Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S0042
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
Nº do Documento: SJ2007032200424
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – A força probatória plena do documento que titula um contrato de prestação de serviços, fixada nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 1, e 376º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, por não ter sido impugnada a veracidade da letra e da assinatura, apenas evidencia a conformidade da vontade declarada das partes, e não impede que o autor alegue e prove que o contrato foi executado em termos divergentes, de modo a poder atribuir-se-lhe a qualificação jurídica de contrato de trabalho subordinado;
II – Também nada obsta, nesse contexto, a que seja admitida a prova testemunhal, visto que esta se reporta, não ao conteúdo do documento com força probatória plena, mas ao modo como se processou, na prática, a execução do contrato, não ocorrendo, nessa hipótese, qualquer violação ao disposto no artigo 394º, n.º 1, do Código Civil;
III - É de qualificar como contrato de trabalho o contrato celebrado por uma empresa de comercialização de veículos automóveis para o desempenho de funções de vendedor/comissionista, quando se constata que o trabalhador contratado tinha de se apresentar num determinado local de trabalho com sujeição a um horário, integrava as escalas de serviço rotativo com outros vendedores, elaborava relatórios sobre a actividade de prospecção e obedecia a instruções de serviço, utilizava um veículo da entidade empregadora para uso profissional, sendo esta que suportava até determinado limite as despesas com combustível, tinha direito ao gozo de férias e devia comunicar as faltas dadas ao serviço.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

AA, com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato de trabalho contra Empresa-A, com sede em Lisboa, pedindo que, na sequência da rescisão por sua iniciativa da relação laboral, seja a ré condenada a pagar-lhe diversas importâncias a título de diferenças salariais, subsídio de férias e de Natal, e indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Alegou para tanto que celebrou com a ré um contrato escrito de prestação de serviços em Dezembro de 1999, mas desde Junho do ano transacto vinha trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização da ré, para o desempenho de funções de vendedor de automóveis, com sujeição a horário de trabalho e mediante o pagamento de uma retribuição mista, constituída por parte fixa e variável, e que, durante a vigência do contrato, não auferiu as importâncias correspondentes à sua efectiva condição de trabalhador subordinado, além de que não tinha regularizada a sua situação perante a Segurança Social.

Em sentença de primeira instância a acção foi julgada parcialmente procedente, reconhecendo-se que o vínculo existente entre as partes era caracterizável como contrato de trabalho e condenando-se a ré a pagar ao autor diversas importâncias a título de retribuições em dívida.

A ré interpôs recurso de apelação em que suscita a questão da qualificação do contrato, dizendo além do mais que o documento que titula o contrato de prestação de serviços subscrito pelas partes faz prova plena quanto aos factos nele contidos que sejam contrários aos interesses do declarante e que, nos termos dos artigos 223º, 393º, n.º 2, e 394º, n.º 1, do Código Civil, não é admissível a produção de prova testemunhal relativamente a convenções constantes de documento particular que beneficie de prova plena.

O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, confirmando inteiramente o julgado, e é contra essa decisão que se insurge a ré, mediante recurso de revista, em que reproduzindo tudo o que já alegara perante a Relação, conclui do seguinte modo:

1. No momento da contratação do recorrido, a recorrente, através do seu Director Comercial, BB , explicou ao Autor os termos em que estava a ser contratado por si e que a recorrente não pretendia que entre ambos fosse celebrado um contrato de trabalho, na sequência do que,
2. O recorrido e a recorrente subscreveram o contrato junto a fls. 42 dos autos, que se encontra junto à petição inicial como doc. n.º 11, e cujo teor o Tribunal deu por reproduzido na douta sentença recorrida, e que aqui, igualmente, se dá também por reproduzido, salientando-se, contudo, que:
3. A recorrente é uma empresa que se dedicava à comercialização de veículos automóveis, possuindo para o efeito: um quadro de vendedores integrados na empresa por contrato de trabalho, e um conjunto de vendedores/comissionistas ligados à empresa por contrato de prestação de serviços.
4. De harmonia com o estabelecido no referido contrato o Recorrido obrigou-se, expressamente, a exercer a sua actividade para a Recorrente como vendedor/comissionista.
5. Com inteira liberdade,
6. Sem sujeição às ordens e à direcção da Recorrente,
7. A prestar apenas o resultado da sua actividade, com total independência,
8. Auferindo, pelo resultado do seu trabalho, uma retribuição mensal fixa, sem prejuízo de poder vir a auferir também comissões sobre as vendas, nos termos que viessem a ser fixados pela Recorrente para o conjunto dos vendedores comissionistas.
9. Aceitaram, ainda, as partes que o contrato podia ser revogado por qualquer delas com o aviso prévio de um mês, prazo considerado por ambos como suficiente nos termos dos artigos 1156º e 1172º do Código Civil.
10. As partes convencionaram também, por escrito, no citado contrato de prestação de serviços, que quaisquer alterações ou modificações a esse contrato, bem como quaisquer cláusulas acessórias ao mesmo, só produzirão efeitos, entre as partes, se constarem de documento escrito e assinado por ambos os outorgantes, vinculando-se, assim, ao regime estabelecido no artigo 223º do Código Civil.
11. Tendo ambas declarado, também por escrito, e no citado contrato, que aplicariam as disposições dos artigos 1154º e seguintes do Código Civil.
12. Aos factos que decorrem do contrato, supra mencionados, alinham-se, ainda, os seguintes factos que o Tribunal considerou provados, e que se consideram relevantes para a qualificação do contrato, como um verdadeiro e próprio contrato de prestação de serviços;
13. Era o recorrido que decidia quando não estava de serviço ao stand, quais os locais onde iria fazer prospecção de mercado.
14. O recorrido tinha que participar nas reuniões de vendas presididas pelos chefes da R. e onde eram definidos os descontos que os vendedores incluindo o A., podiam efectuar aos clientes da recorrente.
15. A recorrente estabelecia objectivos de vendas ao recorrido.
16. O recorrido era vendedor, promovendo a venda de viaturas automóveis de marca Seat, não permitindo a recorrente que comercializasse viaturas de outras marcas.
17. A recorrente concedeu ao recorrido um cartão que lhe permitia o abastecimento de combustível até determinado plafond fixado pela R., para utilizar nas visitas de prospecção que efectuava.
18. Para recebimento das quantias que lhe eram pagas pela R., o A. entregava àquela recibos modelo 6 do Código do IRS, aí se intitulando "prestador de serviços" (Tais recibos são os que constam dos Docs. n.ºs 14 a 61, juntos com a p.i., constituindo, cada um deles, uma Factura/Recibo, própria da actividade de prestação de serviços- mencionando o n.º de contribuinte de prestador de serviços - ……. -, indicando a importância recebida, bem como a retenção de IVA à taxa de 17%, a partir do recibo que constitui o Doc. n.º 34 e até ao Doc. n.º 61, e, ainda, a retenção de IRS, à taxa de 20% sobre cada um dos valores neles indicados, tal como é fiscalmente imposto aos prestadores de serviços.
19. A recorrente pagava ao recorrido, como contrapartida do seu trabalho, uma importância mensal de 100 contos, à qual acresciam comissões sobre as vendas efectuadas, de valor variável, tendo pago a esse título ao A. os valores constantes dos documentos juntos a fIs. 93 a 132 dos autos.
20. A recorrente pagava aos trabalhadores com os quais reconhecia ter celebrado um contrato de trabalho, um vencimento base inferior a 100 contos mensais.
21. A recorrente determinou a presença do recorrido em feiras e exposições em que iria estar presente, o que permitia também ao A. mais facilmente angariar clientes.
22. O recorrido não provou qualquer facto que, de alguma forma, fosse susceptível de pôr em causa a sua vontade declarada no contrato escrito que celebrou com a R., acima transcrito e dado como provado.
23. Tendo em conta o disposto nos artigos 223°, 374°, n.ºs 1 e 2, 376°, n.ºs 1 e 2, 393°, n.º 1, e 394°, n.º 1, todos do Código Civil, e sendo certo que nem o recorrido nem a recorrente deduziram qualquer incidente de falsidade do documento que consubstancia o acordo celebrado, quer relativamente à letra, quer relativamente à assinatura, quer relativamente ao seu conteúdo,
24. O documento referido, quantos aos factos nele contidos que forem contrários aos interesses do declarante, faz prova plena desses factos.
25. Sendo de salientar que não é admissível a produção de prova testemunhal relativamente a convenções constantes de documento particular que beneficie da força probatória plena, nos termos dos artigos 223°, 393°, n.º 2 e 394°, n.º 1 do Código Civil.
26. Assim:
A) O contrato que as partes quiseram celebrar, e que celebraram efectivamente, foi um típico contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho;
B) Face a tudo o que fica exposto, a douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, fez uma errada aplicação da lei aos factos validamente provados, suportando-se, mesmo assim erradamente, em factos que considerou provados por prova testemunhal que, no caso sub-judice, não era legalmente permitida;
C) A douta sentença recorrida violou assim, entre outros, os artigos 223°, 374°, n.ºs 1 e 2, 376°, n.ºs 1 e 2, 393°, n.ºs 1 e 2 , 394°, n.º 1, 1152º e 1154º todos do Código Civil e fez uma errada aplicação do artigo 1° do regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Dec-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969.

O autor contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado, e, neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser negada a revista.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

1. No dia 6 de Junho de 2002, o A. remeteu à R. a carta junta a fls 23, cujo teor dou aqui por reproduzido que a R. recebeu a 11 de Junho de 2002.
2.A R. respondeu à carta do A. de fls 23, mediante a carta datada de 20 de Junho de 2002, junta a fls 25, cujo teor dou aqui por reproduzido.
3. A esta carta respondeu o A. por carta de fls 26 a 35, cujo teor dou aqui por reproduzido.
4.O Sindicato dos Técnicos de Vendas, em representação do A., remeteu à R. as cartas juntas a fls 36, 38e 40, que mereceram da R. as respostas de fls 37, 39 e fls 41.
5. A. e R. subscreveram o contrato junto a fls 42, cujo teor dou aqui por reproduzido.
6.A R. é uma empresa do sector automóvel, cuja actividade principal é a comercialização de veículos automóveis, possuindo stands de vendas em Lisboa, Cascais, Porto Salvo e Carcavelos e um corpo de vendedores.
7.O contrato de fls 42, embora esteja datado de 26 de Junho de 1998, só foi entregue ao A. e por este assinado vários meses após essa data.
8.Não obstante, no momento da sua contratação, a R., através do seu Director Comercial, BB explicou ao A. os termos em que estava a ser contratado por si e que a R. não pretendia que entre ambos fosse celebrado um contrato de trabalho, pelo que não lhe iria pagar nem subsídio de férias nem subsídio de Natal.
9. A R. pagava aos trabalhadores com os quais reconhecia ter celebrado um contrato de trabalho, um vencimento base inferior a 100 contos mensais.
10. A concretização da primeira venda pelo A. ocorreu em 23 de Junho de 1998, mas o A. iniciou a sua actividade para a R. em data anterior do mês de Junho de 1998, mas não concretamente apurada.
11.O A. quando iniciou a sua actividade na R. foi colocado no Stand de S. Mamede, em Lisboa que tinha o seguinte horário de funcionamento: da segunda à sexta-feira, das 9 às 20 com 1 hora para almoço e ao sábado das 10 às 13 horas,
12.Posteriormente, pelo menos a partir de Novembro de 1998, o A. passou a exercer a sua actividade no stand da R. de Cascais.
13.O horário de funcionamento do stand de Cascais era de segunda a sexta feira, das 9 às 19 horas, com 1 hora para almoço e ao sábado das 10 às 13 horas.
14.E a partir de Setembro de 2001, o A. passou a exercer funções num stand da R. em Oeiras.
15.Eram elaboradas escalas de serviço rotativo pelo chefe de vendas da R.,……, distribuindo o serviço aos vendedores, onde se incluía o A., por dias de serviço no stand e dias de serviço fora do stand. Posteriormente, já depois do A. ter ido trabalhar para o stand de Cascais, as escalas de serviço passaram a ser efectuadas pelo A., com a concordância do chefe de vendas.
16.Em qualquer caso, o A. tinha que se apresentar todos os dias, às nove horas, no stand onde habitualmente prestava a sua actividade e nos dias em que prestava serviço no stand permanecia nesse local, até às 19 horas; nos dias em que não estava escalado para serviço ao stand, saía para efectuar trabalho de prospecção e regressava ao stand, onde permanecia até, pelo menos, as 18 h e 30 mn..
17.O A. tinha que efectuar relatórios sobre a actividade de prospecção que desenvolvia fora do stand, sempre que a R. o entendesse necessário.
18.Era o A. que decidia, quando não estava de serviço ao stand, quais os locais onde iria fazer prospecção de mercado.
19.O A. tinha que participar nas reuniões de vendas presididas pelos chefes da R. e onde eram definidos os descontos que os vendedores, incluindo o A, podia efectuar aos clientes da R.
20.A R. estabelecia objectivos de vendas ao A..
21. O A., no stand de Cascais, onde passou a exercer as suas funções, por ordem da R., procedia à limpeza das viaturas.
22.O A. era vendedor, promovendo a venda de viaturas automóveis de marca SEAT, não permitindo a R. que comercializasse viaturas de outras marcas.
23.Em caso de retoma de um veículo usado, a avaliação da viatura era efectuada por um avaliador da R. e, caso o negócio se concretizasse, era posteriormente este avaliador que negociava a venda do veículo retomado com negociantes de automóveis.
24.A R. entregou ao A. para uso profissional e utilização também aos fins-de-semana e férias, um veículo automóvel.
25.A R. concedeu ao A. um cartão que lhe permitia o abastecimento de combustível até determinado plafond determinado pela R., para utilizar nas visitas de prospecção que efectuava.
26.A R. pagou ao A. as importâncias constantes dos documentos juntos a fls 45 a 92 e 134, cujo teor dou aqui por reproduzido.
27.A R. pagava ao A., como contrapartida do seu trabalho, uma importância mensal de 100 contos, à qual acresciam comissões sobre as vendas efectuadas, de valor variável, tendo pago a esse título ao A. os valores constantes dos documentos juntos a fls 93 a 132, cujo teor dou aqui por reproduzido.
28. A R. permitia que o A. faltasse ao serviço todos os anos 22 dias úteis para gozar férias.
29.O A. trabalhou no Stand de Cascais, em regra, dois sábados por mês, das 9 às 13 horas, entre Novembro de 1998 e Julho de 2001.
30. A R. determinou a presença do A. em feiras e exposições em que iria estar presente, o que permitia também ao A. mais facilmente angariar clientes, tendo-o feito relativamente aos seguintes dias e locais:
. FIL, dias 28 e 29 de Novembro de 1998 – 8 horas;
. C.Comercial …….. – dia 9 de Janeiro de 1999, das 10 às 17 horas.
. FIL, dias 27.05, 29.05, 21.05 e 2.06 de 2000, das 20 às 24 horas;
. M… de ……., dia 23 de Junho de 2001 (Sábado), das 14 às 19h e 30 mn;
. Salão Internacional do Automóvel – 1 de Junho de 2002 (Sábado), das 14 às 19 h e 30 mn, dia 2 de Junho de 2002 (domingo) das 14 às 19 h e 30 mn e 4 de Junho de 2002 (3ª feira), das 17 ás 20 h e 30 mn.
31. Quando os veículos automóveis eram adquiridos pelos clientes da R. com recurso ao crédito, esse financiamento era efectuado pelo BPI, o qual pagava ao R. uma comissão por todos os negócios bem sucedidos, o qual por sua vez, pagava ao vendedor que tinha efectuado a venda, uma percentagem.
32.Quando os vendedores da R., incluindo o A., não podiam ir trabalhar, tinham que comunicar a sua ausência.
33. O A. encontra-se filiado no Sindicato dos Técnicos de Vendas.

Para melhor explicitação, transcreve-se o teor do contrato a que se refere o n.º 5 da matéria de facto e que aí se considerou como reproduzido, em que figuram como primeiro e segundo outorgante, respectivamente, a ré e o autor:

1ª A Primeira Outorgante dedica-se à comercialização de veículos automóveis, dispondo para o efeito, para além dos vendedores integrados nos quadros da empresa, de um conjunto de vendedores/comissionistas que exercem os seus serviços com inteira autonomia, sem sujeição às ordens e direcção da Primeira Outorgante e com o objectivo de alcançar resultados determinados.
2ª Pelo presente título o Segundo Outorgante aceita integrar-se no conjunto dos vendedores/comissionistas referidos na cláusula anterior, obrigando-se assim a prestar à Primeira Outorgante o resultado da sua actividade de vendedor/comissionista com total independência mas sem prejuízo das instruções de serviço que lhe sejam dadas pela Primeira Outorgante.
3ª A actividade do Segundo Outorgante será exercida habitualmente fora das instalações da Empresa, nos termos e pelo modo que o mesmo melhor entender, sem prejuízo de poder também, sempre que se mostre conveniente, ser prestado nos próprios stands que a Primeira Outorgante possui em Lisboa ou em outros postos de venda, sendo os seus serviços prestados com a maior liberdade e autonomia e sem sujeição a qualquer horário.
4ª 1 - Pelo resultado do seu trabalho o Segundo Outorgante receberá, da Primeira, a avença mensal fixa de Esc. 100.000$00 (cem mil escudos).
2. Para além da retribuição referida no número anterior, o Segundo Outorgante poderá também ter direito a comissões sobre as vendas dos veículos que efectuar, nos termos que forem fixados pela Primeira Outorgante para o conjunto dos vendedores/comissionistas.
5ª A Primeira Outorgante entregará ao Segundo, em regime de cedência, uma viatura das marcas por si comercializadas, para efeitos de demonstração e promoção de marca, de que o Segundo Outorgante se constitui fiel depositário, e que fica obrigado a devolver à Primeira Outorgante sempre que esta lho solicite.
6ª Qualquer das partes pode revogar o contrato com o aviso prévio de um (1) mês, prazo considerado por ambas as partes como suficiente nos termos dos artigos 1156° e 1172°, alíneas c) e d), do Código Civil.
7ª No omisso aplicar-se-ão as disposições constantes do regulamento de vendas aplicável aos vendedores comissionistas, em vigor na primeira outorgante, e as disposições legais reguladoras do contrato de prestação de serviços, designadamente as dos artigos 1154° e seguintes do Código Civil.
8ª O Segundo Outorgante está integrado no regime de segurança social dos trabalhadores independentes onde vai oportunamente inscrever-se e fez a declaração de início de actividade por conta própria, prevista no artigo 105° do Código do IRS, conforme documento que fica anexo ao presente contrato.
9ª Quaisquer alterações ou modificações ao presente contrato, bem como quaisquer cláusulas acessórias ao mesmo, só produzirão efeitos, entre as partes, se constarem de documento escrito e assinado por ambos os outorgantes”

O documento de fls 23, mencionado no n.º 1 da matéria de facto, consubstancia a carta de rescisão do contrato enviada pelo autor à ré, e cuja recepção esta acusou através da comunicação que constitui o documento de fls 25 (n.º 2 da matéria de facto).

Pelo documento de fls 26 a 35, dado como reproduzido no n.º 3 da matéria de facto, o autor solicita à ré o pagamento de diversas importâncias relativas a diferenças salariais em dívida.

Os documentos de fls. 36 a 41 respeitam à correspondência trocada entre o Sindicato de Técnicos de Vendas e a ré, em vista à resolução amigável do diferendo.

3. Fundamentação de direito.

A única questão a decidir é a de saber se o contrato celebrado entre as partes pode ser qualificado como um contrato de trabalho subordinado, e se para o efeito pode ser valorada a prova testemunhal em detrimento do disposto nos artigos 376°, n.ºs 1 e 2, 393°, n.ºs 1 e 2, e 394°, n.º 1, do Código Civil.

As instâncias formularam uma resposta afirmativa e, em consequência, julgaram procedente a acção, mas a ré põe em causa a bondade desse entendimento, chamando a atenção para o facto de o contrato escrito celebrado entre as partes constituir documento com força probatória plena, à luz do qual se deverá interpretar a vontade das partes, e que não poderá ser posto em causa por prova testemunhal produzida no processo.

Na revista, a ré limita-se, porém, a reproduzir o que alegara perante a Relação, transcrevendo o texto das alegações e as conclusões da apelação, sem contrariar minimamente as considerações expendidas pelo tribunal recorrido e a asserção de que este partiu de que a força probatória do documento particular respeita apenas à materialidade da declaração nele contida e não à veracidade dos factos a que se refere, a qual poderá ser afastada, nesse contexto, por prova testemunhal.

Sendo esse também o entendimento jurisprudencial que tem vindo a ser seguido no Supremo e não merecendo qualquer reparo a decisão adoptada pela Relação quanto à natureza jurídica do contrato em causa, justificar-se-ia que o tribunal de revista se limitasse a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada, que, como se afirmou, não foram objecto de qualquer análise crítica.

Em qualquer caso, em reforço de tudo o já exposto no acórdão recorrido, sempre se dirá o seguinte.

No caso vertente, não se põe em dúvida que o documento que titula o contrato subscrito em 26 de Junho de 1999 que foi junto à petição inicial, não tendo sido impugnado pela ré quanto à veracidade da letra e da assinatura, se têm de considerar como dotado de força probatória plena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 1, e 376º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil; e que, por outro lado, atento o disposto nos artigos 393º, n.º 2, e 394º, n.º 1, do mesmo diploma, não é admissível a prova testemunhal relativamente a convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento dotado de força probatória plena.

No entanto, a força probatória dos documentos apenas evidencia a conformidade da vontade declarada das partes, ao passo que o que o autor alega na acção, e que constitui fundamento do pedido, é que o contrato foi executado em termos que divergem do clausulado e poderão conduzir a uma qualificação jurídica diversa daquela que lhe foi atribuída. E não há obstáculo a que esta prova possa ser efectuada, porquanto a força probatória dos documentos se circunscreve à materialidade da declaração e não à sua exactidão e não se reflecte, como tal, na relação material subjacente (cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 14 de Novembro de 1990, in Acórdãos Doutrinais n.º 350, pág. 261, de 3 de Março de 1998, Revista n.º 157/97, de 30 de Novembro de 2000, Revista n.º 56/00, de 9 de Abril de 2003, Revista n.º 2329/02, de 23 de Abril de 2005, Revista n.º 2445/05).

Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 24 de Outubro de 2006 (Revista n.º 1831/06), em situação similar à dos presentes autos, o contrato em análise, qualquer que seja a respectiva qualificação, tem duas componentes: a componente estática (coincidente com a sua formalização) e a componente dinâmica (coincidente com o seu desenvolvimento efectivo). E, sendo assim, nada poderá impedir que um dos contratantes possa invocar em juízo a desconformidade entre o clausulado - ou parte dele -, e os termos em que o mesmo veio a ser efectivamente executado, podendo daí resultar uma qualificação jurídica diversa daquela que os outorgantes lhe atribuíram.

E bem se compreende que assim seja: é que não estará em causa, na espécie, a incidência de prova sobre o conteúdo das declarações emitidas mas antes sobre o comportamento posterior dos contratantes, em ordem a saber que tipo contratual veio a ser por eles implementado. E esta indagação é importante - quando não decisiva - em todos os contratos de execução continuada.

Nestes termos, a proibição enunciada no artigo 394º, n.º 1, do Código Civil, além de não assumir um carácter absoluto (ver, sobre esta matéria, o citado acórdão de 24 de Outubro de 2006 e ainda o de 10 de Janeiro de 2007, no Processo n.º 2700/06), não cobre a execução efectiva do contrato e não impede que possa subsistir uma contradição entre o clausulado e o conteúdo real, decorrente da prática das partes, caso em que se deverá reservar ao título documental apenas uma função subsidiariamente interpretativa.

No caso vertente, o documento contratual contém vários indicadores que apontam para a existência de um contrato de prestação de serviços, começando pela própria designação dada pelas partes e pelas diversas especificações constantes das cláusulas 2ª, 3ª e 8ª, mormente no tocante à autonomia que era atribuída ao exercício das funções e ao regime fiscal e contributivo que foi adoptado.

Contudo, a matéria dada como assente revela que o autor tinha de se apresentar num determinado local de trabalho com sujeição a um horário (n.ºs 11, 13 e 16), integrava as escalas de serviço rotativo com outros vendedores (n.º 15), tinha de elaborar relatórios sobre a actividade de prospecção (n.º 17) e obedecer a instruções da ré (n.ºs 19, 20, 21 e 30), utilizava um veículo da ré para uso profissional e era esta que suportava até determinado limite as despesas com combustível (n.ºs 24 e 25), além de que lhe era concedido o gozo de férias (n.º 28) e tinha de comunicar as faltas dadas ao serviço (n.º 32).

Todos os indicados elementos não indiciam apenas um certo grau de controlo do produto do trabalho, mas denotam antes uma forma de inserção do trabalhador na organização funcional da empresa, e apontam para a existência do requisito de subordinação jurídica que, como se sabe, constitui o elemento basilar do contrato de trabalho por contraposição ao contrato de prestação de serviços, em que avulta a referência do objecto contratual ao resultado do trabalho – cfr. artigos 1º da LCT e 10º do Código do Trabalho (por todos, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, pág. 137).

Neste contexto, assume um diminuto relevo o nomen juris dado pelas partes ao contrato, bem como a circunstância de o director comercial da ré ter explicado ao autor que a relação contratual que se pretendia estabelecer não era de subordinação jurídica.

Como se sabe o nomen juris não é decisivo na qualificação da relação jurídica, que deverá antes ser estabelecida em função de elementos materiais de diferenciação que se encontrem patentes na execução do contrato, sendo que esse, como outros elementos formais da relação de trabalho subordinado (como sucede em matéria de regime fiscal, retributivo ou de segurança social), são muitas vezes definidos por meras razões de conveniência e não representam um suporte declarativo inequívoco no sentido da escolha de um certo tipo contratual.

O juízo de globalidade, no contexto geral e em face de todos os elementos de informação disponíveis, tendo por base o modo como o contrato foi executado, e não tanto os termos do clausulado escrito, indicam que estamos perante um contrato de trabalho, pelo que a decisão recorrida, assim entendendo, não merece qualquer censura.

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 22 de Março de 2007

Carlos Alberto Fernandes Cadilha
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo