Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
41/19.4PEPDL-D.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
CASO JULGADO
METADADOS
PROVA PROIBIDA
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 04/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. O recurso extraordinário de revisão tem consagração constitucional – art. 29.º, n.º 6, da C.R.P. - e encontra-se previsto no art. 449.º e ss. do C.P.P.

II. Tem uma larga tradição histórica, no nosso direito, encontrando-se já referenciado nas Ordenações Afonsinas.

III. É constituído por duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório. A primeira abrange todos os termos que têm lugar desde a petição do recurso até à decisão do STJ; a segunda respeita ao conhecimento do mérito do próprio recurso, cabendo ao tribunal da primeira instância.

IV. Na situação sub judice, constata-se da certidão junta aos autos que o arguido, ora recorrente, foi condenado por acórdão do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada -..., de 04/03/2020, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, na pena de 6 anos de prisão, decisão que foi confirmada, na íntegra, por acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/02/2021, e transitado em julgado em 21/01/2022.

V. Entende, agora, o recorrente que, por força do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04/2022, a sua condenação enferma de inconstitucionalidade, uma vez que os factos apreciados e dados como provados em sede de julgamento, foram obtidos mediante o uso de métodos proibidos de prova.

VI. Ora, como vem sendo sublinhado por jurisprudência consolidada deste Tribunal, a revisão da sentença transitada em jugado é admissível, nos termos do art. 449.º n.º 1 f), do C.P.P., quando seja declarada pelo Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

VII. O invocado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04/2022, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição; e declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

VIII. Porém, a declaração de inconstitucionalidade em causa não pode afetar decisões já transitadas em julgado, como é o caso da que condenou o ora recorrente, porque o art. 282º, da C.R.P., visando a salvaguarda do princípio da segurança jurídica, dispõe, para os casos de declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, que a mesma produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado, mas ficando «ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido»

IX. Acontece que o citado acórdão não excecionou a ressalva do caso julgado, pelo que, mesmo que a matéria dos autos fosse abrangida pela previsão da norma declarada inconstitucional, não poderia ter qualquer efeito.

X. Nesta conformidade, ter-se-á de concluir que a condenação do recorrente não se fundou pelo recurso a metadados ou em prova de natureza proibida, sendo, assim, manifestamente infundado o pedido de revisão solicitado, seja ao abrigo da al. f), seja de qualquer outra alínea, do n.º 1, do art. 449.º, do C.P.P.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 41/19.4PEPDL-D.S1

(Recurso de revisão)

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O arguido/condenado AA veio, em .../.../2024, por intermédio do seu ilustre Advogado, e ao abrigo do disposto no art. 449.º n.º 1 f), do C.P.P., interpor o presente recurso extraordinário de revisão, apresentando as seguintes Conclusões, que passamos a transcrever:

1. O presente recurso é feito tendo por base as disposições conjugadas dos Art.ºs 449, n.º 1, alínea f), 450, n.º 1, alínea c) e 451, todos do CPP.

2. No estrito cumprimento do Artigo 4-51º nº 3 do Código de Processo Penal, se digne instruir o presente recurso com certidão da decisão revidenda, na qual se deverá incluir o competente despacho de transito em julgado.

3. Preceitua o Art.º 29.º n.º da CRP, os cidadãos injustamente condenados, têm direito nas condições que a lei prescreve, à revisão de sentença e à indeminização pelos danos sofridos.

4. O presente recurso extraordinário, tem a defesa do arguido, por presente e adquirido que, no domínio do processo penal, tal como, no domínio do processo civil, esta “providencia excepcional” tem por fito obviar a decisões injustas, fazendo prevalecer o princípio da justiça material, sobre a certeza e segurança do direito (a que o caso julgado dá guarida).

5. De tal modo que a nossa Constituição, que se reclama desses valores estabelece no seu artigo 29º, nº 6 que “os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indeminização harmonização pelos danos sofridos”.

6. Com efeito o Art.º 449º, n.º1, alínea f) do CPP dispõe que a “revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão do TC tem de ser posterior ao trânsito em julgado da sentença a rever e tem de declarar a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

7. Sufragamos a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, no entendimento de que, os factos ou elementos de prova que fundamentam a revisão das decisões penais devem ser novos no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem ignorados pelo réu no momento em que o julgamento teve lugar ( cfr. Ac. Do STJ BMJ 315-210 e respectiva anotação, de ........89, AJ, n.º 3, Proc. N.º 39992).

