Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
113/17.0T8CNF.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DIVISÃO DE COISA COMUM
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PODERES DA RELAÇÃO
LOGRADOURO
POSSE DE BOA FÉ
POSSE PRECÁRIA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS – DIREITO DAS COISAS / POSSE / CARACTERES DA POSSE / USUCAPIÃO / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4 E 674.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 371.º, 1253.º, ALÍNEA C), 1260.º, N.º 2 E 1296.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-05-2015, PROCESSO N.º 2689/08.3TBLRA.C1.S1;
-DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 177/04.6TBRMZ,E1.S1;
- DE 03-03-2016, PROCESSO N.º 4479/05.6TVLSB.L1.S1;
-DE 15-09-2016, PROCESSO N.º 165/12.9TBSJP.C1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Em sede de apreciação da alteração da matéria de facto, os poderes de sindicância do STJ cingem-se às decisões das instâncias que ofendem disposições da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, à necessidade de ampliação da matéria de facto e à existência de contradições na fixação da matéria de facto que inviabilizem a solução de direito.

II - Os documentos autênticos (e não está em causa que a escritura de divisão de coisa comum em questão não o seja) só fazem prova plena relativamente aos factos neles referidos como tendo sido praticados ou atestados/percecionados pelo respetivo oficial público.

III - A referência, na escritura de divisão de coisa comum, de que a casa de habitação que foi adjudicada à autora era composta, para além do mais de um logradouro (nada se referindo em relação aos outros prédios que, em resultado da divisão, foram adjudicados aos outros outorgantes, no sentido de também conterem logradouros), apenas resultou daquilo que foi declarado pelos respetivos outorgantes, nada tendo a ver com algo que haja sido praticado ou vivenciado pelo notário.

IV - Assim, relativamente a tais declarações, a dita escritura não faz prova plena, razão pela qual nada obstava a que a Relação, tendo por base a reapreciação daquela e de outras provas, procedesse à alteração da matéria de facto que havia sido como provada na 1.ª instância, nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de dar como não provado que o logradouro em questão faz parte integrante do prédio que foi adjudicado à autora.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou ação declarativa comum contra BB, CC e DD, EE e HH pedindo:

a) Se declare que o logradouro, com a área de trinta e sete metros quadrados, onde se encontra a garagem/anexo, supra melhor identificada, edificada pelos réus, faz parte integrante do prédio identificado no nº 3 do artº 6 e que pertence à ora autora;

b) Sejam os réus condenados a demolirem a invocada garagem/anexo por si construída no logradouro que faz parte integrante do prédio identificado no nº 3 do artº 6º da presente PI, pertença da autora;

c) Sejam os réus condenados a restituírem à autora aquela parcela de terreno que constitui o logradouro do prédio da autora;

d) E a absterem-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da A. desse mesmo logradouro.

e) Serem os Réus condenados nas custas do processo.

Alegou para o efeito e eme resumo que, por escritura de divisão de coisa comum de 11.06.1997, a autora e as suas duas irmãs, FF e GG, procederam à divisão do prédio urbano em questão, que identifica, que o prédio que lhe coube é o único que ficou com logradouro e que sempre usou o imóvel que lhe foi adjudicado como seu, nele reconstruiu a casa de habitação que do mesmo fazia parte, à vista de todas pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence.

Mais alega que no Verão de 2015 os réus, abusivamente, sem qualquer legitimidade ou autorização, edificaram no dito logradouro que faz parte integrante do seu prédio uma garagem/anexo, construção essa que impede o acesso da autora ao seu logradouro e bem assim a sua utilização.

Mais alega ainda que, apesar de instados a proceder à imediata demolição daquela construção, os réus se recusam a tal.

Os réus contestaram, defendendo-se por impugnação e exceção, pugnando pela improcedência do pedido.

E deduziram reconvenção, em cuja sede pediram:

A) Que se declare que os reconvintes são donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou de direito, de um prédio urbano composto de casa de habitação, sito no lugar de --, freguesia de --, concelho de --, inscrito na matriz respetiva sob o artigo 1109, melhor identificado nos artigos 10.º e 3.º e seguintes da presente contestação /reconvenção;

B) Se condene a reconvinda. a assim ver julgar, a respeitar o referido direito de propriedade e a não estorvar ou questionar, doravante, por qualquer meio, o respetivo exercício;

C) Se declare que do referido prédio dos reconvintes faz parte e a ele pertence uma parcela de terreno anteriormente descoberta e constituída por logradouro, e onde se acha construída uma garagem, com 25,08 m.2, parcela que se achava intervalada entre a superfície coberta dessa casa dos reconvintes, que lhe estava a nascente, e a estrada camarária, que lhe ficava a poente, ou seja, dentro da confrontação nascente - poente do prédio dos mesmos reconvintes, como consta desse articulado e é correcta, e a abranger toda a extensão do prédio, de norte a sul, a qual deste prédio sempre constituiu pertença exclusiva, descrita supra, entre outros, nos artigos 19. º e 20. º da contestação/reconvenção;

D) Se condene a reconvinda, a assim ver julgar, a respeitar e a reconhecer tal direito e a abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam, estorvem ou dificultem o exercício do mesmo direito;

E) Se condene a reconvinda a indemnizar os reconvintes no quantitativo de € 2.562,00 (dois mil, quinhentos e sessenta e dois euros), na seguinte proporção: € 1 708,00 para o 1.º R.; € 427,00 para os 2.ºs RR.; e € 427,00 para o 3.º R. marido, a título de indemnização por danos não patrimoniais por estes sofridos, acrescida de juros, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

Alegaram para o efeito e em resumo que as confrontações constantes da referida escritura de divisão não correspondem à verdade na medida em que a casa dos réus também dispunha, como sempre dispôs, do logradouro em questão, onde foi feita a obra, dispondo a autora também de um logradouro que não coincide com o que agora reivindica.

E invocaram ainda a aquisição por usucapião da parcela de terreno em questão.

A autora replicou, impugnando a matéria da reconvenção e reafirmando a posição assumida na petição inicial.

Realizada a audiência de julgamentos veio a ser proferida sentença:

Na qual a ação foi julgada totalmente procedente:

a) Declarando-se que o logradouro, onde se encontra a garagem/anexo, identificado no ponto 9 da factualidade provada, com 26,22m2, faz parte integrante do prédio da autora referido em 4. c);

b) Condenando-se os RR. a demolirem a garagem/anexo referida nos pontos 9 a 11 da factualidade provada;

c) Condenando-se os RR. a restituírem à A. aquela parcela de terreno que constitui o logradouro do prédio da A.;

d) E a absterem-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da A. desse mesmo logradouro;

E na qual a reconvenção foi julgada improcedente, sendo os RR, absolvidos do respetivo pedido.

Na sequência e no âmbito de apelação dos réus, a Relação de Coimbra, revogando a sentença recorrida:

Julgou improcedentes os pedidos da autora;

E julgou parcialmente precedente o pedido reconvencional:

a) Declarando que os réus reconvintes são donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou de direito, do prédio identificado no ponto 4 al. a) dos factos provados na sentença;

b) Condenando a autora reconvinda a respeitar o referido direito de propriedade, e a não estorvar o respetivo exercício;

c) Declarando que os réus são donos da parcela de terreno anteriormente descoberta e constituída pelo espaço identificado no ponto 9 dos factos provados e onde se acha construída uma garagem.

d) Condenando a aurora reconvinda a assim ver julgar, a respeitar e a reconhecer tal direito, e a abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam, estorvem ou dificultem o exercício do mesmo direito.

e) No mais julgando improcedente o pedido reconvencional.

Inconformada, interpôs a autora o presente recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

1ª - O presente recurso é interposto como manifestação da insatisfação e não concordância da ora Recorrente perante o Acórdão que declarou os Apelantes e ora Recorridos donos da parcela de terreno denominado por logradouro, existente entre a casa de ambos por violação do disposto no art. 674° nº 1 a) do Código de Processo Civil;

2ª - Na presente lide, está em causa, fundamentalmente saber se, por um lado o denominado “logradouro” é parte integrante do prédio adjudicado à Recorrente ou se, pelo contrário, o mesmo é parte integrante do prédio que foi adjudicado à falecida mulher e mãe dos Recorridos;

3ª - Impõe-se também, dirimir no caso sub judice, a questão de saber se os Recorrentes adquiriram, por usucapião, o referido “logradouro”;

4ª - Começando pela primeira questão, dir-se-á desde já que do Acórdão colocado em crise resulta, senão de facto, pelo menos indiciariamente, que os Senhores Juízes Desembargadores colocaram em causa diversos meios de prova solenemente consagrados no nosso Código de Processo Civil violando, nomeadamente, o preceituado nos artigos 413): 423° e 452°, todos do referido diploma legal;

Com efeito,

5ª - A interpretação e a valoração dadas pelo douto Acórdão Recorrido à escritura de divisão de coisa comum que adjudicou à Recorrente a parcela que lhe pertence, bem como a interpretação e a valoração dadas ao depoimento de parte da Recorrente e aos depoimentos prestados pelas diversas testemunhas no Tribunal de primeira instância assim o revelam.

Senão vejamos:

6ª - Referem igualmente os Senhores Desembargadores “ ... que na motivação da matéria de facto o Tribunal de primeira instância relativamente à questão que se prendia com o saber se o "logradouro" onde foi edificada a garagem/anexo é parte integrante do prédio adjudicado à Autora, ou, pelo contrário, se é parte integrante do que cabe à sua falecida irmã FF, partiu do documento que refutou de decisivo e que era a escritura de divisão de coisa comum, onde se referia que o prédio da autora dispunha de um logradouro para declarar, logo nos factos provados, que o mesmo era propriedade da autora;

Ora

7ª - Não pode a Reclamante aceitar tal valoração e interpretação dada aos factos em equação, dado que a referida escritura de divisão de coisa comum é o único documento autêntico onde consta de forma expressa e inequívoca, que o prédio da autora, ora Recorrente, contém um logradouro, embora, é certo, sem o situar no mesmo;

8ª - Não deve pois, tal facto, só por si, levar à conclusão de se negar a sua existência e de não se considerar aquele como sendo parte integrante do prédio da autora, ora Recorrente;

9ª - Até porque da análise à escritura de divisão de coisas comum, resulta claro e expressamente que o prédio da Recorrente é o único dos três prédios que é constituído por um logradouro;

Acresce que,

10ª - Ao contrário do que consta do Acórdão da Relação ora em crise, provou-se até que, pelo menos desde a data da celebração da escritura de divisão de coisa comum, que a Autora sempre usou o imóvel que lhe foi adjudicado, incluindo o logradouro em questão, como sendo seu, quer anteriormente à reconstrução de sua casa, quer durante a reconstrução, quer posteriormente a ela, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja e com a intenção e na convicção de que o mesmo lhe pertencia;

11ª - Tal só foi interrompido a partir de 1999, aquando da instalação pelos Recorridos de um telheiro feito com chapas metálicas, no dito logradouro;

