Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5001/21.2T8MAI.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
LEI APLICÁVEL
NORMA IMPERATIVA
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
IRREDUTIBILIDADE DA RETRIBUIÇÃO
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS.
Legislação Comunitária: REGULAMENTO (CE) N.º 593/2008
Sumário :

I- São normas inderrogáveis da lei portuguesa, mormente para efeitos de aplicação do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento Roma I, as que respeitam à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal.


II- A regulamentação legal dos subsídios de férias e de Natal visa garantir aos trabalhadores a disponibilidade de dinheiro que lhe permitirá acorrer aos gastos acrescidos que essas épocas implicam ou podem implicar e, especificamente quanto às férias, motivá-los para o seu gozo efetivo, não assentando em ponderações de índole estritamente retributiva.


III- Ainda que o contrato individual de trabalho seja regulado pela lei de outro país (nos termos escolhidos pelas partes), é obrigatório o pagamento subsídio de férias e de Natal relativamente a trabalhadores cujo contrato de trabalho está a ser executado em Portugal.


IV- Reconhecendo-se que os autores têm direito a receber subsídios de férias e de Natal, em acréscimo à remuneração acordada com a ré, no período temporal anterior a 01.02.2019, se não recebessem tal acréscimo, similarmente, no período posterior, isso consubstanciaria uma redução da sua retribuição, em infração ao princípio da irredutibilidade da retribuição.


V- O reenvio pode ser recusado pelos tribunais nacionais de um Estado-Membro, mormente quando a resposta à questão suscitada não possa ter influência na solução do litígio ou quando não se coloque uma dúvida razoável quanto à interpretação da disposição de direito da União que esteja em causa.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 5001/21.2T8MAI.P1.S1


MBM/RP/DM


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. Na parte que ora releva, AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG intentaram ação de processo comum contra RYANAIR DESIGNED ACTIVITY COMPANY DAC (“Ryanair”).


2. Ao contrário da 1.ª Instância, que nesta parte absolveu a R. do peticionado, interposto recurso de apelação pelos AA., o Tribunal da Relação do Porto (TRP), julgando parcialmente o recurso, condenou aquela: a) a reconhecer o direito dos autores a receberem os subsídios de férias e de Natal1 que nunca auferiram ao longo da relação laboral; b) a pagar-lhes os subsídios de férias e de Natal durante os períodos de vigência do contrato em que prestaram a sua atividade em território nacional, montantes a apurar em posterior liquidação.


3. A R. interpôs recurso de revista (juntando dois Pareceres, um dos Senhores Professores João Leal Amado e Milena Dias Rouxinol, e outro da Senhora Professora Maria do Rosário Palma Ramalho), solicitando, para além do mais, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, à luz do disposto no artigo 267.º, b), do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Desde já se adianta que esta questão (prévia) improcede, pelas razões expostas após o tratamento do mais suscitado pelas partes (cfr. infra nº 6), para mais fácil compreensão das mesmas.


4. Os recorridos contra-alegaram e apresentaram recurso subordinado.


5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência de ambos os recursos, em parecer a que apenas respondeu a ré, em linha com as posições antes assumidas nos autos.


6. Para além da questão (prévia) de reenvio prejudicial (cfr. supra nº 3), as questões a decidir2, de acordo com a sua precedência lógico-jurídica, são as seguintes: i) no âmbito do recurso subordinado, aferir se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia; ii) no âmbito do recurso independente, saber se os sobreditos autores têm direito a receber subsídios de férias e de Natal, em acréscimo à remuneração acordada com a R.


Decidindo.


II.


7. Com relevo para a decisão, foram fixados pelas instâncias os seguintes factos:3


1. A Ré, Ryanair, é uma sociedade comercial com sede em ..., Irlanda, que se dedica ao transporte aéreo comercial de passageiros.


2. Os Autores prestam a sua atividade regularmente a partir do Aeroporto ... (comumente, Aeroporto...) (…).


3. Depois de um despedimento coletivo os Autores AA, BB, CC e EE foram reintegrados na Ré.


4. Os Autores DD e FF optaram pela indemnização em substituição em reintegração.


5. Os Autores são/foram Tripulantes de Cabine (Cabin Crew).


6. Na ré Ryanair designam-se os Tripulantes de Cabine “comuns” por Costumer Service Agents (CSA).


7. E os Tripulantes de Cabine que exercem funções de Chefe de Cabine, designam-se como “Costumer Service Supervisor - CSS” ou “Number one” (…).


8. A autora AA desempenhou funções da categoria de CSS (chefe de cabine) desde o ano de 2011.


9. O Autor BB prestou a sua atividade para a empresa de trabalho temporário C......., entre 23/04/2009 e 31/12/2011, trabalhando nos aviões da ré.


10. A partir de 01/04/2011 o Autor BB passou a prestar ininterruptamente a sua atividade a partir do aeroporto ....


11. O autor BB a 1 de janeiro de 2012 passou a exercer a sua atividade diretamente à Ré Ryanair.


12. Mantendo-se no aeroporto ....


13. O Autor BB ocupa a categoria de CSS (chefe de cabine) desde a data de outorgação do contrato junto, cuja execução teve início a 1 de novembro de 2015.


14. O Autor CC prestou a sua atividade para a empresa de trabalho temporário C......., entre 14/05/2006 e 12/12/2006, trabalhando nos aviões da ré.


15. A partir de 13/12/2006 o Autor CC passou a prestar ininterruptamente a sua atividade diretamente à Ré Ryanair.


16. Entre 4 agosto de 2009 (data que corresponde à sua transferência para a base ...) e Abril de 2019, o Autor CC, aí já com a categoria de CSS (chefe de cabine), ocupou também o cargo de Base Supervisor.


