Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1635/18.0T9BRG.G1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
AGRAVAÇÃO
PROGENITOR
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - No contexto dos factos, que revelam a manutenção repetida, pelo arguido, de relações sexuais de cópula com sua filha, de 10 anos de idade, em contexto familiar, e na moldura abstracta de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, figura-se justa e adequada a pena concretizada, na instância, em 5 anos e 6 meses de prisão, em punição do arguido pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível nos termos do disposto nos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP.
II - No caso, figura-se fixado com equitativa prudência, a título de «reparação» da vítima (art. 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, e arts. 67.º-A e 82.º-A, estes do CPP), o montante de € 10.000.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1635/18.0T9BRG.G1.S1

Recurso penal

Acordam, precedendo conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Nos autos de processo comum em referência, o arguido, AA, filho de BB e de CC, natural de ........., ........., nascido a ..... de Junho de 1975, divorciado, ......., com residência no Lugar de ............, freguesia de ........., em ........., acusado pelo Ministério Público, foi submetido a julgamento e, a final, condenado, por acórdão de 15 de Julho de 2020, do Juízo Central Criminal de ........., nos seguintes termos (transcritos na parcela que importa à apreciação do recurso):

«Por todo o exposto decidem os juízes que compõem este colectivo julgar procedente a acusação pública e, em consequência:

- como autor material de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.s 171º, n.ºs 1, 2, 177º, nº 1, alínea a), 14º do Código Penal, condenar o arguido AA na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- condena-se o arguido AA a pagar à ofendida DD a quantia de €10.000,00, a título de danos não patrimoniais, ao abrigo do disposto no art. 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, artigo 67º-A e art. 82º-A ambos do Código de Processo Penal.»

2. O arguido interpôs recurso do acórdão condenatório – recurso que, interposto para o Tribunal da Relação ........., veio ali a ser revertido para conhecimento no Supremo Tribunal de Justiça, por decisão sumária de 9 de Novembro de 2020.

Extrai da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1- O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts 171º, nºs 1 e 2, 177º, nº 1, alínea a), 14 do Código Penal, na pena de 4 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2- Salvo do devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao aplicar uma pena desta dimensão.

3- O legislador entende que sempre que ao caso concreto possa o Tribunal optar por uma pena não privativa da liberdade, deve este dar prevalência a esta, pelo que ao caso parece razoável, que se deveria ter lançado mão da possibilidade de aplicação de uma pena de prisão suspensa, ainda que sujeita a outras medidas, nomeadamente uma suspensão sujeita a regime de prova, pois ela será suficiente para realizar de uma forma adequada as finalidades da punição, não afetando de forma alguma as exigências de prevenção de futuros crimes.

4- Para a prova do cometimento do crime do qual o Recorrente vinha acusado contribuiu a sua colaboração com a investigação e a confissão parcial dos factos em audiência de julgamento:

- perante o órgão de polícia criminal, no primeiro interrogatório a que foi sujeito, perante os factos em investigação confirmou os factos que lhe eram imputados. È certo que não confirmou o número de ocorrências que vinham denunciadas, apenas reconheceu que ocorreram em duas ocasiões, por era essa efetivamente a verdade e não se veio a demonstrar que fossem em número superior;

- no decurso da diligência para prestação de declarações para memória futura por parte da menor, atenta a sua comoção e com o intuito de que a menor se sentisse menos constrangida e dessa forma facilitar o depoimento da mesma, sugeriu que as declarações da menor tivessem lugar apenas na presença do Meritíssimo Juiz e da técnica da segurança social designada para no ato acompanhar a menor, prescindindo da presença da sua defensora oficiosa. Secundarizando, dessa forma, as suas garantias de defesa.

- na audiência de julgamento confessou parcialmente os factos.

5- O Recorrente é primário.

6- Certo de que se trata de um crime que causa forte alarme social, não pode o Tribunal incrustar-se nessa circunstância, e, no caso concreto, aplicar uma pena de prisão em medida que não possa suspende-la na sua execução, ainda que, uma suspensão sujeita a regime de prova;

7- Não é com a aplicação de uma pena de prisão efetiva que melhor se vai alcançar a regeneração e consequente integração social do Recorrente. Antes pelo contrário, a pena de prisão efetiva acarretar-lhe-ia consequências irreparáveis;

8- A função primordial do sistema penal é a ressocialização do delinquente.

