Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2749/19.5T8PTM.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FACTOS SUPERVENIENTES
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRAZO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Salvo se houver acordo das partes na sua inclusão no objeto do processo, não se encontra prevista no atual regime processual civil a possibilidade de serem alegados, na fase de recurso de apelação, factos supervenientes ao encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, relativos à relação jurídico-material, o que não significa que não possam ser invocados factos supervenientes que determinem a inutilidade do recurso ou da lide, que respeitem à verificação de pressupostos processuais que ainda possam ser conhecidos nessa fase que sejam factos notórios ou do conhecimento funcional do juiz.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

O Autor deduziu ação declarativa, com processo comum, contra as Rés, formulando os seguintes pedidos:

a) Sejam as rés solidariamente condenadas no pagamento ao autor, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, no valor de € 304.365,62 (€ 296.502,22 + € 7.863,40), no qual se contêm os juros moratórios vencidos desde 18.03.2019 e 31.10.2019, a que acrescem os juros vincendos;

b) Sejam as rés solidariamente condenadas numa sanção pecuniária compulsória, em montante não inferior a € 750,00, desde a citação e até pagamento, com repartição de tal montante pelo autor e pelo Estado Português, nos termos do art.º 829.º-A, do Código Civil;

c) Sejam declaradas nulas as cláusulas contratuais apostas pela primeira ré nas condições gerais e especiais do contrato de seguro, firmado com o autor e com a segunda ré, com as devidas cominações legais, bem como se procedendo à devida notificação à Procuradoria Geral das mesmas, com vista ao seu registo e proibição de inserção em futuros contratos, como o impõe o vigente regime das cláusulas contratuais gerais;

d) Seja agravada a indemnização, por esse facto, em virtude de comportamento de má-fé e doloso, por parte da primeira ré, com isso pretendendo ganhar tempo e ganhos económicos com a poupança e rentabilização do capital indemnizatório, já acautelado pela mesma.

Para sustentar tais pedidos alegou, em síntese, o seguinte:

- É dono de um imóvel sito em ..., no qual foi edificada uma moradia unifamiliar, para a construção da qual foram solicitados os serviços profissionais da Segunda Ré, na qualidade de engenheira civil e projetista de obras de construção civil.

- A execução da obra ficou a cargo da empreiteira S..., Lda, com a qual o Autor celebrou um contrato de empreitada, para o que recorreu ao financiamento bancário.

- Celebrou também um contrato de seguro, com a Primeira Ré, por exigência da instituição bancária, para salvaguardar a responsabilidade pela reparação dos danos que pudessem advir da implementação do projeto de edificação da moradia.

- Contudo, nunca lhe foram explicadas as cláusulas de tal acordo, ao qual aderiu, sem possibilidade de conformar o seu conteúdo.

- Também a Ordem dos Engenheiros celebrou com a Primeira Ré um “contrato de seguro de grupo de responsabilidade civil profissional”, sendo que os engenheiros que integram a Ordem não foram devidamente informados das cláusulas de tal acordo.

- Devido a erro de cálculo no projeto elaborado pela Segunda Ré ficaram deformadas as lajes de cobertura, com fissuras e deslizamentos da referida moradia, o que determinou um atraso na obra e encargos adicionais na correção dessas anomalias que causaram ao Autor danos patrimoniais e não patrimoniais.

- Um desses danos é a obrigação do Autor pagar a S..., Lda, uma indemnização contratualmente prevista, no valor de € 137.751,56, pela suspensão dos trabalhos de construção com aquela contratados, necessária à correção das anomalias acima referidas.

Após contestação das Rés, pugnando pela sua absolvição, foi realizada audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença em 12.03.2023 que decidiu:

Condeno a ré BB a pagar ao autor AA a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação e até pagamento;

Condeno a ré «Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A.» a pagar ao autor AA a quantia de € 101.931,03 (cento e um mil e novecentos e trinta e um euros e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação e até pagamento;

Absolvo as rés do restante pedido contra as mesmas deduzido, pelo autor.

Relativamente ao pedido de pagamento da quantia de € 137.751,56, respeitante ao valor indemnizatório que alegadamente o Autor teria que pagar a S..., Lda, pela suspensão dos trabalhos da empreitada com esta empresa contratados, a ação foi julgada improcedente por não se ter provado que o autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (facto GG).

Inconformados com esta decisão, quer a 1.ª Ré, quer o Autor, interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 12.10.2023, decidido: julgar parcialmente procedente o recurso do Autor e totalmente improcedente o recurso da Ré pelo que, em consequência, se altera a decisão recorrida apenas na quantia devida pela Ré Seguradora que será no montante total de € 102.241,50, sendo devidos juros de mora a contar de 24 de agosto de 2019. No mais, confirma-se a sentença recorrida.

Este acórdão manteve como não provado o facto GG, pelo que confirmou a decisão de improcedência do pedido de condenação das Rés a pagar ao Autor o referido valor de € 137.751,56.

Desta decisão o Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo

A) O ora Recorrente recorre apenas do douto acórdão na parte em que não aceitou a junção dos documentos em sede de alegações de recurso, que visavam dar como provados os seguintes factos:

- “GG) O autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (cento e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e seis cêntimos).”;

- Em 09 de Maio de 2023, o Autor recebeu da Empreiteira identificada em C), uma carta de interpelação acompanhada da Fatura FT FAT.2023/64 emitida em 09-05-2023, com vencimento imediato, no valor de € 137.751,56, com a Descrição “Indemnização nos termos da clausula 9ª, ponto 2 do contrato de empreitada assinado a 21/05/2018. 120 dias x 1147,929€”;

- Em 11 de Maio de 2023, o Autor liquidou a citada fatura, pagando à Empreiteira mencionada a quantia de € 137.751,56, mediante transferência bancária através da conta que detém no Banco “.... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN PT.....................19, para a conta que a citada Empreiteira detém igualmente no Banco “... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN PT.....................31;

- Tendo a citada Empreiteira, consequentemente, emitido ao Apelante em 11-05-2023 o Recibo RG REC.2023/57 no valor de € 137.751,56.

B) O acórdão recorrido, apesar de tecer considerações sobre a requerida junção de documentos às alegações de recurso, acabou por não se pronunciar, em sede de decisão, quanto à admissibilidade ou não de tais documentos, incorrendo assim no vício de nulidade nos termos do Art. 615.º, nº 1, al. d) do CPC.