(…)


18. O Autor DD prestou inicialmente a sua atividade à Ré Ryanair na base de ..., entre 01/01/2009 e 02/09/2009.


19. A partir de 03/09/2009 o Autor DD passou a prestar ininterruptamente a sua atividade diretamente à Ré Ryanair a partir do aeroporto ... com a categoria de CSS (definitivo a partir de 2010).


20. Entre novembro de 2015 e outubro de 2016 prestou a sua atividade à Ré na categoria de CSA.


21. Tendo retornado à sua posição de CSS após essa data, conforme contrato de trabalho datado de 22 de março de 2017.


(…)


23. A Autora EE prestou inicialmente a sua atividade à Ré Ryanair através da empresa C......., entre 12/08/2006 e 24/10/2009.


24. A partir de 25/10/2009 a Autora passou a prestar ininterruptamente a sua atividade diretamente à Ré Ryanair, a partir do aeroporto ..., com a categoria de CSS.


25. A Autora FF prestou a sua atividade à Ré Ryanair desde 11/03/2008. 26. Tendo passado a exercer a sua atividade à Ré a partir da base ... a partir de 3 de setembro de 2009.


27. É no aeroporto ... que todos os Autores iniciam (iniciavam) e terminam (terminavam) regularmente a sua jornada de trabalho.


37. Os Autores, à data do seu despedimento auferiam um vencimento base ao qual acrescia um valor a título de complemento CSS (mencionado como Number One nos recibos de vencimento) e outro valor a título de Uni/Med.


38. Auferindo ainda valor variável pelas horas de voo.


39. Um segundo valor variável por comissão de vendas.


(…)


41. No início da pandemia covid-19, a Ré propôs uma nova adenda com reduções salariais.


42. Aí incluía cláusula pela qual os trabalhadores (Autores) prescindiam do seu direito a reclamar créditos laborais anteriores a essa adenda.


43. Os Autores, por conta dessa cláusula em específico, recusaram assinar a adenda.


44. Os Autores AA, BB e CC já haviam voltado ao serviço, fruto da providência cautelar que interpuseram.


45. Nesse regresso ao serviço por força da providência cautelar, a Ré veio a aplicar a remuneração prevista nessa adenda (referida em 41).


46. Os Autores nunca assinaram tal adenda.


47. Todos os Autores, recebiam mensalmente o complemento de chefia e de fardamento (uni/med).


48. Antes de 2019 a ré não discriminava nos recibos de vencimento dos autores as rubricas relativas aos subsídios de Natal e de férias.


49. Até 2019 nos contratos dos Autores, na retribuição anual não se encontrava estipulado nenhum montante correspondente ao pagamento de subsídios de férias ou de Natal.


50. No recibo de vencimento dos autores, desde o início da relação laboral e até 2019 não existiu uma referência autonomizada quanto aos valores pagos a título de subsídio de férias e de Natal.


51. A lei irlandesa não prevê a existência de subsídios de Natal e de Férias.


52. Nos recibos de vencimento dos autores anteriores a 2019 não consta a liquidação de cada componente.


53. O Autor BB, enquanto prestou a sua atividade à C....... ......., apenas auferia um vencimento integralmente variável correspondente às suas horas de voo e outras componentes salariais.


54. A média do seu vencimento referente a horas de voo quanto a 11 dos restantes meses desse ano, era de € 1085,15 (mil e oitenta e cinco euros e quinze cêntimos).


55. O “Complemento Base Supervisor 2009-2019” apenas foi pago ao autor CC, o qual teve a categoria de Base Supervisor, constando essa componente retributiva dos seus recibos de vencimento exatamente com a descrição “Base Supervisor”.


56. Os Autores auferiam/auferem ainda componente variável e regularmente paga, relativa às horas de voo efetivamente prestadas.


57. Este valor era inicialmente pago em recibo autónomo (comumente apelidado de recibo “Inflight”- ver canto inferior esquerdo dos documentos) àquele de onde constava a retribuição base e outros complementos.


58. A partir do ano de 2015 todas as componentes retributivas dos Autores, incluindo as horas de voo, passaram a constar de um só documento mensal, tendo as horas de voo pagas o descritivo “Gross Sectors” nesses recibos.


59. Os Autores são Tripulantes de Cabine, com categoria de chefe de cabine.


(…)


66. Antes de 2019, a ré apenas permitia aos autores a gozar o máximo de 20 dias de férias por ano.


(…)


71. O Autor HH prestou inicialmente a sua atividade à C....... (agência Irlandesa que presta serviço equivalente ou semelhante ao de uma agência de trabalho temporário que tem como cliente único a Ré), entre 20/03/2013 e 2017, sendo que apenas em 2015 se transferiu para Portugal.


72. A partir de 01/12/2017 o Autor passou a prestar ininterruptamente a sua atividade diretamente à Ré Ryanair, a partir do aeroporto ..., com a categoria de CSS (chefe de cabine).


73. O Autor GG prestou inicialmente a sua atividade à C......., entre 07/05/2008 e 31/12/2011, sendo que desde 25 de outubro de 2009 passou a prestar atividade a partir do Aeroporto ....


74. A partir de 01/01/2012 o Autor passou a prestar ininterruptamente a sua atividade a partir do aeroporto ... enquanto Tripulante diretamente contratado pela R.


75. A A. AA é trabalhadora da ré desde 01.09.2006.


76. Consta dos contratos de trabalho dos autores uma cláusula com o seguinte teor: “As relações de trabalho entre a Ryanair e V. Exa., serão sempre regidas pelas leis em vigor e periodicamente alteradas na República da Irlanda. (…)”.