9- A prisão é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário e que haverá que harmonizar com a recuperação dos delinquentes.

10-Pelo que deverá ser dada ao Recorrente uma oportunidade, a qual irá aproveitar.

11-Resulta do exposto que se justifica a redução da pena aplicada ao Recorrente, por excessiva e desproporcionada à culpa. (art.° 72 e 73 do Código Penal

12-Violou, pois, o aresto agora recorrido o disposto nos artºs 40º, 70º, 71º, 72º e 73º do Código Penal e o artº 13 da Constituição da República Portuguesa.

13-A medida concreta da pena deveria ser uma pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a qual poderia ser subordinada a regras de conduta.

14-Ao não fixar essa pena o tribunal recorrido não fez, nessa medida, a interpretação e a aplicação mais correta e adequada do disposto nos artigos 71.º, 40.º, 50.º, 51.º e 52.º do Código Penal, o que violou frontalmente esses citados preceitos legais.

15- Foi, ainda, o recorrente condenado no pagamento à ofendida da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), ao abrigo do disposto no art.º 67º-A e artº. 82º-A ambos do Código de Processo Penal.

16- O recorrente vive e trabalha em ........., e o salário que tem disponível fara face ao seu sustento e às despesas correntes do dia fica muito próximo do que salário mínimo que lá se aufere.

17-O julgador ao fixar a quantia indemnizatória em € 10.000.00 (dez mil euros), violou o princípio da equidade. Violou o disposto no art.º 496º do Código Civil.

18- Por ser justa e equitativa deve ser fixada à ofendida a título de reparação a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros).»

3. O recurso foi admitido, por despacho de 9 de Outubro de 2020.

4. O Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu ao recurso.

Extrai da respectiva minuta as seguintes (transcritas) conclusões:

«1 - Os factos dados como provados têm expressão na prova produzida e o raciocínio do julgador revela-se lógico e acertado, pelo que bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos vertidos na factualidade assente constante da decisão em recurso;

2 – Atendendo às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir na comunidade, sendo necessário reforçar a validade da norma, face ao aumento de crimes que se prendem com a tutela da confiança na autodeterminação sexual de menor, ao facto de o arguido ter actuado com dolo directo e ao acentuado grau de ilicitude dos seus actos mas também à sua modesta condição económica e social, à sua confissão dos factos e ausência de antecedentes criminais, bem andou o tribunal recorrido ao fixar a pena em 5 anos e 6 meses de prisão.

3 – Atendendo à medida da pena, esta não pode ser suspensa na sua execução, como dispõe o artº 50 do C.P. por não se verificar o pressuposto formal;

4- Caso se venha a reduzir a pena para medida igual ou inferior a 5 anos de prisão, entende-se que ainda assim não deverá a mesma ser suspensa porquanto não obstante a confissão do arguido, o que revela arrependimento, e a ausência de antecedentes criminais, considerando a gravidade global do ilícito perpetrado e atendendo fundamentalmente ao princípio da prevenção geral e, em particular, à confiança e segurança da comunidade, que manifesta sentimentos de grande repulsa pelos crimes contra a auto-determinação sexual.

Termos em que o recurso deve ser considerado improcedente e, em consequência, deve o acórdão recorrido ser mantido na íntegra por ter efectuado uma correcta apreciação dos factos e integração do direito, não tendo violado qualquer norma legal.»

5. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, acompanhando a resposta ao recurso, é de parecer que o recurso deve ser julgado integralmente improcedente.

6. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo recorrente, reporta ao exame da questão de saber se os Senhores Juízes do Tribunal recorrido incorreram em erro de direito, seja em sede de escolha e medida da pena, seja em matéria de concretização do montante indemnizatório.

II

7. Os Senhores Juízes do Tribunal recorrido sedimentaram o julgamento sobre a matéria de facto nos seguintes termos (transcritos na parcela que importa para apreciação do recurso):

«1 – A ofendida DD, nasceu em ... de Outubro de 2006 e é filha de FF e do arguido AA.

2. Quando a ofendida DD tinha 10 anos, na época das férias de Natal de 2016, a mesma, bem como a sua irmã EE, encontrava-se a viver na casa da avó paterna, sita no Lugar de ............, freguesia de ........., em ..........

