Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7997/20.2T8SNT.L1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
REQUISITOS
ILICITUDE
PRESSUPOSTOS
DANO CAUSADO POR INSTALAÇÕES DE ENERGIA OU GÁS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O tribunal da Relação, se adquirir, após a análise crítica das provas, uma convicção distinta da do tribunal de 1.ª instância, tem o poder de modificar os factos provados e não provados de acordo com essa convicção, sem ter de se basear em qualquer erro notório ou flagrante cometido pelo tribunal de 1.ª instância.

II - Tem-se entendido na doutrina que o facto gerador de responsabilidade pelo risco não é definido pela sua mera voluntariedade e ilicitude, como na responsabilidade subjetiva, mas antes tipificado em cada hipótese legalmente prevista de responsabilidade pelo risco.

III - Os pressupostos da norma jurídica em causa, o art. 509.º do CC, são os seguintes: 1) A responsabilidade recai sobre uma empresa ou um indivíduo que explore fontes de energia (eletricidade ou gás) como proprietário, concessionário ou como arrendatário, ou sobre quem detenha o poder de facto, a direção efetiva ou o controlo da instalação e a condução ou entrega de energia elétrica ou a gás, na medida em que é o detentor quem cria o risco especial da sua utilização, auferindo os proveitos da atividade; 2) A instalação em causa deve destinar-se à condução ou entrega de energia elétrica ou gás; 3) A utilização da instalação é feita no próprio interesse.

IV - No âmbito do art. 509.º, n.º 1, do CC, distinguem-se duas situações: o prejuízo que derive da condução ou entrega da eletricidade e os danos resultantes da própria instalação.

V - Esta diferença tem o relevo prático de, na hipótese da distribuição de energia elétrica – dada a sua extrema probabilidade de provocar danos – o legislador não permitir à empresa concessionária que prove, para afastar a responsabilidade objetiva, que a instalação elétrica está de acordo com as regras técnicas e em bom estado de conservação, causa exoneratória apenas aplicável aos danos resultantes da própria instalação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA e mulher BB vieram propor contra atual E-Redes Distribuição de Eletricidade, S.A., a presente ação em processo declarativo comum, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia total de € 78.455,13, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

Para o efeito alegam, em síntese, que, no dia 29 de junho de 2019, pelas 23.30 horas, na Rua ..., deflagrou um incêndio na sua arrecadação, a qual era destinada para a recolha de maquinaria, produtos e acessórios utilizados pelo Autor na sua atividade de produtor agrícola, o qual só foi declarado extinto pelas 03.40 horas.

Na sequência da investigação da polícia judiciária, foi o inquérito arquivado por não se ter encontrado qualquer vestígio de ação criminosa, tendo o Autor informado a entidade policial que já em ocasião anterior ocorrera outro foco de incêndio num quadro elétrico instalado noutro armazém seu, “sendo seu convencimento que a circunstância da linha aérea de transporte de electricidade terminar na sua propriedade, a sujeita a “picos de corrente” que danificam os elementos eléctricos ali existentes”.

Verificou ainda a autoridade policial que os cabos elétricos que fazem a alimentação de energia da rede de distribuição até ao quadro elétrico no interior da propriedade dos Autores se encontravam danificados.

Em resultado do incidente acima descrito, os Autores perderam todas as máquinas, equipamentos e demais produtos utilizados na sua atividade agrícola, além dos danos causados no edifício ardido que teve que ser substituído por uma nova construção e, na perda total dos dois quadros elétricos que ficaram completamente destruídos, prejuízos materiais que computam em € 68.455,13.

Aos prejuízos materiais acrescem os danos não patrimoniais decorrentes da aflição de se verem confrontados com o evoluir do incêndio e de perderem os seus instrumentos de trabalho.

Concluem ser o mau estado dos cabos de baixa tensão, cuja manutenção é obrigação da Ré, que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos Autores e que, consequentemente, resultou num sobreaquecimento do quadro elétrico provocando o incêndio.

2. Contestou a Ré, por impugnação, negando a materialidade de facto que lhe é imputada e geradora de responsabilidade.

3. Os Autores apresentaram articulado superveniente onde alegaram o seguinte:

«1ºDurante o mês de Julho de 2020 os A.A. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente eléctrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade.

2º Contactaram o seu electricista que em diversos dias e horas se deslocou à propriedade munido de voltímetro e ao medir a tensão sem consumo verificou que a tensão nas três fases estava baixa para os valores considerados normais e dentro dos limites de segurança, o que provoca sobreaquecimento dos equipamentos.

3º Perante as anomalias e o perigo de sobreaquecimento, os A.A. alertaram o piquete da EDP que se deslocou ao local e procedeu à substituição dos fusíveis do quadro eléctrico onde se verificava a anomalia de corrente com disparo das diferentes fases eléctricas.

4º Posteriormente, no dia 6 de Agosto de 2020 queimou-se a caixa do quadro da electrobomba existente na propriedade dos A.A.

5º Situação que foi comunicada e verificada pelos serviços técnicos da EDP que se deslocaram ao local.

6º A referida caixa da electrobomba teve que ser substituída a expensas dos A.A., protestando juntar documento comprovativo do valor apurado quando a factura lhe for apresentada pela empresa reparadora para pagamento.

7º Em 28 de Agosto de 2020 os A.A. aperceberam-se que os serviços técnicos da EDP se deslocaram ao local e substituíram os cabos do ramal até à propriedade dos A.A. bem como a caixa de chegada de ramal aí colocada pela EDP pelo menos desde o início do contrato de fornecimento de energia.

8º Aperceberam-se ainda que no posto de transformação situado no início da rua e que serve as habitações ali existentes bem como as do loteamento contíguo à propriedade dos A.A. foi feita intervenção técnica no sentido de aumentar a saída de potência da tensão no transformador que distribui a electricidade para os consumidores.

9º Mais uma vez a falta de qualidade no fornecimento de electricidade à propriedade dos A.A. foi a causa das avarias detectadas e dos estragos que se verificaram na instalação eléctrica destes.

10º A fraca tensão e as oscilações constantes no sistema trifásico provocam sobreaquecimento dos cabos e dos equipamentos que originam a sua combustão e destruição.

11º A origem das anomalias e dos danos causados nos equipamentos dos A.A. são consequência directa e necessária da fraca tensão e das oscilações constantes da electricidade fornecida pela R. EDP.

12º A própria EDP ao proceder à substituição dos cabos exteriores e dos cabos do ramal assim como da caixa de fusíveis instalada no poste do ramal e ainda no reforço da saída de potência do posto de transformação central que serve toda a área circundante, demonstra inequivocamente, que a origem do problema se situa na linha de distribuição de energia ao consumidor, linha essa cuja manutenção e qualidade é da exclusiva responsabilidade da R.»

4. Realizou-se a audiência prévia onde se proferiu despacho saneador, se indicaram o objeto do litígio e os temas da prova

5. Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, tendo absolvido a Ré.

6. Desta sentença recorrem os Autores, apresentando alegações, nas quais impugnaram a matéria de facto, tendo o Tribunal da Relação decidido não conhecer da impugnação da matéria de facto, por falta de observância dos pressupostos do artigo 640.º do CPC, e confirmado integralmente a sentença.

7. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, veio o acórdão da Relação a ser anulado, por se ter entendido que os recorrentes deram suficiente cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC.

8. O Tribunal da Relação proferiu novo acórdão, com declaração de voto, em que, após a alteração da matéria de facto, decidiu o seguinte, conforme o seu dispositivo que se transcreve:

«Pelo exposto acorda-se em revogar a decisão recorrida que vai substituída pela seguinte:

- julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência condena-se a R. a pagar aos AA., a título indemnizatório, a quantia de € 65.955,73, acrescida de juros de mora, desde a citação.

Custas da acção e do recurso por AA. e R. na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente».

9. E-REDES – DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE, S.A., tendo sido notificada do acórdão datado de 12 de outubro de 2023 e com o mesmo não se conformando, veio, nos termos previstos pelos artigos 671.º, n.º 1 do CPC, dele interpor recurso de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, juntando para o efeito a competente motivação, na qual formulou as seguintes conclusões:

«a) O acórdão proferido pelo Tribunal a quo, em 12 de outubro de 2023 (nos termos do qual foi determinada a revogação da douta sentença prolatada pela primeira instância, que havia absolvido in totum a aqui Recorrente do pedido, e, consequentemente, foi essa decisão substituída por outra que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a aqui Recorrente E-REDES – DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE, S.A., a pagar aos Recorridos AA e BB, a título de indemnização, o valor dos danos emergentes de um incêndio ocorrido em 29.06.2019, numa arrecadação propriedade destes últimos, danos esses fixados na quantia de € 65.955,73, acrescida de juros de mora, desde a citação, mais condenando as partes nas custas da ação e do recurso, na proporção de 1/10 para os ora Recorridos e de 9/10 para a ora Recorrente), padece de notórios vícios, materializados, em primeiro lugar, na violação e errada aplicação da lei adjetiva, maxime do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, determinante esta, por sua vez, de uma inarredável violação de lei substantiva por erro de interpretação e aplicação dos artigos 342.º, n.º 1, 493.º, n.º 2, e 509.º, todos do CC.

b) Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido não sinaliza qualquer viabilidade para que, preterindo elementar regra da lei processual, por extrapolação, se reverta a decisão de primeira instância, que se apresenta crítica, circunstanciada, fundamentada, concatenada nas suas valências (prova testemunhal, prova documental e prova por declarações de parte) e conformada por expressivos raciocínios lógicos e coerentes, sem presunções vazias, nem preconceito de prova.

c) A dita “reapreciação” da matéria de facto, tecida pelo Tribunal recorrido, extravasou a prerrogativa processual que a alberga, configurando o inadimplemento do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, pelo que é de pugnar pela superior declaração dessa violação normativa, determinante da pretendida revisão e consequente reposição imaculada da verdade material, repristinando o sentido dispositivo vertido na sentença de primeira instância e que o acórdão (entretanto anulado) de 26 de maio de 2023, que antecedeu o acórdão sob censura, mas prolatado pelo mesmíssimo Tribunal, igualmente preconizou.