C) O Recorrente requereu a junção de documentos com as alegações de recurso de apelação ao abrigo do disposto nos Arts. 425.º e 651.º, nº 1 do CPC, tendo em consideração que

- No Art. 39º da PI foi alegado que “Ao não ter concluído a obra tempestivamente, por força das condições contratuais da empreitada, relativamente ao “empreiteiro geral”, o Autor será obrigado a liquidar, ao empreiteiro geral, a quantia de € 137.751,56 (cento e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e seus cêntimos), respeitante a 120 dias de atraso [desde a suspensão da obra, análise pela 1ª Ré e retomada da mesma], à razão de € 1.147,00 (mil e cento e quarenta e sete euros) diários, conforma Cláusula Nona, n.º 2, do Contrato de Empreitada [Doc.18 – Contrato de Empreitada de 21/05/2018];

- Ficara dado como não provado que: GG) O autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (cento e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e seis cêntimos).

D) Tendo em conta a data dos documentos em causa e tendo em consideração que o momento de exigência da indemnização e emissão da respetiva fatura é um ato de vontade da Empreiteira que o ora Recorrente não domina, nem pode dominar, ou seja, ao ora Recorrente era completamente impossível juntar tais documentos até ao encerramento da discussão, forçoso é de concluir que os documentos juntos são supervenientes e, como tal, com o suporte legal, deveriam ter sido admitidos.

E) Ao contrário do que o douto acórdão recorrido entendeu, não é verdade que o facto em si seja também ele superveniente, ou seja, não é verdade que os documentos em causa consubstanciem a criação de um facto novo que não existia à data do julgamento.

F) Assim como não corresponde à realidade que os documentos apresentados, ao invés de provar a existência de um facto alegado, demonstram precisamente que o facto não existia, nessa data, só veio a ser criado depois.

G) O Tribunal a quo não atentou na prova produzida em audiência de julgamento onde a existência desse facto – interpelação do empreiteiro para pagamento da penalidade contratual – já havia sido colocada anteriormente

H) Na verdade, fez-se prova que a Empreiteira já havia exigido ao ora Recorrente o pagamento da mencionada sanção contratual, bastando ouvir declarações de parte prestadas pelo Autor, devidamente assinaladas no presente recurso.

I) Com estas declarações de parte ficou claro que o Autor/Recorrente já havia sido interpelado verbalmente pelo Empreiteiro no sentido de ter de liquidar a sanção contratual pela suspensão da obra.

J) O envio da carta com a fatura da penalidade é que apenas ocorreu em momento posterior à prolação da sentença.

K) Verifica-se, pois, que houve uma errada aplicação da lei por parte da Relação de ..., no que concerne à apreciação quanto à tempestividade e admissibilidade de tais documentos.

L) Os documentos apresentados pelo Apelante, aqui Recorrente, deviam ter sido admitidos e, em consequência, extraídas as consequências em termos de factos provados e pedido formulado nos autos.

M) Assim, ao decidir como decidiu o douto acórdão violou o disposto nos Arts. 423.º, nº 3, 425.º, 615.º, nº 1, al. d), 651.º, nº 1 do CPC, bem como os Arts. 405º, 406º, nº 1, 487º, n.º 2, 496º, nº 1, 563º, 564º, nº 2, 762º, n.º 1 e 2, 798º, 799º, n.º 1 e 2, 804º, nº 1, 1154º e segs., 1207º e segs., todos do Código Civil.

As Rés responderam, sustentando a improcedência do recurso, tendo a Ré BB, invocado previamente a inadmissibilidade do recurso de revista.


*


II – Da admissibilidade do recurso de revista

Nas conclusões da resposta ao recurso, alega a Ré BB o seguinte, no que respeita à admissibilidade do presente recurso de revista interposto pelo Autor:

B. A decisão da não admissibilidade da junção de documentos com a interposição do recurso de apelação é uma decisão introdutória que antecedeu a decisão de mérito;

C. O Acórdão da Relação julgou parcialmente procedente a apelação interposta pelo Recorrente alterando a sentença apenas na quantia devida pela Ré Seguradora que será no montante total de € 102.241,50, sendo devidos juros de mora a contar de 24 de agosto de 2019, deixando-o numa situação mais favorável do que a que tinha perante a sentença da 1ª instância;

D. O que significa que, no mais, confirmou a sentença recorrida, e através de uma fundamentação em tudo idêntica à que esta sentença havia utilizado, que acabou por operar a dupla conforme;

E. Sendo inequívoca a existência dessa conformidade quando o recorrente nenhum benefício alcança com a decisão da Relação por esta se haver limitado a confirmar a decisão da 1ª instância, seria totalmente contrário ao espírito da lei – que é o de restringir o acesso ao STJ quando as instâncias decidiram no mesmo sentido e sem fundamentação essencialmente diferente – e até das regras da lógica, que a parte descontente, vendo a sua situação melhorada, pudesse, exatamente por isso, aceder ao terceiro grau de jurisdição;

F. Não se compreenderia que o Recorrente estivesse impedido de aceder ao terceiro grau de jurisdição no caso de a sua apelação ter sido julgada improcedente, mas visse esse acesso viabilizado na hipótese de a decisão de 2ª instância o beneficiar;

G. Sempre que o apelante obtenha uma procedência parcial do recurso na Relação, isto é, sempre que a Relação pronuncie uma decisão que é mais favorável – tanto no aspecto quantitativo, como no aspeto qualitativo – para esse recorrente do que a decisão proferida pela 1ª instância, está-se perante duas decisões “conformes” que impedem que essa parte possa interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça e que determinam a improcedência do presente recurso;

H. Acresce ainda que o recurso de revista é o recurso ordinário que cabe dos acórdãos do Tribunal da Relação, tendo assim como fundamento a violação da lei substantiva – nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação ou da determinação da norma aplicável –, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão;

I. A competência do Supremo Tribunal de Justiça está confinada à matéria de direito, circunstância que o impede de se debruçar sobre a matéria de facto, nos termos pretendidos pelo Recorrente;

J. O Recorrente impugna a matéria dada como não provada na alínea GG) e requer o aditamento de factos que considera provados, por referência aos documentos que juntou com o requerimento de interposição do recurso de apelação, o que demonstra a sua discordância com o factualismo apurado e tomado em consideração pela Relação, circunstância que não é sindicável pelo STJ como resulta do nº 4 do art. 662º do CPC;

K. Acresce ainda não ser essa uma situação que possa afectar a existência da dupla conforme, e justificar a admissão do recurso de revista, já que não foi também alegada qualquer circunstância prevista no art. 629º, nº 2 do CPC, que pudesse determinar tal admissão, motivos pelos quais deverá o requerimento de interposição do recurso ser indeferido.