3. Também ali se encontrava o pai e arguido AA que já se encontrava divorciado da mãe da DD e da EE.

4. Durante as referidas férias de Natal, em data não concretamente apurada, o arguido AA, à noite, aproveitando que a sua mãe já se encontrava a dormir, mandou a outra filha EE para a cama.

5. Mais mandou a ofendida DD preparar um café e levá-lo ao seu quarto.

6. Quando a ofendida chegou ao quarto do arguido, este mandou-a deitar na cama e tirou-lhe a roupa deixando-a nua da cintura para baixo.

7. De seguida, o arguido tirou a sua própria roupa e deitou-se na cama com a menor.

8. Acto contínuo, o arguido AA colocou-se em cima da ofendida e menor DD e, com pénis erecto introduziu-o na vagina da menor, sem ter colocado preservativo, iniciando movimentos ritmados.

9. Perante tal contacto, a ofendida demonstrou o seu desconforto.

10. No entanto, o arguido manteve relação sexual até ejacular.

11. Findo o acto, o arguido mandou a ofendida embora para o seu quarto.

12. O arguido manteve tal comportamento com a DD pelo menos em mais uma situação, sem que seja possível indicar data.

13. Em Novembro de 2017, a ofendida DD e a irmã EE foram retiradas de casa da mãe do arguido, onde este residia, pela CPCJ, e por outros factos, e foram institucionalizadas na Instituição “.........”, em ........., onde relatou o que o pai lhe fizera.

14. O arguido sabia que a ofendida DD era sua filha e, mesmo assim, não se absteve de praticar os factos supra descritos.

15. O arguido sabia bem a idade da menor, e que os seus actos feriam gravemente a sensibilidade e dignidade da ofendida, bem como a autodeterminação sexual desta, ainda assim decidiu cometê-los.

16. O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus apetites sexuais, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

17. Em consequência direta dos factos supra descritos a ofendida sentiu vergonha e um baixo nível de autoestima sendo privada de um adequado desenvolvimento sexual próprio da infância.

Mais resultou provado que:

18. O arguido é ....... de 1ª e trabalha na sociedade C...... – ENGENHARIA, SA com contrato de trabalho efectivo, auferindo mensalmente €1.600,00. Actualmente encontra-se a trabalhar em ......... onde vive com os colegas de trabalho. Contribui com €300,00 para as despesas medicamentosas da mãe que sofreu um AVC. O arguido tem o 4º ano de escolaridade.

19. O arguido não tem antecedentes criminais.

20. À data dos factos o arguido tinha residência na casa da sua mãe, mas só lá dormia durante o fim-de-semana ou férias pois trabalhava fora da localidade.

21. Resulta da conclusão inserta no Relatório de Perícia Médico-Legal, Psicologia – Relatório Psicológico, efectuado à ofendida DD no dia 11-11-2019, que “Os relatos (da DD) foram apresentados de forma consistente, resultando um parecer positivo quanto à sua credibilidade. Relatos que contém um número expressivo de indicadores que apontam no sentido da veracidade, entre estes o carácter lógico da descrição dos factos, a quantidade de pormenores referentes ao contexto e à sequência da ocorrência e a consistência entre entrevistas.

Não existem neste caso processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nem indicadores de eventual mentira da autoria da menor ou induzida por terceiros. Não se percecionam ganhos secundários que possam advir da denúncia.

A menor apresenta sintomatologia com significado clínico, nomeadamente sintomatologia depressiva e de ansiedade que poderão ter associação às vivências traumáticas no seio familiar, nomeadamente aos alegados maus tratos e de abuso sexual por parte do pai. Apresenta ainda baixa autoestima e baixo autoconceito.”

22. Resulta ainda da conclusão inserta no Relatório de Perícia Médico-Legal, de Natureza Sexual em Direito Penal, realizado em 7-12-2018 que “1 - A examinada é impúbere e enquadra-se no estádio de desenvolvimento III de Tanner; 2 – Não se observaram sinais objectivos de lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da superfície corporal em geral; 3 – O exame genital revelou uma solução de continuidade traumática, não recente, compatível com a história descrita.”.»