(…)


79. Em novembro de 2018, a Ré acordou com o Sindicato Nacional do Pessoal da Aviação Civil (SNPVAC) a transição para a escolha e aplicação da lei portuguesa nas suas relações laborais com trabalhadores alocados a bases portuguesas.


80. O acordo celebrado com o Sindicato não obriga os trabalhadores individuais que haviam pactado a aplicação de outra lei (como é o caso dos AA.), pelo que esta alteração foi proposta aos trabalhadores (incluindo os AA.) por regulamento interno.


81. Não tendo os AA. apresentado qualquer oposição, após 01 de fevereiro de 2019 as partes passaram a aplicar a legislação portuguesa à sua relação laboral.


82. Por via do acordo acima referido, a R. concordou em passar a aplicar a legislação nacional às relações laborais com os trabalhadores alocados a bases em Portugal.


(…)


120. Em 2019, a Ré enviou comunicações aos seus trabalhadores, incluindo os AA., oferecendo a possibilidade de estas receberem o salário em 14 prestações mensais, opção que não foi tomada por nenhum dos AA.


121. Os AA. receberam os seus contratos por email, tiveram tempo para os ler e questionar a R. sobre quaisquer dúvidas que tivessem.


122. Os AA. assinavam no contrato uma declaração em como tinham tomado conhecimento dos termos e condições do contrato.


(…)


125. Os AA. assinaram os vários contratos e remeteram os mesmos para a R. sem nunca terem colocado qualquer dúvida ou exposto qualquer preocupação.


(…)


127. Nos termos da lei irlandesa, a remuneração dos trabalhadores é paga em 12 mensalidades anuais, pelo que a retribuição mensal dos AA. foi estipulada em € 1.247,50.


128. A partir de 2019 a Ré passou a aplicar a legislação portuguesa à relação laboral com todos os seus trabalhadores afetos a bases portuguesas (onde se incluíam os AA.).


129. Foi comunicado a todos os trabalhadores da Ré (incluindo os AA) que devido à transição para a lei laboral portuguesa o salário anual que vinham auferindo em 12 prestações mensais iria passar a ser pago em 14 prestações mensais, a não ser que os trabalhadores informassem a preferência pela manutenção do pagamento em 12 prestações mensais (aqui se incluindo o proporcional do subsídio de Natal e férias).


130. Não tendo os AA. manifestado a sua vontade, a Ré, passou a retribuir os AA. 14 vezes por ano, mantendo o valor global anual (€ 14.970,00) mas passando o valor mensal para € 1.069,29.


131. Com esta alteração não foi feita qualquer redução da retribuição dos AA., mantendo estes a mesma remuneração anual que sempre vinham auferindo.


132. Quanto ao subsídio de CSS, trata-se de um subsídio pago aos trabalhadores da Ré que assumem funções de chefia a bordo das aeronaves.


133. Não exercendo os trabalhadores estas funções, ou deixando de as exercer – temporariamente ou permanentemente – este subsídio é retirado.


134. O subsídio de CSS tinha um valor anual de € 2500.


135. À semelhança da retribuição mensal, era pago em 12 prestações mensais de € 208,33, sendo que, com a passagem para a aplicação da lei portuguesa, este passou a ser pago em 14 prestações mensais de € 178,58.


136. O subsídio Uni/Med/Id, é pago aos trabalhadores da Ré para os compensar dos gastos com fardamento e com os valores necessários à manutenção e renovação das identificações aeroportuárias.


137. Os AA. poderiam ainda receber comissões pelas vendas a bordo do avião.


138. A atribuição desta comissão estava diretamente relacionada com o desempenho do trabalhador e não estava antecipadamente garantida.


(…)


146. Quando a Ré acordou pagar os montantes concretos da retribuição anual que constam dos contratos de trabalho, teve em conta o orçamento e o custo estimado com a retribuição anual dos AA.


147. Estes critérios foram absolutamente essenciais para a contratação dos AA. pela Ré e para a definição dos valores das respetivas retribuições.


(…)


160. Para além dos dias de férias que gozavam anualmente, os AA. gozavam ainda, em resultado de um acordo de base que se findou em 2021, de um conjunto de dias adicionais de descanso que, pese embora não tivessem a qualificação de férias, eram dias de repouso concedidos pela 1ª R.


(…)


172. O A. GG também foi contratado por uma empresa de trabalho temporário (C....... – com sede na Irlanda), entre 05.05.2008 e 31.12.2011, onde operou voos da Ryanair a partir da base de ..., França. Em 01.01.2012 foi contratado pela Ré, passando a exercer funções na base ..., Portugal


(…)


179. Os AA. foram inicialmente contratados pela empresa de trabalho temporário C......., a qual foi responsável pelo treino inicial dos AA; Durante o treino inicial, esteve sempre um membro da C....... para explicitar e clarificar quaisquer dúvidas sobre os termos da relação contratual a que se candidatavam os AA.


180. Quando os AA. fizeram formação inicial com a C......., foi-lhes entregue um contrato de formação – que os AA. leram, compreenderam e assinaram - o qual previa um reforço da informação sobre as condições especiais exigidas aos Tripulantes de Cabine, entre outros, a aplicação da lei irlandesa e a cláusula de mobilidade: “Tal como todos os contratos, este contém linguagem legal, etc. Por isso, se não tiver a certeza de alguma coisa sobre o contrato, por favor contacte-me e responderei a quaisquer dúvidas que possa ter”.


(…)


III.


a) – Se o acórdão recorrido enferma de omissão de pronúncia.