8. Há muito tempo que Portugal não cumpre os tratados internacionais, ostracizando a Jurisprudência da COURE EUROPENNE por anos e anos, recusando integrar na Ordem Jurídica Portuguesa os princípios emanados pela União Europeia, pese embora ter aceite cumprir a Convenção Europeia sob o art.º 8.º da nossa Lei Fundamental.

9. Portugal tem sido condenado pelos Senhores Juízes de Estrasburgo por sucessivas violações da Convecção Europeia dos Direitos do Homem.

10.O Tribunal Constitucional deu à luz o Acórdão 268/2022, o qual declarou a inconstitucionalidade dos art.ºs 4.º e 9.º da Lei 32/2008 de 17/7, por atentado aos art.ºs 18.º, n.º 2, 26.º e 35.º, n.º 1 e 4 da nossa Lei Fundamental.

11.In casu, constata-se nos autos que a prova assenta, entre o vasto lençol de papel, em localizações celulares feitas ao arguido.

12.A conservação dos dados ou METADADOS por longo tempo e a não notificação ao visado, foram agora e após longos anos de ostensiva violação do Direito da União Europeia, julgados inconstitucionais; os propalados “METADADOS” conservados por períodos temporais dilatados, são assim prova proibida e que inquina todo e qualquer processo…

13.O Tribunal Constitucional considerou igualmente que guardar os dados de tráfego e a localização das pessoas, restringe de modo despropositado os direitos à reserva da intimidade e da vida privada.

14.Concretizando e para o que aqui nos traz, atente-se nos elementos de prova que foram determinantes para a condenação do Recorrente, elementos estes plasmados no aresto em crise:

“No dia ... de ... de 2019, o arguido BB deslocou-se ao continente português, tendo viajado inicialmente para o Porto, mas tendo-se, posteriormente, deslocado à zona de Lisboa, para onde foi transportado de carro pelo arguido CC e onde permaneceu até ao dia ... de ... de 2019, data em que regressou a esta cidade de ....

No dia ........2019, pelas 17h20, o arguido DD tinha na sua posse um telemóvel da marca Apple (Iphone), do qual constavam os contatos dos arguidos BB e CC, bem como chamadas trocadas e mensagens enviadas a este último…

- registos telefónicos de fls.305 a 307 e 311 a 315 e consentimentos a fls.54, 123, 128 e 129 (relativamente aos contatos havidos, essencialmente entre os arguidos CC e DD no período de ........2019 a ........2019).

- detalhe de tráfego telefónico de fls.437 a 438 e respetivo CD-R constante do envelope da Vodafone agrafado à contracapa do 2º volume (autorizado pela 2ª parte do despacho de fls.417).

- informações de telefones de fls.446 a 448; - detalhe de tráfego telefónico de fls.464 a 465 (autorizado pela 2ª parte do despacho de fls. 417); - faturação detalhada e localização celular de fls.510 a 540 (autorizada pela 2ª parte do despacho de fls. 417) e respetivos gráficos de fls.542 e 543.

No que toca ao CC é irrefutável que o mesmo viajou para Lisboa no dia ........2019 porque os dados relativos à localização celular de fls.520 o confirmam, pois pelas 15h53 estava a comunicar usando a antena de ... Bombeiros Municipais…e que nesse mesmo dia seguiu para o Porto, estando pelas 22h27 a comunicar usando a torre de .... Empreendeu a viagem para Sul no dia 8 de março, ao ponto de nesse dia, pelas 18h32 estar a comunicar através da antena .... Seguiu, ainda nesse mesmo dia, viagem que o levou ao ... (20h56), EE (22h35)…prolongando-se ao dia seguinte, ..., com visitas ao ... (11h32), ... (12h16), ... (13h28), ... (13h35), ... (13h42), ... (13h45)…sendo certo que às 15h33 desse dia estava na ....