Acompanhamos o início do raciocínio da Ré quando entende que a decisão de não admissão dos documentos juntos pelo Autor com o recurso de apelação, apesar de se encontrar formalmente incluída no acórdão que conheceu do mérito do recurso, não deixa de ser uma decisão interlocutória do Tribunal da Relação, sujeita às regras do artigo 673.º do Código de Processo Civil, pelo que só pode ser objeto de recurso se aquela decisão de mérito for suscetível de recurso de revista, nos termos do artigo 671.º do Código de Processo Civil.

A Ré entende que essa decisão não admite recurso, atento o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, porque ela julgou parcialmente procedente a apelação interposta pelo Recorrente, alterando a sentença apenas na quantia devida pela Ré Seguradora que será no montante total de € 102.241,50, sendo devidos juros de mora a contar de 24 de agosto de 2019, deixando-o numa situação mais favorável do que a que tinha perante a sentença da 1ª instância, o que significa que, no mais, confirmou a sentença recorrida, e através de uma fundamentação em tudo idêntica à que esta sentença havia utilizado, que acabou por operar a dupla conforme.

Em matéria de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito o Supremo Tribunal de Justiça fixou recentemente jurisprudência, através do Acórdão n.º 7/22 1 no sentido de que a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671º, nº. 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do Acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.

Esta doutrina é também aplicável às indemnizações por responsabilidade contratual, por identidade de razões, pelo que, neste caso, em princípio, não só se verificaria globalmente uma situação de reformatio in mellius, também ela impeditiva da interposição de um recurso de revista pelo Autor, como cindindo a parcela indemnizatória correspondente ao valor da indemnização que o Autor teria que pagar à sociedade empreiteira, pela suspensão da obra, imputável ao cumprimento defeituoso da 2.ª Ré, verificava-se, quanto a ela, uma rigorosa dupla conformidade (improcedência do pedido, relativamente a essa parcela).

No entanto, há que atender às particularidades do presente caso:

- o Autor, na petição inicial, além do mais, pediu que as Rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de € 137.751,56, uma vez que, devido ao cumprimento defeituoso da prestação da 2.ª Ré, estava obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da sua moradia naquele valor, pelo tempo de suspensão da obra, conforme se encontrava contratualmente previsto.

- a sentença recorrida considerou que a existência dessa “obrigação” de indemnização do empreiteiro pelo Autor não se tinha provado – facto GG -, tendo absolvido as Rés do pagamento dessa quantia.

- o Autor, na impugnação da decisão da matéria de facto constante do recurso de apelação, sustentou a prova do referido facto GG, tendo apresentado com o recurso de apelação documentos e arrolado testemunhas para prova desse facto, além de invocar declarações de parte e depoimentos testemunhais já prestados na audiência de julgamento realizada na 1.ª instância.

- o acórdão do Tribunal da Relação que apreciou esse recurso não admitiu a junção dos referidos documentos com o recurso de apelação, por considerar que os mesmos não reuniam os requisitos exigidos pelo artigo 425.º do Código de Processo Civil, tendo julgado improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao referido facto GG.

Esta não admissão dos documentos juntos com o recurso de apelação pelo Tribunal da Relação que condicionou a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto quanto à prova do facto GG, como é óbvio, é um fundamento que não tem correspondência na decisão proferida na 1.ª instância, uma vez que estes novos documentos só foram apresentados com o recurso de apelação.

Como refere Abrantes Geraldes 2, nestas situações em que seja apontado à relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual que não corresponda a uma mera confirmação do que tenha sido decidido a tal respeito na decisão da 1.ª instância, a confirmação da sentença recorrida no segmento referente à apreciação do mérito da apelação não traduz uma efetiva situação de dupla conforme relativamente a tais aspetos de ordem formal, já que as questões emergiram ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação. Na substância este acórdão revelará uma situação de dupla conforme quanto à matéria de direito, mas precisamente pelo motivo de eventualmente estar inquinada de erro decisório relativamente á questão adjetiva situada a montante que tenha condicionado precisamente a decisão da matéria de facto provada e não provada.

Não há, pois, uma dupla conformidade decisória quanto à não admissão dos documentos juntos com o recurso de apelação, tendo essa decisão interlocutória da Relação condicionado o julgamento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao referido facto GG.

Poder-se-ia ainda colocar a questão do recurso de revista normal não ser admissível por a questão sob recurso ter como fundamento um erro na apreciação das provas (artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), uma vez que exige um juízo sobre a relevância dos documentos cuja junção se pretende.

No entanto, no presente caso, esse argumento não tem pertinência, uma vez que o fundamento da recusa da junção dos documentos não foi a sua irrelevância para a decisão da causa, mas sim a circunstância dos mesmos visarem a prova de factos ocorridos após o encerramento da discussão em 1.ª instância, o que se traduz na alegação de um erro na aplicação da lei do processo alheia a um juízo de apreciação das provas produzidas ou de fixação dos factos provados.

Não se verificando nenhum impedimento ao conhecimento do recurso de revista interposto, deve o mesmo ser conhecido.


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III – Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apreciar se existe uma omissão de pronúncia relativamente à admissibilidade dos documentos juntos pelo Autor com o recurso de apelação e se esses documentos deveriam ter sido admitidos e valorados, relativamente à prova do facto GG.


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IV – Da nulidade por omissão de pronúncia

O Recorrente invoca que o acórdão recorrido é nulo porque, em sede de decisão, não se pronunciou sobre a admissibilidade dos cinco documentos por si juntos com as alegações do recurso de apelação.

Entende o Recorrente que, por na parte final do acórdão não constar uma decisão expressa sobre a admissibilidade dos cinco documentos que juntou com as alegações de recurso, existe uma omissão de pronúncia.