8. Invocam os AA. que se verifica “nulidade, por omissão de pronúncia parcial no tema dos subsídios de férias e de Natal”, na parte em que “integram na sua liquidação (…) o pagamento da média dos 12 meses anteriores, quando paga em 11 desses meses, das comissões de vendas e horas de voo auferidas”.


Na sequência do recurso subordinado de revista interposto por aqueles, o TRP pronunciou-se, num segundo acórdão, sobre esta matéria (em cumprimento ao art. 617º, nº 1, ex vi do art. 666º, nº 1, do CPC), nos seguintes termos:


«(…) [E]m face (…) do que invocaram nas alegações e em particular nas conclusões que apresentaram na apelação perante esta Relação, que delimitam o objeto do recurso (salvo questões de conhecimento oficioso), sequer percebemos, pois que não o indicam, em que momento e de que forma colocaram expressamente à nossa apreciação a questão que agora genericamente referem – “(…) o pagamento da média dos 12 meses anteriores, quando paga em 11 desses, das comissões de vendas e horas de voo auferidas”.


De resto, a referirem-se os Arguentes à questão que foi apreciada no acórdão, assim aquando da “Questão prévia (2)”, aí se explicitou, em termos que temos por bastantes, tal questão, ao fazer-se constar o seguinte (transcrição):


«I.9 Questão prévia (2)


No requerimento de interposição do recurso, os autores referem o seguinte:


-«[..] a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia relativamente aos pedidos de condenação em retribuições intercalares quanto aos AA. AA, BB, CC e EE (que por mero lapso não se fez constar do pedido J) mas constando esta do articulado a ponto V, artsº 276º e SS.). Por um lado compreende-se que a falta de pronúncia deste Doutro Tribunal quanto a este pedido poderá ser entendida tendo em conta que o Tribunal não condenou a R. quanto ao pedido de reconhecimento do valor do salário base e complemento CSS atual destes AA. mas, à laia da cautela e do dever de patrocínio, nada sendo concluindo nesta matéria na Sentença de forma explícita, não podem deixar de invocar a nulidade».


Porém, como se retira das conclusões, essa questão não consta suscitada em qualquer uma delas. Refira-se, ainda, que nem tão pouco é tratada nas alegações.


Conforme decorre do n.º 1 e 2, do art.º 639.º do CPC, aplicável ex vi art.º 1.º , n.º2 al. a), do CPT, as alegações devem conter conclusões, nas quais constem de forma sintética, a indicação dos fundamentos com base nos quais é pedida a alteração ou anulação, devendo nas mesmas indicar, quando o recurso verse sobre matéria de direito, “as normas jurídicas violadas” [al. a), do n.º2], “O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas” [al. b)] e “Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada” [al.c), do n.º2].


Como é pacificamente entendido, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho].


Dito em poucas palavras, a finalidade ou função das conclusões é definir o objecto do recurso, através da identificação, abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas já desenvolvidas nas alegações.”


Não resultando das conclusões que os AA pretendam arguir a nulidade da sentença - nem sequer podendo constar por também nada se encontrar a esse propósito no corpo das alegações -, e não sendo essa questão de conhecimento oficioso, dela não se conhecerá.”


Neste contexto, não sendo sequer explicitado, como o referimos, em que termos, efetivamente, teria ocorrida a invocada omissão de pronúncia por parte desta Relação – pois que essa omissão pressuporia que não se tivesse apreciado questão cujo conhecimento efetivamente se impusesse, o que, salvo o devido respeito, não vislumbramos, por entendermos que o acórdão proferido se pronunciou sobre todas as questões que foram colocadas à apreciação no recurso –, resta-nos concluir, sem necessidade de outras considerações, pela improcedência da invocada nulidade por omissão de pronúncia.»


É manifesto que a questão apreciada pelo TRP (no acórdão que conheceu da apelação interposta pelos autores), sob a epigrafe “Questão prévia (2)”, nada tem a ver com aquela que em sede de revista constitui o objeto da arguida nulidade. Com efeito, aqui, insurgem-se os recorrentes contra alegada omissão de pronúncia no tocante à problemática da inclusão nos subsídios de férias e de Natal das importâncias auferidas a título de comissões de vendas e horas de voo (com base na média dos 12 meses anteriores, quando pagas em 11 desses meses).


Todavia, como sinaliza o TRP no “segundo” acórdão, acima parcialmente transcrito, os autores não suscitaram esta questão na apelação, pelo que manifestamente improcede a nulidade em apreço.


b) – Se os autores têm direito a receber subsídios de férias e de Natal, em acréscimo à remuneração acordada com a R.


9. A ré é uma pessoa coletiva com sede na Irlanda e os autores têm domicílio em Portugal, pelo que há que ter presente o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008 (Roma I) [doravante designado apenas por Regulamento], aplicável, nomeadamente, às relações laborais que apresentam pontos de conexão com dois países da União, constando do seu considerando n.º 35, sobre esta matéria, o seguinte princípio matricial: Os trabalhadores não deverão ser privados da proteção que lhes é conferida pelas disposições que não podem ser derrogadas por acordo ou que só podem sê-lo a seu favor.


Consonantemente, densificando esta regra, preceitua o art. 8.º deste diploma, epigrafado “contratos individuais de trabalho”:


1. O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3º. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do presente artigo.


2. Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país.


3. Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do nº 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador.


4. Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos nºs 2 ou 3, é aplicável a lei desse outro país.