Resulta ainda, dos mesmos dados, que o CC, no dia ........2019 esteve, pelas 10h12, na zona de ..., conforme o revela a célula ... que o detetou…e que regressou a S. ... no dia ........2019…já que pelas 15h45 desse dia comunicava através da antena .... Sabe-se ainda pelos mesmos dados - fls.526 -, que o CC permaneceu em S. ... até ao dia ........2019…dia em que seguiu viagem para ... estando, já pelas 17h51 a comunicar através da antena ...…estando de volta à ... no dia ........2019…pois pelas 11h26 comunicava pela antena ...” (sublinhado nosso).

15.O acórdão constitucional n. 268/2022 decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma do artigo 4º da Lei 32/2008 de 17.07, conjugada com o artigo 6º da mesma lei, por violação do disposto nos n.s 1 e 4 do artigo 35 e do no 1 do artigo 26, em conjugação com o artigo 28°, todos da Constituição, e declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9º da Lei 32/2007 de 27.07, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para a investigação, detenção e de crimes graves, na parte em que não prevê a notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos por autoridades de investigação criminal a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações, nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no no 1 do artigo 35° e do no 1 do artigo 20°, em conjugação com o no 2 do art. 18°, todos da Constituição.

16.Encontram-se manifestamente reunidos os requisitos dos pressupostos formais quanto ao presente recurso extraordinário de revisão de sentença, designadamente que o acórdão condenatório ora recorrido e já transitado em julgado, bem como a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral das normas constantes dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei 32/2008, proferida pelo Tribunal Constitucional no acórdão 268/2022 de 19 de abril.

17.A condenação sofrida pelo Recorrente enferma de inconstitucionalidade, nos termos em que, os factos apreciados e dados como provados em sede de julgamento, foram obtidos mediante o uso de métodos proibido de prova "por via dos meios utilizados serem ilegais, cfr. o referido ac. no268/2022 do Tribunal Constitucional.

18.A estratégia de investigação seguida, foi toda ela arquitetada em métodos proibidos.

19.Os despachos judiciais proferidos nos presentes autos, e às doutas promoções do ministério público, foi com o recurso às interceções telefónicas, aos meios previstos nos artigos 4o, 6° e 9º da Lei 32/2008 que foram obtidas as provas que conduziram no terminus do inquérito à dedução de acusação contra o Recorrente e consequente julgamento, que determinaram a condenação do mesmo.

20.A autorização de acesso e a utilização dos meios de dados base e dados de tráfego, previstos da já referida Lei 32/2008 de 17 de julho, são ilegais por via do estatuído no artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que declara que "ninguém sofrerá intromissões arbitrais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência (...)", bem como no artigo 17° do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos.

21.As as normas do artigo 4º e 6º da Lei 32/2008 de 17 de julho referentes ao regime da conservação de dados permitem de modo desproporcionado e inaceitável os direitos à reserva da vida privada e familiar (artigo 26° no 1 da CRP) e à inviolabilidade das comunicações (artigo 34° nol da CRP), interpretados à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

22.Estamos pois, perante uma inconstitucionalidade material, em resultado do acórdão n. 268/2022 de 19.04, proferido pelo tribunal Constitucional, pelo que os despachos judiciais supra referidos são ilegais, porquanto em referência à inconstitucionalidade decretada, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 4º e 6º da Lei 32/2008 de 17 de julho.

23.Nos presentes autos, a autorização e o recurso aos meios previstos no artigo 9º da Lei 32/2008 de 17.07 referente ao regime da transmissão e acesso dos dados às autoridades competentes para a investigação, deteção e repressão dos crimes graves, configurará uma situação de desconformidade constitucional desses atos, uma vez que o visado, em que se inclui o Recorrente, não foi informado que os dados de que é titular foram transmitidos e tratados pelas as autoridades de policia criminal.

24.Como se invoca no acórdão no 268/2022 de 19.04 do Tribunal Constitucional no que diz respeito à norma contida no artigo 9º da Lei 32/2008 de 17.07, a violação do direito à tutela jurisdicional efetiva consagrada no n. l do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, porque não se prevê um qualquer mecanismo que permita que os sujeitos conheçam que os seus dados foram transmitidos às autoridades, não estabelecendo ou concretizando um dever de notificação aos visados das medidas de transmissão, impossibilitando na prática, a reação e defesa judiciais contra acessos ilegítimos aos dados transmitidos.

