Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
966/14.3JAPRT-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
CONDENAÇÃO
METADADOS
DADOS DE LOCALIZAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
PROVA PROIBIDA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Nos termos da al. f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando seja declarada, pelo Tribunal Constitucional («TC»), a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

II. Fundamento do recurso não é, neste caso, a inconstitucionalidade de norma aplicada no processo que conduziu à condenação, a qual encontra nesse processo o seu espaço e sede de discussão, com esgotamento dos recursos ordinários, sempre admissíveis (artigo 399.º do CPP), pressuposto de admissibilidade de recurso para o TC, em conformidade com o modelo de fiscalização de constitucionalidade instituído pela Constituição e desenvolvido na Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.

III. Sem nunca o convocar, o recorrente invoca motivos que levaram o TC a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 268/2022 de 19.04.2022, de normas dos artigos 4.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, por alegada recondução à previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, isoladamente e em conexão com a alínea e) do mesmo preceito, por daí pretensamente resultar condenação também com fundamento em «prova proibida» (artigos 125.º e 126.º do CPP).

IV. Mesmo que se pudesse argumentar que os dados que conduziram à condenação se podem identificar com dados especificados nos artigos 4.º da Lei n.º 32/2008, a utilização desses dados estaria protegida pela exceção do caso julgado, pois que o TC não declarou que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se estendem ao caso julgado, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º da Constituição, sendo que, não tendo as normas declaradas inconstitucionais natureza penal, integrando a ratio decidendi do acórdão condenatório, não se tornaria possível proceder a tal extensão.

V. Não pode proceder a alegação de que a condenação se fundou em «prova proibida» – melhor dito, na «descoberta», posterior à condenação, de que «serviram de fundamento» a esta «provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º», como exigido pela al. e) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP –, no pressuposto de que seria resultado da declaração da inconstitucionalidade, suscetível de constituir fundamento autónomo da revisão, que, no entanto, não vem invocado.

VI. O alegado fundamento da condenação com base em «prova proibida», que não ocorreu, só poderia questionar-se na presença de uma violação, pelas autoridades judiciárias, das regras relativas à aquisição de prova (artigo 126.º, n.º 3, do CPP), quando da sua efetivação, posteriormente descoberta, que também se não verificou.

VII. Não havendo e sendo manifesta a falta de fundamento, é negada a revisão, com aplicação da sanção a que se refere a parte final do artigo 456.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso extraordinário de revisão do acórdão de 10/01/2018, proferido no processo n.º 966/14.3JAPRT do Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, com as alterações constantes do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/02/2019, transitado em julgado em 13/03/2019, pelo qual foi condenado numa pena única de 8 anos de prisão, pela prática de crimes de abuso sexual de criança, pornografia agravada, atos sexuais com adolescente e coação agravada na forma tentada.

2. Fundamentando o recurso na alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal («CPP»), conclui a motivação dizendo (transcrição):

«1.É correcto afirmar que as informações recolhidas quer na empresa que gere a rede social “Facebook”, quer a informação recolhida na Vodafone, os dados solicitados pelo Ministério Publico, correspondem a “dados” na acepção do artigo 1/1/a da Lei 32/2008 (aqui se entendendo por dados, os dados de trafego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou utilizador, e através deste se promoveu o acesso aos dados de conteúdo), e como tal, estão incluídos nas categorias de dados a conservar previstas no artigo 4º da L. 32/2008.

2. Sem que após, ou in minime quando tal não fosse susceptível de comprometer as investigações, fosse o ora Recorrente notificado que os dados conservados pela sua operadora de telecomunicações foram acedidos pela entidade que promoveu a investigação criminal.

3. O mesmo tendo sucedido na fase de julgamento dos presentes autos.

4.O acto e a omissão que atrás descrevemos configura verdadeira violação do princípio do direito à reserva da intimidade e vida privada e familiar, bem como os princípios da proporcionalidade, do sigilo das comunicações e tutela jurisdicional efetiva;

5. Pelo que o seu cometimento (omissão de comunicação de acesso aos dados conservados pela operadora de telecomunicações), configura a violação do disposto no nº 1 do artigo 35º e do n.º 1 do artigo 20º em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição da República Portuguesa;

6. Em face do que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo e ora posta em crise enferma de nulidade, por violação das normas constitucionais descritas supra, mormente de inconstitucionalidade;

7. Devendo a mesma, por consequência, ser integralmente revogada e substituída por outra que determine a absolvição da ora Recorrente;

8. Ou in minimie a prolação de decisão que determine a anulação de todos os atos subsequentes à omissão verificada (não notificação do acesso aos dados conservados pela fornecedora de telecomunicações à autoridade de investigação criminal).

Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de revisão ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser proferida decisão que determine a anulação da decisão proferida pelo Tribunal a quo com a subsequente absolvição do Recorrente; ou caso assim não se entenda, a anulação de todos os atos praticados, após a omissão do dever de comunicar ao Recorrente o acesso aos dados do Facebook e Vodafone.»

3. Respondeu o Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, convocando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e dizendo, no sentido da improcedência do recurso (transcrição):

«Atenta a argumentação (…) expendida importa chamar à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 3 de Junho de 2022, que apresenta a seguinte decisão: [transcrição]

Antes de mais, e como primeiro argumento consideramos ser de ter em atenção o teor do art.º 282 da Constituição da República Portuguesa onde no seu n.º 1 se pode ler que “A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.”.

E no seu n.º 3 estabelece que “Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”.

Ora, não se descortina daquele Douto Acórdão que aí tenha sido tomada decisão em contrário por parte do Tribunal Constitucional nos termos daquele n.º 3, razão pela qual, na nossa modesta opinião, se encontram ressalvados os casos julgados, tendo o Acórdão, nesta sede proferido, já transitado em julgado.

Todavia, e ainda que assim se não entenda sempre se dirá que não cremos que assista razão ao recorrente.

De facto, e como segundo argumento cumpre invocar que os elementos de prova recolhidos (NUIPC 283/14.3..., apenso aos presentes autos, a que se reportam os pedidos em causa), a que o recorrente alude e que permitiram a fixação da matéria de facto a si atinente, referenciada na peça recursiva, não padecem de qualquer vício.

Aqueles, identificação do IP e identificação do titular do mesmo, foram solicitados pelo Ministério Público ao abrigo do preceituado na Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, cfr. resulta de fls. 114 e 117 e de fls. 135 e 136.

Não foram solicitados ao abrigo da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho.

O Douto Acórdão do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória e geral, do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição e da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Não incidiu este, nem declarou qualquer inconstitucionalidade relativamente aos preceitos legais que fundamentaram os pedidos de tais informações no âmbito dos presentes autos.

Ademais, importa ter em consideração o que se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Processo n.º 390/16.3 TELSB-A.S1 in Internet www.dgsi.pt “:

I - O STJ tem decidido que os dados identificativos do titular de IP assumem um caráter permanente, que resultam dos elementos contratuais celebrados pelo cliente com a fornecedora de serviço de telecomunicações, pelo que nada têm que ver com dados relativos às comunicações eletrónicas em si mesmo consideradas.

Não respeitando estes dados a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17-07, mas a elementos contratuais com carácter permanente que podem ser obtidos independentemente de qualquer comunicação, a sua obtenção pelas autoridades judiciárias cai fora do âmbito deste diploma e da declaração de inconstitucionalidade do acórdão do Tribunal Constitucional.

II - Com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17-07, a conservação e armazenamento de dados de base, designadamente, de dados de subscritor do IP pelos fornecedores de serviço, não passou a ser proibida.

III - A Lei n.º 41/2004, que permite, além do mais, a conservação de dados de identificação dos clientes das operadoras de telecomunicações, não foi abrangida pela declaração de inconstitucionalidade do acórdão do TC n.º 268/2022.

IV - Também a Lei n.º 109/2009, de 15-09, que embora não regule a conservação de dados, regula a sua obtenção, não foi objeto de declaração de inconstitucionalidade pelo acórdão do TC n.º 268/2022.

V - O art. 14.º da Lei do Cibercrime, permite a obtenção, pelas autoridades judiciárias, dos dados de subscritor e de acesso, elencados nas diferentes alíneas do n.º 4, incluindo o IP, para prova de todos os crimes incluídos na previsão do art. 11.º, n.º 1, ou seja, dos crimes previstos na Lei do Cibercrime, dos cometidos por meio de um sistema informático ou, em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico.