12ª - Apesar do descontentamento em face de tal ocupação, a Recorrente não reagiu, de imediato, em virtude da sua falecida irmã FF, mulher e mãe dos co-Recorridos, lhe ter pedido autorização para que o filho EE, co-­Recorrido ali pudesse fazer alguns trabalhos de serralharia, (vidé ponto 31 dos factos dados como provados na sentença da primeira instância);

13ª - e também porque tendo em conta que se tratava de familiares com quem sempre se dera bem e que o telheiro era edificado apenas em chapas, a Recorrente sempre considerou que tal facto não constituía qualquer obra definitiva e inamovível e, por isso, interiorizou que tal realidade jamais ofenderia o seu direito de propriedade sobre o referido espaço, leia-se o logradouro;

14ª - Não podemos, assim acompanhar a decisão do douto Acórdão da Relação que ora se contesta, dado que o mesmo colocou em causa e menosprezou, como elemento de prova essencial, um documento autêntico produzido por oficial público;

15ª - Também não podemos sufragar o entendimento e a interpretação que o Tribunal da Relação teve para com o depoimento de parte prestado pela Recorrente na audiência de julgamento no Tribunal de primeira instância;

Com efeito,

16ª - resulta da sentença proferida pelo referido Tribunal que a Autora/Recorrente “… depôs de modo consubstanciado, fluido e detalhado, tendo relatado vários factos que, direta ou indiretamente lhe conferiram credibilidade e contribuíram para convencer o Tribunal da sua versão.”

17ª - Sendo assim, errado é que o Acórdão agora em crise ponha em causa a credibilidade de tal depoimento, apoucando-o no contributo e importância que o mesmo teve para a formação da convicção do julgador;

18ª - Apesar do conteúdo daquele lhe ter sido favorável e do mesmo ter beneficiado a Recorrente na sua versão, ainda assim, deve o mesmo ser considerado suficientemente avalizado e credível de modo a permitir decidir que o "logradouro" em causa é parte integrante do prédio da Recorrente e, por consequência, propriedade desta, conforme decidiu o Tribunal de primeira instância;

Assim,

19ª - não é pelo simples facto do conteúdo do depoimento de parte de alguém lhe ser favorável e o beneficiar nas suas pretensões processuais que o mesmo deve ser menosprezado ou ignorado, na sua valoração pelos Tribunais, no momento da decisão;

Dito isto,

20ª - independentemente la conjugação dos depoimentos prestados pelas diversas testemunhas no Tribunal de primeira instância e da interpretação que se faça dos mesmos, à luz das regras de segurança, logicidade e experiência comuns, dúvidas não restam de que a escritura de divisão de coisa comum junta aos autos, enquanto documento autentico, é clara quanto à inclusão do dito logradouro no prédio da Recorrente, constituindo tal realidade um meio de prova claro, objetivo, inequívoco, e suficientemente forte para determinar a convicção do Juiz.

DO DIREITO

21ª - Merece, ainda, censura o Acórdão da Relação Recorrido no que respeita às considerações e à aplicação do direito ao caso sub-judice, nomeadamente no que tange à figura jurídica de usucapião.

Na verdade,

22ª - embora a Recorrente assuma como certo a descrição do conceito, os seus pressupostos, os seus elementos caracterizadores e os requisitos necessários à verificação da aquisição do direito de propriedade por usucapião elencados no Acórdão em crise, já não se pode aceitar e antes se repudia que a posse dos Recorridos, a tal, dê origem por essa via.

Vejamos:

Para fundamentar a aquisição por via de usucapião da parcela designada por logradouro, por parte dos Recorridos, o Tribunal da Relação fez constar o seguinte:

a) que para a posse exercida pelos Réus/ Recorridos não existe qualquer título, pelo que a mesma se presume de ma fé;

b) que “os Réus / Recorridos e a sua antecessora FF vêm usando o espaço discutido nos autos à vista de todos inclusive da Autora e sem oposição de ninguém, tendo passado a agir com a séria intenção de exercer um direito de propriedade plena sobre o mesmo espaço, que desde logo utilizaram aí colocando diversos materiais e posteriormente, construindo, um portão largo ... instalando aí a sua garagem / anexo, o qual o Réu EE vem utilizando até à presente data, como oficina de serralharia.”

c) que os Réus / Recorridos “… realizaram esses atos de posse até à instauração da presente ação na convicção de que se encontravam a exercer um direito próprio, sem lesar o de outrem. “

d) que “estes elementos exercem uma situação de posse tal como foi enunciado anteriormente, definível como pública, pacifica não registada mas de boa fé que mantida por período igual ou superior a 15 anos conduz à aquisição da propriedade do bem possuído por usucapião”.

e) e que o prazo para efeitos de usucapião nos presentes autos tem de se situar em 1 de Janeiro de 1997, início da posse, por essa ser a única data segura que decorre da prova produzida, pelo que é evidente que o aludido prazo de 15 anos já tinha decorrido quando a Autora propôs a ação em 26 de Junho de 2017.

Ora,

23ª - face a esta fundamentação conclusiva, diga-se, considera a Recorrente que a tese perfilhada pelos Senhores Juízes Desembargadores, para além de enviesada, é claramente arrojada e arriscada.

Com efeito,

24ª - nos termos do constante do Acórdão do STJ de 22/02/1990, in BMJ, 394, pág.481, “impede sobre o Autor reivindicante o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do Réu tendo este, por sua vez, o ónus de provar que é titular de um direito real ou de crédito que legitima e segura a sua restituição”.

