempo de vida suficiente para apresentar um vasto CRC, para além de lhe ser imposto, como a qualquer cidadão, que não cometa crimes), o seu comportamento revela uma grande facilidade no cometimento do crime com moldura penal mais elevada, não beneficia de especial inserção familiar e profissional, tendo-se dedicado, ainda muito jovem ao consumo de estupefacientes, desligando-se da actividade escolar, tendo já sido sujeito à intervenção tutelar educativa do Estado;

- o grau de ilicitude dos factos é muito elevado tendo em conta o bem jurídico tutelado quanto ao crime de homicídio, neste tipo de crime e os concretos actos praticados sobre o corpo do ofendido;

- a intensidade do dolo é, no caso, como se viu, na modalidade de dolo directo, e, como tal, de alta intensidade, por ser a forma mais gravosa do dolo e a que representa maior desvalor, não podendo o Tribunal deixar de relevar quão certeiro foi o disparo do arguido, que com uma arma da calibre .22 (reduzido calibre) provocou a morte de CC;

- ainda que o arguido tenha assistido ao envolvimento físico da sua mãe com a vítima, ocorrência que deve ser atendida quanto aos motivos da acção do arguido, nada ficou demonstrado quanto à necessidade da sua intervenção (muito menos com recurso à arma de fogo que trazia consigo) no sentido de fazer cessar o envolvimento físico, sendo certo que também o arguido decidiu confrontar a vítima, para o que decidiu acompanhar a sua mãe ao local da residência de CC, transportando consigo uma arma de fogo guardada na sua bolsa;

- o modo de cometimento do crime impõe forte censura, considerando que o arguido se deslocou, acompanhado da sua mãe, à área de residência da vítima, tendo-o baleado, provocando-lhe assim a morte, na presença de vizinhos e familiares, não revelando qualquer preocupação pelo sofrimento que lhes iria também provocar;

- não podemos deixar de assinalar, que o arguido tomou a decisão de acompanhar a sua mãe para confrontar a vítima, a propósito de um “diz que disse”, que poderia e deveria ter sido resolvido de forma certamente diferente daquela pela qual o arguido optou, ou seja, deslocar-se à área de residência daquele que pretendia confrontar, trazendo consigo uma arma de fogo;

- ainda que a declaração confessória integral e sem reservas do arguido tenha sido atendida, não lhe foi conferida especial relevância, tanto que foi possível ao Tribunal apurar na inquirição das testemunhas do pedido de indemnização cível terem sido várias as testemunhas presenciais da sua actuação (o que era necessariamente do conhecimento do arguido), pelo que dificilmente teria ficado por apurar a autoria dos factos que levaram à morte de CC;

- no entanto, a assunção da autoria dos factos, contribuiu para um julgamento célere, tendo o arguido revelado alguma interiorização do desvalor da sua conduta, quando expressou o seu propósito de apresentar um pedido de desculpa aos familiares da vítima;

- mantém uma ocupação profissional, ainda que inserido em negócio familiar, ainda é jovem e não tem antecedentes criminais registados pela prática de crimes de idêntica natureza (tendo, no entanto sido sujeito a medida tutelar e sofrido anterior condenação criminal);

Tudo ponderado, devendo a pena ser fixada em termos que constitua uma verdadeira sanção, visando a protecção dos bens jurídicos violados e a reintegração dos agentes na sociedade, o Tribunal decide condenar o arguido AA:

- na pena de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, do Regime Jurídico da Armas e Munições;

- na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 1 (um) detenção de arma proibida p. e p. nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM.


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Pena Única

Nos termos do artigo 77º, n.º 1, do Código Penal “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, n.º 2, do Código Penal).

Tendo em conta o supra exposto, encontramos com facilidade a pena abstracta dentro da qual se situará a pena única aplicável ao arguido, sendo entre 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses e 17 (dezassete) anos de prisão.

A fixação da pena conjunta pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto – não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto facto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, ponderando os factos por si cometidos e a sua personalidade.

“Estabelece o art. 77.º, n.º 1, do CP que o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o n.º 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.

Optou o legislador penal, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que impôs a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, sem determinação prévia das penas referentes a cada infração)” [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Maio de 2019, Maia Costa, in dgsi].