VI - Estando em causa a investigação de um crime de pornografia de menores, cometido por meio de um sistema informático e em relação ao qual se mostrava necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, podia a autoridade judiciária, ao abrigo do art.14.º daquele diploma, requerer, como requereu, à fornecedora de serviço, a identificação do subscritor do IP, para prova do crime pela pessoa visada.”.

Deste modo, não padecendo os elementos de prova em causa de qualquer invalidade, não é inquinada qualquer prova com base naqueles obtida.

Em face de todo o exposto, é, pois, manifesto, na nossa modesta opinião, que o recurso em causa não merece provimento, pelo que o mesmo deverá improceder.»

4. Pronunciando-se sobre o mérito do pedido, de acordo com o disposto no artigo 454.º do CPP, consigna a Senhora Juíza do processo, concluindo pela denegação da revisão (transcrição):

«Sendo o fundamento da revisão o previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código do Processo Penal, o tribunal, após admitir o recurso, determinou apenas que fosse dada vista dos autos para, querendo, responder, pois, sem que o recorrente tivesse requerido a produção de qualquer prova, não se afigurava haver outras diligências probatórias a desenvolver. Tendo já o Ministério Público respondido conforme consta do documento electrónico com a referência .......55, de 18-10-2023, cumpre agora observar o disposto no artigo 454.º do Código de Processo Penal. Nessa conformidade informa-se que, feita uma análise crítica dos argumentos avançados pelo recorrente e pelo Ministério Público, se entende não haver fundamento para que o pedido de revisão mereça procedência.»

5. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 455.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, também com convocação da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, emitido parecer, igualmente no sentido da denegação da revisão (transcrição):

«(…)

II. Mérito do recurso.

1. É jurisprudência comum do STJ a concepção de que o recurso extraordinário de revisão se constitui, na sua etiologia, como um meio extraordinário de reacção contra sentenças (ou despachos) transitadas em julgado nas situações em que a virtual imodificabilidade do decidido daria cobertura a erro ou injustiça clamorosos, ético-socialmente inaceitáveis – porque contra a “consciência axiológica geral”.

2. O instituto do Caso Julgado – não sendo um fim em si mesmo, mas gozando de um suporte teleológico (como toda a juridicidade, decorrente de princípios ou de normas positivadas) – tem, pois, por escopo conceder estabilidade à decisão judicial, em nome do valor da segurança jurídica, que, no entanto, não é um bem absoluto (o Direito é avesso ao Absoluto), pois que há-de coexistir, numa equação de “concordância prática”, com o valor da Justiça, e perante o qual há-de ceder se o âmago da sua realização resultar intoleravelmente afectado.

3. Nesse pressuposto, a disposição do art. 449º/1 do Código de Processo Penal, precipitado lógico-positivado em sede ordinária do preceito do art. 29º/6 da Constituição da República, consagra, nomeadamente, que:

A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando (…)

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação; (…)

4. É este, precisamente, o fundamento de revisão invocado pelo recorrente, como se extrai do introito da respectiva motivação.

5. Mas, sintomaticamente, o recorrente não invoca, uma vez que seja, acórdão do Tribunal Constitucional, máxime o Ac. 268/2022, deslocando a discussão sobre o mérito da revisão para o conceito das proibições de prova (cfr, o art. 126º do Código de Processo Penal) – questão que é, na verdade, o seu específico e imediato fundamento, o leitmotiv do pedido formulado –, dispensando, de todo, o cotejo lógico-dialéctico da referida disposição do art. 449º/1-f) do Código de Processo Penal com a concreta causa petendi alegada.

6. Isto é:

Não faz apelo ao Ac. 268/2022 do Tribunal Constitucional (ou a qualquer outro), que decidiu: [transcrição].

7. Tão-simplesmente porque o Aresto em causa não teve por objecto a discussão sobre a conformidade constitucional das relevantes normas da L-109/2009, de 15/09 (lei do Cibercrime), a cujo resguardo foram obtidos elementos probatórios em que se fundou a condenação do arguido, ora recorrente, pela conjugação, nomeadamente, com outras provas subsequentemente produzidas, algumas com prévio consentimento expresso daquele.

8. Concretamente:

A identificação do endereço IP e, subsequentemente, da respectiva titularidade;

Cuja obtenção permitiu chegar à identificação do arguido, que utilizava o computador da avó (titular do IP), em cuja sequência aquele autorizou o acesso às suas contas de utilizador em sistemas informáticos, serviços de internet e perfis de Facebook;

Que, na óptica do recorrente, se encontra …intrinsecamente afectada de invalidade, impondo-se o seu afastamento como suporte probatório por clara violação dos direitos à reserva da vida privada, ao desenvolvimento da personalidade, ao sigilo das comunicações e à autodeterminação informativa, constituindo prova absolutamente proibida.

9. Acontece, porém, que o recorrente pretende fazer tábua rasa do segmento inicial da invocada norma do art. 126º/ 3 do Código de Processo Penal:

Ressalvados os casos previstos na lei…

10. E na Lei do Cibercrime são ressalvados, precisamente, a apresentação ou concessão do acesso a dados atinentes, nomeadamente, à identificação e titularidade do IP (Internet Protocol Adress) relativo a clientes ou assinantes de fornecedores de serviço de conexão de rede (cfr, o art. 14º/1 e 4).

11. E foi, precisamente, o que a autoridade judiciária competente requisitou – de acordo com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade – aos operadores no âmbito da investigação de crimes contra a autodeterminação sexual cometidos em meio informático.

12. E, no caso, não se tratou, pois, de dados de tráfego, pois que as informações obtidas respeitam, tão-só, a dados de base, essenciais à estruturação e gestão da exploração comercial pelas operadoras respectivas:

O endereço IP é o identificador que possibilita que as inúmeras informações sejam enviadas entre dispositivos conectados a uma rede, pois que ao conter os elementos de localização, torna os dispositivos acessíveis para comunicação, dado que a Internet necessita de um meio de distinguir diferentes computadores, roteadores ou sites, motivo por que é como o número de telefone, servindo para a mesmo fim (é o que se extrai, por exemplo, da leitura do Glossário da APDSI, in https://apdsi.pt/glossario/?s=ip)

13. Donde:

Tudo se passou como se tivessem pedidas a identificação e a morada de um determinado titular de um catão SIM de um telemóvel – dados de base, concretamente de acesso e de subscritor, não se relacionando com os dados de tráfego (conteúdo), com o segredo das comunicações e com as disposições dos arts. 4º, 6º e 9º da referida L-32/2008, de 17/07.

14. E, por isso, susceptível, no caso, de apreensão e de leitura para fins de investigação-criminal (como, em geral, todas as coisas), face ao disposto no referido art. 14º – e para além das normas dos arts. 15º-17º – da Lei do Cibercrime (cfr, os arts. 125º, 126º e 178º do Código de Processo Penal.

15. Tal prova, que serviu de fundamento à condenação do arguido, ora recorrente, não é, pois, proibida, pelo que também não há que ponderar qualquer aplicação da regra do efeito-à-distância, nomeadamente no que concerne à identificação daquele como o utilizador do computadora da avó (cfr, os arts. 122º/1, 126º e 449º/1-e) do Código de Processo Penal).

16. Veja-se, sobre a natureza e relevância jurídica dos elementos em causa, o Ac. do STJ de 21.06.2023, P-1229/19.3TELSB-A.S1:

III. O número de telefone ou o número de IP assumem um carácter permanente que resultam da celebração de um contrato entre o cliente e a prestadora de serviços de telecomunicações, pelo que nada têm que ver com dados relativos às comunicações eletrónicas em si mesmo consideradas e podem ser obtidos independentemente de qualquer comunicação.

IV. Esses dados, integrados nos chamados dados de base, continuam a estar disponíveis para utilização quer no regime de aplicação das escutas telefónicas ao abrigo dos artigos 187º a 189º do CPP, por lhe serem instrumentais, quer nos termos do disposto na Lei 41/2004, de 18/08, e na Lei 23/96, de 26/07, armazenados por seis meses por necessários à fracturação e pagamento dos serviços, quer segundo a Lei nº 109/2009, de 15/09, denominada de Lei do Cibercrime, concretamente do seu artigo 14º que permite a obtenção, pelas autoridades judiciárias, dos dados de subscritor e de acesso, elencados nas diferentes alíneas do n.º 4, incluindo o IP, para prova de todos os crimes incluídos na previsão do art. 11.º, n.º1, ou seja, dos crimes previstos na Lei do Cibercrime, dos cometidos por meio de um sistema informático ou, em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico.

III. Em síntese:

Não é prova proibida a identificação de endereço e titularidade de IP, mormente à luz da disposição do art. 14º da Lei do Cibercrime.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá parecer que deverá:

Ser julgado improcedente o presente recurso, com denegação da revisão.»

6. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP).

7. Nada obstando ao conhecimento do recurso, colhidos os vistos foi o processo remetido à conferência (artigo 455.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

II. Fundamentação

8. Estão em causa os fundamentos da decisão em matéria de facto – provas em que se funda a condenação, que o recorrente considera serem proibidas – e uma questão de ordem normativa – a alegada inconstitucionalidade de normas da Lei n.º 32/2008.

8.1. Factos provados

O recorrente foi condenado pela prática dos seguintes factos:

«1) No período compreendido entre o ano de 2011 e o ano de 2014, o arguido criou no "Facebook", através do IP Adress ............70, perfis com os seguintes nomes:

a) “BB”, “CC”, “DD” e “EE”, associados à conta de e-mail “.....................om”;

b) “FF”, associado à conta de e-mail .....................om”;

c) “GG”, associado à conta de e-mail ...................om”;

d) “HH”, associado à conta de e-mail .....................om, onde utilizava também o nome “AA”;

e) "II)”, associado à conta de e-mail ...................om”.

2) Durante as conversações que manteve através do Facebook nos perfis associados à conta de e-mail “omeuvergalhohotmail.com”, o arguido também se identificou com o nome “JJ”.

3) KK nasceu em .../.../2001.

4) Em data não concretamente apurada, o arguido conheceu KK, tendo-a abordado perto da Escola Básica da ..., onde esta frequentava o 5º ano de escolaridade.

5) Mais tarde, quando, no ano lectivo seguinte (2012-2013), a KK frequentava o 6º ano de escolaridade na Escola ..., o arguido descobriu o perfil dela, no Facebook e pediu-lhe amizade, através do perfil que criou com o nome "BB", usando neste o nome LL.

6) A menor aceitou esse pedido de amizade e manteve conversações com o arguido no "chat" do Facebbok ("messenger"), durante as quais o informou sobre qual era a sua idade.

7) Nessas conversas, o arguido identificou-se como sendo JJ, informando a menor que tinha 19 anos e que queria namorar com ela.

8) A determinada altura, o arguido marcou encontro com a menor KK junto da paragem do metro do Viso, tendo-lhe previamente fornecido o seu número de telemóvel, para onde se deslocou num veículo automóvel da marca Seat Ibiza, de cor verde.

9) Nessa ocasião, o arguido pediu desculpas pelo facto de estar a mentir na idade e disse a KK que ia fazer 24 anos e que queria muito estar com a menor.

10) Depois disso, o arguido passou a mandar SMS’s à menor KK.

11) Em data não concretamente apurada, no ano de 2013, cerca das 17h30m, o arguido foi esperar a KK à saída da Escola ..., em ..., ..., e conseguiu fazer com que a menor entrasse no veículo acima referido.

12) De seguida, o arguido transportou KK até a sua casa, sita na Rua ..., n° 135, ..., dizendo que queria estar com a menor.

13) Após, levou a KK até ao seu quarto, despiu a camisola e pediu à menor para se despir, o que aquela não fez, mais lhe dizendo que não queria ter relações de sexo com ele.

14) KK acabou por abandonar a casa do arguido sem ter mantido relações de sexo com este.

15) Passados alguns meses, em data não concretamente apurada, KK recebeu no seu Facebook uma mensagem proveniente do arguido, que se fez passar por alguém chamado MM, pedindo-lhe amizade.

16) Usando o perfil que criou com o nome de MM, o arguido fez-se passar por uma rapariga, tendo, depois de dizer a KK que estava num colégio interno e que, por isso, não conseguia encontrar-se com o JJ, oferecido à KK €:60,00 (sessenta euros) para que esta tivesse relações sexuais com ele.

17) Decorrido um período de tempo não concretamente apurado, o arguido mandou mensagens à ofendida, pelo Facebook, pedindo-lhe namoro, o que foi aceite por ela.

18) Nas férias escolares da Páscoa de 2014, o arguido marcou encontro com a menor KK, tendo, em dia não concretamente determinado, conduzido a mesma até ao seu quarto.

19) Na cama e despidos, o arguido colocou-se em cima da menor KK e, sem usar preservativo, penetrou a vagina da ofendida, com o seu pénis erecto.

20) Depois de ter mantido com a ofendida relação de cópula vaginal, acompanhou-a à paragem de autocarro, tendo-lhe dado dinheiro para pagar a viagem de autocarro para casa.

21) No dia seguinte, a ofendida regressou a casa do arguido onde este, no seu quarto manteve relações sexuais de cópula vaginal, sem o uso de preservativo.

22) Estes encontros na casa do arguido repetiram-se ao longo desse período de férias, tendo o arguido, durante os mesmos, conseguido manter relações sexuais de cópula vaginal com a menor KK pelo menos em mais quatro dias.

23) Numa dessas ocasiões, o arguido tinha uma câmara e pediu para filmar o acto sexual mas a menor KK não quis.

24) Num dos primeiros sábados subsequentes ao período de férias da Páscoa, o arguido e um seu amigo cuja identidade se desconhece e que se deu a conhecer como sendo NN, marcaram encontro com a KK e com uma amiga desta (OO), junto dos Bombeiros Voluntários ....

25) Após, as menores KK e OO foram transportadas pelo referido NN, até uma vivenda localizada fora de ..., em morada que não se logrou apurar qual fosse.

26) O arguido dirigiu-se com a KK para um quarto, onde manteve com ela relações de cópula vaginal, sem o uso do preservativo.

27) No sábado seguinte, o arguido voltou a marcar outro encontro com a KK, no mesmo local e foi novamente com esta a casa do referido NN, onde, num quarto, voltou a manter relações sexuais com a menor, penetrando com o seu pénis a vagina de KK sem o uso de preservativo.

28) Num destes dois últimos encontros, o arguido deu à menor um cigarro para esta fumar, dizendo-lhe que era “ganza”.

29) OO nasceu em .../.../1998.

30) Em data não concretamente apurada do ano de 2012 ou de 2013, o arguido, usando o perfil de "LL", pediu amizade no Facebook a OO.

31) OO aceitou o pedido de amizade e foram estabelecidas conversações entre os dois através do chat do Facebook.

32) Nestas conversações, OO informou ao arguido qual era a sua idade e este disse a ela que tinha mais de 20 anos.

33) O arguido, nos diálogos que manteve no chat com a OO, simulou a prática de actos sexuais e dizia que queria penetrá-la e que ela lhe lambesse o pénis.

34) O arguido pediu a OO que ela lhe enviasse fotos em que estivesse despida e exibisse a zona genital e as mamas e enviou-lhe fotografias de um pénis.

35) OO enviou ao arguido várias fotografias em que estava nua e eram visíveis a sua zona genital e as suas mamas.

36) O arguido acabou por se encontrar presencialmente com OO mais do que uma vez.

37) Num desses encontros, o arguido, depois de ter ido esperar OO junto a uma paragem de autocarro situada perto da sua residência sita na ..., encaminhou a mesma até à sua casa, sita na Rua ... n° 135, ..., onde, no seu quarto, penetrou com o seu pénis erecto a vagina da menor, tendo também mantido com a mesma relações de sexo oral e anal.

38) Num outro encontro, o arguido manteve com OO relações de sexo oral.

39) Pelo menos numa dessas vezes, o arguido entregou €:40,00 (quarenta euros) a OO.

40) O arguido, a partir de data não concretamente apurada mas seguramente anterior a Abril de 2014, deixou de se encontrar com OO para manter com ela relações sexuais.

41) PP nasceu em .../.../2000.

42) Em data não concretamente apurada do ano de 2013 ou 2014, o arguido pediu amizade a PP, através de um perfil correspondente a uma pessoa do sexo feminino.

43) PP aceitou tal pedido de amizade e, mais tarde, manteve conversas com um amigo da pretensa pessoa do sexo feminino atrás referida, o qual se intitulou de “JJ”.

44) O arguido, intitulando-se de “JJ”, começou a conversar, quer pelo Facebook, quer pelo telemóvel, com a PP, tendo esta passado a considerá-lo como seu amigo e revelado ao mesmo a sua idade, a escola que frequentava e até a sua morada.

45) PP, então com 13 anos de idade, acedeu aos pedidos que o arguido lhe fez e enviou àquele fotografias suas, em nudez, seja apenas dos seus seios e da sua zona vaginal, seja também, pelo menos uma vez, do seu corpo e rosto.

46) O arguido chegou a prometer entregar à menor a quantia de 60,00 €uros, o que nunca aconteceu, e prometeu-lhe também não exibir tais fotos.