8. Em sede de escolha e medida da pena, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram, designadamente, nos seguintes (transcritos) termos:

«Como já foi referido supra, em sede de enquadramento jurídico-penal, a moldura penal abstracta do tipo legal de crime em apreço é de pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.

Não há aqui que ponderar, nos termos do art. 40º, da escolha de medida não privativa da liberdade.

Assim, e trazendo agora à colação as circunstâncias previstas no art. 71º do C.P., temos de ponderar:

- Em termos de necessidade de prevenção geral positiva, não podemos deixar de considerar que a mesma é elevada, dado que este tipo de ilícitos têm vindo a proliferar na sociedade atual, provocando grande alarme social e um sentimento de insegurança coletivo, pelo que importa sublimemente fazer valer perante a sociedade a validade das normas que punem estas condutas.

Por seu turno, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Deverá, desta forma, atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Assim, no caso vertente atender-se-á a que (artigo 71º, nº 2 do Código Penal):

- O grau de ilicitude associado aos factos é acentuado atendendo às circunstâncias que rodearam o comportamento do arguido – ocorrido quando a avó estava deitada bem como a filha mais velha, sendo pai da vítima. Aliás essa relação de confiança e afecto foi o veículo facilitador da prática do ilícito;

- Os atos de colocar o seu pénis ereto introduzindo-o na vagina da sua filha de dez anos pelo menos por duas vezes, fazendo movimentos oscilantes e ejaculando são, além da censurabilidade criminal, altamente repugnáveis.

- A intensidade do dolo com que atuou, agindo sempre com dolo direto.

- As exigências de prevenção geral são elevadas. O crime de abuso sexual de crianças é, atualmente, dos crimes que mais alarme provoca. De facto, a comunidade, tem vindo a manifestar crescentes preocupações com a defesa dos seus elementos mais frágeis.

- A integração social, a situação económica e familiar do arguido – é divorciado, trabalha no estrangeiro com contrato sem termo.

- O arguido admitiu parcialmente os factos imputados.

- O arguido não tem antecedentes criminais, o que releva para efeitos de prevenção especial.

- Possui inserção profissional.

- Usufrui de modesta condição social e cultural.

Nenhuma outra circunstância ocorre que abone a favor do arguido.

Assim, sopesadas as sobreditas circunstâncias, agravantes e atenuantes, entende-se como justo e adequado aplicar ao arguido AA a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.»

9. O recorrente pretende que a pena de 5 anos e 6 meses de prisão fixada no Tribunal recorrido seja reduzida a 5 anos de prisão e esta suspensa na sua execução por igual período de tempo com subordinação a regras de conduta, alegando a colaboração com a investigação e a confissão parcial dos factos em audiência, bem como o facto de ter prescindido da presença da sua Defensora, no acto de tomada de declarações à menor para memória futura, ademais invocando a primariedade delitiva.

10. A tanto se opõe o Ministério Público, em 1.ª instância e no Supremo Tribunal de Justiça, acentuando razões de prevenção geral, defendendo a confirmação do julgado.

Vejamos.

11. Está em causa a definição da pena concretamente aplicável na moldura abstracta, decorrente do disposto nos artigos 171.º n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 alínea a), do Código Penal (CP), de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, pela prática, pelo recorrente, sobre a sua filha, com 10 anos de idade, de actos consubstanciadores da autoria material um crime de abuso sexual de crianças agravado, traduzidos em relações de cópula com a menor, por duas vezes, no seio familiar.

12. Nos termos do disposto no artigo 71.º n.º 1, do CP, a pena é determinada em função da culpa e das exigências da prevenção.

13. A capilaridade entre culpa e prevenção é consignada no artigo 40.º, do CP, relativo aos fins das penas, que dispõe que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo porém a pena ultrapassar a medida da culpa.

14. Assim, a culpa não é fundamento da medida da pena, mas somente o seu limite.

15. A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (proteção dos bens jurídicos), entendida como prevenção positiva, ou seja, a afirmação da validade das normas perante a comunidade, e é nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial, intervindo a culpa apenas como limite máximo da pena, como travão inultrapassável às exigências preventivas.