Ora, lendo o acórdão recorrido, constata-se que aquando da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto se apreciou a admissibilidade dessa junção, tendo-se concluído nos seguintes termos:

Pelas razões supra descritas, não é admissível a junção dos documentos tal como requerido, porque os mesmos não se enquadram na previsão das normas supra referidas relativas à possibilidade de junção de documentos com as alegações de recurso.

Assim, não serão os mesmos considerados na apreciação da prova, por absoluta falta de fundamento legal, para tanto.

Foi, pois, apreciada e expressamente decidida a questão da admissibilidade da junção de documentos em fase de recurso, não sendo necessário que essa decisão fosse repetida na parte final do acórdão, pelo que não existe uma omissão de pronúncia que, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil determine a nulidade do acórdão recorrido, improcedendo, assim, este fundamento do recurso.


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IV - Os factos

Da consulta dos autos resulta que se encontra provada a seguinte matéria relativa à tramitação processual

1. Na petição inicial, além do mais, o Autor pediu que as Rés fossem condenadas a pagarem-lhe € 137.751,56, uma vez que ele, nos termos constantes do contrato de empreitada celebrado com S..., Lda, estava obrigado a indemnizar essa sociedade nesse valor, devido à suspensão dos trabalhos de empreitada ocasionados pela necessidade de correção das lajes de cobertura que, por erro de cálculo no projeto elaborado pela Segunda Ré ficaram deformadas, com fissuras e deslizamentos.

2. Foi realizada audiência de julgamento no dia 19.01.2023,

3. Na sentença proferida 12.03.2023 foi julgado não provado que o autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (facto GG).

4. No recurso de apelação interposto pelo Autor da sentença acima referida, foi alegado o seguinte:

(...)

J) Acresce que, no passado dia 09 de Maio de 2023, o ora Apelante recebeu da Empreiteira da obra dos autos – “S..., Lda”, NIPC .......44, com sede na Urbanização ..., Lote F, Loja D, ... ..., uma carta de interpelação acompanhada de uma fatura – cfr. Doc.1 que se junta e dá por integralmente reproduzido.

K) Carta essa que vinha acompanhada da Fatura FT FAT.2023/64 emitida em 09-05-2023, com vencimento imediato, no valor de € 137.751,56, com a Descrição “Indemnização nos termos da cláusula 9ª, ponto 2 do contrato de empreitada assinado a 21/05/2018. 120 dias x 1147,929€” (cfr. Doc. 1 citado).

L) Tendo em consideração o teor da cláusula NONA, número dois, do “Contrato de Empreitada” junto aos autos – doc.18 junto com a petição inicial (de fls. 193 a 201 verso), que prevê:

“2. Em caso de suspensão ou atraso na conclusão da obra por facto imputável ao DONO DA OBRA, pode a EMPREITEIRA aplicar uma sanção contratual, por cada dia de atraso ou paragem dos trabalhos, de 2% (dois por mil) do preço contratual.”,

M) O ora Apelante, honrando o contrato celebrado e a palavra que havia dado, liquidou na presente data – 11 de Maio de 2023 – a citada fatura, pagando à Empreiteira “S..., Lda” a quantia de € 137.751,56, mediante transferência bancária através da conta que detém no Banco “.... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN..., para a conta que a citada Empreiteira detém igualmente no Banco “.... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN ... (cfr. Docs. 2, 3 e 4 que se juntam e dão por integralmente reproduzidos).

N) Tendo a citada Empreiteira, consequentemente, emitido ao Apelante, em 11-05-2023 o Recibo RG REC.2023/57 no valor de € 137.751,56 (cfr. Doc. 5 que se junta e dá por integralmente reproduzido).

O) Nessa medida, tendo em conta a data dos documentos em causa e tendo em consideração que o momento de exigência da indemnização e emissão da respetiva fatura é um ato de vontade da Empreiteira que o ora Apelante não domina, nem pode dominar, ou seja, ao ora Apelante era completamente impossível juntar tais documentos até ao encerramento da discussão, forçoso é concluir que os documentos ora juntos são supervenientes e, como tal, ao abrigo dos Arts. 425.º e 651º, nº 1 do CPC, deverão ser admitidos, o que se requer,

P) Indicando desde já, a título de prova testemunhal e para o caso de se entender necessário, a inquirição da seguinte testemunha: CC, Gerente da S..., Lda, com domicílio profissional na Urbanização ..., Lote F, Loja D, ... ....

Uma vez admitidos tais documentos, pretende o ora Apelante impugnar igualmente o facto dado por NÃO PROVADO constante da alínea GG) O autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (cento e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e seis cêntimos).

Q) Facto este que, tendo em consideração os documentos ora juntos, deverá ser dado agora como PROVADO.

R) E porque pertinentes à boa decisão da causa e tendo sido alegado no art.º 39 da Petição Inicial que “39 – Ao não ter concluído a obra tempestivamente, por força das condições contratuais da empreitada, relativamente ao “empreiteiro geral”, o Autor será obrigado a liquidar, ao empreiteiro geral, a quantia de € 137.751,56 (Cento e Trinta e Sete Mil e Setecentos e Cinquenta e Um Euros e Cinquenta e Seis cêntimos), respeitante a 120 dias de atraso [desde a suspensão da obra, análise pela 1.ª Ré e retomada da mesma], à razão de € 1.147,00 (Mil e Cento e Quarenta e Sete Euros) diários, conforme Cláusula Nona, n.º 2, do Contrato de Empreitada [Doc.18 – Contrato de Empreitada de 21/05/2018].”,

S) Deverão ser considerados e dados por PROVADOS os seguintes factos:

- Em 09 de Maio de 2023, o Autor recebeu da Empreiteira identificada em C), uma carta de interpelação acompanhada da Fatura FT FAT.2023/64 emitida em 09-05-2023, com vencimento imediato, no valor de € 137.751,56, com a Descrição “Indemnização nos termos da clausula 9ª, ponto 2 do contrato de empreitada assinado a 21/05/2018. 120 dias x 1147,929€”;

- Em 11 de Maio de 2023, o Autor liquidou a citada fatura, pagando à Empreiteira mencionada a quantia de € 137.751,56, mediante transferência bancária através da conta que detém no Banco “.... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN ..., para a conta que a citada Empreiteira detém igualmente no Banco “.... – Sucursal em Portugal”, através do IBAN ...;

- Tendo a citada Empreiteira, consequentemente, emitido ao Apelante em 11-05-2023 o Recibo RG REC.2023/57 no valor de € 137.751,56.