25.Resulta dos autos, que o recurso à categoria de dados prevista no artigo 4º, a sua conservação prevista no artigo 6º, bem como a sua transmissão prevista no 9º, todos da Lei no 32/2008, de 17.07. ZZ) No acórdão condenatório recorrido, do uso dos meios e da prova supra referida, resultaram provados factos imputados ao Recorrente, em que o Tribunal alicerçou a sua convicção na análise do teor das transcrições constantes, relatório de vigilância e seguimento, inexistindo qualquer dúvida que a prova valorada no acórdão condenatório para a condenação do ora Recorrente foi obtida com o recurso a meios declarados inconstitucionais pelo acórdão 268/2022 de 19.04 do Tribunal Constitucional.

26.O ora Recorrente nunca foi notificado por parte das autoridades de investigação nos presente autos do acesso aos seus dados armazenados nos termos do artigo 6º da Lei 32/2008 de 17 de julho, dados constantes da categoria do artigo 4º da citada Lei, pelo que tendo por base a declaração de inconstitucionalidade supra referida, proferida pelo Tribunal Constitucional.

27.Assim, a prova que serviu de base e fundamento à condenação do Recorrente é NULA.

28.A A utilização dos meios probatórios METADADOS para a obtenção da prova que serviu de fundamentação para a condenação e são ilegais, porquanto são métodos de prova proibidos e inutilizáveis.

29.O acórdão é pois NULO, pois assente em prova obtida por meios probatórios inconstitucionais, enferma da inconstitucionalidade prevista no artigo 35° no 1 e no 4, no artigo 26° no 1, no artigo 18 no 2 e no artigo 20° no 1, todos da CRP.

30.Da presente revisão necessariamente terá de resultar uma decisão de conteúdo mais favorável ao Recorrente, cfr. artigo 29° no 4 C.R.P.

31.Na sequência da prolação do acórdão no 268/2022 de 19 de abril, proferido pelo Tribunal Constitucional, necessariamente impõe-se a revisão do acórdão e a consequente improcedência da acusação no que concerne ao Recorrente e sua subsequente condenação.

32.O tribunal recorrido construiu um raciocínio com base em presunções, suposições que que serviram para criar uma tese de verificação de uma alegada prova indirecta, a qual, manifestamente impunha quanto ao ora Recorrente a sua absolvição.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que decida pela improcedência da acusação e consequente absolvição do Recorrente pelos motivos supra explanados.

2. Por despacho do Senhor Juiz do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada ... da comarca dos Açores, de .../.../2024, foi tal recurso admitido.

3. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, em .../.../2024, defendendo, em síntese, que o mesmo não merecia provimento.

4. Por sua vez, em .../.../2024, o Senhor Juiz titular do processo prestou a informação prevista no art. 454.º, do C.P.P., que passamos também a transcrever:

O arguido AA está condenado nos presentes autos na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. p. no artº.21º, nº.1 do Decreto-Lei 15/93 de ... e por decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa que transitou em julgado a ........2022.

O arguido interpôs o presente recurso extraordinário de revisão da condenação acima falada o qual foi admitido pelo despacho com a refª 56521651.

O MºPº respondeu ao recurso tal como resulta da peça com a refª 5593451.

Dispõe o artº.454º do Código de Processo Penal que “No prazo de oito dias após ter expirado o prazo de resposta ou terem sido completadas as diligências, quando a elas houver lugar, o juiz remete o processo ao Supremo Tribunal de Justiça acompanhado de informação sobre o mérito do pedido.”

Cumpre, assim, fazer a informação a que a norma citada faz referência.

Como bem resulta da fundamentação da decisão aqui em causa, o tribunal não deteve, em exclusivo aos dados de tráfego…antes de outros elementos probatório que estão nela especificados.

Para lá disso:

O artº.449º, nº.1, al.f) do CPP dispõe que a “revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão do TC tem de ser posterior ao trânsito em julgado da sentença a rever e tem de declarar a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.”

Do nº.3 do artº.282º do Constituição só pode ser este:

1. em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal);

2. todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. artº.29º, nº.4);

3. a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma, não podendo obstar a isso o preceito (de resto, de constitucionalidade muito duvidosa) do artº.2º, nº.4 do CP.

Neste sentido, “estabelece-se aqui uma limitação automática dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou da ilegalidade, em homenagem ao princípio do caso julgado (…) limitado este pelo princípio da norma penal (ou equiparada) mais favorável (…)” [J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MO-REIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, Pág. 1041, nota V].

Doutra banda, o TC também já teve oportunidade de assinalar a este propósito que “[o] Estado de direito é, também, um Estado de segurança. Por isso, dificilmente se conceberia o ordenamento de um Estado como este que não garantisse a estabilidade das decisões dos seus tribunais”.

Em suma, sempre se dirá, que a declaração de inconstitucionalidade decretada pelo acórdão do TC agarrado pelo arguido para fundar o seu recurso acórdão (nº.268/2022), não tem o efeito retroativo que lhe atribui, pelo que o recurso haverá de claudicar.

Notifique e remetam-se os autos ao STJ.

5. Neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 04/03/2024, douto e desenvolvido parecer, nos termos qual sustenta, em resumo, que a pretensão do recorrente não tem fundamento legal atendível, devendo, assim, improceder.

Observado o contraditório, nada foi acrescentado.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário de revisão constitui, nas assertivas palavras de Amâncio Ferreira1, o “último remédio contra os erros que atingem uma decisão judicial”.

Este expediente extraordinário visa a obtenção de uma nova decisão judicial que se substitua, através da repetição do julgamento, a uma outra já transitada em julgado2.

Trata-se, pois, de uma solução de compromisso entre o interesse de dotar o ato jurisdicional de firmeza e segurança e o interesse de que não prevaleçam sentenças que contradigam ostensivamente a verdade e, através dela, a justiça material.

Procura-se evitar, em ultima ratio, sentenças injustas e corrigir erros judiciários3.

Saliente-se que a revisão de sentenças e despachos que ponham termo ao processo tem uma larga tradição nosso direito4, encontrando-se já referenciada, como lembra FF5, nas Ordenações Afonsinas (Ord. III, §§ 1.º, 3.º, 5.º e 6.º).

Presentemente, tem consagração constitucional – art. 29.º n.º 6 da C.R.P. – e encontra-se prevista no art. 449.º e ss. do C.P.P.

Também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no Protocolo 7, art. 4.º, consagra que a sentença definitiva não impede a reabertura do processo, nos termos da lei do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior poderem afetar o resultado do julgamento.

É constituída por duas fases: a fase do Juízo rescindente e a fase do juízo rescisório6. A primeira abrange todos os termos que têm lugar desde a petição do recurso até à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, concedendo ou denegando a revisão. A segunda respeita ao conhecimento do mérito do próprio recurso, cabendo ao tribunal da primeira instância.

No caso da descoberta de novos factos ou novos elementos de prova, que é um dos fundamentos mais frequentemente utilizados pelos recorrentes, Cavaleiro de Ferreira7 chama a atenção para a indicação ser em alternativa, o que só pode significar que se trata de coisas diferentes.

Factos são os factos probandos; elementos de prova, as provas relativas a factos probandos. Quer dizer, por factos há que entender todos os factos que devem ou deveriam constituir tema da prova, seja direta ou indireta. Elementos de prova são os as provas destinadas a demonstrar a verdade de quaisquer factos probandos, quer dos que constituem o próprio crime, quer dos que são indiciadores de existência ou inexistência do crime.

2. Fechado este parêntese, em que tecemos breves considerações sobre a figura do recurso de revisão, e regressando à situação sub judice, constata-se da certidão junta aos autos que o arguido, ora recorrente, foi condenado por acórdão do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada ..., de .../.../2020, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, na pena de 6 anos de prisão, decisão que foi confirmada, na íntegra, por acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de .../.../2021, e transitado em julgado em .../.../2022.

Entende, agora, o recorrente que, por força do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de .../.../2022, a sua condenação enferma de inconstitucionalidade, uma vez que os factos apreciados e dados como provados em sede de julgamento, foram obtidos mediante o uso de métodos proibidos de prova.

A estratégia de investigação seguida foi toda ela arquitetada em métodos proibidos, tendo os despachos judiciais proferidos nos autos, bem como as promoções do Ministério Público, sido efetuados com o recurso às interceções telefónicas, aos meios previstos nos arts. 4º, 6º e 9º, da Lei 32/2008, tendo, deste modo, sido obtidas as provas que conduziram à dedução de acusação e consequente julgamento, que levaram à sua condenação.

3. Como vem sendo sublinhado por jurisprudência consolidada deste Tribunal8, a revisão da sentença transitada em jugado é admissível, nos termos do art. 449.º n.º 1 f), do C.P.P., quando seja declarada pelo Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

Ora, o invocado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04/20229, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição; e declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Porém, a declaração de inconstitucionalidade em causa não pode afetar decisões já transitadas em julgado, como é o caso da que condenou o ora recorrente10. Isto porque o art. 282º, da C.R.P., visando a salvaguarda do princípio da segurança jurídica, dispõe, para os casos de declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, que a mesma produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado, mas ficando «ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido» (Cfr. o seu n.º 3).

Acontece que o citado acórdão não excecionou a ressalva do caso julgado, pelo que, mesmo que a matéria dos autos fosse abrangida pela previsão da norma declarada inconstitucional, não poderia ter qualquer efeito.

Mas, ainda que assim não fosse, como pertinentemente salienta o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu completo parecer, a motivação da decisão, em matéria de facto, faz apelo a uma vasta panóplia de prova produzida e examinada em audiência, nela incluindo prova tarifada, como a pericial, e a prova consistente nas declarações dos arguidos, prestadas em audiência ou em 1.º interrogatório judicial, depoimentos de testemunhas, documentação vária (relatórios, fotografias, apreensões, buscas, transcrição de dados telemático, registos telefónicos, etc.), que foram determinantes para a formação da convicção do tribunal da condenação, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., e que estão longe de se cingirem aos excertos que o recorrente menciona, como longe estão de serem causais – e muito menos exclusivamente causais – da decisão condenatória.

Nesta conformidade, ter-se-á de concluir que a condenação do recorrente não se fundou pelo recurso aos metadados ou em prova de natureza proibida, sendo, assim, manifestamente infundado o pedido de revisão solicitado, seja ao abrigo da al. f), seja de qualquer outra alínea, do n.º 1, do art. 449.º, do C.P.P.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar a revisão requerida pelo condenado AA (art. 455.º n.º 3, do C.P.P.).

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, a que acresce mais 7 UC, nos termos do art. 456.º, também do C.P.P.

Lisboa, 17 de abril de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Antero Luís (Adjunto)

Ana Barata de Brito (Adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

____________________________

1. Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.º ed., Pg. 334.

2. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.º ed., pg. 203 e ss.

3. É muito vasta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o recurso de revisão, sendo, entre os mais recentes, entre outros, de destacar os acórdãos de 15/2/2024, 23/11/2023, 7/4/2022, 23/3/2022, 27/1/2022 e 20/10/2021, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Agostinho Torres, Leonor Furtado, António Gama, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias e Ana Barata de Brito, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

4. Sobre a evolução histórica do recurso de revisão, vide Paulo Renato de Freitas Belo, in JULGAR n.º 23-2014, pg. 85 e ss.

5. In Comentário ao Código de Processo Penal, Vol.VI, pg. 402.

6. Com mais desenvolvimento, veja-se, com interesse, Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Scientia Juridica, 1965, Tomo XIV, n.ºs 75-76 – Setembro-Dezembro, pg. 357 e ss., e o acórdão do STJ de 12/3/2009, cujo relator é o Senhor Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt.

7. Estudo já referenciado, pg. 521 e ss.

8. Cfr., v.g., os acórdãos de 21/2/2024, relator o Senhor Conselheiro Lopes da Mota, Proc. n.º 966/14.3JAPRT-C.S1, 7/12/2023, Senhor Conselheiro António Latas, Proc. n.º 2766/11.3TABRR-F.S1 e 13/9/2023, Senhora Conselheira M. Carmo Silva Dias, Proc. n.º 83/15.9PJLRS-O.S1, todos disponíveis no sítio indicado.

9. Publicado no D.R., S.I., de 03/06/2022.

10. Conforme já se teve oportunidade de dizer, o trânsito da mesma ocorreu em 21/01/2022.