Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14/22.0YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO CONTENCIOSO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: LEGITIMIDADE
IMPUGNAÇÃO
CONDENAÇÃO À PRÁTICA DO ATO DEVIDO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
INTERESSE PÚBLICO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
JUIZ
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA.
Sumário :

O fim essencial do processo disciplinar é a defesa do interesse público, pelo que é mais profunda a exigência de que o ato sujeito a anulação afete direta e imediatamente direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos do participante, não sendo suficiente um hipotético interesse mediato, indireto e reflexo do autor da participação, o que leva a uma apreciação casuística da legitimidade ativa para a impugnação contenciosa.

Decisão Texto Integral:

Proc. 14.22.0YFLSB


Acordam na Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça


1. AA, instaurou a presente ação administrativa de impugnação contra a deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 8 de março de 2022, que, por unanimidade, julgou improcedente a impugnação administrativa que apresentou contra o despacho do Vogal da área de competência territorial dos Tribunais da Relação do Porto e de Guimarães. Este despacho tinha determinado o arquivamento da participação disciplinar apresentada pelo autor contra a juíza BB, na sequência de despachos por ela proferidos nos processos n.º 2426/21.7... e n.º ... (respeitantes a impugnações judiciais de decisões proferidas pelo I.S.S., I.P. em sede de apoio judiciário), que correram termos no Juízo Local Cível de ... - J..


1.1. Em síntese, sustenta o autor que «[a] senhora Juíza participada cometeu toda uma série de infracções disciplinares no quadro dos dois processos de que é titular em que o signatário é parte, sobremodo lesada e, assim se considera, vítima dessa veraz maldade judicial; (…) O Proc..............34 do Conselho Superior da Magistratura, no qual as infracções disciplinares apontadas à Participada deveriam ter sido averiguadas, redunda num mero processo de ilibação expedita, mais avultando o Despacho e o Relatório nesse âmbito produzidos como julgados em causa própria comum; (…) O Conselho Plenário foi, assim, concitado in casu a pronunciar-se tão-só sobre uma amostra representativa das decisões formais da Participada enquanto exercício episódico da função jurisdicional, sem motivação alguma para apreciar esses actos como a expressão material duma continuada denegação de justiça em curso de prevaricação de juiz, consumada pela desaplicação, deliberada e consciente, do direito devido em função da base material documentada nos autos, cuja prova é subvertida, inclusiva e principalmente, pela mimetização de actos administrativos ostensivamente fraudulentos.».


1.2. Pede a anulação do despacho e deliberação e a condenação do Conselho Superior da Magistratura «(…) a instaurar um processo de averiguações competente sobre a matéria objecto da participação em causa, com incidência em todo o corpus processual implicado, e, consequentemente, a proferir nova deliberação julgando procedente essa participação disciplinar contra a Magistrada acima identificada, com todos os devidos efeitos legais (…).».


2. O Conselho Superior da Magistratura apresentou contestação em que, além do mais, invocou a exceção dilatória da ilegitimidade processual ativa do autor e ainda a falta de indicação dos contrainteressados. Concluiu pela procedência da exceção e, subsidiariamente, pela improcedência da ação.


3. O Ministério Público foi de parecer que o autor carece de legitimidade.


4. Notificado, nada disse o autor.


***


O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.


Inexistem nulidades que invalidem todo o processado.


As partes têm capacidade e personalidade judiciárias e o Conselho Superior da Magistratura é parte legítima.


*


5. Da ilegitimidade do autor.


5.1. Sustentam o Conselho Superior da Magistratura e o Ministério Público que o exercício da ação disciplinar sobre os juízes, levado a cabo pelo CSM, visa exclusivamente fins de interesse público, que se consubstanciam na exigência de um bom e regular funcionamento do sistema de justiça, esgotando-se o direito dos cidadãos na faculdade de participar ao CSM factos ou decisões suscetíveis de constituir infração disciplinar. Uma vez efetuada a participação ou queixa, cumpre ao CSM, nos termos legalmente previstos e no âmbito das competências que lhe são confiadas enquanto órgão constitucional dotado de autonomia administrativa e responsável pela gestão e disciplina dos juízes da jurisdição judicial, decidir, fundamentadamente, acerca do arquivamento ou do prosseguimento do processo em matéria disciplinar. Aduz o CSM, que não se vislumbra em que medida o arquivamento da queixa apresentada e a não prossecução de ação disciplinar poderia refletir-se, direta e pessoalmente, na esfera jurídica do Autor.


Apreciando.


6. No âmbito do direito adjetivo administrativo, a legitimidade caracteriza-se como um pressuposto processual mediante o qual se procede a uma valoração da posição jurídica das partes face ao ato administrativo e face aos interesses nele coenvolvidos. No contexto das reações jurisdicionais a atos administrativos do Conselho Superior da Magistratura, dispõe o artigo 164.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais que «[t]êm legitimidade para impugnar, administrativa e jurisdicionalmente, os titulares de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos que se considerem lesados pela prática ou omissão do ato administrativo». Trata-se de norma que, em consonância com o disposto no artigo 186.º/2/a, do Código de Procedimento Administrativo, erige o cariz lesivo (Luiz S. Cabral de Moncada, Código de Procedimento Administrativo Anotado, Coimbra, p. 859) que advém do ato praticado ou da sua omissão em critério aferidor da legitimidade processual.


Em face dos pedidos formulados pelo autor, a que correspondem diferentes formas processuais, importa considerar também as regras especiais de aferição da legitimidade dos particulares na ação de impugnação (alínea a) do n.º 1 do artigo 55.º CPTA) e na ação destinada à condenação à prática de ato devido (n.º 1 do artigo 68.º CPTA), aplicáveis ex vi do n.º 2 do artigo 166.º e artigo 169.º, EMJ. Estatui o primeiro daqueles preceitos que «1. [t]em legitimidade para impugnar um ato administrativo:


a) Quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos».


7. Resulta deste preceito que no contexto do meio processual impugnatório, a legitimidade adjetiva se encontra necessariamente ligada à invocação da titularidade, em nome próprio, do interesse que terá sido negado ou posto em causa por ato de uma autoridade pública. É esse o sentido do segmento normativo interesse direto e pessoal para qualificar o interesse. Importa enfatizar que não basta a invocação de um qualquer direito ou interesse para, automaticamente, deter legitimidade ativa, já que é mister que esse interesse seja, além de pessoal, direto. A qualificação do interesse como direto implica que o autor beneficie imediatamente da invalidação, em sentido lato, do ato impugnado. Como diz Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, Reimpressão da 2.ª edição, 2016, Almedina, págs. 221-222) o caráter direto do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um interesse atual e efetivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do ato que é impugnado. Admitindo que o impugnante é efetivamente o titular do interesse, trata-se de saber se esse interesse é atual, no sentido de que existe uma situação efetiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório, ou seja, o requisito do caráter direto tem que ver com a questão de saber se o alegado titular do interesse tem efetiva necessidade de tutela judiciária, com o seu interesse processual ou interesse em agir (no mesmo sentido, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 5.ª edição, Almedina, pág. 209).


8. Dai que, interesses meramente “eventuais” ou “hipotéticos”, “longínquos”, “mediatos” ou “indiretos”, “remotos” ou “diferidos” não conferem legitimidade – ou, em diferente perspetiva, interesse em agir – para a impugnação de atos administrativos (Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, Almedina, pág. 364).


9. Prevê-se, por sua vez, no n.º 1 do artigo 68.º do CPTA que «(…) 1 - Tem legitimidade para pedir a condenação à prática de um ato administrativo: (a) quem alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão desse ato». Neste âmbito1 e em estreita conexão com a previsão do n.º 4 do artigo 67.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a legitimidade processual ativa apenas deve ser reconhecida a quem possa ser identificado como eventual beneficiário do ato devido. A jurisprudência desta Secção do Contencioso, em tema de legitimidade ativa, no contexto aqui em causa, tem acentuado que o exercício da ação disciplinar não visa tutelar os interesses individuais pretensamente ofendidos pela conduta imputada ao magistrado judicial, tendo antes em vista interesse funcionais inerentes ao desempenho do magistério que apenas ao Conselho Superior da Magistratura cabe apreciar e interpretar. Acrescenta, decisivamente, que, em regra, o participante não retirará qualquer utilidade ou vantagem pessoal da impugnação da decisão tomada quanto ao seguimento a dar à participação disciplinar por si apresentada, sendo certo que o ordenamento jurídico disponibiliza meios de reação contra decisões judiciais que ofendam direitos legítimos e meios de responsabilização civil e/ou criminal de quem as profere.


10. Vem-se sedimentando o entendimento de que não deve ser reconhecida legitimidade ao particular para a impugnação do ato que determina o arquivamento ou a não instauração de qualquer procedimento disciplinar com base nos factos que por ele denunciados. A título de exemplo, sem preocupações de exaustividade e por referência aos sumários disponibilizados, atente-se no seguinte histórico de decisões desta Secção do Contencioso:


- Acórdão do STJ de 27 de maio de 2003 - proferido no proc. n.º 01B1639e acessível em www.dgsi.pt:


I. Só possui legitimidade para interpor recurso contencioso de anulação quem tiver interesse direto, pessoal e legítimo na anulação do ato administrativo - artº 46º, nº 1 do RSTA 57.


(…)


IV. Um particular administrado não detém legitimidade para recorrer contenciosamente de uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura determinativa do arquivamento de um processo de inquérito instaurado com base em participação sua atinente a vicissitudes supostamente anómalas ocorridas em processos judiciais pendentes, nos quais a mesma recorrente seja parte.


- Acórdão do STJ de 23 de outubro de 2003 - proferido no proc. n.º 1635/03 e sumariado em www.stj.pt:


I - O exercício da ação disciplinar visa exclusivamente fins de interesse público e as normas que o regulam não tutelam diretamente os interesses pessoais dos participantes.


II - Da deliberação do CSM que determina o arquivamento do inquérito instaurado contra determinados magistrados judiciais, por eventuais irregularidades por estes cometidas, não tem legitimidade para recorrer o particular que formulou a participação que esteve na base da instauração desse inquérito.


- Acórdão do STJ de 18 de dezembro de 2003 - proferido no proc. n.º 4095/03 e sumariado em www.stj.pt:


I - Os cidadãos em geral e os funcionários e agentes administrativos, em particular, pela simples circunstância da titularidade do poder jurídico de participação disciplinar, não têm legitimidade para o recurso contencioso da anulação do ato que determina o arquivamento ou a não instauração de qualquer procedimento disciplinar, de inquérito ou de averiguações instaurados com base nos factos denunciados.


II - Isto porque não podem licitamente invocar, com fundamento naquele poder, a preexistência no seu património, de um direito subjetivo ou interesse suscetível de ser lesado por aquele ato.


III - Tendo a participação do recorrente versado sobre pretensas irregularidades processuais, cometidas por Magistrados Judiciais, em processos executivos em que ele era parte, como executado, foi o interesse público da administração da justiça que foi posto em causa.


IV - Daí que o recorrente não seja o titular do interesse protegido pela ação disciplinar desencadeada por essa participação, que findou com o seu arquivamento, determinado pela impugnada deliberação do CSM.


V - Não tendo o recorrente sido direta e pessoalmente afetado pela deliberação recorrida, carece ele de legitimidade para interpor recurso contencioso daquela deliberação do Plenário do CSM que versou sobre matéria disciplinar. (…).


- Acórdão do STJ de 20 de outubro de 2005 - proferido no proc. n.º 2304/05 e sumariado em www.stj.pt:


I - O exercício da ação disciplinar não tem em conta os interesses pessoais e diretos dos participantes. (…)


III - A participante não tem um interesse direto e pessoal em agir na ação disciplinar, pelo que deve ser rejeitado, por manifesta falta de legitimidade, o recurso contencioso que interpôs da deliberação do CSM que decidiu arquivar a participação apresentada contra a Sra. Juiz.


- Acórdão do STJ de 19 de janeiro de 2006 - proferido no proc. n.º 3889/05 e sumariado em www.stj.pt:


I - A finalidade essencial do processo disciplinar é defender os interesses da administração da justiça, punindo os visados que os contrariem; o exercício da ação disciplinar não tem, por isso, em princípio, em conta os interesses pessoais dos participantes. (…)


III - Exigido que o interesse que fundamenta a legitimidade ativa em questão seja pessoal e direto, esse interesse tem, enquanto tal, que incidir de forma imediata na esfera dos direitos ou interesses legalmente protegidos de quem recorre.


IV - O hipotético interesse mediato, indireto ou reflexo do ora recorrente não legitima a sua pretensão de contrariar a decisão do ente público exclusivamente competente em matéria disciplinar (consoante arts. 136.º e 149.º, al. a), do EMJ), quando este determinou o arquivamento do processo administrativo instaurado porque viu nele apenas questões de natureza jurisdicional e não necessariamente com cariz disciplinar.


V - O recorrente, para além de não ser o titular dos interesses em último termo protegidos pelo direito disciplinar, também não é direta e imediatamente afetado pela deliberação recorrida, o que, em vista do disposto no n.º 1 do art. 164.º do EMJ lhe retira legitimidade para interpor este recurso. (…)»;


- Acórdão do STJ de 29 de junho de 2007 - proferido no proc. n.º 07B917, acessível em www.dgsi.pt:


«I - O exercício da ação disciplinar não tem em conta os interesses pessoais e diretos dos participantes.


II - Se a participante entende que foi violado o seu direito ao bom nome e reputação pela Sra. Juiz terá de recorrer aos meios civis ou criminais para se ressarcir.


III - A participante não tem um interesse direto e pessoal em agir na ação disciplinar, pelo que deve ser rejeitado, por manifesta falta de legitimidade, o recurso contencioso que interpôs da deliberação do CSM que decidiu arquivar a participação apresentada contra a Sra. Juiz.»;


- Acórdão do STJ de 12 de fevereiro de 2009 - proferido no proc. n.º 09P0151 e acessível em www.dgsi.pt:


II - Da deliberação do CSM que determina o arquivamento de processo administrativo instaurado contra magistrado judicial, por eventuais irregularidades por aquele cometidas, não tem legitimidade para interpor recurso contencioso de anulação particular que deduziu a participação que esteve na base do predito processo.


- Acórdão do STJ de 27 de outubro de 2009 - proferido no proc. n.º 498/09.1YFLSB e sumariado em www.stj.pt:


I - A legitimidade para impugnação, mediante reclamação ou recurso, dos atos do CSM, deliberações e decisões, é atribuída pela lei reguladora da matéria a “quem tiver interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão” (art. 164.º, n.º 1, do EMJ).


IV - Há falta de legitimidade do participante para recorrer da deliberação do CSM que ponha termo a processo disciplinar da sua competência.»;


- Acórdão do STJ de 27 de outubro de 2009 - proferido no proc. n.º 324/09.1YFLSB e sumariado em www.stj.pt:


(…) IV - Reconhecendo-se que o fim essencial do processo disciplinar é a defesa do interesse público, torna-se mais profunda a exigência de que o ato sujeito a anulação afete direta e imediatamente direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos do participante, não sendo suficiente um hipotético interesse mediato, indireto e reflexo do autor da participação, o que leva a uma apreciação casuística da legitimidade ativa para a impugnação contenciosa.»;


- Acórdão do STJ de 21 de dezembro de 2012 - proferido no proc. n.º 75/12.0YFLSB e acessível em www.dgsi.pt:


I - No âmbito da ação disciplinar, o participante de certa infração, alegadamente cometida por juiz no decurso de processo em que o participante exercia as funções de mandatário judicial, não pode considerar-se titular do interesse direto, pessoal e legítimo (a que alude o n.º 1 do art. 164.° do EMJ) na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares ao CSM.


II - A natureza especial do CSM – órgão constitucional autónomo e não pura entidade englobada na Administração – não conduz, nem determina, que ao participante/advogado deva ser reconhecido um direito de impugnação contenciosa da decisão de arquivamento, através do reconhecimento de um interesse direto, pessoal e legítimo que lhe faculte legitimidade para formular a pretensão de anulação, perante os Tribunais, das decisões do CSM que, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias do caso, tenha entendido não dar seguimento à participação apresentada.


III - Na realidade, o que releva decisivamente para a problemática da definição da legitimidade é a correta identificação do interesse ou bem jurídico tutelado através da previsão e tipificação das infrações disciplinares: o interesse público na boa administração da justiça, de que é intérprete privilegiado o órgão constitucional a que está cometida a gestão da magistratura judicial, e não, de forma direta, e individualizada, os interesses pessoais das partes e respetivos mandatários no pleito cuja tramitação originou a participação ao CSM.


- Acórdão do STJ de 10 de abril de 2014 - proferido no proc. n.º 128/13.7YFLSB e sumariado em www.stj.pt.


III - Não identificando o recorrente qualquer direito de que seja legitimamente titular e que haja sido, directa e pessoalmente, preterido pela decisão recorrida de arquivamento do processo disciplinar e limitando-se aquele, em sede de recurso jurisdicional, a invocar a violação, num processo em que nem sequer figura como arguido, de princípios processuais penais e do direito ao bom nome, não é de lhe reconhecer legitimidade para recorrer.


- Acórdão do STJ de 23 de janeiro de 2018 - proferido no proc. n.º 71/17.0YFLSB e sumariado em www.stj.pt:


«A deliberação do CSM que considerou não haver lugar à instauração de processo disciplinar contra determinado magistrado, proferida na sequência de denúncia apresentada por advogado, constitui ato administrativo (atenta a noção de ato administrativo constante do art. 120.º do CPA), carecendo, no entanto, o denunciante de legitimidade por não lhe reconhecer a lei direito à instauração de processo disciplinar contra magistrado (art. 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA).»;


- Acórdão do STJ de 10 de dezembro de 2019 - proferido no proc. n.º 3/19.5YFLSB e acessível em www.dgsi.pt:


VIII - A decisão de não instauração do processo disciplinar à Mma Juíza visada não causa qualquer prejuízo direto ou imediato na esfera jurídica do recorrente. Ou, dito de outro modo, por via da procedência do presente recurso, o Recorrente não obtém qualquer utilidade ou vantagem que se repercuta diretamente na sua esfera jurídica. Pois, com a procedência do presente recurso, não obtém qualquer reparação dos direitos alegadamente violados pela conduta da Mma. Juíza denunciada. Sendo que apenas estamos perante um interesse pessoal e direto se se retirar da anulação diretamente uma qualquer utilidade ou vantagens dignas de tutela, o que no caso não sucede.


11. Sem prescindir de uma indagação casuística da titularidade de um interesse pessoal e direto na impugnação da decisão e da identificação de um eventual benefício adveniente da condenação à prática de ato devido, reiteramos o entendimento desta Secção em tema de legitimidade.


12. O aplicador do direito faz o caminho da abstração da norma para o caso da vida. No caso, o autor não alega nem pugna pela defesa de quaisquer interesses individuais, mormente, os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação que tenham sido afetados pela decisão impugnada. Acresce que não identifica o concreto benefício que lhe adviria da condenação do CSM, na prática do ato pretensamente omitido. Como decorre das conclusões que formulou, o que o autor pretende é apenas que seja determinado ao CSM que averigue as infrações disciplinares que estima terem sido cometidas pela juíza participada, as quais, segundo sustenta, são apenas «(…) uma amostra representativa das decisões formais da Participada enquanto exercício episódico da função jurisdicional (…)» e «(…) a expressão material duma continuada denegação de justiça em curso de prevaricação de juiz, consumada pela desaplicação, deliberada e consciente, do direito devido».


13. Avançando a conclusão, é óbvia a falta do pressuposto processual que temos vindo a aludir. Alega o autor, entre o mais:


«(…) 21 – O resultado, sobremodo gravoso, da Deliberação sob impugnação, assaz sintomaticamente, não se faria esperar. Relativamente ao Proc. n.º 2426/21 em questão, eu queixei-me (in §.6 da participação) de que me fora não admitida a impugnação judicial da decisão de indeferimento proferida pelo CDSS local no Processo n.º 85223/21 com motivo expresso numa preclusão do prazo que outra coisa não é senão nova violação de lei ope judicis: tal processo não corria em férias e, o mais grave (a denunciar a pura maldade do decidido!), se de facto corresse, o prazo teria terminado, não em 18 (conforme inculcado nesse decisum), mas sim em 12 de Agosto, pelo que não teria qualquer justificação o Despacho de 18 de Outubro! Pois manda a verdade se diga que o resultado da participação disciplinar arquivada em causa foi o agravamento da situação para o participante. (…)».


14. Pese embora a natureza conclusiva da invocação reproduzida, o certo é que o autor não aventa, ainda que vaga ou imperfeitamente, que a invalidação da deliberação em causa lhe aportará imediatamente (ou, sequer, reflexa ou remotamente), uma concreta e identificável vantagem, melhoria, utilidade ou benefício para a sua esfera jurídica. Contrariamente ao que o autor parece supor, o prosseguimento do procedimento disciplinar jamais bulirá, com a subsistência das decisões jurisdicionais que motivaram a participação ou de quaisquer outras que tenham sido proferidas pela juíza participada. E é delas que discorda. É que, como saberá, as identificadas e questionadas decisões apenas serão modificáveis no contexto processual em que se inserem e por intermédio dos meios impugnatórios que, eventualmente, ao caso couberem.


15. Nestes termos resulta patente que o autor não alegou a titularidade de um interesse pessoal e direto na impugnação da deliberação em causa e, menos ainda, se apresentou como sendo um eventual beneficiário do ato que entende ser devido. Nessa medida, não se patenteia a lesividade do ato que justificaria a necessidade de o impugnar. Assim, em face das previsões contidas no n.º 2 do artigo 164.º do EMJ, na alínea a) do n.º 1 do artigo 55.º e no n.º 1 do artigo 68.º CPTA conclui-se que, no que toca ao pedido impugnatório formulado, quer no que se refere ao pedido de condenação à prática de ato devido, o autor carece de legitimidade processual ativa para a presente causa.


16. A falta de legitimidade processual é uma exceção dilatória típica (alínea e) do n.º 4 do artigo 89.º, do CPTA), no caso insuprível e que obsta ao conhecimento do mérito da causa, importando a absolvição da instância do CSM (n.º 2 do mesmo preceito). Nessa medida, fica prejudicada a apreciação da invocada ilegitimidade por falta de identificação da contrainteressada (cf. n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).


Porque vencido, as custas ficam a cargo do autor (n.os 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I - A, anexa a este diploma), sem prejuízo do apoio judiciário de que se comprove beneficiar.


Valor da causa para efeitos de custas: € 30.000,01 (n.º 2 do artigo 34.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).


Decisão


Acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa do autor AA e, consequentemente, em absolver o Conselho Superior da Magistratura da instância.


Custas pelo autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que se comprove beneficiar.


Lisboa, 27 de fevereiro de 2024.


António Gama (Relator)


Ricardo Costa


Ferreira Lopes


Maria João Vaz Tomé


Fernando Baptista de Oliveira


Teresa Féria


Pedro Manuel Branquinho Dias


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1. No sentido de que esta ação especial tem cabimento no domínio disciplinar, Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1º vol., Coimbra, pág. 629.↩︎