25ª - Analisando, em pormenor o caso dos autos, verifica-se, sem margem para quaisquer dúvidas, que a Autora, aqui Recorrente, adquiriu o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. l.111 da freguesia de ... e descrito na respetiva Conservatória, do registo predial sob o nº 489, através da escritura de divisão de coisa comum e que aquela, por essa mesma via e através desse mesmo documento autêntico, também adquiriu a propriedade do dito logradouro, dado que o referido prédio é o único dos três prédios divididos que na sua composição / descrição tem essa parcela incluída;

Ora,

26 - dispõe ainda o artigo 1253º, alínea c) do Código Civil que, entre outros, são havidos como detentores ou possuidores precários todos aqueles que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

27- Resulta, assim, de forma clara que os Réus / Recorridos mais não são do que meros detentores ou possuidores precários do espaço designado por logradouro, tendo em conta que essa utilização resulta da mera tolerância da Recorrente, não podendo os Recorridos ignorar que tal espaço não lhes pertencia;

28 - Ademais, “in casu” os atos praticados no logradouro são “atos praticados com o consentimento senão expresso, pelo menos tácito do titular do direito real, mas sem que este pretenda atribuir um direito ao beneficiário.”.

29ª - A Recorrente não pretende, assim , limitar aquele, uma vez que o seu direito conserva toda a licitude de onde deriva, reservando o Autor da tolerância, para si, a faculdade de, a qualquer momento, por fim à atividade tolerada (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1966, 70);

30ª - Foi esta atitude que a Recorrente levou a cabo, ou pelo menos tentou concretizar, no ano de 2015, quando no anexo em questão as chapas da cobertura foram substituídas pelo Recorrido EE por uma placa em betão e as paredes substituídas por pedra e tijolos tendo ainda subido a parede da parte fronteiriça cerca de 40cm, (vidé ponto 10 da matéria de facto dada como provada);

31ª - Em face do que se vem expia ando, dúvidas não restam, pois, de que os Réus / Recorridos jamais poderão adquirir a propriedade do logradouro por usucapião, ao contrário do que decidiram os Senhores Juízes Desembargadores;

Acresce que,

32ª - mesmo que assim se não entenda, o que só por mera cautela e dever de raciocínio se admite, sempre se dirá que mesmo considerando os Réus / Recorridos como tendo uma posse não titulada, pacifica e pública, nunca a mesma poderá ser considerada de boa fé na medida em que aqueles não podiam ignorar que lesavam o direito de propriedade que a Autora / Recorrente detinha sobre o mesmo, quando erigiram em prédio alheio o anexo / garagem, em tijolo e pedra;

33ª - Assim, ainda que se admitisse a tese contrária, sendo a posse dos Réus / Recorridos não titulada, deverá a mesma ser considerada de má fé, pois aqueles não poderiam, de modo algum ignorar que lesavam um direito alheio, face ao conteúdo da escritura de divisão de coisa comum, e dado que não lograram demonstrar o contrário de qualquer forma, conforme o exige o artigo 1260° do Código Civil;

34ª - Sendo assim e seguindo ainda tal tese, sempre se diria que a usucapião só poderia dar-se ao fim de vinte anos, o que não sucedeu, uma vez que a Autora / Recorrente interpôs a presente ação judicial no decurso do ano de 2017;

35ª - Em face de tal evidência, mais uma vez, considera a Recorrente que a decisão dos Senhores Juízes Desembargadores merece censura, dado que o desfecho constante da decisão do Acórdão ora Recorrido viola, entre outros, o disposto no artigo 674°, nº1 alínea a) do Código Processo Civil.

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se o Acórdão da Relação que ora se contesta e, em consequência declarar-se:

a) que o logradouro objeto da presente lide faz parte integrante do prédio da ora Recorrente;

b) que a Recorrente é dona e legitima proprietária daquela parcela de terreno, vulgo logradouro;

c) a condenação dos Recorridos a demolirem o anexo edificado no logradouro em causa;

d) e que os Recorrentes se abstenham de praticar quaisquer atos que ponham em causa o direito da Recorrente sobre o mesmo.

Foram apresentadas contra-alegações, nas quais os recorridos pugnaram pela improcedência da revista.

Colhidos os vistos, cumpre decidir:

Perante o conteúdo das conclusões recursórias, enquanto delimitadoras do objeto da revista, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- Prova de que o logradouro em questão faz parte do prédio da autora;

- Posse precária;

- Prazo da usucapião.

É a seguinte a factualidade dada como provada (com as alterações efetuadas pela Relação, conhecendo da impugnação da matéria de facto):

1. O primeiro Réu é viúvo de FF, falecida em .../2006.

2. Os Réus CC e EE são filhos da falecida FF e do primeiro Réu BB Duarte.

3. Por escritura de divisão de coisa comum, celebrada em 11 de Julho de 1997 no Cartório Notarial de ..., a ora A. e as suas duas irmãs, FF e GG, procederam à divisão do prédio urbano composto de três casas de habitação, sito no lugar de ..., da freguesia de ..., do concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número quatrocentos e oitenta e nove da freguesia de Tendais, inscrito na respetiva matriz sob os artigos 1109, 1110 e 1111, prédio do qual as referidas três irmãs eram comproprietárias, na proporção de um/terço para cada uma delas.