T) Em termos de prova testemunhal, constante do processo, temos os depoimentos prestados em audiência que se encontram gravados e registados, cujos excertos foram identificados no presente recurso, do Autor AA e das testemunhas DD, EE e FF.

U) Em termos de prova documental, constante do processo, temos:

- Contrato de Empreitada” – documento n.º 18 junto com a petição inicial (de fls. 193 a 201 verso) – cláusula NONA, ponto dois;

- Os cinco documentos juntos com o presente recurso – carta de interpelação + fatura + comprovativos bancários de pagamento + recibo – os quais atestam o pagamento, pelo Autor, da indemnização devida ao Empreiteiro a título de suspensão/paragem dos trabalhos.

V) Sendo que, conforme resulta da lei, A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

5. Com o recurso de apelação juntou o Autor os documentos acima referidos nas alíneas K), M) e N) das conclusões das alegações desse recurso.

6. Na resposta a este recurso, a Segunda Ré, além do mais, impugnou a veracidade e a genuinidade das assinaturas constantes dos documentos juntos, por desconhecer, se as mesmas são verdadeiras e por desconhecer, sem obrigação de conhecer, se os factos constantes de tais documentos correspondem à realidade.


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V - O direito aplicável

No presente recurso encontra-se em discussão a admissibilidade da junção de cinco documentos com o recurso de apelação, por parte do Recorrente.

Dispõe o artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

Por sua vez o artigo 425.º do mesmo diploma prevê:

Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

O acórdão recorrido não admitiu os cinco documentos juntos pelo Autor com as alegações de recurso, pelas seguintes razões:

Com estes documentos pretende o Apelante que se dê como provada a matéria que consta do elenco de factos não provados, na alínea GG), com o seguinte teor: “GG) O autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (cento e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e seis cêntimos).”

Adiantamos, desde já, que os documentos em análise não se integram na exceção mencionada a que se referem os preceitos legais supra transcritos.

Repare-se que, ao serem admitidos documentos que só posteriormente podem ser apresentados, é pressuposto dessa faculdade que apenas os documentos são supervenientes, não o facto que eles se destinam a provar. Ora, no caso em apreço, não é isso que sucede. O que sucede é que tais documentos consubstanciam a criação de um facto novo que não existia à data do julgamento e, por isso, não podia ser dado como provado. Aliás, os documentos ora apresentados, ao invés de provar a existência de um facto alegado, demonstram precisamente que o facto não existia, nessa data, só veio a ser criado depois.

Independentemente de a alínea GG), em rigor, não ser um facto e antes melhor se lhe adequar a classificação de conclusão jurídica, motivo pelo qual nem sequer devia fazer parte do elenco dos factos nem provados nem não provados, a junção dos documentos juntos com as alegações não são idóneos a operar a transferência da respetivo texto do elenco da factualidade não provada para o elenco dos factos assentes.

Os cinco documentos juntos pelo Autor com as alegações de recurso foram os seguintes:

- carta de interpelação para pagamento acompanhada de fatura emitida 9.05.2023 de S..., Lda, com vencimento imediato, no valor de € 137.751,56, com a Descrição “Indemnização nos termos da cláusula 9.ª, ponto 2, do contrato de empreitada assinado a 21.05.2018. 120 dias x 1147,929 € - doc. n.º 1”.

- comprovativo de transferência bancária em 11.05.2023, no valor de € 137.751,56, de uma conta bancária do Autor para uma conta bancária titulada por S..., Lda (doc. 2, 3 e 4).

- recibo emitido por S..., Lda, em 11.05.2023, do pagamento pelo Autor de € 137.751,56 (doc. n.º 5).

Todos estes documentos só foram emitidos após o encerramento da discussão na 1.ª instância, pelo que não existiu a possibilidade de eles serem juntos até esse momento, sendo documentos objetivamente supervenientes.

No entanto, conforme fez notar o acórdão recorrido, os factos que eles documentam – interpelação do Autor pela S..., Lda, para pagamento da quantia de € 137.751,56 e pagamento dessa quantia pelo Autor – , ocorreram em 09.05.2023 e 11.05.2023, isto é, após o encerramento da discussão da causa em 1.ª instância, pelo que os mesmos se destinam a provar factos supervenientes a esse momento.

A possibilidade de serem invocados novos factos supervenientes na fase de recurso de apelação tem sido objeto de alguma controvérsia na doutrina.

Alberto dos Reis 3, no domínio do Código de Processo Civil de 1939, após a Reforma de 1995, escrevia que o facto superveniente há- de ser alegado até ao encerramento da discussão; o tribunal só pode tomá-lo em conta se for invocado até esse momento. Mas por encerramento da discussão entende-se tanto o que se verifica na 1.ª instância, como o que se verifica na 2.ª. Suponhamos que o facto ocorre depois de encerrada a discussão na 1.ª instância; já não pode ser atendido na sentença. Mas, se houver recurso, pode o facto ser alegado perante a Relação, contanto que o seja até ao encerramento da discussão neste tribunal. Se ocorrer ou for invocado depois de encerrada a discussão na 2.ª instância, já não pode ser considerado, ainda que se interponha recurso para o Supremo, visto este tribunal não conhecer de matéria de facto.

Também Teixeira de Sousa 4, já no domínio do Código de Processo Civil de 1961, sustentou que a possibilidade de apresentar documentos supervenientes relativos a factos alegados deve ser considerada um afloramento de um princípio mais geral: aquele segundo o qual as ocorrências supervenientes que incidem sobre esses factos e que sejam compatíveis com a prova suscetível de ser produzida no procedimento de recurso (que é quase apenas a prova documental) devem ser tomadas em consideração na instância de recurso. Dava como exemplo, não só os factos relativos à matéria específica dos recursos, como os factos supervenientes relativos à matéria apreciada na instância recorrida, assim como os factos supervenientes relativos à apreciação dos pressupostos processuais.