Sobre esta matéria, o acórdão de 15.07.2021 do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), Primeira Secção, proferido nos processos (apensos) C-152/20 e C-218/20 (DG e EH contra SC Gruber Logistics SRL e Sindicatul Lucrătorilor din Transporturi contra SC Samidani Trans SRL)4, declarou que «[O] artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento Roma I, (…) deve ser interpretado no sentido de que, quando a lei que rege o contrato individual de trabalho tiver sido escolhida pelas partes nesse contrato, e seja diferente da aplicável por força dos n.ºs 2, 3 ou 4 deste artigo, há que excluir a aplicação desta última, com exceção das “disposições não derrogáveis por acordo” por força da mesma, na aceção do artigo 8.º, n.º 1, deste regulamento (…)», esclarecendo-se no ponto nº 27 da respetiva fundamentação: “[A] aplicação correta do artigo 8.º (…) implica (…) num primeiro momento, que o órgão jurisdicional nacional identifique a lei que teria sido aplicável na falta de escolha e determine, segundo esta, as regras não derrogáveis por acordo e, num segundo momento, que esse órgão jurisdicional compare o nível de proteção de que beneficia o trabalhador por força dessas regras com o previsto pela lei escolhida pelas partes. Se o nível previsto pelas referidas regras assegurar uma melhor proteção, há que aplicar essas mesmas regras.”.


10. In casu, as partes escolheram a lei irlandesa para regular as relações contratuais estabelecidas, sendo que a lei irlandesa não prevê o pagamento de subsídios de férias e de Natal.


Assim, quanto ao período anterior a 01.02.2019, data a partir da qual as partes, por acordo, passaram a aplicar a legislação portuguesa às suas relações laborais (cfr. pontos nº 79 a 82 dos factos provados), suscita-se, especificamente, a questão de saber se a opção pela lei irlandesa se traduziu na violação de lei portuguesa não derrogável por acordo, relativa ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal.


E, quanto ao período posterior àquela data, coloca-se tão somente a questão de saber se o conteúdo do clausulado que entre as partes passou a vigorar em 2019 (e a execução do correspondente programa contratual) infringe – de algum modo – a legislação nacional.


b.1.) Natureza e finalidade dos subsídios de férias e de Natal.


11. “O trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de dezembro de cada ano” (art. 263º, nº 1, do CT).


Segundo João Leal Amado o também chamado 13.º mês traduz-se numa “prestação retributiva de vencimento anual” e “formação progressiva ao longo do ano civil, num salário diferido que se vai sedimentando gradualmente” 5.


Uma vez que o subsídio de Natal é uma prestação “complementar” (ao contrário do subsídio de férias), o seu valor é calculado nos termos do art. 262º, do CT (retribuição base e diuturnidades), não abrangendo, pois, todos os elementos constantes do art. 258º do mesmo diploma6.


12. Por seu turno, o direito a férias visa essencialmente a garantia da saúde e recuperação física do trabalhador, o que explica, nomeadamente, a garantia do gozo efetivo das férias7, direito que é irrenunciável (art. 237º, nº 3, do CT).


Inserido sistematicamente no capítulo do Código do Trabalho relativo à retribuição e outras prestações patrimoniais, dispõe o art. 264º, nº 2, que, além da retribuição do período de férias8, o trabalhador tem direito a subsídio de férias, compreendendo este a retribuição base e outras prestações retributivas que sejam contrapartida do modo específico da execução do trabalho, correspondentes à duração mínima das férias.


Trata-se, pois, de uma prestação adicional, não sendo à solução consagrada na lei “alheio, por certo o propósito de garantir a efetividade do direito a férias9, tanto mais que, para além dos interesses particulares, “existe (…) um claro e genuíno interesse público no regime legal das férias e no seu gozo efetivo pelo trabalhador”10.


Quanto ao Direito Europeu, há a considerar a Diretiva 2003/88/CE do Parlamento e do Conselho, de 01.11.2003, que, no seu art. 7º, epigrafado “Férias anuais”, dispõe: 1. Os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais. 2. O período mínimo de férias anuais remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira, exceto nos casos de cessação da relação de trabalho.


13. Como sinaliza Monteiro Fernandes, o objetivo da regulamentação legal das prestações pecuniárias relativas aos períodos de férias e de Natal é que «o trabalhador tenha garantido, nos meses de férias e do Natal, a disponibilidade do “dobro do dinheiro” 11, que lhe permitirá acorrer aos gastos acrescidos que essas épocas implicam ou podem implicar»; e, especificamente quanto às férias, “motivá-lo para o gozo efetivo do repouso”12 . Identicamente, diz Jorge Leite, no tocante ao subsídio de Natal, que se trata de "uma prestação retributiva de vencimento anual cujo regime se encontra pré-ordenado à finalidade de proporcionar aos trabalhadores, na quadra natalícia, a disponibilidade de um maior rendimento que lhes permita fazer face ao acréscimo de despesas, considerado normal (…) nesta época do ano".13


b.2.) – Densificação da esfera de proteção do regime legal dos subsídios de férias e de Natal.


14. “As normas legais reguladoras de contrato de trabalho só podem ser afastadas por contrato individual que estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador, se delas não resultar o contrário” (art. 3º, n.º 4, do CT), sendo que, de acordo com a jurisprudência uniforme e reiterada desta Secção Social do STJ, são normas inderrogáveis da lei portuguesa as respeitantes à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal (vg. Acs. de 07.07.2023, Proc. nº 158/20.2T8MTS.P1.S1, de 22.02.2022, Proc. nº 2191/19.8T8PDL.L1.S2, e de 27.10.2021, Proc. nº 19733/19.1T8LSB.L1.S2).


E quanto ao momento e forma do seu pagamento, quid juris?