4. Conforme resulta da referida escritura, o prédio em questão foi dividido em três, da seguinte forma:

a) Casa de habitação de rés de chão e andar com a superfície coberta de sessenta e cinco metros quadrados, constando da escritura que confronta do Norte com o prédio identificado em b), do Sul com o prédio identificado em c), do Nascente com ... e do Poente com Estrada Camarária, inscrito na matriz respetiva sob o artigo 1.109, com o valor patrimonial de 1.032$00.

b) Casa de habitação de rés de chão e andar com a superfície coberta de sessenta e cinco metros quadrados, constando da escritura que confronta do Norte com ..., do Sul com ... e o prédio identificado em a), do Nascente com caminho e do Poente com ..., inscrito na matriz respetiva sob o artigo 1.110, com o valor patrimonial de 1.032$00.

c) Casa de habitação de rés de chão e andar com a superfície coberta de cento e cinco metros quadrados e logradouro com trinta e sete metros quadrados, constando da escritura que confronta do Norte com o prédio identificado em a), do Sul com BB , do Nascente com ... e do Poente com Estrada Camarária, inscrito na matriz respetiva sob o artigo 1.111, com o valor patrimonial de 2.065$00.

5. Mercê da dita divisão de coisa comum, à ora A. foi adjudicado o prédio identificado em c) do artigo antecedente, isto é, o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artº 1.111, tendo a mesma, em virtude do valor atribuído a cada um dos novos imóveis e face ao montante que levava a mais, pago as competentes tornas às suas duas irmãs.

6. Tendo sido adjudicado à, entretanto falecida, irmã FF o prédio identificado em a), isto é, o que se encontra inscrito na respetiva matriz predial sob o artº 1109º, e à irmã GG o prédio identificado sob a alínea b), isto é, o que se encontra inscrito na respetiva matriz predial sob o artº 1110º.

7. Da caderneta predial do prédio referido em 4. c) consta que o mesmo é composto por casa de habitação de rés de chão e andar, com a superfície coberta de cento e cinco metros quadrados e logradouro com trinta e sete metros quadrados.

8. Desde a data da celebração da escritura de divisão de coisa comum, a A. sempre usou o imóvel que lhe foi adjudicado como seu, nele reconstruiu a casa de habitação que do mesmo fazia parte, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence.

9. Em data indeterminada mas situada até final do ano de 1998 os Réus, edificaram no logradouro discutido nos autos e que se situa entre as casas de A e dos Réus uma garagem/anexo, construído em pedra e tijolo rebocado, com um portão largo para entrada e saída de automóveis, feita em chapa (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

10. Em data não concretamente apurada do ano de 2015, as chapas da cobertura foram substituídas pelo Réu EE por placa em betão, tendo subido a parede da parte fronteira à rua, cerca de 40 cm, para a nova cobertura ficar nivelada com a parte traseira (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

11. A construção pelos Réus da referida garagem/anexo impede o acesso da Autora àquele espaço de logradouro, bem como a sua utilização (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

12. Contrariamente ao que é referido na escritura mencionada em 4., o prédio adjudicado à Autora AA tem as seguintes confrontações: pelo Norte com o prédio identificado sob a al. b) (adjudicado a ...) e com ...; e a Sul tem o espaço designado como logradouro e discutido nesta ação, pelo Nascente com ... e pelo Poente com estrada camarária” (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

13. E o prédio que foi adjudicado a FF, falecida mulher e mãe dos Réus, por meio da escritura, tem as seguintes confrontações: pelo Norte com o prédio identificado na escritura sob a al. c) (adjudicado à Autora AA), pelo Sul BB, pelo Nascente com ... e a Poente tem o espaço designado como logradouro e discutido nesta ação (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

14. As três casas, que por meio da falada escritura foram assim objeto de divisão de coisa comum, constituíam em tempos, no seu conjunto, apenas um prédio urbano, composto de “casa de habitação e logradouro”, coberto e arrumos, nos limites de ..., “a confrontar do nascente com ..., do sul com ..., do poente com caminho e do norte com ...”, estando esse imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., apenas num artigo, que era o n.º 408.

15. O qual pertenceu a ... e a ..., sua mulher, casados que entre si foram, em comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos, e residentes em ..., os quais precisamente moraram na parte desse prédio que antigamente já constituía casa de habitação.

16. ... e ... faleceram, respetivamente, a .../1967 e a .../1987 e para partilha dos seus bens foi instaurado inventário obrigatório, que correu os seus termos sob o n.º 19/88, no tribunal Judicial de ..., onde foi definitivamente julgado por sentença homologatória de acordo, datada de 5/7/1996, há muito transitada em julgado.

17. O prédio referido em 3. foi adjudicado, nos referidos inventário e partilha e por força da falada sentença, na proporção de um terço indiviso para cada uma das supra identificadas irmãs.

18. A casa da Autora dispõe de um terreno descoberto que se desenvolve a Sul e a Nascente da superfície coberta da mesma, que a Autora utiliza e possui, e que está fisicamente separado da casa dos Réus por desnível e parede (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

19. Logo após a escritura de divisão de coisa comum, a Autora em 1996 e os Réus em 1997 fizeram, de parte a parte, obras no que respetivamente lhes ficou a pertencer (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

20. À A. coube, na divisão de coisa comum, a parte que correspondia à zona habitacional do velho prédio - a casa onde viveram os pais da A., sogros do 1. º R. e avós da 2. ª R. mulher e do 3. º R. marido, de seu nome ... e ....

21. No decurso das mesmas obras, a antecessora dos RR., FF e seu marido, o ora 1. º R., transformaram em casa de habitação a parte coberta do seu prédio, que era uma arrecadação agrícola, no rés-do-chão destinada a estábulo de animais, ou corte, como se diz na região, e na parte de cima destinada a arrumos de géneros agrícolas e forno de lenha.

22. O 1º Réu e a sua falecida esposa cederam uma faixa de terreno de cerca de 30 cm de largura, ao longo de vários metros, para alargamento do corredor que dá acesso à casa da A. e ao espaço referido em 18., por meio de terem recuado nessa mesma medida a parede do lado Norte da sua casa, que era uma antiga parede “dobrada” de albergaria de granito, passando a ser uma parede mais singela.