Em igual momento, Amâncio Ferreira 5 após uma evolução nas suas posições sobre esta matéria, admitia que os documentos que era possível apresentar na 2.ª instância destinam-se não só à prova dos factos submetidos à consideração do tribunal a quo, como ainda à prova dos factos posteriores ao encerramento da discussão na 1.ª instância ..., devendo ser admitidos documentos destinados a comprovar factos supervenientes estranhos à matéria que é objeto da demanda ou visem pôr termo a esta.

Também Nuno Pissarra 6, perfilhava a opinião que a lei processual não impedia que até ao termo do prazo para apresentar as alegações de recurso, se alegassem factos supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância quando e desde que, em concreto, seja assegurado o contraditório, a parte que alega os factos tenha procedido de boa fé e da alegação e conhecimento não resulte perturbação inconveniente para o julgamento do pleito.

Já no domínio do Código de Processo Civil de 2013, Cardona Ferreira 7, sem concretizar, chamava a atenção para o princípio da atualidade decisória refletido no disposto no artigo 611.º daquele diploma, dizendo que não pode esquecer-se a orientação do artigo 611.º e, daí, a possibilidade de conhecimento atualístico de factualidade desde que seja conveniente e, decerto, respeitadora de todos os pressupostos da superveniência e de relevância exigidos pelo artigo 611.º”, acrescentando que “não obstante os recursos cíveis serem, em Portugal, basicamente, de reponderação (revisão do que foi decidido) e não de reexame (realização, ex novo, de julgamento), não se podem esquecer os princípios da verdade e da atualidade decisória (art. 611.º).

Após a aprovação do Código de Processo Civil de 2013, Miguel Teixeira de Sousa 8 reafirmou a possibilidade de serem considerados factos supervenientes ao encerramento da discussão na 1.ª instância, alegados pela primeira vez no tribunal de recurso, nomeadamente quando a ocorrência superveniente implica a confirmação de uma decisão que era errada antes da verificação do facto, mas que se torna correta em função de acontecimento superveniente, apelidando essa superveniência de “fraca”. Já quanto a uma denominada “superveniência forte” de factos principais, opinou no sentido de que a natureza de reponderação do recurso opõe-se à admissibilidade da alegação do facto superveniente, salvo se o mesmo respeitar a pressupostos processuais ou se resultar do reconhecimento de factos desfavoráveis (confissão).

Opinando em sentido contrário, Castro Mendes 9, no domínio do Código de Processo Civil de 1961, dizia que a lei permite o uso de documentos novos, mas não a alegação de factos novos; e são coisas evidentemente distintas. A invocação de factos novos, parece só ser possível até ao encerramento da discussão em primeira instância.

Foi essa também a opinião expressa por João Espírito Santo 10.

Na mesma linha, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro 11, já perante a redação do Código de Processo Civil de 2013, referem que o julgamento da Relação não pode ter por objeto factos novos, factos que não puderam ser considerados pelo juiz do tribunal a quo.

Rui Pinto, efetuando uma interpretação sistemática do atual regime de recursos que qualifica como um regime de reponderação e não de reexame, igualmente entende que, em regra, o acórdão da Relação deve ser elaborado de modo que corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão em primeira instância, sem admissão de factos supervenientes 12.

Essa posição de princípio foi também assumida por Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes 13, no domínio do Código de Processo Civil de 1961, e por Isabel Alexandre 14, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre 15, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa 16, já após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013.

Na jurisprudência, tal como sucede com o acórdão recorrido, é comum afirmar-se a inalegabilidade de factos supervenientes em recurso, com fundamento em que a natureza da intervenção do tribunal de recurso é de reponderação da decisão recorrida e não do seu reexame, e que as disposições legais apenas admitem a alegação de factos supervenientes durante a pendência do processo em 1.ª instância 17.

No entanto, em determinadas situações, encontramos decisões, admitindo a alegabilidade de factos supervenientes em fase de recurso perante o tribunal da Relação 18.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2022 19 procurou encontrar uma solução dúctil para esta problemática, tentando encontrar um ponto de equilíbrio móvel entre os interesses da economia processual e da estabilidade objetiva da instância.

Lê-se nesse aresto:

Como é sabido, o processo está organizado por “ciclos rígidos” de atos processuais, assistindo às partes o direito de praticarem os atos neles inscritos e estando-lhes vedada a possibilidade de praticarem os atos inscritos noutros ciclos, pelo que os princípios processuais da estabilidade da instância e da preclusão, com consagração indiscutível no nosso CPC (cfr. arts 260.º, 264.º, 265.º, 573.º do CPC), não serão facilmente conciliáveis com o conhecimento de factos supervenientes pelo tribunal de recurso, ao invés do que é incutido pelo princípio da economia processual (art. 130.º, 610.º e 611.º do CPC), segundo o qual pode dizer-se que o que interessa é resolver, de uma vez, o litígio entre as partes (mesmo que isso implique prescindir da estabilidade e disciplina desejáveis).

E procurando articular/conciliar o que decorre de tais princípios processuais, impõe-se reconhecer que os factos supervenientes (essenciais) escapam à ratio da preclusão fundada na violação da disciplina processual: como dizia o Prof. Manuel de Andrade, o princípio da preclusão “pode acarretar prejuízo para o triunfo da verdade material, porque as deduções tardias podem trazer ao juiz novos elementos de convicção, aproveitáveis para as finalidades da justiça. A preclusão não deve atingir, portanto, as deduções supervenientes”, ou seja, não é pertinente raciocinar-se que os factos (todos os factos) supervenientes (essenciais) têm de ser alegados, sob pena de preclusão, nos termos do atual art. 588.º do CPC.

Por conseguinte, resultando sérias vantagens no plano da economia processual e não havendo graves inconvenientes para os valores subjacentes à estabilidade objetiva da instância, propendemos para considerar que podem ser alegados e conhecidos factos supervenientes (essenciais) em recurso.

Mas, claro, tal como não se deve negar, em termos absolutos, a alegação e conhecimento de factos supervenientes (essenciais), também não deve conceder-se às partes completa liberdade para alegar factos supervenientes (essenciais) em recurso: no conflito entre a estabilidade da instância e a economia processual, a lei vigente reconhece prevalência à primeira, como resulta do art. 264.º do CPC, segundo o qual, mesmo com o acordo das partes, a alteração ou ampliação do pedido ou da causa de pedir só serão possíveis “se tal alteração ou ampliação [não] perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa”.