Quanto ao momento do pagamento, o subsídio de férias deve, como regra, ser pago antes do início do período de férias, embora seja admitido acordo escrito em contrário (art. 264º, nº 3, do CT), possibilidade que a lei não prevê (não admite) relativamente à retribuição das férias e ao subsídio de Natal.


No tocante à forma de pagamento, em nome do princípio efetividade do direito a férias, o TJUE já decidiu que violava o aludido art. 7º da Diretiva 2003/88/CE uma cláusula contratual segundo a qual a retribuição por férias era diluída/fracionada nos salários pagos mensalmente ao longo do ano (no valor pago mensalmente era incluída uma percentagem com essa finalidade – rolled-up holiday pay), não havendo lugar a qualquer pagamento aquando do período de férias14.


Por identidade de razão, quer-nos parecer que a regra legal atinente ao momento do pagamento do subsídio de férias, podendo ser alterada por acordo escrito das partes, não será, todavia, consentânea com uma leitura que, alterando a forma de pagamento deste subsídio, implique a sua diluição nos salários pagos mensalmente, sob pena de esvaziamento daquele princípio. Como já em 1986 explicava Bernardo Lobo Xavier, "as férias – para serem aproveitadas na sua plenitude – supõem um aumento de gastos"15. E, por isso, aquando da altura em que são gozadas, os trabalhadores têm direito a um complemento (ou corretivo) salarial, com o qual se pretende assegurar que as férias possam satisfazer as finalidades que lhe estão associadas16.


No sentido também aponta, relativamente a ambos os subsídios, a consagração de um regime temporário de pagamento fracionado dos subsídios de Natal e de férias, para vigorar durante o ano de 2013, instituído pela Lei n.º 11/2013, de 28 de janeiro (regime prorrogado pelas leis do OGE para 2014 e 2015 e a que a lei do OGE de 2016 pôs termo). Com efeito, da estatuição pelo legislador deste regime excecional, infere-se, incontornavelmente, que o pagamento fracionado destes subsídios não é legalmente consentido em circunstâncias normais.


Diferentemente, embora com “algumas reservas”, Sónia Preto pronuncia-se no sentido do carácter supletivo do nº 3 do art. 264º, do CT, e pela possibilidade de se parcelar o pagamento do subsídio de férias ao longo do ano17.


b.3.) – Quanto ao caso dos autos.


15. Até 2019: a ré não discriminava nos recibos de vencimento dos autores as rubricas relativas aos subsídios de Natal e de férias; na retribuição anual prevista nos respetivos contratos de trabalho não se encontrava estipulado nenhum montante correspondente ao pagamento destes subsídios; e no recibo de vencimento dos autores não existia uma referência autonomizada quanto aos valores pagos a esse título (cfr. pontos 48 a 50 da matéria de facto).


Sendo certo que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, declaração que em negócios formais não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. arts. 236º e 238º, do Código Civil), nada permite vislumbrar, pois, que as partes, ao acordarem no pagamento da retribuição em 12 prestações mensais, nestas tenham contemplado o pagamento das quantias correspondentes aos subsídios impostos pela lei portuguesa, de qualquer modo, ou de qualquer forma.


Na verdade, como se afirma no acórdão recorrido, “não há qualquer facto provado – nem foi alegado – que minimamente indicie que na celebração do contrato as partes quiseram fixar um valor global de retribuição mais alto, cobrindo logo o que seria devido a título de subsídio de férias e subsídio de Natal”, nem que tal (hipotético) acordo tenha sido clausulado no contrato.


Assim (e independentemente das discussões doutrinárias e jurisprudenciais suscitadas a propósito do momento e da forma de pagamento dos subsídios em causa), quanto ao período anterior a 01.02.2019, é patente – em face das considerações antes expostas, maxime em supra nº 14, – que a opção pela lei irlandesa se traduziu na postergação de lei portuguesa não derrogável por acordo, atinente ao pagamento obrigatório dos subsídios de férias e de Natal18.


Esta infração não pode deixar de implicar a obrigação de a R. pagar aos AA. as correspondentes quantias (em acréscimo à remuneração contratualizada entre as partes), sendo certo que, no contexto dos factos provados, não se vislumbra que outra consequência se poderia extrair.


Ao contrário do sustentado pela R. recorrente, esta conclusão prescinde de qualquer comparação dos valores remuneratórios mínimos previstos em ambos os países, uma vez que, como flui de tudo o antes exposto sobre a matéria, o regime legal atinente aos subsídios de férias e de Natal não assenta em ponderações de índole estritamente retributiva, nem em considerações associadas ao princípio da suficiência salarial,19 uma vez que aquilo que com estes subsídios se visa não é, diretamente, a garantia de apropriados valores remuneratórios.


16. Por esta razão, é certo que o conteúdo do acordo que (neste âmbito) passou a vigorar entre as partes a partir de 01.02.2019 não colide, propriamente, com aquela regulamentação específica (relativa aos subsídios de férias e de Natal).


Todavia, é patente que tal clausulado infringe o princípio da irredutibilidade da retribuição, consagrado no art. 129º, nº 1, d), do CT, segundo o qual é proibido ao empregador diminuir o valor da retribuição, salvo nos casos previstos na lei ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.


Com efeito:


A partir do momento (01.02.2019) em que a ré passou a aplicar a legislação portuguesa às relações laborais em causa, passou a ser pago em 14 prestações mensais exatamente o mesmo salário anual que os autores vinham auferindo em 12 prestações mensais.