16. A este quadro se há-se atender na determinação da medida concreta da pena, nos termos prevenidos no n.º 2 do artigo 71.º, do CP: às circunstâncias do crime, nomeadamente: a) à ilicitude, modo de execução dos factos, gravidade das consequências, e grau de violação dos deveres impostos ao agente, b) à intensidade do dolo, c) aos sentimentos manifestados pelo agente e aos motivos do crime, d) às condições pessoais do agente e sua situação económica, e) à conduta anterior e posterior ao crime, e f) à personalidade do agente.

17. No caso, a materialidade sedimentada como provada evidencia a intensidade da ilicitude dos factos.

18. Com efeito, aproveitando-se do facto de a mãe do arguido se encontrar a dormir e mandando deitar a irmã da ofendida, mandou esta preparar-lhe um café e levar-lho ao quarto, e, ali, mandou-a deitar na cama, despiu-a, despiu-se, e penetrou-a até ejacular, apesar da manifestação de desconforto da menor, que depois mandou embora, situação que se repetiu adrede, em data não determinada.

19. Este procedimento, ardiloso inicialmente, insistente e despudorado depois, certamente lesivo de um saudável desenvolvimento do amadurecimento sexual da ofendida, revela uma ilicitude muito acentuada.

20. A tanto acresce um elevado grau de violação dos deveres que lhe eram impostos do passo em que a ofendida era (é) sua filha e de menor idade (10 anos), estando, na ocasião, confiada à sua guarda, protecção e responsabilidade.

21. À ilicitude elevada corresponde um dolo intensíssimo, demonstrado na forma como preparou a execução dos factos e como, numa atitude altamente censurável, expôs a filha a uma situação degradante, objecto do prazer sexual de seu próprio pai, sem atender à menoridade da ofendida e aos seus interesses enquanto criança, incapaz, pela sua idade, de se autodeterminar sexualmente, causando-lhe, designadamente, as perturbações descritas no § 21 do rol de factos julgados provados – «a menor apresenta sintomatologia com significado clínico, nomeadamente sintomatologia depressiva e de ansiedade que poderão ter associação às vivências traumáticas no seio familiar, nomeadamente aos alegados maus tratos e de abuso sexual por parte do pai. Apresenta ainda baixa autoestima e baixo autoconceito.»

22. Por outro lado, importa salientar o elevado valor do bem jurídico em causa, a autodeterminação sexual, grosseira e repetidamente violado pelo arguido.

23. São fortíssimas as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.

24. Já a prevenção especial não se mostra muito exigente, face à ausência de antecedentes criminais do arguido.

25. A moldura penal demarca-se em 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

26. Numa análise global das circunstâncias do crime, na sua relação com os fins das penas, considera-se que a pena aplicada na instância, de 5 anos e 6 meses de prisão, se mostra equilibrada, justa e adequada, do passo em que satisfaz os interesses da prevenção, não excedendo os limites da culpa, situando-se em medida suficientemente próxima do limite mínimo para acolher o circunstancialismo atenuativo decorrente da primariedade delitiva, do lapso de tempo da admissão parcial dos factos imputados e da inserção profissional (materialidade que, não constando do rol de factos julgados provados, foi aportada enquanto tal, no acórdão recorrido, em sede de escolha e medida da pena – cfr. acima).

27. Fica prejudicada a questão da suspensão da execução da pena, por a pena aplicada ser superior a 5 anos de prisão – artigo 50.º n.º 1, do CP.

28. Tal pena mostra-se, ademais, concretizada em harmonia com as penas que, em contextos de facto aproximados, têm sido estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo cotejar-se (para referir apenas os mais recentes e significativos) os acórdãos de 22 de Outubro de 2020 (processo 175/19.5JDLSB.L1.S1), de 23 de Maio de 2019 (processo 134/17.2JAAVR.S1), de 13 de Março de 2019 (processo 610/16.4JAAVR.C1.S1), de 22 de Março de 2018 (processo 467/16.5PALSB.L1.S1), de 22 de Fevereiro de 2018 (processo 351/16.2JAPRT.S1), de 8 de Junho de 2017 (processo 12/14.7JAPTM.E2.S1), e de 7 de Junho de 2017 (processo 367/16.9JAPDL.S1) – disponíveis, como os mais citandos, na base de dados do IGFEJ.

29. Termos em que, nesta parcela, o recurso não pode lograr provimento.

30. O recorrente suscita ainda a questão da redução do montante «reparatório» estabelecido, em 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 16.º n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, e nos artigos 67.º-A e 82.º-A, estes do Código de Processo Penal (CPP), de 10.000 para 6.000 euros, invocando a sua debilidade económico-financeira (conclusões 15.ª a 18.ª da motivação do recurso).

31. Em matéria de fixação do montante indemnizatório, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram, designadamente, nos seguintes (transcritos) termos:

«Atendendo à matéria de facto dada como assente, verifica-se que o arguido agiu voluntariamente, e, nesta medida, o primeiro dos pressupostos da responsabilidade civil baseada na culpa encontra-se preenchido.

Porém o facto voluntário que lesa interesses alheios só obriga a reparação havendo ilicitude - que consiste na infracção de um dever jurídico. No caso em apreço verificou-se a violação de um direito de outrem, o direito à autodeterminação sexual e à integridade e saúde psicológica da vítima.

O nexo de imputação do facto ao lesante ou culpa – nexo de imputação subjectiva do agente - encontra-se igualmente demonstrado.

O derradeiro pressuposto - o nexo de causalidade entre os factos praticados pelo agente e o dano sofridos pela vítima - encontra também eco na matéria de facto apurada.

Analisada a matéria de facto, verifica-se que a ofendida sofreu danos morais bastante graves e que vão ter sequelas psicológicas e emocionais para toda a vida.

Nos termos do art. 496º do CC os danos não patrimoniais são fixados segundo a equidade.

Tendo em tais danos e sequelas emocionais, entendemos justo e equitativo fixar a indemnização no montante de €10.000,00. Tal quantia deverá ser paga pelo arguido à sua filha ofendida DD.»

Vejamos.

32. A «reparação», prevenida no artigo 82.º-A, do CPP [aditado ao CPP pela Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto – que, recuperando (veja-se Manuel Maia Gonçalves, «Código de Processo Penal», Anotado e Comentado, 17.ª edição, página 245, 2009, Almedina, Coimbra) uma medida estabelecida no CPP de 1929 (artigo 34.º) e abandonada com a entrada em vigor do CP de 1982, veio permitir que o tribunal fixasse oficiosamente, como efeito penal da condenação, uma «reparação» pecuniária pelos prejuízos sofridos pela vítima do crime – não configura, de facto e como o próprio nome indica, uma verdadeira e própria indemnização, pese embora se imponha, na sua aplicação, convocar os conceitos da lei civil.

33. Tanto decorre, desde logo, da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na origem da citada Lei n.º 58/98, e, depois, do local de inserção da referida norma do artigo 82.º-A no Código de Processo Penal, isto é, no Título VI, do Livro I, que tem por epígrafe «Das partes civis».

34. Com efeito – diferentemente do que sucede com a indemnização civil (artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil e 129.º do CP) fundada na prática de crime e deduzida no processo penal ou em separado (artigos 71.º e 72.º do CPP de 1987) – a «reparação» da vítima do crime praticado pelos prejuízos sofridos, prevista no mencionado artigo 82.º-A, do CPP, congraçando a natureza de uma «compensação», é arbitrada oficiosamente pelo tribunal quando, não tendo sido deduzido pedido cível no processo penal ou em separado (1.º segmento do preceito legal), particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

35. Compensação pecuniária [assim entendida (vide Claus Roxin, em «La reparación en el sistema de los fines de la pena», in «De Los Delitos y De las Victimas», Ad Hoc, Argentina, páginas 154 a 156) como uma forma de sanção autónoma, consequente do crime praticado e, como tal, ainda adequada a garantir a ressocialização do agente que, por via dela, poderá apreender de jeito porventura mais conseguido a repercussão que o facto ilícito da sua responsabilidade teve na vítima e bem assim interiorizar mais claramente o valor da norma penal infringida e a necessidade de restabelecer a ordem jurídica violada], que, não podendo assimilar-se à indemnização civil, remete todavia para o conceito de prejuízo, mas já não para a quantia a arbitrar – veja-se, a respeito, o acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Maio de 2019 (acima citado e para aqui, cum venia, convocado).

36. Com efeito e como resulta do disposto no n.º 3 do referido artigo 82.º-A, do CPP, a quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta na acção que porventura venha a conhecer do pedido de cível de indemnização.

