Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6124/19.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRADIÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
O Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no art.º 682.º do Código de Processo Civil, não pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto a que chegaram as instâncias no uso dos respectivos poderes de livre apreciação da prova, sem demonstração de ela incorporar qualquer erro lógico, insuficiência ou ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, a que se reporta o art.º 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil
Decisão Texto Integral:

Recorrente: MA Brand Objects, L.dª, autora

Recorrido: Liberty Seguros, S.A., ré

Valor da causa: 124 976,99 €


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I – Relatório

I.1 – relatório

MA Brand Objects, Lda., antes com a denominação de Macambira & Araújo - Produções de Merchandising e Publicidade L. dª, apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Março de 2023, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 629.º, n.º 1; 631.º n.º 1; 638.º, n.º 1; 671.º, n.º 1 e n.º 3 a contrario sensu; 674.º, n.º 1, alíneas a) e c), e, artigo 682.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. No caso sub judice verificamos que:

a presenta causa tem valor superior à alçada do Tribunal da Relação e o decaimento é superior a metade da alçada desse Tribunal (artigo 629.º, n.º 1 do CPC);

o Acórdão de que ora se recorre recai sobre decisão final da 1.ª Instância que pôs termo ao processo, absolvendo a Ré da instância (artigo 671.º, n.º 1 do CPC);

do Acórdão de que ora se recorre consta a declaração de um voto de vencido (artigo 671.º, n.º 3 do CPC, a contrario senso).

2. Portanto, é admissível o presente recurso de revista do Douto Acórdão proferido nos presentes autos a 23.03.2023 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos preceituados no artigo 671.º do CPC, pelo que deve ser admitido com as legais consequências.

3. Nas suas conclusões recursórias, a Recorrente alegou que existia uma contradição entre a fundamentação da decisão na primeira instância e a matéria de facto dada como assente, nos seguintes termos:

“32 Da sentença recorrida consta que se reuniram “elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada)do recheio existente no armazém” e que foi “segura a prova de que o armazém foi “esvaziado” na sequência do evento” e, portanto, se a tal conclusão chegou o Tribunal a quo, forçosamente, tem de constar como facto provado que ocorreu subtracção ilícita do recheio do armazém.

33 Logo, e face a todo o exposto, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado a ocorrência de furto da mercadoria existente no armazém sito na Rua do ..., pelo que se requer o aditamento aos factos provados em conformidade.”

4. No mesmo sentido temos o voto de vencido da Veneranda Juíza Conselheira Dra. Maria do Céu Silva:

“O tribunal recorrido (…) não declarou se julgou ou não provado a ocorrência de um furto de mercadoria.

Contudo, na fundamentação de direito da sentença recorrida pode ler-se: “De facto, tendo-se reunido elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada) do recheio existente no armazém…”

Se esta era a convicção do tribunal recorrido, deveria tê-la feito constar da decisão sobre a matéria de facto.” (realces nossos).

Concluindo da seguinte forma:

“Assim, e corrigindo a deficiência da decisão sobre a matéria de facto do tribunal recorrido, consideraria provada a ocorrência de furto de mercadoria existente no armazém.

5. Esta alegação da Recorrente não foi objecto de pronúncia pela Relação.

6. A questão apresentada pela Recorrente é fundamental, na medida em que diz respeito ao objecto do litígio da presente acção que é: julgar provada ou não provada a ocorrência de um furto (e o voto de vencido confirma).

7. Considerando que o juiz encontra-se obrigado a resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação e não o fez, a decisão é, portanto, nula por omissão de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1 al. d), primeira parte do CPC, aplicável aos acórdãos ex vi do artigo 666.º, n.º 1 do CPC).

8. O tribunal a quo absteve-se também, por completo, de conhecer a matéria alegada pela Recorrente quanto à nulidade e interpretação das cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro em causa nos autos e quanto à questão de condenação ilíquida, na verdade, não se pronunciou nem justificou a falta de pronúncia.

9. Verificando-se total omissão de pronúncia do tribunal a quo, a decisão é nula (cfr. artigo 615.º, n.º 1 al. d), primeira parte do CPC, aplicável aos acórdãos ex vi do artigo 666.º, n.º 1 do CPC)

10. Nestes termos, requer-se que sejam julgadas procedentes as alegadas nulidades de omissão de pronúncia do Acórdão recorrido e, consequentemente, seja ordenada a baixa do processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos do artigo 684.º, n.º 2 do CPC.

11. Da decisão recorrida consta que o Tribunal a quo não perfilha do entendimento jurisprudencial maioritário de que nas situações de furto difíceis de provar impõe-se ao autor não uma prova directa do furto, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios auxiliares que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente ao furto.

12. Na verdade, a Recorrente não se bastou com a apresentação da queixa para prova do furto, apresentou provas coadjuvantes que permitem formular um juízo de verosimilhança relativamente ao furto:

i. a Recorrente paga € 1.500,00 mensais pelo arrendamento do armazém onde ocorreu o furto, portanto, é absolutamente destituído de sentido admitir que a Recorrente paga esse valor mensalmente se não o utilizasse para armazenar mercadorias, neste caso, as sobras da sua produção (tecidos e roupas);

ii. a Recorrente paga o prémio de um contrato de seguro facultativo, relativo à mercadoria que estava no armazém, e

iii. é destituído de sentido conceber que a Recorrente paga imposto sobre o stock de mercadoria se ele, de facto, não existisse.

13. Pelo contrário, as regras da lógica coadunam-se com a existência de mercadoria quando se pagar o arrendamento de num armazém para o efeito, cuja existência é declarada à AT e é pago imposto pela mesma e sobre as quais a Recorrente quis acautelar o risco através da subscrição de um seguro facultativo.

14. Os factos apurados são concludentes no sentido de resultar demonstrada a ocorrência do sinistro, tal como contratualmente convencionado.

15. Foi feita prova pela Recorrente de que houve subtracção fraudulenta dos bens seguros, realizada por terceiros, sem o emprego de violência ou intimidação contra pessoas, ou seja, existiu furto tal como vem definido no contrato de seguro.