E é este o ponto/critério: sempre que da alegação de factos supervenientes (essenciais) e da sua consideração possam resultar perturbação inconveniente para o julgamento do recurso, então tal alegação não deve ser atendida, ou seja, concretizando, a alegação e o conhecimento de factos supervenientes (essenciais) não trará perturbação inconveniente para o julgamento na hipótese de o réu/recorrido confessar as novas alegações do A. e/ou na hipótese do A. provar por documento, não impugnado, as suas novas alegações; mas, ao invés, já trará perturbação inconveniente e não deve ser atendida a alegação de factos supervenientes (essenciais) que requeiram a produção de prova testemunhal.

Apesar de habitualmente ignorado na enumeração académica dos princípios que norteiam o processo civil, desde há muito que a lei processual enuncia o princípio da estabilidade da instância, encontrando-se essa referência no artigo 266.º do atual Código de Processo Civil – citado o Réus a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, sendo no momento da citação do Réu que a instância se estabiliza (artigo 564.º, b), do Código de Processo Civil).

Isso significa que, citado o demandado, a modificação subjetiva (intervenientes processuais) e objetiva (causa de pedir e o pedido) da causa, somente pode ocorrer, dependendo sempre da vontade das partes, nas situações prevenidas na lei e observados que sejam os requisitos de que depende o respetivo exercício.

Constituindo o processo civil uma sequência de atos, ordenados em fases sucessivas, que visam a resolução de um litígio que um tribunal é convocado a solucionar, a alteração dos termos do litígio, assim como dos seus protagonistas, são fatores de perturbação que podem obrigar a um contínuo refazer de atos processuais já praticados, de modo a garantir que os novos termos ou os novos intervenientes usufruam das garantias de participação e apreciação que o ordenamento processual previsto visa assegurar.

Daí que, com consciência de que, prosseguindo salutares razões de economia processual, se deve procurar obter o máximo resultado processual, através do mínimo de atividade possível, evitando-se a necessidade de instaurar novos processos para a resolução total e definitiva dos conflitos, o legislador tenha procurado prever e regular especificamente a possibilidade de ocorrerem modificações subjetivas ou objetivas na relação jurídico-processual durante o seu decurso.

Relativamente aos factos supervenientes, ou seja aqueles que ocorrem ou sejam conhecidos na pendência do processo (artigo 588.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), os mesmos podem ingressar no objeto do processo, nos mesmos termos em que é admitida a alteração da causa de pedir, com a alegação de “factos velhos” - ou seja com o acordo das partes, mesmo na 2.ª instância (artigo 264.º do Código de Processo Civil), confessados e aceites pela contraparte (artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), complementares ou instrumentais que resultem da discussão da causa (artigo 5.º, n.º 2, a) e b), do Código de Processo Civil), os notórios e aqueles que o juiz tem conhecimento no exercício das suas funções (artigo 5.º, n.º 2, c), do Código de Processo Civil) – e ainda através da possibilidade de deduzir articulados supervenientes, nos termos dos artigos 588.º e 589.º do Código de Processo Civil.

Nestes dois últimos artigos fixam-se diversos momentos para que esses articulados extraordinários possam ser apresentados, sob pena de preclusão da alegação de factos supervenientes, sendo o último desses momentos o derradeiro segundo que antecede o encerramento definitivo da audiência de julgamento em 1.ª instância (artigo 588.º, n.º 3, c), do Código de Processo Civil).

Prosseguindo o processo, em fase de recurso na 2.ª instância, apesar dos poderes da Relação no julgamento da matéria facto terem vindo a ser significativamente ampliados nas últimas reformas legislativas do processo civil, eles incidem em matéria de produção de prova e de julgamento da matéria de facto já alegada na 1.ª instância (artigo 662.º do Código de Processo Civil), não se encontrando prevista a possibilidade de, na fase de recurso, se proceder ao julgamento de factos novos, relativos à relação jurídico-material em litígio, apenas alegados na fase de recurso, mesmo que supervenientes ao encerramento da audiência de julgamento realizada na 1.ª instância.

O disposto no artigo 611.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão -, encontra-se previsto apenas para a sentença proferida em 1.ª instância e pressupõe que as partes tenham utilizado a possibilidade de deduzir articulados supervenientes admitida nos referidos artigos 588.º e 589.º do Código de Processo Civil. E o facto de no artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se dizer que na elaboração do acórdão que decide o recurso de apelação devem observar-se, na parte aplicável o preceituado nos artigos 607.º a 612.º, não significa que o disposto no artigo 611.º seja diretamente aplicável ao acórdão que decide o recurso de apelação, mas apenas que esse acórdão, tal como a sentença proferida na 1.ª instância, deve tomar em consideração todos os factos que ocorreram no decurso do processo, até ao encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, e que tenham sido alegados nos termos previstos nos artigos 588.º e 589.º do Código de Processo Civil. Como refere Rui Pinto 20, a remissão para o mesmo quadro temporal a que esteve sujeito o julgamento operado na sentença recorrida implica que também o tribunal ad quem fica sujeito aos mesmos limites temporais a que esteve sujeito o tribunal a quo.

Também a possibilidade de junção de documentos supervenientes na 2.ª instância, admitida no artigo 651.º do Código de Processo Civil, com remissão para o artigo 425.º do mesmo diploma, apenas se reporta à utilização temporal deste meio de prova, sendo abusiva a interpretação que vê nessa possibilidade a admissão da invocação de factos novos supervenientes na 2.ª instância que se encontrem provados pelos novos documentos 21. Se o n.º 2, do artigo 524.º, do Código de Processo Civil de 1961, correspondente ao atual 425.º, causava alguma perturbação quanto ao âmbito da remissão que então era feita pelo artigo 693.º-B 22, a ausência do conteúdo desse n.º 2, no atual artigo 425.º, já não permite que se suscitem dúvidas quanto ao efeito limitado da atual remissão.

Salvo se houver acordo das partes na sua inclusão no objeto do processo, nos termos do artigo 264.º do Código de Processo Civil, não se encontra, pois, prevista no atual regime processual civil, a possibilidade de serem alegados, na fase de recurso de apelação, factos supervenientes ao encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, relativos à relação jurídico-material, o que não significa que não possam ser alegados factos supervenientes que determinem a inutilidade do recurso ou da lide, que respeitem à verificação de pressupostos processuais que ainda possam ser conhecidos nessa fase ou que sejam factos notórios ou do conhecimento funcional 23.

Mesmo a admissão dessa possibilidade, através da utilização dos poderes judiciais de agilização processual (artigo 6.º do Código de Processo Civil) e de adequação formal (artigo 547.º do Código de Processo Civil), com a necessária reabertura no tribunal de recurso das fases de instrução, discussão e julgamento em 1.ª instância, limitada aos novos factos, tal como pode ocorrer nas situações de renovação ou produção de nova prova (artigo 662.º, n.º 3, a), do Código de Processo Civil), exigiria a advertência à contraparte recursória que a alegação desses factos supervenientes seria admitida, concedendo-lhe um novo prazo de resposta às alegações para sobre tais factos tomar posição e indicar as provas que pretendia produzir, como esbarraria com a impossibilidade de recurso para o tribunal superior do julgamento que a Relação viesse a fazer, em 1.ª instância, sobre a prova dos novos factos, face às limitações do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação de recursos em matéria de facto (artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

A desatualização no conhecimento do mérito da causa, resultante da referida limitação ao conhecimento de factos supervenientes ao encerramento da audiência de julgamento em 1.º instância que respeitam à relação jurídica material sub iudicio, poderá ser suprida através da possibilidade de deduzir oposição à execução da respetiva sentença, mediante a alegação desses factos supervenientes (artigo 729.º, g), do Código de Processo Civil) ou através da propositura de uma nova ação, que poderá ser de simples apreciação negativa, com fundamento na ocorrência desses factos, não ofendendo a mesma caso julgado anterior, uma vez que se apoia em diferente causa de pedir 24.

Regressando ao caso a apreciar no nosso recurso, o Autor, após ter visto improceder, em 1.ª instância, um pedido indemnizatório, relativo ao prejuízo que futuramente teria que suportar com o pagamento de uma indemnização contratualmente estabelecida ao empreiteiro da obra em causa, pelo período de suspensão dos respetivos trabalhos, que era imputável a um erro de cálculo existente no projeto elaborado pela Segunda Ré dessa obra, veio juntar com as alegações de recurso cinco documentos visando demonstrar que após o encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância havia sido interpelado pelo empreiteiro da referida obra para pagar a indemnização contratualmente estabelecida e que tinha efetuado o respetivo pagamento.

Conforme se refere no acórdão recorrido, a junção destes documentos não visou demonstrar o facto alegado na petição inicial e que foi julgado não provado, segundo o qual o autor está obrigado a indemnizar a sociedade que iniciou a construção da moradia, pelo tempo de suspensão da obra, em € 137.751,56 (facto GG). Tais documentos visaram antes a prova de factos ocorridos posteriormente a ter sido proferida a sentença na 1.ª instância – a interpelação do Autor para pagar à sociedade empreiteira a indemnização contratualmente estabelecida pela suspensão dos trabalhos e o pagamento pelo Autor desse valor à sociedade empreiteira. Se na 1.ª instância havia sido alegado e julgado não provado um prejuízo futuro, nas alegações de recurso já se invocava a concretização desse mesmo prejuízo, com o pagamento pelo Autor da alegada indemnização à sociedade empreiteira.

Estamos, pois, perante a junção de documentos, visando a prova de factos ocorridos posteriormente ao encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, que respeitam à relação jurídica-material em litígio, pelo que pelas razões acima expostas, conforme bem decidiu o acórdão recorrido, tal junção não é admissível. Não tendo sido julgado provado o dano futuro alegado na 1.ª instância, a alegação que o mesmo se concretizou após ter sido proferida a sentença de improcedência do respetivo pedido indemnizatório, já não pode ser apreciada na fase de recurso de reapreciação dessa sentença, restando ao Autor propor nova ação onde alegue os “novos factos”.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Autor, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas do recurso pelo Autor.

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Notifique.

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Lisboa, 29 de fevereiro de 2024

João Cura Mariano (relator)

Catarina Serra

Isabel Salgado

______


1. Publicado no D.R. n.º 201/2022, I Série, de 18.10.2022.

2. Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2022, p. 428.

3. Em Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1952, p. 85.

4. Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 457.

5. Manual dos Recursos em Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, 2009, p. 215.

6. O conhecimento de factos supervenientes relativos ao mérito da causa pelo tribunal de recurso em processo civil, “Coletânea de Estudos de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2013, p. 287 e seg.

7. Guia de Recursos em Processo Civil: Atualizado à Luz do CPC de 2013, 6.ª ed. Coimbra Editora, p. 123

8. Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, p. 132-133.

9. Direito Processual Civil. Recursos, AAFDL, 1980, p. 27.

10. O Documento Superveniente para Efeito de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina, 2001, p. 64-65.

11. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Almedina, 2014, p. 122.

12. Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2018, p. 329-332. Igual posição é sustentada por este autor, com argumentação mais desenvolvida, em Manual do Recurso Civil, AAFDL, 2020, p. 353-361.

13. Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 98-99.

14. Factos novos e factos supervenientes na fase dos recursos cíveis, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, vol. I, Coimbra Editora, 2013, p. 835 e seg.

15. Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 142.

16. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 788.

17. Por todos, o acórdão paradigmático do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011, Proc. 317/04 (Rel. Lopes do Rego).

18. V.g. os acórdãos da Relação do Porto de 11.03.1993, Proc. 9250655 (Rel. Emérico Soares), de 30.05.2016, Proc. 344/14 (Rel. Oliveira Abreu), e de 30.05.2018, Proc. 6676/17 (Rel. Rita Romeira), e da Relação de Guimarães de 25.11.2013, Proc. 7348/12 (Rel. António Santos), acessíveis em www.dgsi.pt.

19. Processo n.º 23.994/16 (Relator António Barateiro Martins), acessível em www.dgsi.pt.

20. Manual do Recurso Civil, cit., p. 356.

21. RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, cit., p. 356.

22. Vid. JOÃO ESPÍRITO SANTO, ob. cit., p. 57, e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 846.

23. RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, cit., p. 358-361.

24. RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, cit., p. 359-360, e ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. cit., p. 788.