47) Por sua vez, o arguido enviou mais do que uma vez à menor PP fotografias de pénis.

48) O arguido começou a insistir com PP para marcar um encontro pessoal com ela, mas esta recusou-se, acabando por bloquear o perfil com que o arguido comunicava com esta.

49) No dia 27 de Abril de 2014, o arguido, através de um dos perfis referidos na alínea a) do ponto 1) destes Factos Provados, manifestou o seu desagrado pelo facto de a menor o ter bloqueado no Facebook.

50) No dia 28 de Maio de 2014, o arguido enviou à PP pelo chat do Facebook uma fotografia em que ela aparecia nua, mais lhe tendo anunciado que, caso ela não comparecesse ao seu encontro, iria publicar as suas fotos de nudez, o que fez com que PP acabasse por confidenciar o que estava acontecer a um professor.

51) QQ nasceu em .../.../2002.

52) Em data não concretamente apurada, mas situada seguramente entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2014, no Facebook, o arguido, usando o perfil de DD, pediu amizade a QQ.

53) QQ aceitou este convite e começou a conversar com o arguido, o qual se apresentou como sendo uma jovem de 14 ou 15 anos de idade.

54) O arguido soube pela menor qual a idade que esta tinha.

55) Durante as conversas que manteve com QQ durante cerca de dois meses, o arguido referiu a esta que se relacionava com pessoas mais velhas que lhe pagavam para que a pudessem "lamber" e que, atrás da sua escola, tinha relações sexuais com rapazes.

56) O arguido disse também a QQ que ela devia experimentar para, assim, obter dinheiro.

57) O arguido, por várias vezes, pediu à menor para que lhe enviasse fotos dela nua, mostrando a zona vaginal e as mamas.

58) QQ não enviou tais fotos e bloqueou o seu Facebook ao perfil de DD.

59) RR nasceu em .../.../2000.

60) Em data não concretamente apurada, o arguido pediu amizade pelo Facebook a RR, através do perfil que criou com o nome GG.

61) O arguido conseguiu ganhar confiança da ofendida e, a determinada altura, pediu-lhe namoro, o que aquela aceitou, tendo, ainda, aceitado em encontrar-se com ele para manterem relações sexuais um com o outro.

62) Em data não concretamente apurada de Dezembro de 2014 ou de Janeiro de 2015, quando RR já lhe havia dito qual era a sua verdadeira idade e que nunca tinha tido relações sexuais, o arguido encontrou-se de manhã com a menor e acompanhou-a de autocarro e, após, de táxi até à sua casa, sita na morada da ... acima indicada.

63) Aí, no seu quarto, o arguido pediu à menor para se despir e deitar na cama, tendo-se deitado em cima da mesma, vestido apenas com a camisola e as cuecas.

64) O arguido beijou a RR na boca e nos seios e, tirando as cuecas, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, não tendo usado o preservativo.

65) Como a menor se queixou de dores, o arguido retirou o pénis da vagina da menor.

66) Depois, após a menor mudar de posição, colocando-se de gatas, o arguido colocou-se atrás da mesma e manteve com ela relação de cópula anal que interrompeu para ejacular para cima da barriga da menor, pedindo para o efeito para a RR mudar de posição.

67) Cerca de uma semana depois, no período da manhã, o arguido voltou a encontrar-se com a ofendida em sua casa, onde manteve com esta relação de cópula vaginal, depois de também ter introduzido dois dedos na vagina da mesma.

68) Depois de a menor se ter queixado de dores, o arguido voltou a manter com esta relação de cópula anal, sem ter usado preservativo.

69) Passados cerca de 15 dias, o arguido marcou encontro com a menor e, em sua casa, praticou sexo oral na menor, mas a pedido desta não tentou nova penetração vaginal, acabando por manter com ela nova relação de cópula anal.

70) Em Fevereiro de 2015, através do perfil que criou com o nome de FF, pediu amizade a RR, intitulando-se amigo do GG.

71) RR aceitou esta amizade e nos dias 3 a 5 de Fevereiro, o mesmo manteve conversas com ela, convidando-a a manter relações sexuais com o alegado FF e perguntando se ela gostava que isso acontecesse em simultâneo com outros homens, o que não aconteceu.

72) SS nasceu .../.../1999.

73) Em data não concretamente apurada, o arguido contactou pelo telemóvel SS, apresentando-se como sendo HH.

74) Também em data não concretamente apurada, o arguido, pelo Facebook, pediu amizade a SS, através de dois perfis que criou, com o nome TT e AA.

75) SS aceitou esse pedido de amizade e passou a conversar no chat com o arguido, acreditando que estava a falar com duas pessoas distintas.

76) Durante as conversas que manteve no chat do Facebbok, SS comunicou ao arguido ter idade correspondente à data (...-...-1999) que colocou no seu perfil como sendo do seu nascimento.

77) No dia 25/06/2013, o arguido manteve uma conversa com a SS, simulando que estava a manter relações sexuais orais e vaginais com esta, bem como com a TT.

78) Quando SS deixou de conversar no chat, o arguido, identificando-se como TT, começou a mandar mensagens à ofendida, avisando-a que sabia onde esta morava e divulgaria as conversas que tinham tido, para a pressionar a manter conversas idênticas às supra descritas.

79) UU nasceu em .../.../2002.

80) Em Fevereiro de 2014, o arguido, usando o perfil de DD, pediu amizade à ofendida UU.

81) UU aceitou esse pedido, pensando inicialmente que se tratava de uma colega da escola e, mais tarde, percebeu que DD seria uma rapariga que se apresentou como tendo 13 anos.

82) UU disse ao arguido que tinha 12 anos de idade.

83) No dia 15/02/2014, o arguido perguntou à menor se ela era virgem, se ela queria receber €:40,00 de um homem para que este lhe fizesse sexo oral e pediu-lhe fotos dela nua, da zona vaginal, anal e mamária.

84) Por sua vez, o arguido enviou para UU fotos de nudez feminina e prometeu enviar-lhe um vídeo com cenas de masturbação feminina, mais explicando que já tinha tido uma relação sexual com outra mulher.

85) UU acabou por enviar no dia 15/02/2014, uma foto de meio corpo sua em estado de nudez.

86) No dia seguinte, o arguido exigiu à UU, outras fotos da vagina, nádegas e mamas da menor, advertindo-a que, caso não as enviasse, divulgaria a foto enviada no dia anterior.

87) No dia 16/02/2014, por ter receio de ver as suas fotos divulgadas, a UU enviou ao arguido fotos das suas nádegas, vagina e zona mamária.

88) VV nasceu em .../.../2003.

89) No dia 5/10/2014, o arguido solicitou pelo Facebook amizade ao menor VV, intitulando-se GG.

90) O menor aceitou esse pedido de amizade e o arguido convidou-o para participar num encontro sexual com duas raparigas, cujas fotos depois lhe enviou.

91) O arguido explicou a VV que as ditas amigas pediram fotos do pénis dos rapazes com quem se iam relacionar e que, por isso já lhes tinha enviado uma foto dele.

92) Convencido deste modo, VV enviou ao arguido uma foto do seu próprio pénis.

93) VV disse ao arguido que tinha 12 anos de idade.

94) O arguido, depois de saber que VV tinha um irmão, chegou a pedir que ele lhe enviasse fotos do pénis do irmão.

95) O arguido disse a VV que uma das raparigas lhe ia fazer sexo oral e pediu-lhe uma foto das suas nádegas e avisou-o de que, caso ele o estivesse a enganar, tinha as fotos guardadas.

96) No dia 6/10/2014, o arguido pediu, ainda, ao VV, para que este o deixasse fazer nele sexo oral.

97) Na sequência dos mandados de busca domiciliária, no dia 5/02/2015, na sua habitação, sita na Rua ..., n°135, ..., a Polícia Judiciária apreendeu três cartões de memória e um telemóvel que se encontravam na posse do arguido AA.

98) Foi, ainda, efectuada pesquisa ao PC portátil, tendo-se verificado na página de acesso ao Facebook, o registo de diferentes endereços de e-mail, tendo sido efectuado um print screen de mensagens de cariz sexual trocadas pelo arguido.

99) Realizado exame pericial aos cartões de memória e telemóvel apreendidos, constatou-se que o arguido tinha guardado, entre o mais, os seguintes ficheiros de imagem e vídeo:

a) um vídeo onde está filmado um individuo a exibir o pénis num transporte público, junto de um individuo do sexo feminino;

b) um vídeo onde está filmado um individuo do sexo feminino, aparentemente de menor idade, a despir-se;

c) um outro vídeo com um individuo do sexo feminino, aparentemente de menor idade, a masturbar-se;

d) três ficheiros de imagens de indivíduos do sexo feminino, aparentemente de menor idade, a exibirem partes do seu corpo, como vagina, nádegas e zona mamária.