16. Contudo, o Tribunal a quo considerou que:

“Sem prejuízo de se admitir que dentro do armazém estavam armazenadas mercadorias da autora, como dissemos, não há elementos suficientes que nos levem a concluir com uma probabilidade forte (mais provável que não) que houve furto ou roubo.

Como não se apurou a existência de ilícito, a seguradora não está obrigada a ressarcir eventuais danos só indemnizáveis nos termos da apólice se causados por furto ou roubo.

Por outro lado, não se operou o modus operandi usado para retirar as mercadorias do local. Não se prova arrombamento, escalamento, introdução furtiva no local, e muito menos coerção sobre o segurado.”

17. Concluindo que os elementos provados “não permitem, por insuficientes, reconhecer o direito reclamado pela autora, sendo certo que era a ela que competia fazer a prova da existência do sinistro, modus operandi do mesmo e respectivas consequências.”

18. Dos excertos acabados de citar resulta que o Tribunal a quo admite a retirada de bens do armazém mas não alterou a matéria de facto nesse sentido, mantendo a contradição entre a fundamentação da decisão na primeira instância e a matéria de facto dada como assente.

19. Se o Tribunal a quo admite que houve retirada dos bens do armazém e que alguém entrou no armazém, então impunha-se-lhe escalpelizar a previsão contratual em concreto e atestar da sua legalidade.

20. Ou seja, para aplicar o Direito ao caso concreto, impunha-se ao Tribunal da Relação que analisasse quer a previsão contratual, quer a sua legalidade.

21. O “Auto de Ocorrência” refere a existência de “marcas de arrombamento visíveis no portão do armazém”, todas as testemunhas que foram ao local referiram que a fechadura do portão do armazém apresentava marcas de arrombamento e por algumas foi referido que houve necessidade de proceder à mudança de fechadura do portão, porque a mesma tinha sido arrombada e as fotografias anexas ao “Auto de Ocorrência” atestam que existiam danos na parede junto ao portão.

22. Portanto, daqui resulta que houve subtracção fraudulenta dos bens seguros, realizada por terceiros, sem o emprego de violência ou intimidação contra pessoas, através do arrombamento da porta do armazém, ou seja, existiu furto tal como vem definido no contrato de seguro (mostra-se inequivocamente verificada a previsão da alínea a).

23. Por outro lado, é indiscutível que o(s) autor(es) do furto aqui em causa entrou(aram) no armazém arrendado pela Recorrente (introduziu(ram)-se em lugar fechado), contra a vontade desta e furtaram do interior desse armazém a mercadoria que lá se encontrava armazenada.

24. É inequívoco que ficaram sinais de danos no portão, mas, ainda que se entenda que não consubstanciam arrombamento - no que não se concede, mas se admite por cautela de patrocínio - sempre se diga que o(s) autor(es) do furto praticaram o mesmo com abertura do portão por qualquer outro meio, e o portão é uma “construção que dá acesso ao local do risco”, preenchendo, de forma clara e indiscutível, desse modo, a previsão da alínea b) supra transcrita.

25. O(s) autor(es) do furto aproveitaram a ausência de pessoas no complexo industrial, iludindo a vigilância de vizinhos e transeuntes (que seria, certamente, menor do que o habitual por ser altura do Natal) e introduziu(ram)-se no armazém, apoderando-se da mercadoria da Recorrente e fugindo também furtivamente.

26. Portanto, em relação ao “introduzir-se furtivamente” (alínea c)), tal significa que o(s) autor(es) do furto entraram ocultamente no armazém, sem que ninguém os visse, e tal situação verifica-se cabalmente no caso sub judice, isto porque ninguém presenciou a sua entrada, como resultou da prova produzida.

27. Por outro lado, o contrato de seguro facultativo aqui em análise, não obstante estar sujeito ao princípio da liberdade contratual, enquadra-se nos designados contratos de adesão, pois as cláusulas contratuais gerais que o regem não são sujeitas a negociação, pelo que, importa convocar o regime das cláusulas contratuais gerais.

28. A Ré defende que a condição especial de furto do contrato de seguro só garante os danos resultantes de furto, tentado ou consumado, praticado pelo arrombamento do portão nas situações em que o tomador do seguro consiga identificar e provar, com detalhe, a metodologia utilizada pelo autor do furto no acesso ao local do risco.

29. Para que a estipulação contratual em questão possa ter o sentido puramente literal que a Ré lhe pretende dar, importa que esteja conforme ao disposto no artigo 236.º do Código Civil, aqui aplicável como princípio geral interpretativo, por força do disposto no artigo 4.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

30. Importa ainda não esquecer o disposto nos artigos 10.º e 11.º do RCCG sobre a Interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais e as cláusulas ambíguas.

31. A Recorrente, como destinatário normal deste tipo de seguros, ao contratar um seguro facultativo que assegure o risco de furto da sua mercadoria pretende, efectivamente, segurar o risco de furto, não contando com exclusões como a que a Ré agora pretende aplicar, nomeadamente, a Recorrente não contava com o facto de a cobertura do seguro só ser accionada caso conseguisse provar, em detalhe, o modus operandi do autor do furto e em especial que haja arrombamento, já que com essa interpretação se exclui todos os furtos em que o autor entre nos locais seguros sem ter necessidade de arrombar, ou até havendo arrombamento mas sem estroncamento.

32. Um destinatário normal deste tipo de contrato, quando assegura o risco de furto pretende acautelar o desaparecimento ilícito da sua mercadoria, não contando que no contrato existam cláusulas restritivas, que impeçam o accionamento da cobertura com condições relativamente ao modo como o furto foi operado.

33. A Recorrente limitou-se a aceitar as cláusulas previamente redigidas pela Ré, que contêm termos jurídicos, sem que tivesse possibilidade de negociar as cláusulas ou sequer a possibilidade de sugerir alterar ou mesmo alterar a sua redacção e não tem obrigação de compreender com rigor técnico-jurídico o seu significado e todo o seu alcance.