No momento da fixação da pena conjunta, a proporcionalidade e a proibição do excesso (evidente no recurso ao cúmulo material), deverá o Tribunal recorrer à ponderação entre a gravidade do comportamento ou atividade global (do concurso de crimes), as caraterísticas da personalidade do arguido e a gravidade da medida da pena conjunta no ordenamento punitivo.

Segundo J. Figueiredo Dias, na escolha da medida da pena única “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” [“Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime”, Coimbra Editora, 3ª reimpressão, pág. 291-292, § 421].

Revertendo à situação dos autos, verificamos que os factos subsumíveis nas normas incriminadoras foram praticados numa mesma ocasião.

Assim, em face do que se deixou acima consignado, e perante o juízo de aferição das medidas concretas das penas a aplicar ao arguido já explicitado, nunca descurando as elevadíssimas exigências de prevenção geral, o Tribunal Colectivo julga justa adequada e proporcional, satisfazendo as finalidades da punição, a condenação do arguido AA na pena única de 15 (quinze) anos de prisão, pela prática, em concurso real (efectivo), de 1 (um) crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e 86.º n.º 3, do Regime Jurídico da Armas e Munições e de 1 (um) detenção de arma proibida p. e p. nos termos do artigo 86.º, nº1 al. c) do RJAM.


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Analisemos então a decisão da 1ª instância, quanto à medida da pena, tendo em atenção que as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade18.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida19.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias20, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente21, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor22 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Depois, sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum (caso seja aplicada pena de prisão até 5 anos) impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.

Com efeito, as penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)”23.

Como diz Jorge de Figueiredo Dias, as penas de substituição radicam “tanto histórica como teleologicamente, no (…) movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas de liberdade”24.

Feitas estas considerações teóricas, vejamos então este caso concreto.

Analisando a decisão sob recurso no que respeita à fundamentação da referida pena aplicada ao arguido, verificamos que o tribunal da 1ª instância ponderou, como lhe competia, se o recorrente devia ou não beneficiar do regime estabelecido no DL n.º 401/82, de 23.09, atenta a sua idade (nasceu em ........2002) à data dos factos (.../05/2022), uma vez que tinha então 20 anos de idade, mormente se deveria beneficiar da atenuação especial prevista no seu artigo 4.º, concluindo, pelos motivos que indicou, negativamente e, igualmente fundamentou, de modo concreto, o quantum da pena de prisão imposta, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele (art. 71.º, n.º 2, do CP).

No essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pelo Tribunal Coletivo, quer quanto à não aplicação do disposto no art. 4.º do DL n.º 401/82 (funcionando a jovem idade do arguido como atenuante geral), quer quanto às considerações que teceu relativamente à determinação da medida concreta das penas individuais e única aplicadas.

Assim.

Como sabido, o regime especial contido no DL n.º 401/82, de 23.9 (cf. ainda art. 9.º, do CP), visa criar um maior leque de alternativas à aplicação de penas de prisão a jovens que tiverem, à data da prática do crime (art. 1.º, n.º 2, do cit. DL n.º 401/82), entre 16 e 21 anos de idade (sem terem ainda atingido os 21 anos), salvo se se tratar de jovens penalmente inimputáveis em virtude de anomalia psíquica (cf. n.º 3 do mesmo artigo 1.º).

Trata-se de uma opção político-criminal que se fundamenta essencialmente no entendimento de que a delinquência juvenil (quanto a jovens imputáveis), merece um tratamento diferenciado e especial em relação ao regime penal para adultos, por envolver um ciclo de vida «correspondendo a uma “fase de latência social que faz da criminalidade um fenómeno efémero e transitório”»25.

A ponderação do regime de atenuação especial previsto no art. 4.º do citado DL n.º 401/82 é obrigatória, “se for aplicável pena de prisão”, constituindo um poder-dever vinculado que impõe ao juiz, oficiosamente, o dever de usar esse regime, se verificados os respetivos pressupostos.

Para tanto, exige-se ao tribunal que realize um juízo de prognose, assente em factos, suficientemente densificados, no sentido de apurar se havia ou não “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” – o que, igualmente, significa, que essa apreciação é feita perante cada caso concreto, não sendo de aplicação automática26.

E, quando se diz que não é de aplicação automática, isto significa que não basta que à data dos factos o arguido tivesse idade compreendida entre 16 e 21 anos para que de imediato e de forma obrigatória se aplicasse a atenuação especial prevista no art. 4.º do citado DL n.º 401/82.

No juízo de prognose a efetuar, para apurar se existem ou não “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social”, impõe-se ponderar, numa avaliação global dos factos apurados, a natureza e modo de execução do crime, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como condições de vida, de forma a averiguar se a moldura da pena de prisão do crime por si cometido é ou não excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado27 (não esquecendo que, só havendo vantagens de reinserção mas, sem prejuízo da defesa do ordenamento jurídico, é que se justifica a referida atenuação especial).

No caso dos autos, a natureza e modo de execução dos crimes em questão (homicídio simples e detenção de arma proibida), cometidos nas circunstâncias dadas como provadas, são graves, como foi salientado pelo Coletivo.

A personalidade do arguido também não deixa de ser reveladora de uma forma de estar na vida, que precisa de se autodisciplinar, pois, não se compreende, como é que depois, de adotar uma conduta tão grave como a descrita nos factos dados como provados, logo a seguir foge, sem se entregar à polícia, e ainda se desfaz da arma com que matou o irmão do companheiro da mãe (o que revela também uma certa adequação aos factos).

A circunstância do arguido ser um jovem de 20 anos de idade à data dos factos é de pouco relevo, mesmo considerando que o antecedente criminal que tinha (condenação de 6.04.2022, transitada em 7.06.2022, em multa por condução sem carta) não se relacionava com os crimes aqui em apreciação, mas revelando uma personalidade avessa ao direito, que até já se evidenciava de idade mais jovem, uma vez que já havia sido sujeito a uma intervenção tutelar educativa, sendo que estes factos que cometeu, em análise nestes autos, seguidos de fuga, são demonstrativos de uma personalidade desajustada às regras sociais e aos valores da comunidade.

Apesar do seu comportamento posterior mostrar ter sofrido alguma evolução positiva, a verdade é que (tal como se provou) ainda apresenta défices comportamentais e emocionais, particularmente em situações de tensão/conflito, com tendência para atuar de forma pouco assertiva e sem antecipar as consequências dos seus atos, revelando ainda dificuldades de descentração e de resolução de problemas de natureza conflitual, além de falta de sentido crítico, uma vez que apresenta dificuldades de tolerância à frustração e ainda tendencialmente uma atribuição causal externa.

Dos factos dados como provados, mesmo considerando os relativos às suas condições de vida não resulta, nem pode extrair-se que, na altura em que cometeu o referido crime, estivesse a atravessar uma fase difícil da sua vida, uma vez que, então, tinha condições para levar uma vida conforme ao direito, tinha apoio dos pais, vivia sozinho e já desde os 18 anos beneficiava do apoio do progenitor e da madrasta, na loja que estes exploravam, ali também fazendo trabalhos.

Ou seja, o facto de o arguido gozar de apoio familiar nos termos dados como provados em nada altera a apreciação feita pelo Coletivo, tanto mais que essa situação já existia antes de cometer o crime aqui em apreço, não tendo constituído motivo para o levar a não cometer o crime em questão nos autos.

Além disso, as dificuldades pelas quais passou na fase de crescimento (tal como muitos outros cidadãos) não o impediam de ter escolhido uma vida conforme ao direito.

Por outro lado, o que se apurou da personalidade do arguido/recorrente (que se pode extrair dos factos dados como provados) mostra que há razões sérias para concluir que se deve afastar a atenuação especial por esta não trazer vantagens para a sua reinserção social.

E, se é certo que o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos dados como provados, a verdade é que a relevância dessa confissão não é superior àquela que foi conferida pelo Coletivo, sendo de notar que, se tal não tivesse acontecido, havia prova testemunhal presencial, como se pode perceber pela motivação da decisão sob recurso, o que mostra que o posicionamento do arguido em relação aos factos em julgamento, também teve a vantagem de o tornar mais rápido.

Igualmente não se pode esquecer que o arrependimento referido nos factos provados foi apenas verbalizado e nem sequer concretizado, cingindo-se a um pedido de desculpa aos familiares da vítima, num caso de homicídio como este, o que pouco relevo tem.

O comportamento processual do arguido, desde que está sujeito à OPHCVE, é o que é de esperar a quem está sujeito a tal medida de coação e não a quer ver alterada por incumprimento.

Considerando a imagem global dos factos dados como provados e a personalidade do arguido, não se pode deduzir que a prática dos crimes em questão traduzam um desvio transitório e ocasional (próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil), o que mostra ser inviável formular um juízo de prognose favorável à atenuação especial, não se podendo desprezar a própria necessidade de defesa do ordenamento jurídico.

Conclui-se, pois, que não se verificam os pressupostos que justifiquem a aplicação ao arguido da atenuação especial prevista no art. 4.º do citado DL n.º 401/82.

No que se relaciona com o crime de detenção de arma proibida, que prevê em abstrato penas alternativas de prisão ou de multa, concordamos com as considerações feitas pela 1ª instância quando optou pela moldura abstrata da pena de prisão.

Aliás, nem se compreende como é que um jovem, à data dos factos com 20 anos de idade, tem em seu poder uma arma de fogo municiada e pronta a disparar, como aquela que lhe permitiu matar o irmão do companheiro da mãe, nas circunstâncias dadas como provadas.

De resto, tal como o fez o Coletivo, havia que considerar que o arguido/recorrente agiu com dolo (direto) e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada.

A ilicitude dos factos apurados é elevada, atento o seu modo de atuação e motivos que o determinaram, apesar da sua jovem idade (tinha 20 anos), que de qualquer modo, impunha que atuasse com sentido de responsabilidade, sendo de elevada gravidade as consequências da sua conduta (provocou a morte do ofendido).

A forma como atuou em relação aos crimes cometidos é grave, revelando uma maior desatenção à advertência de conformação ao direito.

Também se pondera os motivos que o determinaram que, porém, não justificam a sua atuação.

São elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade das normas violadas), tendo em atenção os bens jurídicos violados (a “vida” no crime de homicídio e a “proteção da segurança da comunidade, face aos riscos da livre circulação e detenção de armas” no crime de detenção de arma proibida), que devem ser combatidos com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causam e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

São igualmente acentuadas as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente, notando-se no conjunto que tem uma personalidade adequada aos factos que cometeu e avessa ao direito, considerando o seu comportamento anterior aos factos, não se podendo deixar de ponderar igualmente o comportamento posterior.

Embora tendo como limite a medida da sua culpa, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes é essencial.

Ora, o tipo de crimes cometidos revelam bem as carências de socialização do recorrente, apesar de se ter em atenção o que se apurou em relação às suas condições pessoais e situação económica que, apesar de tudo (e, por outro lado), revelam alguma sensibilidade positiva à pena a aplicar, com reflexo favorável no juízo de prognose sobre a necessidade e a probabilidade da sua reinserção social.

Igualmente se atenderá à respetiva idade, quer à data do cometimento do crime, quer à data em que foi proferida a decisão da 1ª instância, ao tempo entretanto decorrido e, ao efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro, notando-se alguma evolução positiva, sendo certo que ainda é um jovem.

A seu favor haverá que ponderar que confessou os factos integralmente e sem reservas, mas não se podendo atribuir maior relevância do que a atribuída pela 1ª instância, pelos motivos indicados, sendo certo, igualmente, que a verbalização do arrependimento, assume algum relevo quanto ao desvalor da sua conduta, como referiu a 1ª instância, mas não superior à que foi conferida (ao contrário do pretendido pelo arguido recorrente, sem qualquer razão).

Acrescente-se que não praticou atos de arrependimento ativo, para que pudesse ser atribuído diferente valor à sua atitude em relação ao conjunto dos factos ilícitos que cometeu.

Portanto, a 1ª instância ponderou adequadamente todas as circunstâncias favoráveis ao arguido, sendo que a avaliação que este faz das suas declarações e propósitos, de forma interessada, dando-lhe outro peso e relevo em sede de recurso, para beneficiar de maior atenuação, não relevam por serem desajustadas.

Ou seja, o que se passa é que o facto de o tribunal não dar a mesma relevância que o arguido pretendia quanto às circunstâncias que se apuraram, não significa que tivesse feito uma avaliação errada ou incorreta.

O que se passou é que o arguido/recorrente parte de pressupostos errados, inclusive de factos não apurados e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente e de forma subjetiva, portanto, sem razão.

Assim, ao contrário do que alega o recorrente, todas as circunstâncias apuradas, inclusive as que lhe eram favoráveis foram devidamente ponderadas pela 1ª instância, tendo em atenção o conjunto dos factos dados como provados e a sua personalidade, sendo-lhes atribuído o valor adequado e ajustado, não merecendo censura a avaliação que deles foi feita na decisão sob recurso.

Atenta a sua idade e crimes cometidos, podemos afirmar que há uma adequação da sua personalidade aos factos cometidos, manifestada na indiferença que revelou pelos bens jurídicos violados, revelando ainda pouco sentido crítico.

Considerando todas essas circunstâncias, igualmente não transparece que estejamos perante qualquer caso especial que justifique a atenuação especial da pena (cf. art. 72.º do CP) em relação ao recorrente.

Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, «as situações a que se referem as diversas alíneas do nº 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena»28.

E, não é esse o caso dos autos (sendo de afastar qualquer atenuação especial da pena), como facilmente se alcança das considerações acima efetuadas, tendo presente os factos dados como provados, o que também revela a inadequação da aplicação de penas inferiores às aplicadas pela 1ª instância (como pretendia o recorrente).

Assim, tudo ponderado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido/recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julgam-se adequadas e ajustadas as penas aplicadas pela 1ª instância, de 14 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio p. e p. no art. 131.º do CP e art. 86.º, n.º 3 do Regime jurídico das Armas e Munições e de 2 anos e 6 meses de prisão por um crime de detenção de arma proibida p. e p. no art. 86.º, n.º 1, al. c), do RJAM.

Como é evidente decai o pedido da recorrente assistente quanto ao agravamento da pena pelo crime de detenção de arma proibida, bem como os demais pedidos de aplicação de penas pelos crimes que ficaram por demonstrar (homicídio qualificado e omissão de auxílio).

Impõe-se, agora, a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas, nos termos do art. 77.º do CP revisto.

O art. 77.º, n.º 1, do CP, sobre as regras de punição do concurso, estabelece um regime especial de punição, que consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, “na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

A justificação para este regime especial de punição radica nas finalidades da pena, exigindo uma ponderação da culpa e das razões de prevenção (prevenção geral positiva e prevenção especial), no conjunto dos factos incluídos no concurso, tendo presente a personalidade do agente29.

Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou (a pena única é o resultado da aplicação dos “critérios especiais” estabelecidos no mesmo art. 77.º, n.º 2, não esquecendo, ainda, os “critérios gerais” do art. 71.º do CP30).

Neste caso concreto, a pena aplicável (a moldura abstrata do concurso de penas) tem como limite máximo 17 anos de prisão que corresponde à soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso e como limite mínimo 14 anos e 6 meses de prisão que corresponde à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos mesmos crimes em concurso.

Ora, como acima se disse, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, para se determinar a pena única a aplicar.

E, neste caso, ainda que o Coletivo tenha sido parco na sua fundamentação (exigindo-se que de futuro melhore as suas decisões nesse aspeto, justificando de forma mais esclarecedora a pena única que vier a aplicar, ainda que minimamente a tivesse fundamentado) havia que considerar, como referiu, “os factos na globalidade”, que neste caso ocorreram na mesma ocasião, o modo de execução global muito grave, revelador da personalidade avessa ao direito, não se podendo esquecer, relativamente ao ilícito global, as elevadas exigências de prevenção geral (para reafirmar, perante a comunidade, a validade das normas violadas) e sendo acentuadas as razões de prevenção especial (considerando todo o percurso de vida, apesar das oportunidades que teve, como qualquer cidadão, mas que desaproveitou, notando-se, contudo, após os factos, uma evolução positiva).

Do circunstancialismo apurado na sua globalidade, considerando o comportamento posterior do arguido, de onde resulta que está a evoluir positivamente, pode deduzir-se que existe da sua parte alguma sensibilidade positiva à pena única a aplicar, com reflexo favorável no juízo de prognose sobre a necessidade e a probabilidade da sua reinserção social.

De qualquer forma, será o arguido que, com a sua postura, deverá assumir o compromisso de contribuir seriamente e de forma responsável para a sua auto-ressocialização.

Todavia (ao contrário do que alega o recorrente) não se vê que haja razões para reduzir a pena única que lhe foi imposta, considerando as suas carências de socialização e tendo presente o efeito previsível da mesma pena única aplicada sobre o seu comportamento futuro, a qual não é impeditiva da sua ressocialização, quando chegar o momento próprio, sendo conveniente e útil que que vá interiorizando o desvalor da sua conduta, adote uma postura socialmente aceite e cumpra as regras da comunidade (o que, por certo, se tal se justificar, só o beneficiará no futuro).

Da consideração global de todos os factos apurados e da personalidade do arguido não se extrai que se possa formular um juízo mais favorável ou que se justifique efetuar qualquer correção e, por isso, se conclui que não é caso de reduzir a pena única de 15 anos de prisão que lhe foi aplicada na 1ª instância.

Na perspetiva do direito penal preventivo, julga-se na medida justa, sendo adequado e proporcionado manter a pena única de 15 (quinze) anos de prisão para o arguido/recorrente aplicada pela 1ª instância (que não ultrapassa a respetiva medida da culpa, que é elevada), assim se contribuindo para a sua futura reintegração social e satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida (pelo arguido) redução da sua pena única mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena única inferior à imposta pela 1ª instância.

Logicamente que era perfeitamente desajustada e desproporcionada a aplicação de pena mais gravosa, como pretendia a recorrente assistente, sem qualquer fundamentação relevante e, para além do mais, tendo em atenção tudo o que acima se expôs.

Em conclusão: improcedem os recursos, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pelos recorrentes.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento aos recursos, quer da assistente DD, quer do arguido AA.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 8 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 21.02.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Ana Barata de Brito (Adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)


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1. Transcrição sem negritos nem sublinhados.

2. Transcrição, sem negritos, nem sublinhados.

3. Transcrição sem alguns dos negritos e sublinhados.

4. Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.

5. Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005, proferido no processo nº 2122/05, relatado por Henriques Gaspar (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais).

6. Ibidem.

7. O único facto que foi objeto de esclarecimento foi o constante do ponto 5 dado como provado, quanto à especificação do projétil recolhido em sede de autópsia, como foi elucidado no acórdão impugnado, o que não chega sequer a preencher uma alteração não substancial de factos, que carecesse de comunicação a efetuar nos termos do art. 358.º do CPP.

8. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 345.

9. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 351.

10. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ob. cit., p. 345.

11. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 352.

12. Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 37 e 38.

13. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 39.

14. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ob. cit., p. 346.

15. Por outro lado, tendo o arguido confessado integralmente os factos objeto do julgamento, que eram os da pronúncia, que remetia para os da acusação, é inconsequente a alegação de haver errada valoração da prova.

16. Artigo 32.º (Legítima defesa) do CP

  Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

  Artigo 33.º (Excesso de legítima defesa) do CP

  1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.

  2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.

17. Dispõe o artigo 133º (homicídio privilegiado) do CP:

  Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

  São estados ou motivos que podem levar ao privilegiamento do crime de homicídio, a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero ou motivo de relevante valor social ou moral.

  No entanto, a simples verificação de um (ou mais) qualquer desses estados ou motivos não é bastante para, por si e de forma automática, se concluir pelo preenchimento do crime de homicídio privilegiado; a lei exige que o agente atue dominado por aqueles estados ou motivos e que essa atuação diminua sensivelmente a culpa do agente. Explica Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora Limitada, 1999, p. 48: «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos.»

18. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

19. Neste sentido, v.g. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Noticias, 1993, p.198.

20. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

21. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

22. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.

23. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 91.

24. Ibidem.

25. Assim, entre outros, Ac. do STJ de 11/06/2003, proferido no processo nº 03P1657 (relatado por Henriques Gaspar), consultado no site www.dgsi.pt.

26. A este propósito ver, entre outros, Ac. do STJ de 7/12/2006, proferido no proc. nº 06P4077 (relatado por Pereira Madeira), de 14/06/2006, proferido no proc. nº 06P2037 (relatado por Simas Santos), de 3/03/2005, proferido no proc. nº 04P4706 (relatado por Henriques Gaspar), de 14/10/2003, proferido no proc. nº 04P218 (relatado por Pereira Madeira), todos consultados no mesmo site.

27. Neste sentido, ac. STJ de 6/05/2021, proferido no proc. nº 793/19.1S7LSB.S1 (relatado por Helena Moniz), consultado no mesmo site.

28. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 302.

29. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Editorial Verbo, 1999, p. 167 e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p. 291. Acrescenta este último Autor que “tudo se deve passar como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só, a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

30. Ver Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 291.