Deste modo, reconhecendo-se que os autores têm direito a receber subsídios de férias e de Natal, em acréscimo à remuneração acordada com a ré, no período temporal anterior a 01.02.2019, é apodítico que, se não recebessem tal acréscimo, similarmente, no período posterior, isso consubstanciaria uma redução da sua retribuição (no âmbito da esfera de proteção do princípio da irredutibilidade, o valor a considerar como retribuição anual, naquele primeiro período, é o valor que deveria ter sido pago, e não o valor que a R., em infração à lei portuguesa, efetivamente pagou).


c) – Quanto ao pedido de reenvio prejudicial.


17. Por fim, quanto às razões pelas quais improcede o pedido de reenvio prejudicial deduzido pela recorrente, que só agora se expõem para mais fácil compreensão das mesmas (cfr. supra nº 3), refira-se que, efetivamente, a aplicação ao caso em apreço do art. 8.º, do sobredito Regulamento Roma I, não suscita qualquer dúvida interpretativa (cfr. supra nº 9) que se imponha esclarecer através do reenvio, sendo certo que, como, entre outros, decidiu o Acórdão de 15.12.2022, Proc. nº 314/21.T8BRG-A.G1.S1, desta Secção Social, o reenvio pode legitimamente ser recusado pelos tribunais nacionais de um Estado-Membro, desde logo, naquelas situações em que a resposta à questão suscitada, “seja ela qual for, não possa ter influência na solução do litígio, (…) quando o TJUE já tenha respondido à questão num caso substancialmente idêntico, de modo que a questão se possa considerar clarificada, ou, também, quando não se coloque uma dúvida razoável quanto à interpretação da disposição de direito da União em causa”. 20


Ora, relativamente ao período anterior a 01.02.2019, é indiscutível que: as partes acordaram na aplicabilidade da lei irlandesa aos contratos de trabalho em causa, que é a aplicável, sem prejuízo da proteção proporcionada aos trabalhadores pelas disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria a aplicável; esta lei (que seria a aplicável) é a portuguesa; é à luz dela que se determinam aquelas regras inderrogáveis; regras que, com o conteúdo já explicitado, são as que consagram o pagamento obrigatório de subsídios de férias de Natal; as quais, conferindo aos trabalhadores um nível de proteção francamente superior ao previsto na lei irlandesa (que, pura e simplesmente, não prevê o pagamento de tais subsídios), são, assim, aplicáveis (constatação que, como já se demonstrou, não pode deixar de implicar a obrigação de a R. pagar aos AA. as correspondentes quantias, em acréscimo à remuneração contratualizada entre as partes).


Em suma, do que se trata é tão somente de saber se o direito ao pagamento de subsídio de férias e de Natal emerge de normas inderrogáveis da lei do Estado Membro onde o contrato de trabalho era executado, problemática que não suscita qualquer questão que se justifique esclarecer através do reenvio.


IV.


18. Em face do exposto, negando provimento, quer ao recurso de revista independente, quer ao recurso subordinado, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes.


As correspondentes custas são suportadas pela ré e pelos autores, respetivamente.


Lisboa, 6 de março de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos Morais











___________________________________________

1. Por manifesto lapso material, como decorre do teor da alínea b) do dispositivo do acórdão do TRP e da respetiva fundamentação, refere-se nesta alínea a) apenas “subsídios de férias”, em vez de “subsídios de férias e de Natal”.↩︎

2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

3. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎

4. In https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62020CC0152 (ECLI:EU:C:2021:600)↩︎

5. João Leal Amado/Milena Silva Rouxinol/Joana Nunes Vicente/Catarina Gomes Santos/Teresa Coelho Moreira, Direito de Trabalho – Relação Individual, Almedina, 2ª edição, pp. 1031- 1032.↩︎

6. Cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 22ª edição, p. 397.↩︎

7. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, Coimbra, 2023, p. 552↩︎

8. Nos termos do nº 1 do art. 264º, do CT, a retribuição do período de férias corresponde ao que o trabalhador receberia se estivesse em serviço efetivo (a trabalhar “normalmente”), sendo a parte variável calculada segundo o art. 261º, nº 3 (cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, ibidem, p. 398).↩︎

9. Na expressão de Milena Silva Rouxinol, in João Leal Amado/ Milena Silva Rouxinol/Joana Nunes Vicente/Catarina Gomes Santos/Teresa Coelho Moreira, Direito de Trabalho – Relação Individual, p. 967↩︎

10. Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, I, Coimbra Editora, 2007, p. 707.↩︎

11. A noção de retribuição no regime do contrato de trabalho: uma revisão da matéria, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, I, Universidade Católica Editora, 2015, p. 310.↩︎

12. Ibidem, p. 317.↩︎

13. Questões Laborais, Ano III, 1996, nº 8, p. 214.↩︎

14. Acórdão de 16.03.2006, processos apensos C-131/04 e C-257/04. Sobre este aresto, cfr. Milena Silva Rouxinol, loc. cit., p. 975, e em Nótula sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça (da União Europeia) em matéria de retribuição do período de férias, in Estudos de Direito do Trabalho, Parte II, Nova Causa – Edições Jurídicas, 2017, pp. 310 – 311, e Pedro Madeira de Brito, A Retribuição durante as férias à luz do Direito Europeu e Internacional: uma perspetiva jurisprudencial, in Tempo de trabalho e tempos de não trabalho, APODIT, AAFDL, Lisboa, 2018, pp. 315 e 316.↩︎

15. Revista de Direito e Estudos Sociais, 1986, Ano I, 2ª Série, nº 1, p. 88.↩︎

16. Cfr. ainda António Nunes de Carvalho, Notas sobre o regime da retribuição no Código do Trabalho, in RDES, Ano LIV, 2010, nº 1 – 4, p. 91.↩︎

17. Alguns aspetos da retribuição: II - Os subsídios anuais: subsídios de férias de Natal e de balanço, in RDES, Ano LIV, 2013, nº 4, p. 64.↩︎

18. Estando em causa uma situação muito semelhante, anterior a 01.02.2019, esta questão foi apreciada pelo já citado Acórdão de 07.07.2023 desta Secção Social (Proc. nº 158/20.2T8MTS.P1.S1), do qual se destaca o seguinte passo:

«(…)

As partes escolheram a lei irlandesa para regular a relação contratual entre ambas estabelecida.

(…) [A] lei irlandesa não prevê o pagamento de subsídios de férias e de Natal.

Mas como acertadamente se refere no Ac. da Rel. de Lisboa de 15/09/2021, proc. 2191/19.8T8PDL.L1, ao que sabemos não publicado, apesar do art. 8º, nº1, 1ª parte, do referido Regulamento (…) prever, como regra geral, a possibilidade de escolha pelas partes da lei aplicável (in casu, da lei irlandesa), dispõe também que “Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do presente artigo”. Concluindo tal aresto, mais à frente, que “a Lei Irlandesa (...) priva o aqui trabalhador da proteção que lhe é conferida pela Lei Portuguesa por disposições não derrogáveis, no que concerne aos subsídios de férias e de Natal”.

As disposições do Código do Trabalho que preveem os subsídios de férias e de Natal são imperativas e não podem ser derrogadas por acordo das partes, constituindo os mesmos prestações obrigatórias - cfr. o artigo 3.°, n.° 4 do Código do Trabalho.

Este STJ tem entendido, de forma pacífica, que é obrigatório o pagamento a trabalhadores cujo contrato de trabalho está a ser executado em Portugal de subsídio de férias e de Natal. Se a base de afetação do trabalhador se situa em território português, se o acordo das partes quanto à lei aplicável ao contrato de trabalho afastou a lei portuguesa, que de outro modo seria aplicável, à luz do artigo 8.º n.º 1 do Regulamento Roma I (Regulamento CE n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável ás obrigações contratuais), tal não pode lograr o resultado de afastar as normas inderrogáveis da lei portuguesa, mormente as que respeitam à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal- cfr. acórdãos 27-10-2021, proc. n. º 19733/19.1T8LSB.L1.S2, de 22-02-2022, proc. n. º 2191/19.8T8PDL.L1.S2, de 7/9/2022, proc. 1644/19.2T8TVD.L1.S2, e de 29-11-2022, proc. n. º 2440/19.2T8BRR.L1.S2.

Daí a conclusão retirada (…) de que são normas inderrogáveis da lei portuguesa, mormente para efeitos de aplicação do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento Roma I, as que respeitam à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal.

Dada tal obrigatoriedade, estas prestações são sempre devidas, independentemente do valor anual fixado da retribuição do trabalhador, não sendo legítimo fazer qualquer exercício de comparação como pretende a Recorrente.

Não está em causa a natureza jurídica dos subsídios de férias e de Natal, mas outrossim a da sua obrigatoriedade ou inderrogabilidade, que inquestionavelmente existe.

Como se afirma no acórdão recorrido, estabelecendo a lei (leia-se Código do Trabalho) o direito a subsídio de férias (art.º 264º do Código do Trabalho) e o direito a um subsídio de Natal (art.º 263º do Código do Trabalho), não podem por via contratual ser eliminados ou reduzidos esses direitos reconhecidos ao trabalhador pelo legislador.

E utilizando as palavras da recorrida, a tónica deve ser colocada na obrigatoriedade de pagamento de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal, constante da lei nacional.

Não se pode comparar o incomparável, sendo que, mesmo que assim não acontecesse, a comparação pretendida pela Recorrente sempre esbarraria com um obstáculo de peso, já que carecem os autos de elementos que permitam concluir que o regime aplicado protege globalmente um valor superior de remuneração, “sendo inegável que lei irlandesa escolhida pelas Partes confere um nível de proteção superior nesta matéria”, segundo as palavras da Recorrente.

É que, como acertadamente refere a Recorrida, o vencimento pago a esta pode parecer muito elevado, face ao salário mínimo português, mas não nos podemos esquecer que o mesmo foi calculado para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS e trabalho prestado ao domingo e aos feriados.

(…)»↩︎

19. Sobre este princípio, cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, loc. cit., pp. 623 - 624↩︎

20. Invocando-se, nomeadamente, no mesmo aresto:

“O n.º 10 do Acórdão proferido a 29 de fevereiro de 1984, C-77/93, Srl Cilfit and Others and Lanificio de Gavardo SpA v. Ministerio della Sanità; no mesmo sentido recentemente cfr. n.º 34 do Acórdão proferido a 6 de outubro de 2021, C-561/19, Consorzio Italian Management, Catania Multiservizi SpA contra Rete Ferroviaria Italiana SpA”.

E ainda:

«N.º 36 do Acórdão Consorzio Italian Management: «a força da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.º, TFUE pode privar de causa a obrigação prevista no artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE e esvaziá-la assim de conteúdo, designadamente quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a outra questão suscitada em processo análogo e já decidida a título prejudicial, ou, a fortiori, no âmbito do mesmo processo nacional, ou quando uma jurisprudência assente do Tribunal de Justiça resolve a questão de direito em causa, seja qual for a natureza dos processos que deram lugar a essa jurisprudência, mesmo não havendo uma estrita identidade das questões controvertidas.» Cfr., igualmente, o n.º 33 do mesmo Acórdão: “Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno só pode ser isento desta obrigação quando tenha constatado que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta interpretação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida razoável”».↩︎