34. O tomador médio, quando contrata uma cobertura do risco “furto”, num seguro facultativo, intui que a retirada ilícita de mercadorias do armazém está coberta pelo seguro.

35. Assim, a Recorrente, como tomador médio, ao celebrar com a Ré o seguro destinado a prevenir o risco de furto ou roubo do conteúdo de armazém até € 250.000,01, intui que a cláusula “FURTO OU ROUBO”, destinada a prevenir o risco de “subtracção fraudulenta sob a forma tentada ou consumada dos bens seguros realizada por terceiros sem o emprego de violência ou intimidação contra pessoas.” abrange a retirada ilícita, sob a forma consumada, das mercadorias que tinha guardadas no armazém, sem que lhe fosse exigível, adicionalmente, conhecer e provar a metodologia utilizada pelo autor do furto para entrar no armazém e retirar de lá ilicitamente a mercadora.

36. Se aplicarmos ao caso sub judice a teoria da impressão do destinatário e considerando a perspectiva de um declaratário normal, colocado na posição real da Recorrente, entendemos que o que a Recorrente pretendeu acautelar foi o risco de desaparecimento da sua mercadoria guardada no armazém.

37. Portanto, no contrato de seguro em apreço, celebrado por adesão, a cláusula que responsabiliza a Ré em caso de furto da mercadoria deve ser interpretada como abrangendo todos os factos integrantes deste ilícito criminal e não apenas nas situações em que o furto tenha alguma das características consignadas no clausulado aqui em análise, sujeito a uma interpretação livre da Ré.

38. Aplicando os princípios expostos ao caso em apreço resulta claro que: interpretar que o contrato de seguro aqui posto em crise só assegura o furto se o tomador (a aqui Recorrente) conseguir provar, em detalhe, o modus operandi da sua ocorrência é atentatório do Princípio da Boa-Fé, o que não é admitido por lei.

39. Portanto, no contrato de seguro em apreço, a cláusula que responsabiliza a Ré em caso de furto da mercadoria deve ser interpretada como abrangendo todos os factos integrantes deste ilícito criminal e não apenas nas situações em que o furto tenha alguma das características consignadas no clausulado aqui em análise.

40. São absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize ou esvazie a garantia de protecção do risco que o contrato cabia assegurar (artigo 18.º do RCCG.).

41. Assim, passando para o caso sub judice, constatamos que a cláusula ínsita em contrato de seguro de “Riscos Múltiplos”, designado “Protecção Comércio” que assegura o risco de furto ou roubo do conteúdo de armazém até € 250.000,01 mas que exclui a responsabilidade da seguradora nas situações em que a entrada no armazém não se realizou de determinada forma, desrespeita de forma clara e frontal o princípio fulcral de lisura contratual ao retirar, praticamente, a utilidade ao seguro contratado, arredando do âmbito da cobertura da apólice as situações mais comuns de furto de bens, é desproporcional e violadora do Princípio da Boa Fé.

42. Consequentemente, a referida cláusula de exclusão é proibida por ser contrária à Boa Fé e, como tal, é nula (nos termos do disposto nos artigos 12.º e 15.º do RCCG), devendo ser considerada não escrita na parte que limita ou esvazia a transferência do risco, conforma acima referido.

43. Assim sendo, sempre cumpriria ao Tribunal a quo analisar esta questão conforme exposto, o que implicaria decisão diversa da que foi proferida.

44. Face ao exposto, tratando-se de questão de Direito, e sempre com o máximo respeito por entendimento diverso, deverá o douto Acórdão aqui recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue verificadas as nulidades das cláusulas do contrato de seguro e, consequentemente, condene a Ré a indemnizar a Recorrente pela mercadoria furtada.

45. No regime legal actualmente em vigor, como regra geral, está vedado ao STJ, oficiosamente ou a requerimento das partes, modificar a decisão da matéria de facto, mas existem duas excepções a esta regra: os casos previstos no artigo 674.º, n.º 3 e a situação a que se reporta o artigo 682.º, n.º 3 ambos do CPC.

46. No caso sub judice, é convicção da Recorrente que estamos perante uma situação que carece, de forma manifesta, de ampliação da decisão de facto para que haja base suficiente para a decisão de direito, na esteira da doutrina e da decisão acima referidas.

47. E, no mesmo sentido vai a douta declaração de voto de vencido, que sublinha:

“A decisão sobre a matéria de facto do tribunal recorrido (…) é, no meu entender, deficiente.

O tribunal recorrido deu como não provado “que do armazém foi furtada mercadoria no valor de 136.408,48 (artigo 18º da petição inicial)”. Esta referência ao artigo 18º da P.I. significa apenas que deu como não provado o valor da mercadoria furtada e não o furto em si mesmo. (…)

O tribunal recorrido (…) não declarou se julgou ou não provado a ocorrência de um furto de mercadoria

Contudo, na fundamentação de direito da sentença recorrida pode ler-se: “De facto, tendo-se reunido elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada) do recheio existente no armazém…”

Se esta era a convicção do tribunal recorrido, deveria tê-la feito constar da decisão sobre a matéria de facto.” (realces nossos).

48. Concluindo que:

Assim, e corrigindo a deficiência da decisão sobre a matéria de facto do tribunal recorrido, consideraria provada a ocorrência de furto de mercadoria existente no armazém.

Consequentemente, necessário seria apreciar as questões da nulidade e da Interpretação de cláusula contratual (conclusões recursivas47 a 62) e, caso fosse dada razão à recorrente, a questão da condenação da R. em quantia ilíquida (conclusões recursivas 86 a 88).” (negrito nosso).

49. Na audiência prévia realizada a 10.10.2019 foi proferido despacho saneador nos termos do qual foi enunciado como objecto do litígio: “apreciar e decidir nos presentes autos se ocorreu um furto de mercadoria propriedade da autora, em que circunstâncias esse furto ocorreu e se a ré deve indemnizar a autora por força do contrato de seguro celebrado entre ambas”.