(…)».

8.2. Da motivação da decisão em matéria de facto consta que o tribunal da condenação fundamentou a decisão com base nas seguintes provas, que apreciou crítica e detalhadamente:

«A convicção do tribunal para definir os factos provados e não provados baseou-se na análise crítica das declarações do arguido e das declarações para memória futura das menores KK, PP, QQ, RR, SS e UU (cfr. autos de fls. 425 e 491, referentes às diligências cuja gravação se encontra nos CD’s de fls. 434 e 494, respectivamente), bem como de todas as demais declarações e testemunhos prestados durante a audiência de julgamento, em articulação com o teor dos diversos documentos juntos aos autos (entre os quais se atendeu desde logo, para fixar a idade dos menores, aos assentos de nascimento que constam de fls. 560 a 575, fls.775 e de fls. 13 a 15 do apenso “A”) e, ainda, do relatórios de perícia médico-legais de fls. 184 a 187, 320 a 322 (referente à menor KK) e de fls. 324 a 327 (referente à menor RR).

Tendo os inspectores da Polícia Judiciária WW, XX, YY e ZZ contextualizado a forma como, após denúncias sobre conversas impróprias mantidas com menores no “Facebook”, desenvolveram a investigação e recolheram elementos que apontavam no sentido de ser o arguido quem promovia tais conversas (fazendo uso do equipamento cujo IP se encontra indicado na informação de fls.125 do apenso “A” e cuja morada de instalação de encontra referida na informação da “Vodafone” de fls.138 do apenso “A”), contou o tribunal com a confissão do arguido quanto ao facto de, efectivamente, ser ele quem utilizava o computador instalado na casa onde vivia com o avô e onde foram efectuadas a busca e as apreensões (de um telemóvel de marca Alcatel e cartões de memória) cujo auto consta de fls.189-190. Desta forma, tendo o arguido confessado também a factualidade acusatória referente à utilização que fazia de meios informáticos para criar no Facebook diversos perfis e usar os mesmos para manter conversas de cariz sexual com diversas pessoas de menor idade, mostrou-se pacífica a fixação dos factos provados relativos às contas de utilizador em serviços informáticos e de internet a partir dos quais desenvolvia tais conversas, bem como dos nomes que aí utilizava, matéria esta, de resto, também alcançável a partir dos autos de visionamento de conteúdos de páginas de “Facebook” constantes, entre outras, de fls. 30 e 44 e ss., 216 e ss. e 239 e ss. do apenso “A”, de fls. 30 e ss. e 70 e ss. do apenso “B” e também a partir dos documentos (“print-screens”) de fls. 48 e ss. e 73 dos autos principais.

Em relação ao conteúdo do telemóvel e dos cartões de memória apreendidos ao arguido, atendeu-se ao teor do auto de visionamento preliminar de fls. 211 a 214 do apenso “A” e ao teor do CD de fls.116 dos autos principais onde se encontra a gravação dos respectivos conteúdos efectuada no âmbito do exame pericial efectuado a tais objectos (cfr. fls. 115 e 119).»

8.3. Alega, porém, o recorrente, juntando documentação dos autos da fase de inquérito, que:

«Em sede de inquérito, de molde a promover a investigação dos factos então imputados ao ora Recorrente, foi solicitado à empresa que gere a rede social “Facebook” os dados necessários para a identificação dos endereços de IP, e foi indicado o IP 95.136.121.170 (a fls. 125 do Apenso A).

Foi então solicitado a empresa fornecedora de Internet que identificasse o titular desse IP,

A Vodafone veio informar Autoridade competente para a investigação que o IP em questão estava associado ao contrato titulado por AAA (a fls. 138 do Apenso A), avô do aqui Recorrente,

E logo, melhor dizendo ao Arguido.

Como é possível verificar-se no Relatório da Polícia Judiciaria de 13/06/2014, a fls. 108: “... considera-se que a prossecução da investigação deverá passar pela cabal identificação do utilizador que, a partir do local que se venha apurar, teve as conversas referidas nestes autos”

E “Assim, não se vislumbra a realização de quaisquer outras diligencias probatórias, que se possam revelar de utilidade para o apuramento dos factos em investigação nos presentes autos ou para a identificação do seu autor, que não a informação facultada pelo “Facebook” conforme Relatório da Polícia Judiciaria de 13/06/2014, a fls 108”,

E “Deste modo, a única forma de se apurarem elementos cruciais para identificação dos factos descritos, que será através da empresa que gere a rede social Facebook...” como se pode ler Relatório da Polícia Judiciária de 13/06/2014, a fls 108”,

E mais, pode-se ler no mesmo Relatório, a fls. 109 “ ... uma vez que a informação que se pretende obter são endereços de IP, informação que remeterá para a solicitação de dados a fornecedores de serviços, que em Portugal somente fornecem dados com períodos nunca superior a 6 meses ou 1 ano.”

Assim, tal informação foi solicitada pelo Ministério Público, como se pode constatar a fls 114 a 117, ao abrigo do artigo 14 da Lei 109/2009 de 15/09,

Solicitando ainda confidencialidade de tal pedido, não divulgando o mesmo, designadamente ao titular dos dados contratos, conforme fls. 114 a 117.

E veio o Facebook prestar a informação pretendida para a continuação da investigação, informação essa prestada ao abrigo dos artigos 4º e 9º da Lei 32/2008 de 17/07, indicando o IP ............70 e o grupo data/hora de utilização 20.02.2014 11:40:57 UTC,(a fls. 125 a 127).

Ao tomar conhecimento desta informação foi aberta Cota no processo em 28/06/2014, a fls. 131, que o IP ............70 se encontrava registado em nome da Vodafone.

Foi então necessário solicitar a Vodafone os seguintes dados, conforme Relatório da Polícia Judiciária de 14/08/2014, a fls. ...:

a. A identificação do utilizador de endereço IP, no grupo data/hora, observando escrupulosamente o fuso horário indicado, efectuando as devidas conversões caso necessário;

b. A morada de instalação do equipamento;

c. A morada de facturação;

d. A descrição dos serviços contratados e dos serviços contratados e dos equipamentos fornecidos para esse efeito.

Ao que a Vodafone, veio responder a 02/09/2014, a fls 138 e 139 do Apenso A, que o serviço de Internet responsável pela utilização do mencionado IP se encontrava associado a AAA, residente na Rua ..., 135, ..., ...,

Ora esta informação também foi prestada ao abrigo a luz dos artigos 4º e 9º da Lei 32/2008 de 17/07.

Acontece que o titular do contrato é avô do Arguido, aqui Recorrente,

E assim a chegaram a identificação do Arguido, utilizador de tal serviço, pois era o Arguido que utilizava o computador do avô,

Assim os perfis criados no Facebook, através do IP 95.136.121.170, foram associados ao Arguido, nomeadamente:

a. “BB”, “CC”, “DD” e “EE”, associados à conta de email “omeuvergaihohotmail.com’;

b. ”FF”, associado à conta de email “........ .. ............“;

c. ”GG”, associado à conta de email “nome ..............om”;

d. “HH”, associado à conta de email .....................om, onde utilizava também o nome “AA”;

e. “II)”, associado à conta de email “................. .om”.

Assim, toda a informação pretendida e obtida surge do acesso a dados de base e tráfego, cabendo na previsão do artigo 4 da Lei nº 32/2008, por se integrarem nas categorias dos metadados e, na primeira, a informação por parte das entidades sobre a identificação do utilizador dos pesquisados emails, acima já identificados, e obtida a partir de tal informação que possibilitou a determinação da morada e localização do aparelho.

No que se refere aos dados do IP, o nome e endereço do cliente daquele operador ou utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP se encontrava atribuído é também ele, um dado base.

A sua divulgação e a sua utilidade é especificamente a de identificação do utilizador do aparelho que se conecta a rede, isto é, a identificação do computador que se conectou a rede.

Assim, a identificação de um protocolo IP, obtido nos autos, considerou não só a prestação da informação da sua utilização num determinado momento, revelando o utilizador, a utilização do endereço de conta, mas também o uso da internet em certo contexto.

Ora a obtenção de tais dados junto da operadora Vodafone, por referência a datas/horas de conexão à rede, tinha como assinante o avô do Arguido e como utilizador o Arguido, pois era este último que utilizava o computador do avô, como suspeito da prática dos factos em investigação.

Concluindo, a análise dos autos revela claramente que a obtenção dos dados acima mencionados (de base e de tráfego), conservados pelas entidades fornecedoras de serviço de comunicações eletrónicas permitiu a investigação chegar a identificação do Arguido, aqui Recorrente, e atribui-lhe a responsabilidade pela prática dos factos descritos na acusação.

Ora esta conservação e transmissão de tais dados pelas entidades fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas, nos termos da Lei 32/2008, torna tais dados (que constituem meio de prova documental e em que assenta, posteriormente, a sua analise pericial), intrinsecamente afectados na sua validade, impondo-se o seu afastamento como suporte probatório de imputação criminosa, por clara violação dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimentos da personalidade, ao sigilo das comunicações e á autodeterminação informativa,

Direitos esses com consagração constitucional, conforme os artigos 26 e 34 da C.R.P.,

Sendo ainda como não respeitando, o disposto no artigo 9 da lei 32/2008, de 17 Julho, relativamente a transmissão dados armazenados às autoridades competentes ao não haver notificação quer ao titular do contrato, quer ao utilizador, prestando a informação que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação já não era suscetível de comprometer a investigação.

E tal notificação, em momento algum, se realizou nos autos.

Assim, a prova resultante da informação prestada quanto a dados (de base e de tráfego e até de localização), conservadas pelas operadoras identificadas nos autos, e que foram enviadas ao presente processo na faze de inquérito, constituem prova absolutamente proibida, não podendo ser usada e , por isso, valorada de harmonia com o disposto no artigo 126/3 do CPP, nesta sede de fundamentação de facto da decisão,

Pois são “... nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas... mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na respectivo titular”.

A declaração desta nulidade agora expressa tem por consequência processual que o tribunal não poderá formar a sua convicção apoiando-se nestes elementos, porquanto só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, conforme o artigo 125 do CPP e artigo 32 da CRP,

Pois estas proibições são limites intransponíveis à investigação e à descoberta da verdade material.

Ora, se o artigo 32 da CRP, consagra no seu nº 1, que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso e consagrando um principio geral de proteção e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, que “indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação “ (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pagina 202).

A relação de causa efeito entre a prova invalida e a prova secundária que se lhe seguiu, ou seja, a informação prestada pelo Facebook e pela Vodafone teve como finalidade a identificação do autor dos crimes em investigação e até então desconhecida.

Foi só após a obtenção de tais dados, que os OPC concluíram por existirem fortes indícios de que o autor dos factos em investigação era o Arguido, e foi apenas nessa altura que a Polícia Judiciária sugeriu ao Ministério Publico a realização de buscas domiciliarias a residência que associavam ao visado, e a autorização para apreender acesso imediato as conversações, comunicações, gravações constantes de telemóveis, computadores ou suportes informáticos, conforme relatório da Polícia Judiciaria de 13/10/2014 e Auto de busca e apreensão de 05/02/2015, a fls. 189 a 190.

E obteve também a autorização do Arguido para aceder as contas de utilizador em sistema informáticos e serviços de internet e perfis de Facebook, após buscas a sua residência, através do fornecimento de passwords, a fls. 191 a 193,

E assim foram acedidos os conteúdos e selecionados quais os relevantes para a investigação.

E a investigação prosseguiu com a determinação e realização de prova pericial aos equipamentos informáticos.

Ora, toda esta prova secundária tem uma relação de conexão com a prova primária proibida,

Isto é, os actos processuais levados a cabo no inquérito e a relação existente entre a obtenção de dados conservados pelas operadoras (Facebook e Vodafone) e a realização das buscas domiciliarias à residência do Arguido, é evidente a relação de conexão ou de casualidade construída entre a prova resultante da obtenção de dados (prova primaria proibida) e a prova resultante da busca domiciliaria (prova secundaria).

Assim, não existe na investigação realizada qualquer outro processo aquisitivo de prova, para alem da obtenção dos dados do Facebook e Vodafone, que levasse a identificação do arguido ou da sua residência.

Nem mesmo se se considerar o produto das declarações do Arguido perante o Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal em 06/02/2015 pelas 16.30 horas, a fls 352 a 367,

E nem considerando a autorização dada pelo Arguido para consulta as contas de utilizador em sistemas informáticos e serviços.

Tais meios para obtenção de prova, surge influenciada pela recolha da prova nula, sendo que o vicio declarado, por não estar reconhecido no processo era desconhecido do arguido,

Pelo que a autorização prestada de forma livre se mostra viciada, ao ter sido prestada perante um pressuposto de que a busca e a apreensão eram válidas.

E assim chegamos a matéria que o tribunal considerou provados e que descreveu de ponto 1 ao ponto 127 do elenco de factos provados,

Considerando a informação do Facebook (a fls.125 do Apenso A) e da Vodafone (a fls.138 do Apenso A), é que o Tribunal conseguiu dar como provados os pontos 1 a 27, 15, 17, 97 a 99 e 101, da matéria dada como provada.

Assim, considerando-se que a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização), conservados pelo Facebook e pela Vodafone e enviados para este processo na fase de inquérito, se encontra ferida na sua validade, não podendo ser usada e, por isso valorada em sede de fundamentação de facto da decisão proferida nos autos,

Sendo que a declaração da nulidade, acarreta consequentemente, a respectiva exclusão, pelo que se deve excluir toda a prova obtida com base na prova proibida, ou seja, toda a prova obtida após a informação prestada pelo Facebook,

O que neste processo é quase toda a prova produzida,

Pois nunca foi dado conhecimento quer ao titular do contrato, quer ao utilizador do mesmo, que os dados conservados pelo Facebook e Vodafone foram acedidos pela entidade que promoveu a investigação.

Este acto configura a verdadeira violação do princípio à reserva da intimidade e vida privada e familiar, bem como os princípios da proporcionalidade, do sigilo das comunicações e tutela jurisdicional efectiva.

Pelo que esta omissão que configura a violação do artigo 35/1 e do artigo 20/1 em conjugação com o número 2 do artigo 18.º, todos da CRP,

Pelo que a decisão proferida pelo Tribunal a quo e ora posta em crise enferma de nulidade, por violação das normas constitucionais descritas supra,

Devendo a mesma, por consequência ser integralmente revogada e substituída por outra que determine a absolvição do Recorrente,

Ou no mínimo a prolação de decisão que determine a anulação de todos os actos subsequentes à omissão verificada.»

9. A revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, o qual dispõe que “[o]s cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos” (acórdãos de 04.05.2023, Proc. n.º 16/18.0GAOAZ-D.S1, e de 19.12.2023, Proc. n.º 191/17.1JELSB-K.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem de perto). Norma de idêntico alcance se encontra no artigo 4.º, n.º 2, do Protocolo n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que confere aos Estados-Partes uma larga margem de apreciação e de conformação para regularem o exercício deste direito nas leis nacionais (acórdão TEDH Krombach c. França, n.º 29731/96, de 13.02.2001, par. 96).

Os artigos 449.º e seguintes do Código de Processo Penal («CPP»), na densificação da norma constitucional, estabelecem as «condições» da revisão, por via de recurso extraordinário que a autorize, com realização de novo julgamento, possibilitando a quebra do caso julgado de sentença condenatória que deva considerar-se «injusta», por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos no n.º 1 daquele preceito.

A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, como componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), por esgotamento ou não utilização das vias processuais de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º do CPC), define-se, assim, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações que, por aqueles motivos, se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação sobrepõe-se à eficácia do caso julgado em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

10. Como se viu, o recorrente fundamenta a pretensão de revisão da sentença condenatória na alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, alegando, em síntese, que a condenação se fundamenta em dados obtidos junto do Facebook e da Vodafone que se incluem «nas categorias de dados a conservar previstas no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008», em violação das normas constitucionais que protegem o «direito à reserva da intimidade e vida privada e familiar, bem como os princípios da proporcionalidade, do sigilo das comunicações e tutela jurisdicional efetiva» (artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 35.º, n.º 1, da Constituição), pelo que a decisão condenatória «enferma de nulidade», «por violação das normas constitucionais descritas, mormente de inconstitucionalidade»; pedindo que seja «integralmente revogada e substituída por outra que determine a [sua] absolvição», ou, no mínimo, que seja proferida «decisão que determine a anulação de todos os atos subsequentes à omissão verificada (não notificação do acesso aos dados conservados pela fornecedora de telecomunicações à autoridade de investigação criminal)», nos termos do artigo 9.º da mesma Lei n.º 32/2008.

O recurso assenta, porém, num equívoco – pois não convoca, como impõe a citada alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das mencionadas normas da Lei n.º 32/2008, apenas alegando uma pretensa e errónea inconstitucionalidade «da decisão» na aplicação do direito – e visa finalidade própria do recurso ordinário, subtraída ao objeto do recurso extraordinário de revisão – a declaração de nulidade, por utilização de provas proibidas (artigo 126.º, n.º 3, do CPP, o que se extrai da fundamentação) e revogação da decisão condenatória e absolvição do recorrente.

Sendo, pois, evidente a falta de fundamento. Com efeito,

11. Dispõe o artigo 449.º n.º 1, do CPP que:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

(…)

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

(…)».

Fundamento do recurso de revisão com base na alínea f) não é a invocação de inconstitucionalidade de norma aplicada no processo que conduziu à condenação, a qual encontra nesse processo o seu próprio espaço e sede de discussão, com esgotamento dos recursos ordinários, sempre admissíveis (artigo 399.º do CPP), pressuposto de admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional («TC»), em conformidade com o modelo de fiscalização de constitucionalidade instituído pela Constituição e desenvolvido na Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional), que atribui aos tribunais a tarefa primeira de verificação de inconstitucionalidade de qualquer norma, que deve ser suscitada e apreciada «durante o processo» (artigo 280.º, n.º 1, al. b), da Constituição e 70.º, n.ºs 1, al. b), e 2, da Lei n.º 28/82).

O que configura uma situação totalmente diferente da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral prevista no artigo 281.º da Constituição, segundo a qual o TC aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, nos termos previstos neste preceito e dos artigos 51.º e seguintes da lei n.º 28/82).

Com a introdução do fundamento de revisão constante da al. f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, em 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto), veio o legislador suprir a inexistência, no ordenamento infraconstitucional, de um meio processual especificamente ordenado à regulação dos efeitos das decisões do TC nas sentenças penais transitadas, nos termos do artigo 282.º da Constituição, que declarem, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma, de conteúdo menos favorável ao arguido, que tenha integrado a ratio decidendi da condenação (como se lê na Proposta de Lei n.º 109/X, que esteve na origem desta alteração legislativa).

Por esta teleologia se deve precisar o efeito das declarações de inconstitucionalidade normativa, com a vinculatividade que é estabelecida na Constituição (assim, os acórdãos de 04.05.2023 e de 19.12.2023, citados).

12. Em substância, sem nunca o convocar, o recorrente como que replica motivos que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 268/2022 de 19.04.2022 (Diário da República, 1.ª Série, de 03.06.2022), de normas dos artigos 4.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que repetidamente vem sendo invocado como fundamento da revisão, por alegada recondução à previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, isoladamente ou em conexão com a alínea e) do mesmo preceito, por, em argumento recorrente, daí pretensamente resultar condenação também com fundamento em «prova proibida» (artigos 125.º e 126.º do CPP).

13. Consagrando uma regra de retroatividade ex tunc, dispõe o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral – equivalente à “declaração de nulidade” das normas declaradas inconstitucionais (Gomes Canotilho/Vital Moreira, infra; assim, também, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, 2001, p. 97)) – produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

Como repetidamente se tem sublinhado, a esta regra constitucional é, porém, constitucionalmente oposta a restrição da intangibilidade do caso julgado, nos termos estabelecidos no n.º 3 do mesmo preceito, segundo o qual ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do TC quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

Ou seja, para que uma decisão judicial penal transitada em julgado, aplicando uma norma posteriormente declarada inconstitucional com força obrigatória geral, possa ser afetada, é necessário que o TC o declare expressamente afastando a regra da preservação do caso julgado, na verificação do pressuposto de que tal norma tem natureza penal de conteúdo menos favorável ao arguido (sobre esta ressalva, cfr. Jorge Miranda, loc. cit., pp. 261-263). Não havendo decisão de exceção (aplicação a casos julgados abrangidos) à regra de exceção (que ressalva todos os casos julgados), ficam intocados todos os casos julgados que tenham aplicado a norma declarada inconstitucional – a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma [cfr. os primeiros acórdãos, de 06-09-2022, proferidos no proc. 618/16.0SMPRT-B.S1 (Ernesto Vaz Pereira) e no proc. 4243/17.0T9PRT-K.S1 (Teresa de Almeida), em www.dgsi.pt, seguidos em jurisprudência consolidada].

É este o entendimento que, em jurisprudência uniforme, tem vindo a ser reiterado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em mais de três dezenas de acórdãos proferidos em recursos extraordinários de revisão, a partir de 06.09.2022, com fundamento na invocação do acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022, de 19.04.2022, todos publicados em www.dgsi.pt.

14. As normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que o TC declarou inconstitucionais com força obrigatória geral no acórdão n.º 268/2022, respeitam ao armazenamento (conservação) de dados em arquivos, durante o período de 1 ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações. Relembrando a decisão, disse o Tribunal Constitucional:

“[…] Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros. […]”.

15. A Lei n.º 32/2008 regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.

Como se tem afirmado, a Diretiva n.º 2006/24/CE, adotada com base no artigo 95.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (que dizia respeito ao funcionamento do mercado interno – antigo 1.º pilar da União), teve como principal objetivo harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações assegurarem a conservação de dados de tráfego e de localização, bem como de dados conexos, necessários para identificar o assinante ou o utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas, para determinar a data, a hora, a duração e o tipo de uma comunicação e o equipamento de comunicação dos utilizadores, bem como para localizar o equipamento de comunicação móvel durante um determinado período, de seis meses a dois anos (artigo 6.º), tendo em vista garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, deteção e repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro, em derrogação aos artigos 5.º (sobre “confidencialidade das comunicações”), 6.º (sobre “dados de tráfego”) e 9.º (sobre “dados de localização para além dos dados de trafego”) da Diretiva 2002/58/CE, que transpôs os princípios estabelecidos na Diretiva 95/46/CE relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados [diretiva transposta para o direito interno pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, atualmente substituída pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados – Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril («RGPD»)] para regras específicas do sector das comunicações eletrónicas.

16. Importa precisar que os dados que deveriam ser conservados eram os dados especificados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, excluindo-se todos e quaisquer outros, em particular os dados que revelassem o conteúdo das comunicações, cuja conservação é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, e na legislação processual penal relativamente à interceção e gravação de comunicações (como expressamente estabelece o artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2008, que se mantém em vigor).

Dispunha o artigo 4.º («Categorias de dados a conservar»), da Lei n.º 32/2008, que os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações deveriam conservar as seguintes categorias de dados (n.º 1):

«a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;

b) Dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;

c) Dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;

d) Dados necessários para identificar o tipo de comunicação;

e) Dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento.»

Especificando os n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito os dados a que se refere o n.º 1.

De notar que todos os dados tratados e armazenados ao abrigo deste normativo são dados que respeitam a comunicações, nos seus vários modos de realização, iniciando-se cada registo com o estabelecimento da comunicação e terminando com o seu fim [assim, salientando este aspeto, o acórdão de 06-09-2022 (Teresa de Almeida), Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1]. Estando excluídos dados que, podendo ser idênticos, não foram tratados (processados) com respeito a comunicações efetuadas, como sucede com os dados relativos à identificação de assinantes obtidos e tratados no âmbito da relação contratual com o fornecedor de serviços.

17. Também como se tem salientado, o regime anterior ao Tratado de Lisboa, no âmbito do qual foram adotadas as diretivas em referência, impõe que se deva reconhecer uma diferenciação entre atividades (operações) de conservação de dados – reguladas por normas de «direito comunitário» (anterior 1.º pilar) – e atividades (operações) de acesso aos dados – reguladas por normas processuais penais nacionais e do anterior 3.º pilar da União –, as quais constituem ingerências distintas e autónomas em direitos fundamentais, concretamente no direito de reserva da vida privada, incluindo o direito à proteção de dados pessoais (agora com reconhecimento expresso na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – artigo 8.º), que, salvaguardados os princípios, admitem restrições necessárias à proteção de outros direitos, em particular, com maior alcance, do direito à liberdade e segurança.

Nesta conformidade, cabe ao direito nacional determinar as condições em que os prestadores de serviços devem conceder às autoridades nacionais competentes o acesso aos dados de que dispõem, no âmbito do processo penal, para investigação e perseguição da criminalidade grave, com respeito pelos princípios e regras essenciais do processo penal, nomeadamente pelos princípios da proporcionalidade, do controlo prévio de um órgão jurisdicional, do contraditório e do processo equitativo (cfr., a este propósito, os acórdãos TJUE de 21.12.2016, Tele2 Sverige AB, proc. C‑203/15; de 6.10.2020, La Quadrature du Net e o., proc. C-511/18, C-512/18 e C-520/18; de 2.3.2021, H. K. e Prokuratuur, proc. C-746/18; e de 5.4.2022, G. D. e Commissioner of An Garda Síochána e o., proc. C-140/20. Sobre o sentido e alcance da jurisprudência do TJUE nestas matérias cfr. Adam Juszczak/Elisa Sason, Recalibrating Data Retention in the EU, The Jurisprudence of the Court of Justice of the EU on Data Retention – Is this the End or is this the Beginning?, EUCRIM, Issue 4/2021, pp. 238-266, em https://eucrim.eu/articles/recalibrating-data-retention-in-the-eu/#docx-to-html-fnref49).

O acesso a dados pessoais pelas autoridades competentes, enquanto operação de tratamento de dados, para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, que respeita estas regras e princípios, encontra-se atualmente regulado pela Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, transposta para o direito interno pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, suprindo uma lacuna de regulamentação e reforçando a proteção de direitos fundamentais neste domínio, que, até então, era a que resultava da Convenção 108 do Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas Singulares no que diz respeito ao Tratamento Automatizado de Dados Pessoais (de 28.01.1981), desenvolvendo e aprofundando o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Sendo a conservação dos dados para efeitos de investigação criminal, relativamente a crimes graves, tal como definidos pela lei nacional, admitida pelo artigo 15.º, n.º 1, da Diretiva 2002/58/CE (nas condições mencionadas nos acórdãos do TJUE acima citados), a Diretiva 2006/24/CE visou, face às grandes divergências de leis nacionais que criavam sérias dificuldades práticas e de funcionamento do mercado interno, estabelecer normas de harmonização, no espaço da União Europeia, de conservação de dados de tráfego e dados de localização, bem como dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado – que são normas que determinam a finalidade de tratamento dos dados pelos fornecedores de comunicações (respeito pelo princípio da finalidade, um dos princípios que, a par dos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, presidem ao tratamento de dados pessoais) – mas não regulou, nem podia regular, a atividade das autoridades públicas (órgãos de polícia criminal e autoridades judiciárias – Ministério Público, juízes e tribunais) com competência para assegurar a realização daquela finalidade, através do processo penal.

18. Situando-se, pois, numa dimensão diversa, a Lei n.º 32/2008 não alterou, não revogou, nem estabeleceu normas de natureza penal ou processual penal, de que as autoridades judiciárias se devam socorrer para acesso e aquisição da prova ou para assegurar a sua validade no processo; tais atividades dispõem de regime próprio definido pelas leis penais e processuais penais nacionais e, no que se refere aos domínios de competência da União Europeia («UE») no «espaço de liberdade, segurança e justiça», pelo artigo 82.º do TFUE e pela citada Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, transposta pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto.

A obtenção, no processo penal, de dados em posse de fornecedores de serviços de comunicações é regulada por outras disposições legais – pelos artigos 187.º a 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal e pela Lei n° 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), que transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa (Budapeste, 2001; RAR n.º 88/2009 e DPR n.º 91/2009, de 15 de setembro), tendo em conta a Diretiva (UE) 2016/680 (Lei n.º 59/2019, de 08 de agosto) [cfr., por todos, com referências a acórdãos anteriores, o acórdão de 08.11.2022, Proc. 107/13.4P6PRT-D.S1 (Conceição Gomes)] – cuja constitucionalidade não foi afetada nem se questiona.

Como nota o recorrente, e enfatiza o Ministério Público, a informação «foi solicitada pelo Ministério Publico, como se pode constatar a fls 114 a 117, ao abrigo do artigo 14 da Lei 109/2009 de 15/09».

O respeito por estas regras na aquisição da prova obtida por recurso aos dados pessoais objeto de conservação impede que se possa, em qualquer circunstância, formular um juízo negativo sobre a sua validade, nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP.

19. Mesmo que, como faz o recorrente, se pudesse argumentar que os dados que conduziram à condenação se podem identificar com dados especificados nos artigos 4.º da Lei n.º 32/2008 – dados de tráfego e dados de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, de deteção e de repressão de crimes graves (artigo 2.º do mesmo diploma) –, a utilização desses dados estaria, em todo o caso, protegida pela exceção do caso julgado, pois que, como também se viu (supra, 11 e 12), o Tribunal Constitucional não declarou expressamente que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se estendem ao caso julgado, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º da Constituição.

Sendo que, em função do âmbito e objeto das normas em questão e da base jurídica dos Tratados em que se fundamenta a diretiva 2006/24/CE, não tendo as normas declaradas inconstitucionais natureza penal, integrando a ratio decidendi do acórdão condenatório – o que constituiria pressuposto da declaração de extensão da inconstitucionalidade aos casos julgados, da competência do Tribunal Constitucional –, não se tornaria possível proceder a tal extensão [neste sentido, negando a natureza penal das normas, o anterior acórdão de 13.04.2023, Proc. 4778/11.8JFLSB-B.S1, cit., e os acórdãos, nele mencionados, de 06-09-2022 (Teresa de Almeida), Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1, e de 10-11-2022, Proc. n.º 35/15.9PESTB-Z.S2 (Carmo Silva Dias), em www.dgsi.pt].

20. Em consequência, acresce que não pode proceder a alegação de que a condenação se fundou em «prova proibida» – melhor dito, na «descoberta», posterior à condenação, de que «serviram de fundamento» a esta «provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º», como exigido pela al. e) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP – no pressuposto de que seria resultado da declaração da inconstitucionalidade, suscetível de constituir fundamento autónomo da revisão, que, no entanto, não vem invocado.

O alegado fundamento da condenação com base em «prova proibida», que não ocorreu, só poderia questionar-se na presença de uma violação, pelas autoridades judiciárias, das regras relativas à aquisição de prova (artigo 126.º, n.º 3, do CPP), quando da sua efetivação, posteriormente descoberta, que também se não verificou.

21. O que se pode discutir no recurso de revisão não é a questão de saber se as provas da condenação eram ou não nulas, por ter sido utilizado um método proibido de prova. Qualquer controvérsia a esta respeito constituía matéria a ser apreciada e decidida no âmbito do processo da condenação, incluindo em recurso ordinário, até ao trânsito em julgado da condenação; o recurso extraordinário de revisão não permite a (re)abertura de discussão a este respeito.

O que agora se poderia questionar seria somente se se “descobriu” posteriormente que, na aquisição e produção dessa prova, foi utilizado método proibido. Como incisivamente se afirmou no acórdão de 26.11.2009, Proc. 103/01.4TBBRG-G.S1 (em www.dgsi.pt), «a revisão da sentença condenatória, transitada em julgado, com tal fundamento, só é possível quando se «descobrir» que serviram de fundamento à condenação provas proibidas. Ora, o uso do verbo «descobrir» significa que se está perante algo que na altura da audiência de julgamento não seria possível reconhecer, ou por ser então totalmente desconhecido que a prova fora obtida por método proibido ou por ter mudado a lei, passando a considerar proibido certo método de obtenção de prova que na altura era lícito. Já assim decidiu o STJ, por acórdão de 28-10-2009, proc. 109/94.8TBEPS-A.S1: «Quanto ao fundamento de revisão previsto na al. e) do n.º 1 do art. 449º, fundamento introduzido pela Lei 48/07, de 29-08 – provas proibidas –, observar-se-á que o texto legal não estabelece como seu requisito integrante a mera ocorrência de condenação baseada em provas proibidas. Com efeito, ao dispor que a revisão de sentença é admissível quando se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do art. 126º, a lei estabelece como requisito, a par de condenação baseada em provas proibidas, a circunstância de esse vício só vir a ser conhecido posteriormente à condenação. Não basta, pois, à verificação deste pressuposto de revisão de sentença a ocorrência de condenação baseada em provas proibidas tout court.»

22. Assim sendo, em conformidade com o que vem de se expor, não havendo fundamento, e sendo manifesta a falta de fundamento, é negada a revisão, havendo lugar à aplicação da sanção a que se refere a parte final do artigo 456.º do CPP.

III. Decisão

23. Pelo exposto, nos termos do que dispõe o artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, acorda-se na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em denegar a revisão da sentença condenatória requerida pelo condenado AA.

Condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 456.º, 1.ª parte, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, em anexo).

Nos termos do artigo 456.º do Código de Processo Penal, condena-se o recorrente no pagamento da quantia de 7 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de fevereiro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)