d) A Recorrente não olvida que – salvo se existirem critérios injuntivos atinentes à força de um concreto meio de prova ou à espécie para aferir a existência de determinada factualidade – o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não podem constituir motivo da revista, por imposição do disposto no n.º 3 do artigo 674.º do CPC, o que equivale a reconhecer que o Supremo Tribunal de Justiça, não sendo, por regra, um tribunal de instância, só conhece de matéria de direito, salvo nos casos previstos na lei.

e) Do mesmo modo, a Recorrente não escamoteia que a modificabilidade da decisão de facto, na situação sub judice, e conforme decorredon.º4 do artigo 662.º do CPC, não se enquadra ao panorama cognitivo deste Colendo Tribunal, encontrando-se aquela matéria cristalizada pelo segundo grau de jurisdição, grau esse que nestes autos o Tribunal a quo consumiu.

f) Não obstante, é no domínio da interpretação e aplicação desse específico normativo, artigo 662.º do CPC, com enfoque no seu n.º 1, que se submete à douta cognição e valoração deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça Tribunal a existência de vício, objetivo e de Direito, que mina o acórdão recorrido, pretendendo-se, por conseguinte, que este Tribunal aplique definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais, apurados após o expurgo da ilegalidade que, por ora, lhes subjaz (por errada interpretação e aplicação, note-se, e reitere-se, do n.º 1 do artigo 662.º do CPC – o qual, nessa medida, resulta violado).

g) A modificação, pela segunda instância, da decisão proferida sobre a matéria de facto só deve impor-se verificados que estejam os seus pressupostos, ou seja, desde que o corpo de factualidade tida por assente (v.g. por acordo ou por existência de meio e espécie de prova legalmente exigível), a prova produzida ou um documento superveniente assim o dite.

h) Na situação em apreço a convolação da matéria de facto na sua antítese (passando alguns factos provados para não provados e grande parte dos factos não provados para provados) reconduz-se à sindicância, pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, da prova produzida, e não do escrutínio de factos assentes ou de prova documental superveniente.

i) Nessa esteira, o Tribunal a quo, depois de lhe ser imposta por este Colendo Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da prova, optou por aderir acriticamente à versão que os Recorridos debitaram no seu recurso, adesão essa que revela, de forma cristalina, que não se dignou sequer auscultar os depoimentos das testemunhas arroladas pela ora Recorrente, sendo disso notório sinal o facto de se circunscrever ao acolhimento de transcrições expostas pelos ora Recorridos no seu recurso, sem nunca reproduzir, ou meramente mencionar, um qualquer segmento dos depoimentos daquelas testemunhas, em concreto dos Senhores CC, DD e EE – restando, por isso, o indício de que nenhuma das gravações áudio foi realmente perscrutada na “reapreciação” feita, sustendo-se esta, somente, no que foi cirurgicamente reproduzido, por excertos escolhidos, no texto da apelação.

j) O Tribunal a quo desvalorizou – se não, desprezou – o teor e alcance dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela aqui Recorrente e, em contraponto, passou a valorizar os depoimentos de duas das testemunhas arroladas pelos aqui Recorridos, os Senhores FF e GG, conferindo-lhes supremacia de isenção e imparcialidade.

k) O efeito basculante operado pelo Tribunal recorrido, quanto à distinta pertinência da prova produzida por autores/Recorridos e ré/Recorrente, é absolutamente infundado e, ademais, inadmissível; e isto sucede porque, por um lado, ancorou-se numa tabelar desconsideração da valia de depoimentos de testemunhas com um vínculo laboral/funcional à parte, no caso à ora Recorrente, pese embora aquelas serem claramente detentoras de conhecimento direto dos factos, enquanto neles intervenientes, e, por outro lado, agrupou depoimentos consoante as partes em litígio, denunciando uma, objetiva e confessada, parcialidade inconcebível, que não se pode albergar na livre apreciação da prova.

l) O desvalor inopinado dos depoimentos das testemunhas da Recorrente configura uma bizarra – e não tutelada pelo Direito – situação de desigualdade entre as partes e não pode sobrepor-se à real razão de ciência de cada testemunha e ao seu conhecimento efetivo perante a relação material controvertida.

m) Seguindo o raciocínio expresso no acórdão recorrido, é incontornável a sobredita desigualdade das partes, pois, sendo a Recorrente demandada no exercício da sua atividade, não poderia indicar testemunhas que nessa atividade participe e, ademais, a fazer valer o descrédito da prova pela simples qualidade de funcionário do depoente, tal redundaria na impossibilidade de a Recorrente – ao contrário dos Recorridos – poder comprovar os factos que, na lide, entenda subscrever – o que seria, na prática, equivalente a uma enviesada denegação de justiça.

n) Não é, nesses moldes, merecedora de acolhimento a postulada valia negativa dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Recorrente pelo simples facto de serem seus funcionários e intervenientes em algumas das diligências reportadas nos autos – repare-se que essa é a única razão indicada para desvalorizar tais depoimentos.

o) Ademais, a compartimentação da prova, consoante a parte que a arrolou, escamoteia que a mesma é una, no sentido de servir o Tribunal na busca da verdade material, independentemente de quem a indica.

p) A diferenciação, positiva e negativa, da prova não pode estar, pois, reportada à qualidade da testemunha ou à parte, sob pena de se correr o risco de promover a parcialidade, a ineficiência na aquisição da prova e, principalmente, qualquer desvio ao rigor decisório.

q) O Tribunal a quo, ao invés de proceder à mera reapreciação da matéria de facto, optou por se imiscuir num verdadeiro reexame da prova, sendo certo que esse reexame está vedado ao Tribunal a quo.

r) Ao modificar a decisão de primeira instância no que tange à matéria de facto, exorcizando a convicção nela veiculada por via de um reexame, e não de uma inequívoca reponderação, o Tribunal a quo exorbitou o universo de cognição que lhe é facultado pela lei processual.

s) Na prática, o Tribunal a quo substitui-se ao Julgador de primeira instância, obnubilando que a este assiste o princípio da livre apreciação e análise crítica da prova, bem como beneficia da irrepetível imediação e oralidade, conforme postulado pelo artigo 607.º, n.os 4 e 5, do CPC.

t) E assim procedeu o Tribunal a quo sem que se vislumbre qualquer sinal, ou anotação de vício, no texto do acórdão recorrido que mencione e justifique o repúdio da convicção adotada pela primeira instância, tudo se sucedendo como se a convicção da instância superior se qualifique como melhor do que a inferior, e não porque esta incorreu em erro de julgamento, por erro notório na prova.

u) Não se tratou de verificar um erro que se impunha corrigir, mas sim fazer uma interpretação e valoração substancialmente diferente (ou melhor, diametralmente oposta) da prova produzida e dos meios de prova.

v) Abstendo-se de, em primeira linha, enunciar a existência desse erro, e passando a consumar uma modificação da factualidade escalpelizada pela primeira instância, o Tribunal a quo sinaliza a mera discordância com a convicção assumida nessa jurisdição inferior, incorrendo, a partir desse momento, num perímetro sobre o qual a sua pronúncia não pode deixar de ter-se por indevida.

w) A prova produzida não impõe in casu uma decisão diversa, mas somente, na ótica que exala do acórdão exarado pelo Tribunal a quo, uma convicção distinta, a significar que não é válida para modificação do juízo formulado pela primeira instância – sendo que, na antecâmara dessa diferente convicção reside o reexame da prova, que é inacessível em segunda instância.

x) O Tribunal a quo calcorreou, pois, um caminho de renovada sindicância, avocando uma faculdade ab-rogante que, salvo o devido respeito, não lhe assiste, devendo antes ter-se saciado com a reapreciação, fundamentada, da matéria de facto colocada em crise na apelação, nos pressupostos inolvidáveis de que (i) não auscultou diretamente a prova produzida, de que (ii) não está ao seu alcance visualizar a linguagem corporal e gestual, ou a expressão facial, das testemunhas que depuseram em audiência, de que (iii) não pode auscultar a postura destas em tribunal, nem a leitura da sua reação ocular por efeito do impacto de cada questão colocada, entre outros privilégios, imprescindíveis para a aquisição da prova – nomeadamente para aferir a sua efetiva espontaneidade, credibilidade, isenção e imparcialidade – e que apenas se concentram na primeira instância.

y) O disposto no n.º1 do artigo 662.º do CPC não concatena amplitude bastante para anular uma decisão porque, simplesmente, se adota uma perspetiva diferente dos factos, tanto mais que tal deturpa o princípio da livre apreciação da prova conferido ao tribunal de primeira instância e, em especial, não permite a modificação da matéria de facto.

z) Reconhecendo que o Tribunal da Relação, cumprindo a distribuição de competências jurisdicionais, agrega a faculdade de modificação da decisão de facto se a sentença recorrida não corporizar uma convicção racional assente na prova, que não seja reveladora de uma criteriosa análise, não expondo um sério percurso cognitivo e valorativo da prova adquirida (seja testemunhal, seja documental, seja – como in casu – por declarações da parte) e que não permita a sua cognoscibilidade lógica, não deixa de se destacar que, na situação em apreço, afigura-se insofismável que a decisão de primeira instância cumpre tais requisitos, encontrando-se perfeita e abundantemente fundamentada, permitindo conhecer, com excelso rigor, o percurso encetado pelo Julgador para gerar a sua convicção, baseada na prova, em consensuais juízos de experiência comum e entrincheirado em premissas e presunções de patente razoabilidade e racionalidade.

aa) A aquisição da convicção pela primeira instância revela-se, nestes autos, ponderada e devidamente alicerçada, não podendo a sua bondade ser preterida sem que se anule o juízo plausível, e de patente razoabilidade, à mesma inerente.

bb) A ponderação, em reexame, somente da prova que foi tida por convenientemente elegível pelos apelantes, aqui Recorridos, não pode habilitar a subscrição de um diferente entendimento sem extrapolar a prerrogativa de modificação da decisão de facto; igual conclusão se extrai da graduação, ou hierarquização, da importância dos meios de prova, sabendo-se, como se sabe, que inexiste na letra da lei qualquer critério aritmético e de preponderância que permita conferir protagonismo a determinados depoimentos em detrimento de outros.

cc) No âmbito da livre apreciação da prova, a factualidade pode ser adquirida através de diversos meios probatórios, mas sem preferência nem subalternidade de qualquer deles.

dd) Naturalmente, ao Julgador não está vedada a aferição de crédito, ou descrédito, da testemunha por via do exercício das suas funções, mas esse exercício não pode ser geneticamente redutor de imparcialidade, fidedignidade e credibilidade de qualquer depoimento que aquela preste, e até antes de o prestar.

ee) Na realidade, inexiste apoio para que o Tribunal a quo se imiscua na ponderação realizada pelo Digníssimo Tribunal de primeira instância no que concerne à imputação de maior credibilidade a determinada prova testemunhal, sustentada nos depoimentos e na razão de ciência, se este não desrespeitou os ditames incorporados no artigo 607.º,n.ºs 4 e 5, do CPC (como sucede na situação sub judice).

ff) O facto de o primeiro grau de jurisdição não secundar o barómetro de valorização de depoimentos em que se apoia o Tribunal a quo, intervindo em segundo grau de jurisdição, não significa que aquele tenha desrespeitado o citado artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, mas apenas que formou uma convicção diferente, presenciando, como presenciou, a produção de prova testemunhal e o seu confronto com a prova documental.

gg) A contradição ou não conciliação de depoimentos, ou a sua inusitada catalogação por categorias funcionais ou de agrupamento, não comporta força bastante para afastar uma convicção firme que se esteia no princípio da livre apreciação da prova.

hh) Dito isto, a modificação da decisão tomada sobre a matéria de facto deve cingir-se às situações de clamoroso erro de apreciação e de julgamento, e não a circunstâncias de mero desacordo ou propensão para entendimento divergente, as quais escapam à previsão legal; ao não entender assim, e extrapolando o reduto do artigo 662.º, n.º1,do CPC, o Tribunal a quo incorreu na violação concreta, e incontornável, de tal comando da lei processual, por errada interpretação e aplicação do mesmo.

ii) Uma vez recuperado o sentido dispositivo operado pela primeira instância (com o provimento do precedente vício de violação de lei processual), julgando improcedente a pretensão ressarcitória deduzida nestes autos, cumpre atentar na violação da lei substantiva, por errada interpretação e aplicação dos artigos 342.º, n.º 1, 493.º, n.º 2, e 509.º, n.º 1, todos do CC.

jj) E isto, sumariamente, porque a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga a parte constitui um ónus dessa mesma parte, conforme decorre do n.º1 do artigo 342.º do CC,o que equivale a dizer que aos ora Recorridos incumbia a prova de que os danos alegadamente sofridos na respetiva esfera jurídica decorriam da atividade de distribuição encetada pela ora Recorrente e que esta se operou de forma deficiente, com falta de qualidade - na prática, os aqui Recorridos estavam compelidos a provar o facto ilícito objetivo.

kk) Essa prova não foi alcançada (cfr. alínea cc) do elenco de factos provados inscrito na sentença de primeira instância, cuja fundamentação deve ter-se por repristinada por efeito do provimento da presente revisão), antes se provando que tais danos dimanaram da instalação elétrica particular dos próprios Recorridos, pelo que inexiste facto ilícito assacável à Recorrente e, logo, inexiste um dos pressupostos, taxativos e cumulativos, de que depende a imputação de responsabilidade civil à Recorrente – o que equivale a considerar-se não preenchido um dos requisitos essenciais que permitem acionar a responsabilidade civil pelo risco, prefigurada no artigo 509.º, n.º 1, do CC.

ll) Nessa circunstância, é inoponível à Recorrente uma qualquer deficiência de qualidade de serviço e de atividade, caraterizadora de uma conduta ilícita e, por maioria de razão, é-lhe igualmente inoponível a presunção de culpa que ressalta do n.º 2 do artigo 493.º do CC; de todo modo, essa presunção de culpa sempre teria sido ilidida em decorrência da prova produzida nesta lide (cfr. alínea kk) do elenco de factos provados inscrito na sentença de primeira instância, cuja fundamentação, repete-se, deve ter-se por repristinada por efeito do provimento da presente revisão).

mm) O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, e tendo como pressuposto a manutenção, não modificada, da matéria de facto, incorreu também, reitere-se, na violação da lei substantiva, por errada interpretação e aplicação dos artigos 342.º, n.º 1, 493.º, n.º 2, e 509.º, n.º 1, todos do CC.

Termos em que,

Sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça,

Se requer que seja concedido provimento integral ao presente recurso de revista, por fundado, revogando-se, em conformidade, o acórdão recorrido, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em 12 de outubro de 2023, e determinando-se, consequentemente, a repristinação da total improcedência da ação interposta pelos AA., aqui Recorridos, AA e BB, conforme decidido em primeira instância, condenando-se os mesmos nas custas dos recursos e da ação, assim como em custas de parte, tudo com as demais consequências legais, como é de elementar

JUSTIÇA».

10. Os autores, recorridos, apresentaram contra-alegações, nas quais pugnaram pela manutenção do decidido.

11. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso ou aquelas cujo conhecimento fica prejudicado pela resposta dada a outras, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:

I – Violação do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, na forma como a Relação conheceu da impugnação da matéria de facto, e repristinação dos factos dados como provados e não provados pelo tribunal de 1.ª instância;

II – Erro de interpretação e aplicação dos artigos 342.º, 493.º, n.º 2 e 509.º, n.º 1, todos do Código Civil.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

A matéria de facto provada e não provada, após o exercício pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, é a seguinte:

Factos provados

a) No dia 29 de junho de 2019, cerca das 23.30 horas, na Rua ..., concelho de ..., deflagrou um incêndio na arrecadação dos AA., a qual era destinada por estes para a recolha das alfaias agrícolas, máquinas, equipamentos, ferramentas, produtos e acessórios utilizados na sua atividade de produtor agrícola, edificação que faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...12/....

b) Os AA., atendendo à hora tardia, uma vez que já se encontravam a dormir, não se aperceberam do início do incêndio, tendo sido alertados pelos bombeiros, acompanhados pela G.N.R., que lhes solicitaram a abertura do portão principal da quinta, para poderem entrar com as viaturas.

c) O incêndio só foi declarado extinto pelas 03:40h da madrugada do dia 30 de junho de 2019, tendo destruído todo o edifício e respetivo recheio, nada sendo recuperado ou recuperável.

d) A ocorrência foi acompanhada pela G.N.R. do posto territorial de ..., tendo sido aberto o NUIPC 231/19.0..., no D.I.A.P. do Tribunal Judicial de ..., no âmbito do qual foram efetuadas diversas diligências, nomeadamente pela Polícia Judiciária, tendo a final sido proferido por esta Polícia o seguinte despacho:

“Terminada a investigação, conforme resulta dos autos e, bem assim, por referência ao teor do relatório de folhas 6 e seguintes, parece resultar que estaremos perante factos que, por não constituírem ilícito criminal, não se enquadrarão na competência de investigação desta Polícia.

Na verdade, foi possível apurado na sequência das diligências encetadas por elementos desta polícia, que o incêndio em análise terá tido uma causa não humana, provavelmente eléctrica, não constituindo, portanto, crime.

Assim e em face do exposto, remetem-se os autos ao Digno Magistrado do Ministério Público no DIAP-... com indicação que esta Polícia não irá realizar Inquérito sobre os fatos denunciados e proposta de arquivamento”.

e) No âmbito das diligências realizadas pela Polícia Judiciária, exarou esta entidade como resultado do exame ao local:

“A análise do quadro de indicadores de sentido e propagação das chamas nas estruturas remanescente no armazém permitiu inferir que o incêndio evoluiu a partir da zona onde se encontrava instalado o quadro eléctrico.

Os cabos eléctricos semi carbonizados presentes na área de envolvência do referido quadro apresentam-se quebradiças ao toque, indício de que estes elementos sofreram um sobreaquecimento a partir do núcleo”.

f) Tendo a GNR recolhido imagens fotográficas dos cabos elétricos que fazem a alimentação de energia da rede de distribuição até à propriedade dos AA.

g) Em 4 de junho de 2019 ocorreu outro incidente num edifício dos A.A. sito na mesma propriedade, destinado aos mesmos fins agrícolas, tendo nessa ocasião ardido o quadro elétrico aí instalado apenas há cerca de dois anos, ficando completamente destruído.

h) Em resultado dos incidentes relatados em a) e g), os AA. perderam todas as máquinas, equipamentos e demais produtos utilizados na sua atividade agrícola, além dos danos causados no edifício ardido que teve de ser substituído por uma nova construção e, na perda total dos dois quadros elétricos que ficaram completamente destruídos.

i) Alguns dos bens perdidos foram substituídos por novos, tendo os AA. despendido na aquisição dos mesmos a quantia de € 3.270.00.

j) Outros bens perdidos no incêndio, os quais os AA. ainda não tiveram oportunidade de substituir tinham o valor total de € 14.707,07.

k) A substituição do quadro elétrico que ardeu no incidente ocorrido em 4 de junho de 2019 custou a quantia de € 660,56.

l) A reconstrução do barracão agrícola ascendeu ao montante de € 46.740,00 e a reparação de portão custou a quantia de € 578,10.

m) Os AA. viram-se confrontados com o evoluir do incêndio, referido em a) à sua frente.

n) Além da aflição que sentiram no momento, nas semanas que se seguiram os AA. sentiram-se nervosos, angustiados, preocupados com o prejuízo e com a falta dos instrumentos de trabalho para continuar a sua atividade agrícola.

o) A propriedade dos AA. localiza-se no fim de uma estrada, tendo sido estes os primeiros a requerer o fornecimento de eletricidade, o que foi efetuado já há cerca de 30 anos.

p) Depois dos AA., várias outras pessoas requereram o fornecimento de eletricidade para as suas habitações.

q) Os cabos instalados na data em que os AA. requereram o fornecimento de eletricidade para a sua propriedade nunca foram substituídos.

r) Alguns meses depois dos dois incidentes, a R. procedeu à substituição dos mencionados cabos elétricos, que transportam a eletricidade desde o início da rua até à propriedade dos AA.

s) A R. é a sociedade que exerce a atividade de Operador de Rede de Distribuição, no território continental de Portugal, sendo titular da concessão para a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), e da concessão municipal de distribuição de energia elétrica em Baixa Tensão (BT) no concelho de ....

t) Para o exercício da sua atividade, esta explora variadas infraestruturas e equipamentos, entre os quais os cabos de rede.

u) As ligações à rede de energia elétrica são da responsabilidade da R., constituindo sua propriedade todas as instalações elétricas que servem essa rede e por referência às quais impende, sobre a mesma, um dever de manutenção e preservação, de modo a garantir a continuidade do fornecimento de energia elétrica.

v) As ligações à rede de energia elétrica são de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável ao sector elétrico nacional.

w) A R., enquanto concessionária da exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), dispõe, para o efeito, de instalações elétricas, infraestruturas e ligações à rede em todo o território nacional, nomeadamente no local da ocorrência identificado em a).

x) A 29 de junho de 2019, a instalação dos AA. era - e é - abastecida de energia elétrica, em Regime de Baixa Tensão Normal.

y) O imóvel identificado em a) corresponde ao Local de Consumo n.º ...49, sendo o titular do contrato de fornecimento de energia elétrica o ora A. AA.

z) No dia 04 de junho de 2019, pelas 19h07, comunicou o A. AA uma avaria na instalação elétrica particular supra identificada, a saber, interrupção do fornecimento de energia elétrica, tendo no âmbito da avaria comunicada, sido gerado o incidente n.º ...18 no sistema da R.

aa) Na sequência da comunicação realizada, deslocaram-se ao local dois técnicos ao serviço da R. que tomaram conta da ocorrência.

bb) Em concreto, verificaram os técnicos que se deslocaram ao local que se encontravam dois ligadores queimados no ramal XS 4X6, procedendo, nesse sentido, à sua substituição.

cc) Facto dado como não provado pela Relação

dd) A única comunicação registada na R. para o incidente referido em a), data de 01 de julho de 2019 e foi realizada pelo A. AA.

ee) Para o dia 29 de junho de 2019, não existe no sistema de registo de anomalias da R. o registo de qualquer incidente nas linhas que abastecem o local de consumo identificado em y).

ff) No local de consumo identificado em y) o equipamento de contagem está a cerca de 100 metros do ponto de entrega da energia e já dentro da propriedade dos ora AA..

gg) O armazém onde deflagrou o incêndio situa-se a cerca de 150 metros do ponto de entrega, igualmente dentro da propriedade dos AA..

hh) Facto eliminado pelo Tribunal da Relação.

ii) A rede BT, em questão, foi verificada de acordo com o plano de manutenção da rede.

jj) Em particular, o posto de transformação, e a rede de baixa tensão que alimenta o local de consumo em causa, foram verificados em 04 de junho de 2019.

kk) Facto dado como não provado pela Relação

ll) As equipas do piquete ao serviço da R. estiveram na propriedade dos AA. em agosto de 2020, no seguimento dos incidentes n.º ...85 e ...55.

mm) O incidente registado sob o número ...85 prendeu-se com o facto de a caixa de proteção do ramal da instalação elétrica particular dos AA. ter queimado (caixa de proteção de ramal XS 4x6), derivado da fundição de um fusível (L1).

nn) Eliminado pelo Tribunal da Relação

oo) Em 07 de agosto de 2020, procederam os técnicos ao serviço da R. à reparação provisória da caixa de proteção do ramal, deixando a instalação elétrica particular dos AA. ligada diretamente numa fase.

pp) Posteriormente, em 10 de agosto de 2020, deslocou-se, uma vez mais, uma equipa ao serviço da R. à instalação elétrica particular dos AA., no âmbito do incidente n.º ...55.

qq) Chegados ao local, verificaram os técnicos que se encontrava queimada uma segunda fase (fusível tipo gardy) em caixa de ferro. Foi realizada a reparação provisória, com a colocação de 3 bases 14/51 e 3 fusíveis cilíndricos 14/51 32 A.

rr) Os técnicos que se deslocaram ao local realizaram medições na entrada da instalação elétrica particular dos AA., tendo verificado que os valores das três fases se encontravam dentro dos parâmetros indicados (232/228/234 e 405/408/407). A medição foi feita sem a corrente estar ligada (aditado pelo Tribunal da Relação)

ss) De seguida, comunicaram os técnicos aos AA. que existiria uma avaria na sua instalação, devendo estes, de molde a solucionar o problema, contactar um eletricista.

tt) Em 31 de agosto de 2020, no âmbito da obra n.º ...96, procederam os técnicos ao serviço da R. à correção definitiva do ramal, tendo substituído o ramal existente por um ramal de LXS 4x156 e instalando uma nova portinhola.

Factos aditados pelo Tribunal da Relação, que passaram de não provados a provados:

- A linha aérea de transporte de eletricidade à propriedade dos AA. estava sujeita a “picos de corrente” que danificavam os elementos elétricos ali existentes.

- Os cabos que transportam a eletricidade para a propriedade dos AA. encontravam-se em estado de degradação.

- O cabo elétrico que fornece os AA fornece várias habitações edificadas após a dos AA., como resulta dos factos o) e r).

- A R. procedeu à substituição do cabo de condução de energia que se encontrava degradado, substituição essa que veio a ocorrer em agosto de 2020.

-A circunstância da propriedade dos AA. se localizar no extremo da rua e não haver “posto de transformação” em toda a extensão da rua, provocou “picos de tensão” o que, aliado ao facto dos cabos aéreos estarem em mau estado de conservação, causou aquecimento excessivo nos quadros elétricos e dano de tal forma grave que os mesmos entraram em combustão.

- Foi o mau estado dos cabos de transporte da baixa tensão que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos AA. e que, consequentemente, resultou num sobreaquecimento do quadro elétrico provocando o incendio.

- A génese da avaria situou-se fora da rede elétrica interna dos AA..

- Em datas não concretamente apuradas, mas anteriores aos incêndios, os AA. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente elétrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade. Nessa sequência contactaram o seu eletricista que em diversos dias e horas se deslocou à propriedade munido de voltímetro e ao medir a tensão sem consumo verificou que a tensão nas três fases estava baixa para os valores considerados normais e dentro dos limites de segurança, o que provoca sobreaquecimento dos equipamentos.

- Na sequência de reclamação do A. os serviços da R. constaram, a 4/6/2019, a existência de um ligador queimado. –doc.3 junto com a contestação.

- Em fase do registo de intervenções junto pela R. constata-se que a 7/8/2020 a caixa de proteção do ramal do cliente zs4x6 queimou-se e que era necessário ser substituída. –doc.3 junto com a contestação.

- Anteriormente aos incêndios verificou-se por várias vezes fraca tensão e oscilações no sistema trifásico da eletricidade fornecida pela R.

Factos não provados:

1- Não se provou que os AA. residem perto da arrecadação identificada em a).

(...)

3- Não se provou que tivesse ocorrido a possibilidade do incêndio referido em a) se propagar às restantes construções e à habitação própria dos AA..

6- Não se provou que por diversas vezes antes da ocorrência dos incidentes relatados os AA. reportaram à R. as visíveis deficiências do cabo de condução de energia, nem que esta nada fez.

(...)

8 - Não se provou a objetiva má qualidade do cabo de condução de energia, nem a correspondente falta de segurança do mesmo;

(...)

14- Não se provou que o incidente registado sob o n.º ...18 identificado em g) teve origem na rede pública de distribuição de energia elétrica.

15- Não se provou que durante o mês de julho de 2020 os AA. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente elétrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade.

(...)

19- Não se provou que os AA. tiveram de substituir a referida caixa da eletrobomba.

20- Não se provou que a falta de qualidade no fornecimento de eletricidade à propriedade dos AA. foi a causa das avarias detetadas em julho e agosto de 2020, nem dos estragos que se verificaram na instalação elétrica destes.

(...)

22 - Anteriormente aos incêndios verificou-se por várias vezes fraca tensão e oscilações no sistema trifásico da eletricidade fornecida pela R.

Factos não provados aditados pela Relação:

cc) Não se provou que após análise dos factos no local, verificaram os técnicos que os danos no ramal terão sido provocados pela instalação eléctrica particular dos ora AA.

kk) Todos os componentes da rede se encontravam em condições normais de exploração, conservadas e dentro do tempo de vida útil, não tendo sido detetadas quaisquer anomalias.

NOTA: O Tribunal da Relação não elaborou nova lista de factos não provados, tendo passado os factos não provados aqui não assinalados, total ou parcialmente, para a matéria de facto provada.

B – O Direito

I - Violação dos artigos 662.º do CPC e do 607, n.º s 4 e 5 do CPC

1. Alega a recorrente que o Tribunal da Relação, no exercício dos seus poderes de modificação da matéria de facto, violou o princípio da livre apreciação da prova e o dever de análise crítica da prova, consagrados no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, na medida em que alterou os factos dados como provados e não provados na sentença de 1.ª instância sem ouvir a gravação dos testemunhos da ré e desvalorizando as mesmas por serem funcionários da ré e terem participado nas diligências dos autos. Deste modo violou o princípio da imparcialidade, denegando justiça à ré. Invoca também que a modificação da matéria de facto se baseou apenas na discordância em relação às conclusões de facto do tribunal de 1.ª instância, sem assinalar qualquer erro notório na prova que devesse ser corrigido. Entende também que, não beneficiando o Tribunal da Relação de imediação, uma vez que não observa a linguagem corporal/gestual das testemunhas, a sua expressão facial e postura perante o tribunal, não pode fazer prevalecer a sua convicção sobre a convicção do tribunal de 1.ª instância. Tem de se basear num reexame das provas, só podendo intervir para modificar os factos com base num “clamoroso” erro na apreciação da prova cometido pelo tribunal de 1.ª instância, que se impusesse corrigir. Enquadra este procedimento da Relação na violação do artigo 662.º, n.º1, imputando ao acórdão recorrido violação da lei do processo.

Vejamos.

2. O Supremo Tribunal de Justiça só conhece questões de direito, mas tem-se admitido que o recurso de revista abrange a averiguação das regras inerentes ao exercício dos poderes-deveres previstos no artigo 662º, 1 e 2, do CPC quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, sindicável nos termos do artigo 674º, 1, b), do CPC. Ou seja, o Supremo pode controlar a aplicação da lei adjetiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respetivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do artigo 662º, resultam da remissão do artigo 663º, 2, para o artigo 607º, n.º s 4 e 5, do CPC, com a restrição constante do artigo 662º, 4, do CPC, preceito segundo o qual das decisões da Relação previstas no n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2023, proc. n.º 2755/20.7...).

3. O julgamento da matéria de facto constitui o principal objetivo do processo civil declaratório. É o resultado desse julgamento que condiciona, em primeira linha, o resultado da ação que apenas num plano secundário depende da integração jurídica, o que se tornou visível no presente caso, em que a modificação da matéria de facto pela Relação inverteu a solução jurídica, na 1.ª instância favorável à ré, e no acórdão da Relação, favorável aos autores, sem que tal inversão resultasse de uma diferente interpretação das normas jurídicas substantivas aplicáveis.

A natureza decisiva para o litígio do julgamento da matéria de facto justificou a evolução do processo legislativo.

Em contraposição com o que sucedia com o Código de Processo Civil de 1939, que estabelecia como regra a inalterabilidade da decisão do tribunal coletivo sobre a matéria de facto constante do questionário, o Código de 1961 procurou ampliar os poderes da Relação no que toca, não só à apreciação das respostas à matéria de facto dadas pelo tribunal de 1ª instância, mas também à imposição duma fundamentação mínima relativamente às decisões do coletivo, e determinado a possibilidade de anulação, ainda que oficiosa, quando as respostas à matéria de facto fossem deficientes, obscuras ou contraditórias.

A um modelo inicial (artigo 712º do CPC/1961) em que se previa que “as respostas do Tribunal colectivo não podem ser alteradas pela Relação, salvo ...”, sucedeu outro (artigo 712º do CPC de 1961, alterado na Reforma de 1995/96) em que se proclamava que “a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação ...” . Foi na Reforma de 1995/96 que se consagrou um modelo que reforçou a possibilidade de serem corrigidos, no âmbito de recurso de apelação, eventuais erros de julgamento da matéria de facto.

Esta evolução culminou com o modelo do CPC de 2013, em que o legislador impôs à Relação um dever funcional de reapreciação da matéria de facto. Com efeito, estabelece-se agora, no 662º, nº 1, do CPC/2013, que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto…”, assim impondo a lei processual ao Tribunal da Relação o dever funcional de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quando os factos tidos por assentes na sentença apelada, a prova produzida ou um documento superveniente imponham decisão diversa.

O controlo da decisão sobre os factos baseia-se, não só na prova documental junta aos autos, mas também nas gravações feitas dos depoimentos orais.

Dos elementos probatórios do processo pode resultar, também, a existência de meio de prova plena (documento autêntico, confissão, admissão de factos por acordo das partes) que imponha decisão diversa da recorrida, situação em que a Relação deve intervir, se, por exemplo, foi considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (presunção judicial ou depoimento testemunhal), devendo a Relação modificar oficiosamente a matéria de facto, por aplicação ao caso da regra de direito probatório material.

Este mesmo critério, suscetibilidade de impor decisão diversa, é aplicável aos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, na parte em que se refere a toda a“prova produzida”, não bastando, para a alteração da matéria de facto, segundo alguns autores, uma situação de dúvida sobre a credibilidade do depoente ou sobre o resultado a extrair dos meios de prova produzidos (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª edição, “Anotação 3 ao artigo 662.º”, Almedina, Coimbra, 2022, p. 170), sendo exigível segurança na convicção e um determinado grau de certeza.

4. A evolução da lei processual tem, pois, reforçado progressivamente os poderes da Relação com o objetivo de permitir uma efetiva reponderação do julgamento da matéria de facto, no sentido de assegurar o 2º grau de jurisdição nessa área.

Pretendeu-se, com as sucessivas alterações ao CPC, que a Relação, uma vez confrontada com a impugnação de determinados pontos de facto cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova de livre apreciação do tribunal, proceda à reapreciação desses meios de prova, introduzindo na decisão da matéria de facto as alterações que resultarem da convicção formada, em conjugação com outros elementos que estejam acessíveis.

Como afirma o Conselheiro Abrantes Geraldes, no Acórdão de 11-02-2016 (proc. n.º 07/13.5TBPTG.E1.S1), «Manteve-se, agora com mais vigor e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão da matéria de facto quando assente em prova que foi oralmente produzida e tenha ficado gravada, afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para os casos de “erro manifesto” (como o Preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12-12, deixava entender) ou de que não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação, como alguma – ainda que cada vez mais reduzida – jurisprudência das Relações tendia a defender.

(…)

Seguro é que, sem embargo da ponderação das circunstâncias em que a Relação desempenha a sua função, deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância, de maneira que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, se encontrar motivo para tal, deve introduzir na decisão da matéria de facto provada ou não provada as modificações que se justificarem.

O artigo 662º do NCPC, na linha do que já antes se anunciava, procurou tornar ainda mais claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis».

5. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça evoluiu da preconização de um controlo minimalista da matéria de facto pela Relação, circunscrito ao erro notório ou grosseiro, para, numa segunda fase, entender, de acordo com uma conceção intermédia, que bastaria para permitir a modificação da matéria de facto um erro do julgador do tribunal de 1.ª instância

Numa terceira fase, o Supremo destaca o papel do Tribunal da Relação como tribunal de substituição relativamente ao tribunal recorrido e que está perante a prova, na mesma posição que a 1.ª instância, devendo formar a sua convicção própria e autónoma e justificá-la com a análise crítica das provas, dentro do âmbito definido pelo recurso interposto sobre a matéria de facto.

De acordo com esta conceção, o Tribunal da Relação não está limitado pelo princípio da imediação, podendo revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que esteja de acordo com a sua convicção, desde que se baseie na análise crítica da prova e que fundamente, de forma rigorosa, as suas respostas à matéria de facto.

6. Ora, a esta luz, não tem razão a recorrente quando propugna que a atividade do Tribunal da Relação seja controlada pelo Supremo, tendo por referência uma conceção restrita dos seus poderes quanto à matéria de facto. Com efeito, este Supremo tem aceitado que o Tribunal da Relação, se adquirir, após a análise crítica das provas, uma convicção distinta da do tribunal de 1.ª instância, tem o poder de modificar os factos provados e não provados de acordo com a sua convicção, sem ter de se basear em qualquer erro notório ou flagrante cometido pelo tribunal de 1.ª instância. Neste sentido se pronunciou, entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-02-2012 (proc. n.º 6283/09.3TBBRG.G1.S1), em cujo sumário se fixou a seguinte orientação «No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, conferidos pelo art. 712º do CPC, a Relação deverá formar e fazer reflectir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova», bem como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-09-2013 (proc. n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S), onde se consagrou que «I - Ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise. II - A reapreciação da prova pela Relação, nos termos do art. 712.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do CPC, tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância». Esta orientação tem-se mantido, como decorre do Acórdão de 15-03-2023 (proc. n.º 2755/20.7T8FAR.E1.S1), em que se afirmou no respetivo sumário que, «I - A 2.ª instância assume-se como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo».

7. A decisão da Relação quanto à matéria de facto, não pode, como se afirma no Acórdão de 24-09-2013, traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto, devendo o tribunal de 2.ª instância proceder à análise crítica da prova e respetiva fundamentação das respostas, de modo a justificar a sua própria e autónoma convicção. Neste sentido, veja-se também o acórdão de 11-02-2016 (proc. n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1), em cujo sumário se afirma que «1. Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no art. 640º do NCPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do art. 662º. 2. Integra violação de direito processual susceptível de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art. 674º, nº 1, al. b), do NCPC, o acórdão em que a Relação se limita a tecer considerações de ordem genérica em torno das virtualidades de determinados princípios, como o da livre apreciação das provas, ou a enunciar as dificuldades inerentes à da tarefa de reapreciação dessas provas, para concluir pela manutenção da decisão da matéria de facto».

Assim, compete a este Supremo Tribunal controlar, apenas, se a Relação procedeu a uma análise crítica da prova, se fundamentou de forma rigorosa e completa as suas conclusões quanto aos factos (artigo 607, n.ºs 4 e 5, do CPC), e se violou regras de direito probatório material (artigo 674.º, n.º 3, do CPC). Nos termos do n.º 4 do artigo 662.º do CPC, está vedado ao Supremo proceder a um reexame da forma como a Relação apreciou os meios de prova de livre apreciação, como será o caso de documentos particulares, da presunção judicial ou regras de experiência, bem como da prova testemunhal e pericial.

8. Regressando ao caso concreto, o Tribunal da Relação frisou nos seus fundamentos quanto à alteração da matéria de facto, que, «(…) não basta que da prova produzida seja possível extrair outra convicção (o que acontecerá bastas vezes) antes decorre que a alteração só poderá ocorrer se houver elementos que “imponham” outra resposta, ou seja, se se denotar um erro na resposta dada».

Após descrição do conteúdo relevante dos depoimentos indicados pelos autores no recurso de apelação, e transcrição de alguns excertos, afirmou que estes mereceram credibilidade por revelarem conhecimentos técnicos, e por serem seguros e perentórios: «Este depoimento revela conhecimento directo das instalações dos AA. e dos cabos de fornecimento pela EDP, dando-nos uma opinião técnica sobejamente alicerçada em factos, que nos impõe concluir que os incêndios tiveram como causa directa as deficiências da instalação da R. no fornecimento de electricidade aos AA.

E tanto essas deficiências existiam que a R acabou por vir a substituir o ramal por outro mais potente –facto tt).

A testemunha GG, electricista de profissão e a prestar trabalhos para os AA depôs de forma que não se suscitaram dúvidas tendo afirmado que, em face do A se queixar de problemas em equipamentos e do quadro dava estalos procedeu a medição de tensões que se revelavam baixas para a norma. Chegou a “medir em certas alturas na casa de 177, 179, foram as tensões mais baixas que eu consegui ...o normal seria de 220/230 .”

Conhece as instalações dos AA e fez parte delas sendo seu entender que as mesmas estavam em boas condições.»

Concluiu, após a análise de dois depoimentos, o seguinte:

«Conjugando estes dois depoimentos cremos que os mesmos devem ser valorizados positivamente, porque prestados por pessoas isentas e idóneas, em detrimento dos depoimentos das testemunhas da R.- seus funcionários - que depuseram de forma pouco isenta uma vez que estava em causa o trabalho que realizaram (ou não).

No confronto entre os dois grupos de depoimentos temos para nós que se impõe que sejam valorizados os depoimentos das testemunhas dos AA porque reveladores de maior isenção e com conhecimento suficiente dos factos a que depuseram.

A convicção do tribunal não tem que se fundar numa certeza absoluta, o que levaria a que a maioria das acção não procedessem.

Tendo por certo que a verdade nunca é pura e raramente é simples e que "não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes, equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano" (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais (À Luz do Código Revisto), Coimbra Editora, 1996, pag. 160), bastando que assente num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que dê - em consciência - ao julgador, garantias de que os factos terão ocorrido de certa forma, fora de dúvida razoável

Dos elementos probatórios indicados retira-se, com suficiência certeza, que ocorriam vários picos de tensão e que o cabo de eléctrico de fornecimento de energia estava degradado, devido à sua longevidade, sendo esses factos que levaram a uma combustão lenta da qual resultou o incêndio».

O Tribunal da Relação indicou para cada alteração da matéria de facto a que procedeu os excertos dos depoimentos das testemunhas dos autores em que se baseou, explicando, de forma racional e plausível, de acordo com as regras da lógica e da experiência, as suas respostas aos factos impugnados, confrontando-a com excertos da decisão de facto do tribunal de 1.ª instância. O acórdão recorrido descreveu também os motivos que o levaram a infirmar o resultado fixado na sentença e a formular o seu juízo probatório. Pelo que, temos de concluir que procedeu a uma análise crítica da prova e a uma fundamentação clara e rigorosa das modificações operadas na matéria de facto, sendo a convicção que formou razoável e segura, isto é, dotada do grau de certeza necessário para conduzir à modificação dos factos.

A circunstância, alegada pela recorrente, de não ter o acórdão recorrido transcrito as gravações das testemunhas da autora, não é relevante, pois, para além de tal não significar que não tenha ouvido as gravações dos depoimentos, está dentro do âmbito dos poderes da Relação desvalorizar estes depoimentos, desvalorização cujo bom senso ou correção este Supremo não pode controlar e que não constitui, de todo o modo, qualquer violação do princípio da imparcialidade nem uma denegação de justiça. Trata-se de um fenómeno que acontece todos os dias nos tribunais. Com efeito, a Relação pode hierarquizar as provas, entendendo, desde que fundamente, por exemplo, que num determinado caso, a prova documental é superior à prova testemunhal, ou, como sucedeu no caso vertente, que uns testemunhos são mais credíveis do que outros em virtude da relação existente entre as testemunhas e uma das partes, como fez no caso concreto, em que entendeu desvalorizar os testemunhos dos funcionários da ré por força da sua dependência laboral e económica em relação a esta. Trata-se de um poder enquadrado na livre apreciação da prova cuja correção este Supremo não pode controlar, por não lhe competir conhecer de erros na apreciação da prova, mas tão só da violação de regras de direito probatório material no que diz respeito a prova vinculada (artigo 674.º, n.º 3, do CPC), como p. ex. se as instâncias desatenderam o efeito probatório de um documento autêntico, de uma confissão ou se desconsideraram factos admitidos por acordo das partes, questão que não esteve em debate no presente processo. Tanto mais que, se a recorrente pretendia garantir que fossem ouvidas as gravações do depoimento das suas testemunhas, tinha ao seu alcance a possibilidade de, para além das contra-alegações ao recurso de apelação dos autores, ter apresentado – o que não logrou fazer – uma ampliação do objeto do recurso quanto à matéria de facto nos termos do n.º 2 do artigo 636.º do CPC e do n.º 3 do artigo 640.º do CPC. É certo que, mesmo na falta deste pedido de ampliação, a Relação tem sempre ao seu alcance a possibilidade de proceder a uma audição de todo o julgamento, desde que tal se revele oportuno para a decisão, mas não é obrigada a fazê-lo. Ponto é que o seu juízo probatório esteja fundamentado e seja lógico, e que os meios de prova indicados pelo apelante sejam conjugados com outros indicados pelo apelado ou disponíveis no processo, o que, no caso, sucedeu, ainda que sem transcrições dos depoimentos das testemunhas da ré.

Entende-se hoje, na jurisprudência deste Supremo, diferentemente do que foi propugnado nas conclusões do presente recurso, que a Relação goza, na fixação da matéria de facto, dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, não sendo necessário para proceder a essa modificação que a Relação demonstre a existência de um erro grosseiro ou flagrante cometido pelo tribunal de 1.ª instância.

Nos termos do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-02-2022, proc. n.º 23/09.4TBSSB.E2.S1, «O Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá verificar se não foram observados os limites traçados para o exercício dos poderes que são conferidos à Relação pelo art.º 662.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, mas não sindicar eventuais erros de julgamento, quando esteja em causa a valoração de prova livre ou o exercício da livre convicção do julgador».

Assim sendo, conclui-se, que a Relação ao modificar os factos provados e não provados, agiu dentro dos limites definidos pela lei e não violou lei processual nem substantiva.

9. Em consequência, improcedem as conclusões a)-z) e aa)-hh) da alegação de recurso da recorrente e não se procede à repristinação da matéria de facto provada e não provada na sentença do tribunal de 1.ª instância, confirmando-se integralmente a matéria de facto tal como modificada pelo Tribunal da Relação.

II – Erro de interpretação e aplicação dos artigos 342.º, 493.º, n.º 2 e 509.º, n.º 1, todos do Código Civil.

1. O acórdão recorrido decidiu, no que se refere à questão de direito objeto do recurso de revista, que, em face das alterações levadas a cabo na matéria de facto, não é de manter a solução de direito que julgou a ação improcedente, com o seguinte fundamento:

«O Regulamento da Qualidade de Serviço (Aprovado pelo Despacho nº 5255/2006 da Diretiva-Geral de Geologia e Energia, publicado no DR ,II série, de 8-3-2006), cujo artº 9º dispõe: “1-Os operadores da rede de transporte e das redes de distribuição são responsáveis perante os clientes ligados às redes pela qualidade de serviço técnica, independentemente do comercializador que contratou o fornecimento, sem prejuízo do direito de regresso entre os operadores das redes de distribuição, devem manter vigilância sobre a evolução das perturbações nas respetivas redes.”

Ac. RP de 2/7/2013, proc. 32/12.6TBMDB.P1, acessível na base de dados da dgsi

- A distribuição de energia elétrica é uma atividade perigosa por natureza, e, como tal, sujeita ao regime previsto no nº2 do art. 493º do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma atividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.

II - Tal atividade encontra-se ainda sujeita ao regime de responsabilidade objetiva previsto no art. 509º pelos danos causados pela da condução ou entrega da eletricidade ou do gás.

III - Para a aplicação de tal regime necessário se torna a prova de que o incidente causador do dano tenha ocorrido no âmbito das atividades aí previstas: produção, condução ou entrega (distribuição) de energia elétrica, cuja prova incumbe ao lesado, nos termos do nº1 do art. 342º do CC.

IV - Não se provando que o incêndio tenha ocorrido na rede pública de distribuição de eletricidade, ou seja, no sistema de condução e entrega até à origem, mas tão só que a parte ardida se situa após o ponto de entrega – cabo de fornecimento de energia elétrica situado entre o contador e o quadro elétrico existente no interior da habitação dos autores – excluída fica a responsabilidade da Ré.”

No caso em análise decorre que foi a deficiente qualidade do serviço prestado pela R, ou seja, a baixa tensão e a degradação do cabo que fornecia a energia à propriedade dos AA que levou à ocorrência dos incêndios supra descritos.

Sendo a actividade da R.-fornecimento de electricidade- uma actividade manifestamente perigosa recai sobre a R a responsabilidade pelos danos que por via dessa actividade causar -art.º 493.º,2 CC.

Não logrou a R provar factos que permitissem afastar a presunção de culpa que sobre ela impende ao abrigo do art.º 493.º, 2 do CC

Neste contexto nasceu o dever da R de indemnizar os AA pelos prejuízos sofridos com os incêndios ocorridos- o referido em a) e o referido em k).

Os danos computam-se no valor global de €65.955,73.

Danos não patrimoniais reclamados pelos AA.

Os factos m) e n) não configuram, a nosso ver, danos de tal forma graves que mereçam a tutela do direito.

Improcede assim o pedido a título de danos não patrimoniais».

2. Está em causa a verificação ou não dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (por presunção de culpa da ré – artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil ou pelo risco – artigo 509.º, n.º 1, do Código Civil), fonte da obrigação de indemnizar os autores pelos danos patrimoniais sofridos (in casu, serão conhecidos apenas os danos patrimoniais dado que os autores não recorreram do segmento do acórdão recorrido que lhes negou qualquer compensação por danos não patrimoniais).

3. No caso vertente, estamos em face de danos causados aos autores pela linha aérea de transporte de eletricidade à sua propriedade, a qual estava sujeita a “picos de corrente”, dado que os cabos que transportavam a eletricidade para a propriedade dos autores se encontravam em estado de degradação, tendo ficado provado que «A circunstância da propriedade dos AA. se localizar no extremo da rua e não haver “posto de transformação” em toda a extensão da rua, provocou “picos de tensão” o que, aliado ao facto dos cabos aéreos estarem em mau estado de conservação, causou aquecimento excessivo nos quadros elétricos e dano de tal forma grave que os mesmos entraram em combustão».

4. Tendo o acórdão recorrido considerado aplicável o artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, dado que a distribuição de eletricidade é uma atividade perigosa, uma palavra deve este Supremo proferir sobre a integração jurídica dos factos do caso no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil ou no artigo 509.º do mesmo diploma legal.

Em primeiro lugar nestes dois preceitos estamos perante a previsão de obrigações de indemnizar danos causados por uma atividade perigosa como necessariamente é a condução de energia elétrica.

No artigo 493.º, n.º 2, estamos perante uma espécie de responsabilidade subjetiva, que se baseia na culpa, embora presumida, enquanto o artigo 509.º prevê uma hipótese legal de responsabilidade pelo risco ou objetiva, em que se prescinde totalmente da culpa (provada ou presumida).

A diferente natureza da responsabilidade civil repercute-se nos ónus impostos ao lesante em ordem a afastar a responsabilidade que sobre ele recai.

No caso do n.º 2 do artigo 493.º, o lesante tem de ilidir a presunção de culpa, demonstrando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos.

Na hipótese de estarmos perante danos causados pela condução ou entrega de eletricidade, segundo o artigo 509.º, n.º 1, primeira parte, a responsabilidade do lesante só é afastada se estes danos forem devidos a causa de força maior, considerando-se força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa (artigo 509.º, n.º 2).

Já na hipótese de os danos serem causados pela própria instalação elétrica, a responsabilidade civil pelo risco é atenuada com maior amplitude, na medida em que a lei exceciona desta responsabilidade as situações em que a instalação está de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação (artigo 509.º, n.º 1, 2.ª parte). Esta causa exoneratória aproxima-se das previstas nos artigos 491.º a 493.º do Código Civil, que preveem presunções de culpa (cfr. Raúl Guichard/Katy Fernandes, “Anotação ao artigo 509.º”, “Anotação ao artigo 509.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 426).

De todo o modo, na prática, a diferença entre as duas normas (artigo 493.º, n.º 2 e o artigo 509.º, n.º 1,) não será tão intensa como aparenta, conforme salientado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30-09-2014 (proc. n.º 368/04), que se refere a um processo de objetivização da responsabilidade baseada em presunções de culpa, dada a interpretação severa e exigente, na jurisprudência europeia, dos requisitos legais para o lesante se exonerar da culpa, tornando, na prática, as situações de culpa presumida quase equivalentes a casos de responsabilidade objetiva.

De acordo com um juízo casuístico, a condução de eletricidade é uma atividade perigosa, para o efeito do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, já que se trata de uma atividade, que, pela sua natureza e pelos seus meios, criam para terceiros um estado de perigo, tornando mais provável a ocorrência de danos.

Todavia, julgamos mais rigoroso integrar os factos do caso na hipótese da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 509.º, uma vez que esta norma jurídica se refere expressamente aos prejuízos derivados da condução ou entrega de eletricidade como sucede in casu e que a responsabilidade pelo risco se baseia no princípio da oneração com o risco àquele que o cria, controla e/ou retira dele benefícios, como uma exigência de justiça distributiva (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 594-595).

Não podemos deixar de destacar que a norma do artigo 509.º, n.º 1, na medida em que não se baseia na culpa, mas no princípio de que quem tira lucros de uma atividade, deve reparar os danos causados por essa atividade (ubi commoda, ibi incommoda), está mais apta para permitir ao lesado obter o ressarcimento dos danos sofridos, sobretudo, no segmento em que prevê a responsabilidade da empresa que fornece a energia elétrica pelos danos causados pela condução/entrega de eletricidade.

5. No preceito em análise, a ré responde pelos danos causados pela atividade que exerce independentemente de culpa, mas com duas exceções: 1ª) não responde pelos danos causados pela própria instalação elétrica, se esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação (artigo 509º, n.º 1, in fine, do Código Civil); 2ª) não responde se os danos forem devidos a causa de força maior (artigo 509º, n.º 2, do Cód. Civil), exceção aplicável quer aos danos causados pela instalação elétrica, quer aos danos causados pela condução ou entrega da eletricidade.

6. A doutrina (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, Almedina Coimbra, pp. 712-714) e a jurisprudência (cfr., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-03-2004, proc. n.º 04A521, de 27-10-2016, proc. n.º 1452/l3.4TJLSB.Ll.Sl, e de 12-07-2018, proc. n.º 802/14.0TBTNV.E1.S1) costumam distinguir, no âmbito do artigo 509.º, n.º 1, do Código Civil, duas situações: o prejuízo que derive da condução ou entrega da eletricidade e os danos resultantes da própria instalação. Esta diferença tem o relevo prático de, na hipótese da distribuição de energia elétrica – dada a sua extrema probabilidade de provocar danos – o legislador não permitir à empresa concessionária que prove, para afastar a responsabilidade objetiva, que a instalação elétrica está de acordo com as regras técnicas e em bom estado de conservação.

7. Os pressupostos da norma jurídica em causa, o artigo 509.º do Código Civil, são os seguintes:

1) A responsabilidade recai sobre uma empresa ou um indivíduo que explore fontes de energia (eletricidade ou gás) como proprietário, concessionário ou como arrendatário, ou sobre quem detenha o poder de facto, a direção efetiva ou o controlo da instalação e a condução ou entrega de energia elétrica ou a gás, na medida em que é o detentor quem cria o risco especial da sua utilização, auferindo os proveitos da atividade (cfr. Raúl Guichard/Katy Fernandes, “Anotação ao artigo 509.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, ob. cit., p. 426).

2) A instalação em causa deve destinar-se à condução ou entrega de energia elétrica ou gás;

3) A utilização da instalação é feita no próprio interesse.

8. Assim, há que aferir se a Ré, na qualidade de concessionária do serviço público de energia elétrica, tem a direção efetiva de uma instalação elétrica, bem como da condução e entrega de eletricidade.

Nos termos da factualidade provada (alíneas s), t), u), e v)), a Ré é uma sociedade que exerce a atividade de Operador de Rede de Distribuição, no território continental de Portugal, sendo titular da concessão para a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), e da concessão municipal de distribuição de energia elétrica em Baixa Tensão (BT) no concelho de ....

Para o exercício da sua atividade, esta explora variadas infraestruturas e equipamentos, entre os quais os cabos de rede.

As ligações à rede de energia elétrica são da responsabilidade da Ré, constituindo sua propriedade todas as instalações elétricas que servem essa rede e por referência às quais impende, sobre a mesma, um dever de manutenção e preservação, de modo a garantir a continuidade do fornecimento de energia elétrica. As ligações à rede de energia elétrica são de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável ao sector elétrico nacional.

A Ré, enquanto concessionária da exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), dispõe, para o efeito, de instalações elétricas, infraestruturas e ligações à rede em todo o território nacional, nomeadamente no local do acidente descrito na al. a) dos factos provados (facto provado – al. w)).

O Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, desenvolve os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do sistema elétrico nacional (SEN), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, regulamentando o regime jurídico aplicável ao exercício das atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade e à organização dos mercados de eletricidade, regime alterado pelo Decreto-lei n.º 76/2019, de 3 de junho.

O caso a regular nestes autos, por implicar danos causados pela distribuição de energia elétrica, cai na alçada do artigo 509.º do Código Civil conforme resulta da Base XXV, do Anexo III ao Decreto-lei n.º 76/2019, que, sob a epígrafe – Responsabilidade civil – determina o seguinte: «1 – Para os efeitos do disposto no artigo 509.º do Código Civil, entende-se que a utilização das instalações integradas na concessão é feita no exclusivo interesse da concessionária».

Estão, pois, verificados os requisitos de aplicabilidade do artigo 509.º do Código Civil.

9. A estes requisitos, devem acrescer os pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com exceção da culpa (artigo 499.º do Código Civil): o facto ilícito objetivo, o dano e o nexo de causalidade adequada, nos termos do artigo 563.º do Código Civil.

Tem-se entendido na doutrina que o facto gerador de responsabilidade não é definido pela sua mera voluntariedade e ilicitude, como na responsabilidade subjetiva, mas antes tipificado em cada hipótese legalmente prevista de responsabilidade pelo risco (cfr. Maria da Graça Trigo/HH, “Comentário ao artigo 499.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direitos das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018,p. 384). É, pois, a lei que define os requisitos para que estejamos perante uma situação de risco relevante para efeitos de responsabilidade objetiva, in casu, o artigo 509.º do Código Civil, sendo decisivo que o dano se verifique no âmbito do risco assim delimitado.

A responsabilidade pelo risco, para além de não carecer de qualquer juízo de culpa, dispensa ainda, segundo alguma doutrina, um juízo de ilicitude (cfr. Ana Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a propósito da responsabilidade objetiva, Principia, Cascais, 2014, pp. 61-79).

Quanto ao nexo de causalidade, este deve analisar-se não por referência a um facto, mas por referência à atividade perigosa, consistindo num juízo de imputação objetiva dos danos ao âmbito do risco dessa atividade controlada pela empresa concessionária de energia elétrica.

9.1. Factos geradores do dano:

Analisada a matéria de facto, verifica-se que ficaram provados os factos geradores do dano tal como descritos nas alíneas a), c) e g) dos factos provados:

No dia 29 de junho de 2019, cerca das 23.30 horas, na Rua ..., concelho de ..., deflagrou um incêndio na arrecadação dos AA., a qual era destinada por estes para a recolha das alfaias agrícolas, máquinas, equipamentos, ferramentas, produtos e acessórios utilizados na sua atividade de produtor agrícola, edificação que faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...12/... (facto provado a)). O incêndio só foi declarado extinto pelas 03:40h da madrugada do dia 30 de junho de 2019, tendo destruído todo o edifício e respetivo recheio, nada sendo recuperado ou recuperável (facto provado c)).

Em 4 de junho de 2019 ocorreu outro incidente num edifício dos A.A. sito na mesma propriedade, destinado aos mesmos fins agrícolas, tendo nessa ocasião ardido o quadro elétrico aí instalado apenas há cerca de dois anos, ficando completamente destruído (facto provado g)).

Acresce que, provou-se também que «A linha aérea de transporte de eletricidade à propriedade dos AA. estava sujeita a “picos de corrente” que danificavam os elementos elétricos ali existentes» e que «Os cabos que transportam a eletricidade para a propriedade dos AA. encontravam-se em estado de degradação».

9.2. Danos patrimoniais

Nos termos dos factos provados constantes das alíneas h) a l) da matéria de facto, em resultado dos incidentes relatados em a) e g), os autores sofreram os seguintes danos: Perderam todas as máquinas, equipamentos e demais produtos utilizados na sua atividade agrícola, além dos danos causados no edifício ardido que teve de ser substituído por uma nova construção e, na perda total dos dois quadros elétricos que ficaram completamente destruídos. Alguns dos bens perdidos foram substituídos por novos, tendo os autores despendido na aquisição dos mesmos a quantia de € 3.270.00. Outros bens perdidos no incêndio, os quais os autores ainda não tiveram oportunidade de substituir tinham o valor total de € 14.707,07. A substituição do quadro elétrico que ardeu no incidente ocorrido em 4 de junho de 2019 custou a quantia de € 660,56. A reconstrução do barracão agrícola ascendeu ao montante de € 46.740,00 e a reparação de portão custou a quantia de € 578,10.

A matéria de facto, de forma inequívoca, demonstra o deflagrar de incêndios a partir dos contadores elétricos, que destruíram bens dos autores.

9.3. Nexo de causalidade adequada

Dúvidas não surgem na questão do nexo de causalidade entre o facto gerador do dano e o dano, pois sabe-se que – e a ré também não o contesta – foram os acidentes descritos na matéria de facto que desencadearam o dano, numa perspetiva naturalística enquanto condições aptas a produzi-lo.

Mas importa, ainda, que fique demonstrado o nexo de imputação entre o risco e o dano, ou seja, que o risco inerente à atividade perigosa foi a causa adequada do dano e não uma situação de força maior alheia a esse risco.

Nos termos dos factos aditados à matéria de facto provada pelo acórdão recorrido, dos quais se transcrevem os relevantes para o efeito, resulta que:

- A linha aérea de transporte de eletricidade à propriedade dos AA. estava sujeita a “picos de corrente” que danificavam os elementos elétricos ali existentes.

- Os cabos que transportam a eletricidade para a propriedade dos AA. encontravam-se em estado de degradação.

-A circunstância da propriedade dos AA. se localizar no extremo da rua e não haver “posto de transformação” em toda a extensão da rua, provocou “picos de tensão” o que, aliado ao facto dos cabos aéreos estarem em mau estado de conservação, causou aquecimento excessivo nos quadros elétricos e dano de tal forma grave que os mesmos entraram em combustão.

- Foi o mau estado dos cabos de transporte da baixa tensão que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos AA. e que, consequentemente, resultou num sobreaquecimento do quadro elétrico provocando o incendio.

- A génese da avaria situou-se fora da rede elétrica interna dos AA..

- Em datas não concretamente apuradas, mas anteriores aos incêndios, os AA. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente elétrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade. Nessa sequência contactaram o seu eletricista que em diversos dias e horas se deslocou à propriedade munido de voltímetro e ao medir a tensão sem consumo verificou que a tensão nas três fases estava baixa para os valores considerados normais e dentro dos limites de segurança, o que provoca sobreaquecimento dos equipamentos.

- Na sequência de reclamação do A. os serviços da R. constaram, a 4/6/2019, a existência de um ligador queimado. –doc.3 junto com a contestação.

- Em fase do registo de intervenções junto pela R. constata-se que a 7/8/2020 a caixa de proteção do ramal do cliente zs4x6 queimou-se e que era necessário ser substituída. –doc.3 junto com a contestação.

- Anteriormente aos incêndios verificou-se por várias vezes fraca tensão e oscilações no sistema trifásico da eletricidade fornecida pela R.

Assim, tem de se concluir que o nexo de causalidade se encontra verificado, na medida em que os danos são o resultado da atividade de distribuição elétrica que a ré realiza, não contribuindo para esse dano qualquer facto praticado pelo próprio autor.

10. A ré invoca não lhe ser oponível qualquer deficiência na condução da eletricidade e que, segundo o facto kk) da sentença, ficou provado que todos os componentes da rede se encontravam em condições normais de exploração, conservadas e dentro do tempo de vida útil, não tendo sido detetadas quaisquer anomalias.

Ora, em primeiro lugar, este facto foi dado como não provado pela Relação, e este Supremo não o repristinou como pediu a ré no recurso de revista.

Todavia, como estamos perante uma situação de responsabilidade pelo risco por danos causados pela distribuição de energia elétrica, situação potencialmente geradora de danos, a única causa de exclusão ou de exoneração da responsabilidade seria uma situação de força maior, sendo irrelevante que se tivesse provado o constante da alínea kk) da sentença.

Neste sentido, se tem pronunciado a jurisprudência do Supremo, como vimos, desde, pelo menos, 2004. Com efeito entendeu o citado Acórdão de 25-03-2004, com relevo para a questão de direito destes autos, que «No caso da condução e entrega o facto de terem sido cumpridas, as regras técnicas em vigor e tudo estar em perfeito estado de conservação, tal não isenta de responsabilidade objectiva a entidade responsável pela condução e entrega de energia. Tal isenção só aproveitaria se os danos fosse originados na instalação da energia e não já na sua condução e entrega, como foi o caso».

11. Do exposto decorre que a única causa suscetível de afastar a responsabilidade da ré seria a situação de força maior, não demonstrada na factualidade do caso.

A propósito do conceito de “casos de força maior” excludente da responsabilidade da empresa concessionária de energia elétrica, determina a Base XXXI do anexo III referido no artigo 34.º, n.º 6, do DL n.º 76/2019 (que remete para As bases de concessão da RNT que constam do anexo III do presente decreto-lei, que dele faz parte integrante), que, tratando-se de responsabilidade por incumprimento do contrato de concessão, «2 - A responsabilidade da concessionária cessa sempre que ocorra caso fortuito ou de força maior, ficando a seu cargo apresentar prova da ocorrência. 3 - Consideram-se unicamente casos de força maior os acontecimentos imprevisíveis cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária. 4 - Constituem, nomeadamente, casos de força maior atos de guerra, hostilidades ou invasão, terrorismo, epidemias, radiações atómicas, graves inundações, raios, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que afetem a atividade objeto da concessão.»

Conforme se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/11/2007, proc. n.º 2640/06: «I - Porque a condução e entrega de energia eléctrica é uma actividade perigosa, a lei impõe - art.º 509.º, n.º 1, do CC - que quem beneficia dessa mesma actividade, suporte - objectivamente - os respectivos riscos, reparando os danos ou prejuízos consequência do seu exercício. II - Só assim não será se os danos forem devidos a causa de força maior, nos termos em que a define o n.º 2 do mesmo artigo, ou seja, algo que, embora previsível, não é susceptível de ser dominado pelo homem».

O Acórdão supra citado interpreta restritivamente este conceito de força maior, quando está em causa a distribuição de energia elétrica, entendendo que a existência de trovoadas e raios não preenche o conceito de causa de força maior nos termos do n.º 2 do artigo 509.º, como excludente da responsabilidade objetiva prevista no n.º 1 do artigo, afirmando no seu sumário que um raio «(…) não é suscetível de ser dominado pelo homem, se esse homem for o simples consumidor de energia eléctrica, mas já não pode aceitar-se que esse mesmo simples raio não seja “dominável” por uma empresa como a ré, cujo objecto negocial é exactamente a produção, o transporte e a distribuição de energia. (…) Uma rede de condução e entrega de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios que, por isso, não podem dizer-se independentes do seu funcionamento e utilização, embora exteriores a ela».

Sobre o conceito de força maior, para o efeito de exclusão da responsabilidade pelo risco, deixou também consagrado o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-10-2016, proc. n.º 1452/13, que «A “causa de força maior”, sendo exterior e independente do funcionamento e utilização da coisa, é excludente da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, justamente, por ser idónea a romper o nexo de causalidade adequada. Como tal, só se verifica se se tratar de um facto (necessário), que “não se pode evitar, nem em si mesmo, nem nas suas consequências” e, subjazendo-lhe a ideia de inevitabilidade e a de acontecimento natural fora do alcance do poder humano, também não se verifica quando para os seus efeitos tenha concorrido qualquer acto ou omissão do devedor».

A doutrina equipara à força maior, como causa da exclusão da responsabilidade civil pelo risco, um facto do lesado ou um facto de terceiro (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 654-655), aqui também não demonstrados, dadas as alterações à matéria de facto feitas pela Relação.

12. Afigura-se inequívoco que, no caso sub judice, da matéria de facto não decorre a prova de qualquer circunstância de força maior que rompesse o nexo causal, nem sequer uma tempestade ou trovoadas ou uma causa imprevisível e irresistível, um facto de terceiro ou do autor.

Dessa matéria de facto, o que decorre expressamente é que foi o mau estado dos cabos de transporte da baixa tensão, cuja fiscalização cabia à ré, que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos autores, da qual resultou um sobreaquecimento do quadro elétrico que provocou o incêndio. Também se afirma expressamente, na matéria de facto provada, que a génese da avaria se situou fora da rede elétrica interna dos autores.

Com as alterações à matéria de facto a que procedeu o acórdão recorrido, tem que se concluir que os autores cumpriram o ónus da prova que lhes competia dos factos constitutivos do seu direito de indemnização, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil: provaram que os danos sofridos na sua esfera jurídica decorreram da atividade de distribuição de energia elétrica desenvolvida pela Recorrente.

O ónus da prova da causa de exoneração da responsabilidade – caso de força maior – cabia à ré, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, o que não logrou cumprir.

Assim sendo, tendo a ré a direção efetiva da condução e distribuição de energia, atividade lucrativa de que retira proveitos, e sendo os danos uma concretização dos riscos próprios dessa atividade, terá a ré de indemnizar os autores.

13. Em consequência, decide-se que não se verificou, no acórdão recorrido, qualquer violação das normas dos artigos 342.º, 493.º e 509.º do Código Civil, assumindo a ré a responsabilidade pelos danos patrimoniais causados aos autores, nos termos nele decididos, ainda que com outro fundamento.

Improcedem, pois, as conclusões ii) a mm) da alegação de recurso da recorrente.

12. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – O Tribunal da Relação, se adquirir, após a análise crítica das provas, uma convicção distinta da do tribunal de 1.ª instância, tem o poder de modificar os factos provados e não provados de acordo com essa convicção, sem ter de se basear em qualquer erro notório ou flagrante cometido pelo tribunal de 1.ª instância.

II- Tem-se entendido na doutrina que o facto gerador de responsabilidade pelo risco não é definido pela sua mera voluntariedade e ilicitude, como na responsabilidade subjetiva, mas antes tipificado em cada hipótese legalmente prevista de responsabilidade pelo risco.

III - Os pressupostos da norma jurídica em causa, o artigo 509.º do Código Civil, são os seguintes: 1) A responsabilidade recai sobre uma empresa ou um indivíduo que explore fontes de energia (eletricidade ou gás) como proprietário, concessionário ou como arrendatário, ou sobre quem detenha o poder de facto, a direção efetiva ou o controlo da instalação e a condução ou entrega de energia elétrica ou a gás, na medida em que é o detentor quem cria o risco especial da sua utilização, auferindo os proveitos da atividade; 2) A instalação em causa deve destinar-se à condução ou entrega de energia elétrica ou gás; 3) A utilização da instalação é feita no próprio interesse.

IV – No âmbito do artigo 509.º, n.º 1, do Código Civil, distinguem-se duas situações: o prejuízo que derive da condução ou entrega da eletricidade e os danos resultantes da própria instalação.

V – Esta diferença tem o relevo prático de, na hipótese da distribuição de energia elétrica – dada a sua extrema probabilidade de provocar danos – o legislador não permitir à empresa concessionária que prove, para afastar a responsabilidade objetiva, que a instalação elétrica está de acordo com as regras técnicas e em bom estado de conservação, causa exoneratória apenas aplicável aos danos resultantes da própria instalação.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de fevereiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Manuel Aguiar Pereira (1.º Adjunto)

Jorge Leal (2.º Adjunto)