50. Se fizermos uma análise cuidada da matéria dada como assente e como não assente, facilmente verificamos que, efectivamente, na sentença proferida em primeira instância não consta se se julgou ou não provado a ocorrência de um furto de mercadoria (conforme bem sublinhado no voto de vencido da decisão recorrida).

51. Em sede de recurso de apelação, a Recorrente requereu a alteração da matéria de facto no sentido de que fosse dado como provada a ocorrência do furto, mas a matéria não foi alterada.

52. Contudo, a decisão recorrida decidiu que “Em conclusão: diante da ausência de prova directa dos factos, de documentação suficiente que permita concluir além de razoável dúvida que mercadorias estavam no armazém, da investigação da GNR se ter mostrado inconclusiva e do facto de as mercadorias, ou algumas delas, terem mais de 10 anos e de serem contabilisticamente transferidas de ano para ano, tudo conduz conjugadamente a um non liquet a propósito do furto.”

53. Face a esta conclusão, e sem mais dizer, o Tribunal da Relação decidiu não alterar nem a factualidade dada como assente, nem a factualidade a dada como não assente.

54. Portanto, estamos perante uma situação em que, não obstante ser tema da prova a ocorrência de um furto não consta, claramente, na matéria assente se foi ou não dada como provada a sua ocorrência.

55. Assim, resulta evidente que a matéria de facto assente carece de ser ampliada no sentido de ficar dado como provado ou não provado a ocorrência do furto, só desse modo poderá ser aplicado do Direito ao caso sub judice.

56. Nesse sentido, requer-se a este douto Tribunal que, imbuído dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 682.º, n.º 3 do CPC, ordene a volta do processo ao Tribunal a quo com vista a que a decisão de facto seja ampliada, pois só desse modo se poderá constituir uma base factual bastante para uma correcta decisão de Direito.

Termos em que se requer a V. Exas. Venerandos Juízes Conselheiros, com o V. douto suprimento quanto ao alegado, se dignem conceder integral provimento ao presente Recurso de Revista, e em consequência:

a) sejam julgadas procedentes as alegadas nulidades de omissão de pronúncia do Acórdão recorrido e, consequentemente, seja ordenada a baixa do processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos do disposto no artigo 684.º, n.º 2 do CPC.

Caso assim não se entenda, no que não se concede mas se admite por cautela de patrocínio,

b) seja o douto Acórdão aqui recorrido revogado e substituído por outro que julgue verificadas as nulidades das cláusulas do contrato de seguro e, consequentemente, condene a Ré a indemnizar a Recorrente pela mercadoria furtada.

Caso assim não se entenda, no que não se concede mas se admite por cautela de patrocínio,

c) este douto Tribunal, imbuído dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 682.º, n.º 3 do CPC, ordene a volta do processo ao Tribunal a quo com vista a que a decisão de facto seja ampliada, pois só desse modo se poderá constituir uma base factual bastante para uma correcta decisão de Direito.

Foram apresentadas contra-alegações pela ré Liberty Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros S.A. – sucursal em Portugal -, que encerram com as seguintes conclusões:

1. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” não merece qualquer reparo.

2. Não se verifica a invocada nulidade de omissão de pronúncia sobre a alegada contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e a fundamentação, a qual se mostra inquinada por uma questão semântica e baseada numa afirmação incompleta e retirada do seu contexto.

3. Não se verifica a invocada nulidade de omissão de pronúncia sobre a alegada contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e a fundamentação.

4. A eventual pronúncia do Tribunal da Relação de ... a propósito da invocada nulidade das cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro estaria sempre condicionada à decisão de considerar provada a ocorrência do furto.

5. Não estando demonstrado o facto suscetível de fazer funcionar uma ou mais garantias do contrato de seguro, mostra-se prejudicada a necessidade de apreciação da alegada nulidade das suas cláusulas contratuais.

6. Para apreciação das questões que suscita ao abrigo do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a Revidente invoca factos que não podem ser apreciados no presente recurso.

7. A Revidente apenas nas Alegações do Recurso de Apelação veio invocar as questões relativas à validade formal e à validade substancial das cláusulas de exclusão consagradas no contrato de seguro.

8. Apenas nas suas Alegações do Recurso de Apelação a Revidente veio invocar factos relativos à contratação do seguro, nomeadamente a sua real intenção na contratação, a existência ou não de negociação prévia de cláusulas do contrato, pelo que tais questões nunca foram colocadas à apreciação da MM.ª Juíza do Tribunal 1ª Instância.

9. Constituindo os recursos ordinários meios de impugnação e de correção de decisões judiciais e não meios para obter decisões novas, não pode o Tribunal de Recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas pelas partes perante o Tribunal Recorrido.

10. Compulsada a matéria de facto provada, não se vislumbra qualquer alusão à falta de negociação das cláusulas do contrato de seguro, qualquer alusão à falta de comunicação à Revidente das cláusulas de exclusão ou qualquer alusão à vontade real da Revidente subjacente à contratação do seguro em causa nos presentes autos, pelo que não pode o Tribunal ad quem assumir uma realidade que não se mostra demonstrada.

11. Nunca a Revidente invocou nos autos tal matéria, nem a Revidida teve qualquer oportunidade de apresentar defesa, não tendo sido, naturalmente, enunciado qualquer tema de prova ou produzida prova sobre a mesma.

12. O contrato de seguro em causa não configura um contrato de seguro obrigatório, mas antes um contrato de seguro facultativo, sendo certo que a regra de funcionamento da garantia de Furto ou Roubo de Conteúdo está prevista não nas Condições Gerais da Apólice, mas nas Condições Especiais.

13. O princípio geral em matéria de contratos é o da liberdade contratual [artigo 405º do Código Civil], pelo que as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, dentro dos limites da lei.

14. Mais do que uma cláusula de exclusão, a Revidente coloca em causa a condição de funcionamento da garantia de Furto ou Roubo, pretendendo que a referida garantia seja interpretada no sentido de ser acionada sempre que ocorrer subtração de mercadorias do local do risco, independentemente de existirem ou não vestígios dessa subtração.

15. Através do contrato de seguro é transferido certo e determinado risco de furto ou roubo, mas não todo e qualquer risco de furto ou roubo, sendo que a medida do risco transferido é aquela que as partes convencionaram ao abrigo do princípio da liberdade contratual.

16. A redação da Condição Especial de Furto ou Roubo de Conteúdo não contraria o princípio da boa-fé.

17. A MM.ª Juíza do Tribunal a quo proferiu a resposta à matéria de facto, não se limitando a julgar os factos provados e não provados, mas fundamentando concretamente a decisão e especificando os elementos probatórios que estiveram na base da decisão de considerar determinado facto como provado e, bem assim, explana todo o processo lógico relativo à sua motivação.

18. Os depoimentos das testemunhas AA, BB, CC, DD e EE foram absolutamente irrelevantes para a demonstração do alegado furto ocorrido no armazém arrendado pela Revidente.

19. Nenhuma dessas testemunhas revelou qualquer conhecimento pessoal e direto sobre os factos que relevam para a demonstração do alegado furto.

20. O depoimento da testemunha FF é frontalmente contrariado pelo relatório de investigação elaborado pelo órgão de polícia criminal incumbido do apuramento dos factos participados, do qual resulta inequívoco que:

a. O portão exterior de acesso ao logradouro onde se encontra o armazém não apresentava, à data do sinistro participado, qualquer vestígio de arrombamento ou qualquer anomalia.

b. O armazém encontra-se inserido em complexo industrial murado e vedado, não tendo sido detetado qualquer tipo de dano na vedação nem na vegetação circundante.

c. O mesmo armazém tinha uma janela aberta de forma oscilante.

d. O portão elétrico que dá acesso ao armazém não apresentava quaisquer danos, tendo a autoridade policial encarregada da investigação concluído que as marcas de arrombamento aí existentes não são suficientes para estroncamento, na medida em que tais marcas são distantes do canhão cerca de 15 a 20 cm, para além de que, com o portão fechado, existe pequena fenda entre o portão e a parede que dificulta o arrombamento.

21. O relatório elaborado pela autoridade policial não foi formalmente posto em causa, nem a Revidente aduziu qualquer elemento novo relevante que permitisse contrariar os factos ali feitos constar.

22. Esses factos foram confirmados pelas testemunhas GG e HH, ambos militares da GNR, destacando-se o facto do primeiro ter afirmado recordar-se do portão estar aberto e de ter achado estranho o mesmo não apresentar qualquer vestígio de arrombamento.

23. Do depoimento da testemunha II não resulta que a fechadura trocada se reporte ao portão do armazém.

24. Tal testemunha não conseguiu, livre e espontaneamente, afirmar o problema que esteve na origem da necessidade de trocar a fechadura, desconhecendo se teria sido um assalto, se o caseiro teria deixado o espaço, alegando não se recordar.

25. É impossível extrair do seu depoimento que a sua deslocação e a troca de uma fechadura no armazém em causa seja contemporânea e motivada pelo alegado furto em causa nos autos.

26. A autoridade policial esteve no local no próprio dia em que lhe foi apresentada a participação pela Revidente.

27. O Auto de Notícia constitui um documento autêntico que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, faz “prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.

28. Tal documento somente fará prova da deslocação do agente ao local, em virtude da participação de um furto, bem como dos factos que o mesmo constatou durante essa deslocação.

29. A testemunha GG deslocou-se ao local e, para além de ter registado em auto o resultado dessa deslocação, afirmou em julgamento recordar-se do portão estar aberto e de ter achado estranho o mesmo não apresentar qualquer vestígio de arrombamento.

30. As fotografias do dito portão existentes nos autos evidenciam, mesmo aos olhos de um leigo, que os danos no mesmo existentes não são impeditivos do seu correto funcionamento e do desempenho da sua função primordial de limitar o acesso ao interior daquela propriedade privada.

31. Nenhuma das testemunhas [AA, BB, FF e EE] prestou um depoimento razoavelmente consistente, mostrando ter conhecimento de causa da existência de mercadorias no interior do armazém, refugiando-se em lugares-comuns, nenhuma tendo explicado como é que a mercadoria estava armazenada, se em caixas, caixotes, armários, paletes ou sequer adiantou a quantidade aproximada de volumes existentes no armazém.

32. Afigura-se estranho que a Revidente não tenha arrolado nenhuma testemunha capaz de atestar ter visto ou arrumado as mercadorias no referido armazém, que as tenha carregado ou descarregado naquele local.

33. Ou não tenha apresentado os registos de entrada e saída da mercadoria do aludido armazém, as datas e destino das mesmas e a identificação de quem os transportou e/ou adquiriu, tudo apontando no sentido do referido armazém ser, afinal, depósito de mercadoria antiga, não escoada pelo mercado.

34. A Revidente sufraga o entendimento de que a prova do valor das mercadorias existentes no armazém decorre dos documentos juntos aos autos quando, na realidade, sempre se negou a disponibilizar os balancetes relativos a Dezembro de 2015, Novembro de 2016 e Dezembro de 2016, alegando que o seu fornecimento constitui uma exposição desnecessária e injustificada de informações confidenciais da sociedade.

35. Mesmo em sede de prova pericial, a Revidente, apesar de instada pelos peritos para disponibilizar tal documentação, manteve sempre a recusa na entrega do inventário de contagens fixas [adequado para a elaboração de balancete analítico] referente ao período relevante para o apuramento dos prejuízos.

36. O relatório pericial elaborado pelo colégio de peritos e os esclarecimentos prestados pelos peritos na audiência final constituem dois elementos de prova particularmente esclarecedores quanto à bondade da valoração efetuada pela MM.ª Juíza do Tribunal a quo e bastam para reafirmar a decisão proferida sobre a ausência de demonstração da existência e valoração dos prejuízos reclamados.

37. Não resulta da factualidade provada a verificação, total ou parcial, de qualquer evento suscetível de desencadear o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato de seguro.

38. Nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, cabia à Revidente a prova da existência do furto ou roubo, na medida em que a ocorrência deste é facto constitutivo do seu direito a receber a indemnização peticionada, dentro dos limites contratados.

39. Não resultaram demonstrados factos suscetíveis de, à luz do contrato de seguro celebrado entre as partes, serem qualificados como Furto ou Roubo de Conteúdo, pelo que não existe qualquer obrigação de indemnizar.

40. Não se mostram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 682º, n.º 3 CPC, pelo que não se verifica qualquer razão para validar a invocada ampliação da decisão de facto.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra o douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil.


*


I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

2. Nulidade de cláusula contratual.


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou provados e relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à "importação, exportação, comercialização, produção, representação, criação e realização de têxteis, merchandising, material publicitário e afins e prestação de serviços na área de têxteis e publicidade".

2. A Ré é uma companhia de seguros que opera em Portugal.

3. No âmbito da sua actividade comercial, a Autora celebrou, em 15.06.2015, com a sociedade "P..., Lda.", um contrato de arrendamento para fins não habitacionais relativo a um armazém, da propriedade desta, com uma área de 200 m2, no prédio urbano, destinado a comércio, sito na Rua do ..., 370, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 292° (doravante, armazém).

4. O locado é utilizado pela Autora para armazenamento de material diverso, necessário ao prosseguimento da sua actividade comercial como sejam, a título de exemplo, tecidos, roupa, brindes, entre outros, que aguardam por encomenda de clientes.

5. Á data, para além do stock localizado no armazém, a Autora possuía mais dois armazéns, um situado na sua própria sede e outro na ....

6. Em 25.11.2015, a Autora celebrou em ..., por intermédio da mediadora de seguros C...., Lda. (doravante, C...., Lda.), um contrato de seguro com a Ré.

7. O referido contrato de seguro de "Riscos Múltiplos - Liberty Comércio", designado "Protecção Comércio" que deu origem à apólice n.° 043/00967674/002, tem como local do risco o referido armazém e garante o furto ou roubo do respectivo conteúdo até € 250.000,01, deduzido de uma franquia de 10% (com um mínimo de € 50,00); concretamente, a "Condição Especial 10", relativa ao furto ou roubo, garante os danos resultantes da subtracção, destruição e deterioração das coisas seguras, em consequência de furto ou roubo, tentado ou consumado, praticado no interior do local de risco, nomeadamente, com recurso a arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tectos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco, estando previsto como objecto de seguro, nas respectivas condições particulares, o armazém de mercadorias inerentes à actividade, como bens incluídos no seguro, o mobiliário, equipamentos e mercadoria.

8. O prémio de seguro foi sempre pago tempestivamente.

9. A Autora participou à Ré a ocorrência, entre as 20h00 do dia 23.12.2015 e as 09h00 do dia 26.12.2016, de um furto da mercadoria existente no armazém objecto do contrato de seguro.

10. A Autora recebeu a comunicação telefónica pelo gerente da sociedade proprietária do armazém, informando-a de que a porta do mesmo se encontrava aberta e o armazém vazio.

11. A circunstância de a porta se encontrar aberta e de o armazém se encontrar vazio foi verificada pelo Sr. EE, da C...., Lda., o qual, acompanhado por uma funcionária da Autora, se deslocou à PSP, onde apresentou a correspondente queixa-crime contra desconhecidos, à qual foi atribuído o NUIPC 2/17.8...

12. No inquérito crime foi proferido despacho final de arquivamento com o seguinte teor, conforme doc. 6 junto com a petição inicial: "Ora, no caso in quaestio, temos que, apesar de todas as diligências probatórias levadas a cabo pela GNR de ..., com vista ao apuramento da identidade dos Autores do referido crime, não foi possível recolher, até à data de hoje, indícios suficientes que permitissem identificar os mesmos. Assim, não se afigurando existirem outras diligências a ordenar que possam conduzir à descoberta da identidade dos Autores do crime, ao abrigo do disposto no artigo 277°, n.°2 do C.P.P., determino o arquivamento dos autos, sem prejuízo da sua reabertura caso surjam novos elementos de prova."

13. Sempre que lhe foi solicitado, a Autora, por si ou através da C...., Lda., prestou as informações solicitadas à empresa de peritagens indicada pela Ré, com vista à verificação do furto e ao apuramento do valor da mercadoria furtada.

14. A Ré, por si ou através da empresa de peritagens, solicitou à Autora, ainda, os balancetes analíticos relativos a Dezembro de 2015, Novembro de 2016 e Dezembro de 2016.

15. A Autora não remeteu tais elementos por considerar que o seu fornecimento à Ré constitui uma exposição desnecessária e injustificada de informações confidenciais da sociedade.

16. Em 28.05.2018, por carta, a Autora interpelou a Ré para o pagamento, no prazo de 15 dias, da quantia correspondente à indemnização prevista na apólice.

17. A Ré respondeu por email em 30.07.2018 informando que "o processo não sofreu evolução na regularização dada a ausência de apresentação dos elementos solicitados por diversas vezes pelo perito nomeado para instrução e sem os quais estamos impedidos de dar seguimento a este".

18. A Ré enviou à Autora ainda um outro email, em 06.09.2018, com o seguinte teor, conforme doe. 11 junto com a petição inicial: "(...) A peritagem ao sinistro participado foi efectuada pelo n/prestador D......., que informa não ter recepcionado todos os elementos documentais necessários à regularização dos prejuízos, designadamente, contabilísticos e policiais, ao tempo comunicado aos vários interlocutores. (...) Neste contexto necessitamos de um conjunto de elementos contabilísticos não recepcionados até ao momento (...)".

19. Na sequência de solicitação da Autora, a Ré enviou comunicação contendo lista com os documentos por si considerados necessários à resolução do sinistro, com o seguinte teor, conforme doc. 11 junto com a petição inicial: "Os elementos necessários para a regularização são os seguintes:

1. Faturas de aquisição das bens furtados e/ou Fichas de produção das mercadorias;

2. IES/Declaração Anual referente ao exercício económico de 2015;

3. Balancete analítico do Razão Geral, relativo a Dezembro/2015;

4. Balancete analítico do Razão Geral, relativo a Novembro/2016;

5. Balancete analítico do Razão Geral, antes e após apuramento, relativo a Dezembro/2016;

6. IES/Declaração Anual referente ao exercício económico de 2016;

7. Listagem dos inventários a 30/11/2016 e a 31/12/2016, desagregados por armazéns que integram a empresa;

8. Inventário, a 31/12/2016, remetido à AT, conforme previsto no D.L. n.° 198/2012, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n° 82-B/2014, de 31 de Dezembro, assim como na portaria n° 2/2015, de 06 de Janeiro;

9. Ficheiro saft enviado à AT relativamente às vendas de Novembro/2016, Dezembro/2016 e Janeiro/2017;

10. Compras de mercadorias realizadas entre 26/12/2016 e 31/12/2016, acompanhadas da respectiva demonstração financeira (diário de fornecedores);

11. Demonstração financeira com o registo do controlo de entradas e saídas de mercadorias, em Dezembro/2016, relativamente ao armazém em que ocorreu o sinistro;

12. Certidão Integral do Furto, emitido pelo Tribunal Vila Nova de Famalicão (entre outros, certifica o "modusoperandi" e os bens declarados). NOTA: Assinalado a amarelo os elementos que a D....... refere ter rececionado, pelo que, não devem ser apresentados. De referir que pode haver necessidade de elementos adicionais, que serão solicitados após a análise dos documentos listados."

20. A Autora remeteu à Ré em 09.11.2018 um email através do qual procedeu ao envio da documentação solicitada, nos seguintes termos, conforme doc. 11 da petição inicial: "Na sequência do seu email e, tendo por base a lista de elementos que nos solicitaram, somos a dizer o seguinte:

1. Faturas de aquisição das bens furtados e/ou Fichas de produção das mercadorias (já possuem);

2. IES/Declaração Anual referente ao exercício económico de 2015 (já possuem);

3. Balancete analítico* do Razão Geral, relativo a Dezembro/2015 (enviado o balancete razão por email em 19.12.2017);

4. Balancete analítico* do Razão Geral, relativo a Novembro/2016 (balancete razão em anexo);

5. Balancete analítico* do Razão Geral, antes e após apuramento, relativo a Dezembro/2016 (balancete razão em anexo);

6. IES/Declaração Anual referente ao exercício económico de 2016 (em anexo);

7. Listagem dos inventários a 30/11/2016 e a 31/12/2016, desagregados por armazéns que integram a empresa (em anexo);

8. Inventário, a 31/12/2016, remetido à AT, conforme previsto no D.L. n.° 198/2012, de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n° 82-B/2014, de 31 de Dezembro, assim como na portaria n° 2/2015, de 06 e Janeiro (balancete razão em anexo);

9. Ficheiro saft enviado à AT relativamente às vendas de Novembro/2016, Dezembro/2016 e Janeiro/2017 (em anexo);

10. Compras de mercadorias realizadas entre 26/12/2016 e 31/12/2016, acompanhadas da respectiva demonstração financeira (diário de fornecedores) (em anexo);

11. Demonstração financeira com o registo do controlo de entradas e saídas de mercadorias, em Dezembro/2016, relativamente ao armazém em que ocorreu o sinistro (em anexo - informação constante nos ficheiros relativos ao ponto 9);

12. Certidão Integral do Furto, emitido pelo Tribunal Vila Nova de Famalicão (entre outros, certifica o "modus operandi" e os bens declarados) (em anexo). * - (a política interna da sociedade não permite o envio da informação pretendida a qual, aliás, se reputa prescindível especialmente quando vos é enviado o balancete razão e o analítico não possui a informação descriminada dos bens em stock). Em face da informação agora remetida, solicitamos que procedam, com a celeridade possível ao pagamento da indemnização prevista na apólice de seguro junto de vos contratada."

21. O portão exterior de acesso ao logradouro onde se encontra o armazém não apresentava, à data do sinistro comunicado à Ré, qualquer vestígio de arrombamento ou qualquer anomalia.

22. O averiguador da empresa contratada pela Ré para o efeito solicitou várias vezes o pedido de envio de documentos e informações à Autora.

23. Não tendo a Autora remetido, pelo menos, parte dos elementos solicitados pela Ré, o averiguador comunicou a esta última, em 31.03.2017, que iria encerrar o processo por falta de elementos, o que veio a acontecer em 28.06.2017.

24. O armazém encontra-se inserido em complexo industrial murado e vedado, não tendo sido detectado qualquer tipo de dano na vedação nem na vegetação circundante.

25. O mesmo armazém tinha uma janela aberta de forma oscilante.

26. O portão eléctrico que dá acesso ao armazém não apresentava quaisquer danos, tendo a autoridade policial encarregada da investigação concluído que as marcas de arrombamento aí existentes não são suficientes para estroncamento, na medida em que tais marcas são distantes do canhão cerca de 15 a 20 cm, para além de que, com o portão fechado, existe pequena fenda entre o portão e a parede que dificulta o arrombamento.

27. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 43/967674, a Ré assumiu a cobertura dos danos directamente causados aos bens identificados nas condições particulares pela ocorrência de furto ou roubo, nos termos e para os efeitos do ponto 2. da cláusula das Condições Gerais.

28. De acordo com as mesmas Condições Gerais, o capital seguro para a cobertura de "Furto ou Roubo de conteúdo" é de € 320.000, aplicando-se uma franquia de 10% do valor do sinistro, com o mínimo de € 50.

Foram considerados não provados os seguintes factos:

1. Que do armazém foi furtada mercadoria no valor de 136.408,48 (artigo 18° da petição inicial);

2. Que, no dia anterior ao sinistro participado à Ré, a Autora tinha em stock o valor total de € 263.141,12 (arts. 58° e 59° da p.i.).


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II - Fundamentação

1. Omissão de pronúncia

A recorrente invoca que o Tribunal recorrido não se pronunciou, em violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, sobre a contradição que ele entende existir entre a fundamentação da decisão e a matéria de facto dada por provada em 1.ª instância tendo em conta constar da primeira que se reuniram ” (…) elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada)do recheio existente no armazém” e que foi “segura a prova de que o armazém foi “esvaziado” na sequência do evento” e, portanto, se a tal conclusão chegou o Tribunal a quo, forçosamente, tem de constar como facto provado que ocorreu subtracção ilícita do recheio do armazém.”

A recorrente entende, como revelam as suas alegações de apelação e de revista que se mostra provado que existiu um furto de mercadorias do seu armazém, mas, também, que, em seu entender, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto provada não considerou provada a existência desse furto, sendo, por isso, incorrecta, e, demandando a respectiva alteração nas primeiras 31 páginas do seu recurso de apelação.

Sobre esta questão invoca a parte da fundamentação apresentada pela 1.ª instância dizendo:

“(…) Aliás, da sentença recorrida consta que se reuniram “elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada) do recheio existente no armazém” e que foi “segura a prova de que o armazém foi “esvaziado” na sequência do evento”.

E se a tal conclusão chegou o Tribunal a quo, forçosamente, tem de constar como facto provado que ocorreu subtracção ilícita do recheio do armazém.

Pelo que, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo, ao não fizer uma valorização

correcta da prova produzida.

Logo, e face a todo o exposto, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado a ocorrência de furto da mercadoria existente no armazém sito na Rua do ..., pelo que se requer o aditamento aos factos provados em conformidade.”.

Uma coisa é considerar que o furto não foi considerado provado pelo tribunal recorrido e que tal se mostra em desconformidade com a prova produzida, como fez na apelação, outra diversa é invocar existir contradição entre a fundamentação e a selecção da matéria de facto, como faz agora nas alegações de revista.

Sobre a falta de prova de existência de furto o acórdão recorrido pronunciou-se expressa e detalhadamente, considerando, também, tal como o então apelante e apenas com excepção da subscritora do voto de vencida, que do probatório não constava a existência de furto. O Tribunal recorrido, maioritariamente, considerou, face à prova produzida, documental e testemunhal, que analisou em pormenor, usando do seu poder de livre apreciação da prova, que não havia prova suficiente de ter existido um furto de mercadorias.

Não se pronunciou sobre uma contradição entre a fundamentação e a decisão sobre a matéria de facto, nem tinha de o fazer porque a alegação de existência dessa contradição só aparece nas alegações de revista, depois de lido o voto de vencido, o que ocorre em momento muito posterior à prolação do acórdão recorrido.

Acresce que não há qualquer contradição entre a fundamentação da matéria de facto e a decisão sobre a matéria de facto que a antecede, pelo que, em caso algum poderia ser conhecida pelo acórdão recorrido. Não existe propriamente uma situação de contradição entre a fundamentação da matéria de direito e a decisão sobre a matéria de facto, porque, a verificar-se, estaremos em presença de um erro de direito.

A polémica frase geradora, na perspectiva da recorrente, de contradição não é uma frase constante da motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, mas da solução de direito dada pelo Tribunal de 1.ª instância e que devidamente enquadrada é a seguinte:

“(…) A Autora alicerçou o seu pedido, fundamentalmente, na ocorrência de um sinistro que está abrangido pela cobertura da apólice contratada, em sede de danos próprios, e a Ré alegou, em sua defesa, que não existiam elementos suficientes para apurar se, por um lado, o sinistro efectivamente ocorreu e se, por outro, o valor reclamado a título de prejuízos corresponde, realmente, ao valor apurado das mercadorias existentes no armazém à data e daí retiradas por efeito desse acontecimento.

Da factualidade provada, retiram-se necessariamente, duas grandes conclusões: a primeira, de que a Autora não logrou, desde logo, demonstrar a existência do sinistro, pelo menos, em termos tais que pudesse ser abrangido pela cobertura da apólice. De facto, tendo-se reunido elementos suficientes (e não se duvidando da seriedade da posição da Autora na acção) no sentido de que houve retirada ilícita (ou, pelo menos, não autorizada) do recheio existente no armazém, não se apurou se essa retirada aconteceu em termos qualificáveis como de furto, roubo ou qualquer de outro modus operandi dos previstos nas condições contratuais do seguro. Pois que foi possível apurar que, na sequência de uma entrada de alguém no armazém, não foi possível verificar de que concreta forma isso aconteceu, sendo certo que a autoridade encarregada da investigação criminal não detectou vestígios de uma entrada forçada ou violenta, de destruição de algum equipamento ou meio de acesso (pontos 21. e 24. a 26. dos factos provados), isso mesmo tendo feito constar no respectivo relatório (que, aparentemente, a Autora não pôs em causa).”

Improcede, pois, a alegada nulidade do acórdão recorrido com o apontado fundamento.

Não estando, como não está, provado o furto/sinistro, nem dispondo o Supremo Tribunal de Justiça de poderes para alterar a matéria de facto, por força do disposto no art.º 682.º do Código de Processo Civil sendo que apenas se verifica discordância da recorrente quanto à decisão da matéria de facto proferida pelas instâncias, no uso dos respectivos poderes de livre apreciação da prova, sem demonstração de ela incorporar qualquer erro lógico, insuficiência ou ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, a que se reporta o art.º 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, fica prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos do recurso, nomeadamente a nulidade e interpretação das cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro e a questão de condenação ilíquida. Tendo em conta os factos provados, a acção só podia ser, como foi, julgada improcedente.

Improcede, pois, a revista.


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III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrida.


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Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Fernando Baptista de Oliveira

Afonso Henrique Ferreira