37. Tanto significa que o arbitramento de uma certa quantia a favor da vítima do crime, correspondendo a uma determinação do legislador orientada no sentido de acudir e obviar a uma situação de urgência determinada pela desprotecção da vítima [em sentido estrito e também abrangente – vejam-se os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Outubro de 2011 (processo 88/09.9PESNT.L1.S1) e de 2 de Maio de 2018 (processo 156/16.0PALSB.L1.S1)], não tem de equivaler ao montante indemnizatório que, caso tivesse sido deduzido pedido de indemnização civil, seria fixado em conformidade com os critérios decorrentes do estatuído nas já aludidas normas dos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes, do Código Civil (CC), e 129.º, do CP.

38. Tal quantitativo «reparatório», na falta de previsão, na norma do artigo 82.º-A do CPP, de critérios legais, deverá ser fixado atendendo aos conceitos da lei civil, designadamente à equidade (número 3 do artigo 496.º do CC) e ponderando o grau de desprotecção da vítima do crime e da culpabilidade do agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica e também da vítima, e demais circunstancialismo com relevância para o efeito, em conformidade com o prescrito nas citadas normas dos artigos 494.º e 496.º n.º 3 do CC.

39. Vale por dizer: na fixação da indemnização por danos não patrimoniais terá de se levar em ponderação o disposto nos artigos 483.°, 496.° n.ºs 1, 2 e 4, 562.° e 566.°, n.ºs 1 e 2, do CC: quem viola ilicitamente os direitos de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação; na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito; a indemnização pelos danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso; quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação; a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reparação natural não seja possível, e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

40. Como tem vindo a ser afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a indemnização prevista no art. 496.º, n.º 1, do Código Civil, é mais propriamente uma verdadeira compensação.

41. A finalidade que lhe preside é a de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos já suportados e a suportar pelo lesado, através de uma quantia em dinheiro que, permitindo o acesso a bens, vantagens e utilidades, seja capaz de permitir ao lesado a satisfação das mais variadas necessidades e de, assim, lhe proporcionar um acréscimo de bem-estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e a suportar.

42. Danos não patrimoniais são assim «os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.» - Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», 6.ª edição, 1.º vol., pág. 571.

43. São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que «pela sua gravidade mereçam a tutela do direito» – nºs 1 e 3 do artigo 496.º, do CC.

44. Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de «dano», vala, até ao presente, a lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no «Código Civil Anotado», vol. I, pág.501:

«O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.

E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.»

45. Neste sentido, ademais, se refere no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1996 (BMJ 460-444): «(...) No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente».

46. No caso em apreço, não podem desvalorizar-se as sequelas traumáticas que o arguido causou na menor sua filha (ponto 21 do rol de factos julgados provados), que lhe deixarão, para sempre, marcas indeléveis.

47. Ademais, a situação económico-financeira do recorrente, operário especializado, auferindo cerca de 1.600 euros por mês (ponto 18 do rol de factos julgados provados), de par com os mais critérios, acima revistos, abona, como justa e criteriosa a «reparação» atribuída pelo Tribunal de primeira instância, no montante de 10.000 euros, que não consente redução nem suscita reparo.

48. Termos em que o recurso interposto pelo arguido não pode lograr provimento.

49. Cabe tributação, nos termos e com os critérios prevenidos nos artigos 513.º e 514.º, do CPP, e artigo 8.º e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais, ressalvado apoio judiciário.

50. Em conclusão e síntese:

(i) no contexto dos factos, que revelam a manutenção repetida, pelo arguido, de relações sexuais de cópula com sua filha, de 10 anos de idade, em contexto familiar,  e na moldura abstracta de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, figura-se justa e adequada a pena concretizada, na instância, em 5 anos e 6 meses de prisão, em punição do arguido pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 171.º n.os 1 e 2 e 177.º n.º 1 alínea a), do CP;

(ii) no caso, figura-se fixado com equitativa prudência, a título de «reparação» da vítima (artigo 16.º n.º 2, do Estatuto da Vítima, e artigos 67.º-A e 82.º-A, estes do CPP), o montante de 10.000 euros.

III

51. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido;

b) condenar o arguido nas custas, com a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.

Lisboa, 25 de Março de 2021

António Clemente Lima(Relator)

Margarida Blasco