23. No decurso das obras feitas em 1996 na casa da Autora pelo empreiteiro e seu procurador ..., foram eliminadas umas pequenas escadas, compostas de três degraus, que desciam da casa de habitação da Autora para o logradouro referido em 9., deixando o acesso à parte habitacional da casa para a Estrada Camarária de se fazer pelo lado Sul, passando a fazer-se, para Poente diretamente para a via pública, sendo que o desnível das próprias escadas ficou a separar o espaço físico referido em 18., que depois alarga na traseira da sua própria casa, do logradouro referido em 9” (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

 24. Aquando das obras referidas em 10. os RR. apenas altearam a mesma garagem em altura não concretamente apurada, que encimaram com um gradeamento, mas não ocuparam mais espaço de chão do que aquele que já ocupavam anteriormente.

25. Os RR., por si e pelos seus antecessores, desde há mais de quinze, vinte e trinta anos que, pessoalmente ou por intermédio de seus familiares ou interpostas pessoas, vêm usando, gozando e fruindo o prédio referido em 4 a), habitando a casa de habitação, aí dormindo, confecionando e tomando as sua refeições, tratando das roupas, recebendo os seus amigos e familiares, fazendo obras, pagando as respetivas contribuições e impostos, e antes aí guardando animais, produtos agrícolas e alfaias, reparando e conservando telhados, armações, caixilharias, paredes, muros, pagando todas as obras, limpando e cuidando dos acessos, vigiando e velando pelos seus limites físicos, tudo isto sem interrupção, durante o lapso de tempo apontado, à vista e com o conhecimento de toda a gente, e sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente da aqui A. e de outros vizinhos titulares dos prédios confinantes com os referidos prédios, na séria convicção de que se encontravam a exercer um direito próprio, sem lesar o de outrem e com a séria intenção de exercer um direito de propriedade plena e próprio sobre o mesmo prédio.

26. Desde pelo menos finais de 1996, data em que terão sido realizadas/terminadas as obras referidas no ponto 23, os Réus e a sua antecessora FF vêm usando aquele espaço-logradouro, referido em 9, à vista de todos inclusivamente da Autora e sem oposição de ninguém, tendo passado a agir com a séria intenção de exercer um direito de propriedade plena próprio sobre o mesmo espaço, que desde logo utilizaram aí colocando diversos materiais e posteriormente, construindo um portão largo, dando acesso a veículos automóveis, que deitava do piso inferior dessa casa para esse espaço, instalando aí uma garagem/anexo, o qual o Réu EE vem utilizando, até à presente data, como oficina de serralharia (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

27. Provado apenas o que consta da resposta ao ponto 2 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

28. A ora A., na data em que se celebrou a escritura de divisão de coisa comum, a qual apenas formalizou o que há já algum tempo havia sido acordado entre as três irmãs, já havia iniciado obras de recuperação no prédio que lhe haveria de ser adjudicado pela referida escritura.

29. As obras levadas a cabo pelo Réu marido e pela sua falecida mulher na casa que lhes ficou a pertencer iniciaram-se mais tarde.

30. Provado apenas o que consta da resposta ao ponto 26 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

31. (Não provado: alteração efetuada pela Relação).

32. Provado apenas que a autora nunca se opôs ao referido no ponto 26 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

33. O espaço ocupado pela garagem/anexo tem a área de 26,22m2.”

34. (mantido pela Relação como não provado).

35. Foi no espaço denominado por logradouro e existente entre as casas de autora e réus que foi feita a obra referida em 9 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

36. Provado o que se encontra referido no ponto 26 e 32 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

37. Provado que o espaço denominado por logradouro e existente entre as casas de Autora e réus sempre configurou com um espaço de entrada comum para acesso às casas e edifícios que aí existiam (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

38. (mantido como não provado pela Relação).

39. (mantido como não provado pela Relação).

40. Provado o que consta do ponto 26 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

41. Provado o que consta do ponto 40 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

Quanto à prova de que o logradouro em questão faz parte do prédio da autora:

Muito embora sem se referir expressamente a qualquer dos factos que, na sequência das alterações efetuadas pela Relação em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto, foram concretamente dados como provados (e/ou não provados), é manifesto que a autora recorrente se insurge contra a alteração à matéria de facto efetuada pela Relação, particularmente no que se refere ao supra mencionado nº 9 dos factos provados - no qual a 1ª instância havia dado como provado que o logradouro em disputa nos autos fazia parte do prédio da autora – precisamente no sentido de dar tal facto como não provado.

E, no juízo de censura que faz à motivação da Relação subjacente a tal alteração, para além de questionar a valoração dada ao seu depoimento de parte, a recorrente invoca a força probatória da escritura de divisão de coisa comum.

E isto, segundo a recorrente, porque tal escritura é o único documento autêntico onde consta de forma expressa e inequívoca que o prédio que lhe foi adjudicado é o único que contém um logradouro – ainda que sem o situar.

Conforme é sabido, o STJ, em regra, apenas conhece de matéria de direito, sendo de todo limitados os seus poderes de sindicância relativamente à fixação da matéria de facto feita pelas instâncias.                                                                                              Para além de no nº 4 do artigo 662º do CPC se estabelecer que não cabe recurso das decisões da Relação relativas à alteração da matéria de facto, o nº 3 do artigo 674º do mesmos diploma estabelece que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Assim, conforme tem sido entendido pacificamente na jurisprudência, em sede de apreciação da matéria de facto, os poderes de sindicância do STJ cingem-se às decisões das instâncias que ofendem disposições da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, à necessidade de ampliação da matéria de facto e à existência de contradições na fixação da matéria de facto que inviabilizem a solução de direito (vide acórdãos do STJ de 26.05.2015 - proc. nº 2689/08.3TBLRA.C1.S1 e de 03.03.2016 – pro. nº 4479/05.6TVLSB.L1.S1, ambos in www.dgsi.pt),

Embora sem o afirmar explicitamente, é manifesto que a recorrente considera que a escritura de divisão de coisa comum em questão faz prova plena no sentido de se ter que dar como provado que o logradouro em questão faz parte do seu prédio, à luz do disposto no artigo 371º do C. Civil – e que, por isso, ao alterar a matéria de facto, nos termos supra indicados, a Relação foi contra lei expressa.

Todavia sem razão, na medida em que, nos termos desta disposição, os documentos autênticos (e não está em causa que a escritura de divisão de coisa comum em questão não o seja) só fazem prova plena relativamente aos factos neles referidos que tenham sido praticados ou atestados/percecionados pelo respetivo oficial público (vide acórdão do STJ de 15.09.2016 – proc. nº165/12.9TBSJP.C1.S1, in www.dgsi.pt).

Ora, a referência, na escritura de divisão de coisa comum (vide nº 4 dos factos provados) de que a casa de habitação que foi adjudicada à autora era composta, para além do mais (rés de chão e andar com a superfície coberta de cento e cinco metros quadrados) de um logradouro com trinta e sete metros quadrados (nada se referindo em relação aos outros prédios que, em resultado da divisão, foram adjudicados aos outros outorgantes, no sentido de também conterem logradouros), apenas resultou daquilo que foi declarado pelos respetivos outorgantes, nada tendo a ver com algo que haja sido praticado ou vivenciado pelo notário.

Assim, relativamente a tais declarações, é manifesto que a dita escritura não faz prova plena quanto às mesmas – razão pela qual nada obstava a que a Relação, tendo por base a reapreciação daquela e de outras provas, procedesse à alteração da matéria de facto que havia sido como provada na 1ª instância nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de dar como não provado que o logradouro em questão faz parte integrante do prédio que foi adjudicado à autora.

Conforme bem se considerou no acórdão deste Tribunal de 04.06.2015 (proc. nº 177/04.6TBRMZ,E1.S1, in www.dgsi.pt), podendo o conteúdo dos documentos autênticos integrar em parte prova plena e em parte prova de livre apreciação pelo tribunal (não plena), esta última parte não pode ser sindicada em sede de revista.

De resto, conforme resulta da escritura, e a própria recorrente reconhece, ali nem sequer é indicada a localização do logradouro do prédio que foi adjudicado a esta, pelo que nunca se poderia considerar sem mais (apenas com base na escritura) que o espaço em disputa nos autos correspondesse àquele logradouro, sendo certo que até se mostra provado (vide nº 18 dos factos provados) que a casa da autora “dispõe de um terreno descoberto que se desenvolve a Sul e a Nascente da superfície coberta da mesma, que a Autora utiliza e possui”.

Em face do exposto, podendo a Relação, relativamente à alteração da matéria factual em questão, proceder à livre apreciação das diversas provas em que se alicerçou (como seja, para além do mais, a escritura de divisão de coisa comum e bem assim o depoimento de parte da autora), nos termos em que o fez, não pode o STJ censurar tal apreciação/decisão e, como tal, vir a dar como provado que o logradouro em questão nos autos faz parte integrante do prédio da autora recorrente – conforme esta pretende.

Improcedem assim, nesta parte, as conclusões recursórias.

Quanto à posse precária:

Para além de julgar a ação improcedente, a Relação, julgando parcialmente procedente a reconvenção, (para além do mais) declarou que os réus são donos da parcela de terreno anteriormente descoberta e constituída pelo espaço identificado no ponto 9 dos factos provados e onde se acha construída uma garagem, ou seja do espaço reivindicado pela autora.

Isto por considerar estarem demonstrados os necessários requisitos da aquisição por usucapião: posse, não titulada, de boa- fé e pelo prazo legal de 15 anos (artigo 1296º do C. Civil).   

Discordando de tal entendimento/decisão, começa a autora recorrente por defender a inexistência de posse (própria da usucapião) por parte dos réus, ora recorridos, sendo estes meros detentores ou possuidores precários do espaço em causa nos autos, nos termos do disposto na al. c) do artigo 1253º do C. Civil.       

E isto porque, ainda segundo a recorrente, se verifica que pela escritura de divisão de coisa comum, para além do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. l.111, a mesma também adquiriu a propriedade do dito logradouro, dado que o referido prédio é o único dos três prédios divididos que na sua composição / descrição tem essa parcela incluída e que, assim, os recorridos mais não são do que meros detentores ou possuidores precários do espaço designado por logradouro, tendo em conta que essa utilização resulta da mera tolerância da recorrente.

Todavia sem razão.

Desde logo porque, conforme já supra referido (a propósito da anterior questão de que supra conhecemos), atenta a factualidade que, em resultado das alterações efetuadas pela Relação, se mostra definitivamente dada como provada, se verifica que a autora recorrente não logrou fazer a prova de que o espaço/logradouro em disputa nos autos faz parte integrante do seu prédio (que lhe foi adjudicado na escritura de divisão de coisa comum).

Assim, e perante o que foi dado como provado sob o nº 26 dos factos provados (“Desde pelo menos finais de 1996, data em que terão sido realizadas/terminadas as obras referidas no ponto 23, os Réus e a sua antecessora FF vêm usando aquele espaço-logradouro, referido em 9, à vista de todos inclusivamente da Autora e sem oposição de ninguém, tendo passado a agir com a séria intenção de exercer um direito de propriedade plena próprio sobre o mesmo espaço, que desde logo utilizaram aí colocando diversos materiais e posteriormente, construindo um portão largo, dando acesso a veículos automóveis, que deitava do piso inferior dessa casa para esse espaço, instalando aí uma garagem/anexo, o qual o Réu EE vem utilizando, até à presente data, como oficina de serralharia”), é manifesto que, contrariamente ao que defende a autora, a atuação material dos réus recorridos sobre o espaço/logradouro em causa nos autos, não ocorreu em nome de terceiro e com base em mera tolerância (da autora recorrente ou de qualquer outra pessoa), mas sim em nome próprio e na convicção de estarem a exercer um direito próprio (na qualidade de proprietários), à vista de todos e sem qualquer oposição.

Assim, não podemos deixar de acompanhar e subscrever o entendimento da Relação, no sentido da existência de uma verdadeira posse conducente à usucapião - que não de uma mera detenção ou posse precária, conforme defende a recorrente.

Improcedem assim, também nesta parte, as conclusões recursórias.

Quanto ao prazo da usucapião:

Diz a recorrente que, mesmo a aceitar-se a existência de uma posse não titulada, pacífica e pública, a mesma (contrariamente ao entendimento expresso no acórdão recorrido) não pode ser considerada de boa-fé, na medida em que os recorridos não podiam ignorar que lesavam o direito de propriedade da recorrente, nos termos do disposto no artigo 1260º do C. Civil.

E assim sendo, ainda segundo a recorrente, haveria que atender-se, não ao prazo de 15 anos (que foi considerado no acórdão recorrido) mas sim ao prazo de 20 anos, nos termos do disposto no artigo1296º do C. Civil – prazo este que não chegou a decorrer.

Todavia, sem razão:

É certo que, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 1260º do C. Civil, a posse titulada se presume de boa- fé e a não titulada se presume de má-fé – de onde resulta que, in casu, porque não titulada (conforme considerado no acórdão recorrido), a posse dos recorridos se presume de má-fé.

Todavia, tratando-se de uma mera presunção iuris tantum, a mesma mostrar-se-á elidida quando se fizer a prova de que “o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”, já que, nesse caso, nos termos do nº 1 do mesmo artigo 1260º a posse “diz-se de boa-fé”.

Ora, para além do que supra se expôs (relativamente à não prova de que o espaço/logradouro em questão faz parte do prédio da recorrente e à inexistência de uma mera detenção, baseada na tolerância da recorrente), atenta a factualidade dada como provada sob o nº 26 dos factos provados (que supra transcrevemos), é manifesto que os recorridos lograram fazer a prova de que ao adquirirem a posse do espaço em causa, ignoravam lesar o direito de outrem.

Acompanhamos assim o entendimento expresso no acórdão recorrido quando, a propósito, ali se expendeu:

“No caso em decisão não existindo título por parte dos réus a posse presume-se de má-fé mas, a circunstância de se ter provado que eles possuíam na convicção de não lesarem ninguém, isto que é que a sua posse estava a ser exercida em seu benéfico e não contra a ninguém que se opusesse por antes deles a ter tido, revela uma atitude naturalística puramente psicológico - logo, puramente fáctico, porque reside na pura ignorância, ou ignorância efetiva, de que se lesam direitos alheios.

Tal significa que, no caso em apreço, a posse dos recorrentes terá de haver-se como não titulada, mas de boa-fé…”

Assim, conforme bem considerou a Relação, o prazo a considerar, para efeitos da aquisição por usucapião (a favor dos recorridos) é, não o prazo de 20 anos, conforme defende a recorrente, mas sim o prazo de 15 anos, nos termos do disposto no artigo 1296º do C. Civil – prazo este que a recorrente não põe em causa que tenha decorrido.

Improcedem assim, também nesta parte, as conclusões recursórias – impondo-se a improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido.

Em síntese:

I. Em sede de apreciação da alteração da matéria de facto, os poderes de sindicância do STJ cingem-se às decisões das instâncias que ofendem disposições da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, à necessidade de ampliação da matéria de facto e à existência de contradições na fixação da matéria de facto que inviabilizem a solução de direito.

II. Os documentos autênticos (e não está em causa que a escritura de divisão de coisa comum em questão não o seja) só fazem prova plena relativamente aos factos neles referidos como tendo sido praticados ou atestados/percecionados pelo respetivo oficial público.

III. A referência, na escritura de divisão de coisa comum, de que a casa de habitação que foi adjudicada à autora era composta, para além do mais de um logradouro (nada se referindo em relação aos outros prédios que, em resultado da divisão, foram adjudicados aos outros outorgantes, no sentido de também conterem logradouros), apenas resultou daquilo que foi declarado pelos respetivos outorgantes, nada tendo a ver com algo que haja sido praticado ou vivenciado pelo notário.

IV. Assim, relativamente a tais declarações, a dita escritura não faz prova plena quanto a tais declarações – razão pela qual nada obstava a que a Relação, tendo por base a reapreciação daquela e de outras provas, procedesse à alteração da matéria de facto que havia sido como provada na 1ª instância, nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de dar como não provado que o logradouro em questão faz parte integrante do prédio que foi adjudicado à autora.

Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

                                               Lisboa, 04 de julho de 2019


Acácio das Neves


Fernando Samões


Maria João Vaz Tomé

(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico)