Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2/23.9GBTMR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ARMA DE FOGO
AMEAÇA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :

I – Considerando as molduras penais abstratas de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão e 30 (trinta dias) dias a 2 (dois) anos de prisão, correspondentes, respetivamente aos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 72º, 73º, 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea j), todos do CP, agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3, do RJAM), de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 2º, n.º 1, alíneas p), i) e x), ambos RJAM, e de ameaça, p.e p. pelos artigos 153º e 155º, n.º 1, al. a), CP.


II - As penas parcelares de, respetivamente, 7 (sete) anos e 6 (seis) meses, 2 (dois) anos e 3 (três) meses e 7 (sete) meses de prisão em que o arguido foi condenado pela prática daqueles crimes, fixadas com observância das operações, finalidades e critérios legalmente estabelecidos e em medida condizente com a bitola habitual do STJ para situações similares, mostram-se adequadas, necessárias e justas, em função das elevadas necessidades de prevenção que neste caso se verificam, da prevenção geral em particular, sem ultrapassar a medida da culpa.


III – Mantendo-se, assim, sem alteração, em conformidade com a jurisprudência uniforme do STJ no sentido da abstenção de princípio do tribunal de recurso na definição do quantum concreto das penas fixadas em tais circunstâncias, por não se verificar qualquer desvio daqueles critérios e parâmetros de que resulte uma situação de injustiça das penas, por desproporcionalidade ou desnecessidade.


IV – Porém, quanto à pena única de 9 (nove) anos de prisão em que o arguido foi condenado, numa moldura penal abstrata de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses a 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão, considerando o conjunto dos factos, analisados na sua unidade relacional e por referência à personalidade do arguido, neles projetada e refletida, se inscreve, sem margem para dúvidas, numa atuação episódica ou (pluri)ocasional, justifica-se um ajustamento redutor, fixando-a em 8 (oito) anos, por se mostrar mais justa, proporcional e bastante para acautelar as finalidades de prevenção geral e especial que no caso em apreço se fazem sentir, em linha, de resto, com a referida bitola do STJ para casos semelhantes.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2/23.9GBTMR.S1.


(Recurso Per Saltum)


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça


*


I. Relatório


1. Por acórdão, de 23.11.2023, do Juízo Central Criminal de Santarém (JCCSTR) – J 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, foi o arguido AA, nascido em ........1975, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:


«(…) 9. DECISÃO


Nestes termos e pelo exposto decide-se:


(…)


2. CONDENAR AA pela prática de


a) um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea j), todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;


b) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) por referência aos artigos 2º, nº 1, alíneas p) i) e x), ambos Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.


c) um crime de ameaça, previsto e punido pelos artigos 153º e 155º, nº 1, alínea a) Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão


3. EM CÚMULO das penas parcelares referidas em 2. AA na pena única de 9 (nove) anos de prisão.


(…)».


2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 21.12.2023, recurso para o Tribunal da Relação, apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):


«EM CONCLUSÃO:





Atenta a factualidade considerada, foi violado o disposto no artigo 71º do Código Penal, abstendo-se o Tribunal a quo de tecer considerações que fundamentassem a sua decisão, traduzindo-se a pena aplicada ao arguido ora recorrente, numa pena demasiado severa e excessiva.





No caso concreto, nem a culpa do arguido, nem as exigências de prevenção, quer geral, quer especial, atenta a factualidade provada, indicam a necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva de nove anos (em cúmulo).





Considerando os factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática do crime, a ausência de quaisquer alusões ou considerações quer aos sentimentos manifestados no seu cometimento e os fins ou motivos que o determinaram, quer sobre a conduta posterior à prática dos factos, quer sobre a personalidade do agente, a sua integração social, as suas condições pessoais, nomeadamente familiares, deverão pender a favor do arguido, seja por aplicação do princípio geral "in dubio pro reo", seja pela falta de fundamentos para penalizar o arguido de forma tão severa.





Pelo Relatório Social de fls. Relata que o arguido tem apoio familiar (das irmãs), tem boa índole e uma postura colaborante.





Tal como não foi devidamente fundamentada, na perspetiva da defesa, a culpa do arguido, também foram assim descuradas, na determinação das exigências de prevenção, as exigências de prevenção especial.





O douto acórdão deverá, pois, ser revogado na parte em que decretou a condenação do arguido na pena de prisão efetiva de nove anos de prisão efetiva (em cúmulo).





A não ser assim, deverá aquelas penas serem reduzidas aos limites indicados.


Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o douto Acórdão ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta,


assim se fazendo JUSTIÇA ».


3. O recurso foi admitido por despacho do Juiz titular, de 10.01.2024, para subir ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.


4. O Ministério Público junto do tribunal da condenação, respondeu, em 24.01.2024, ao recurso do arguido, concluindo (transcrição):


«III – EM CONCLUSÃO


1ª – O arguido veio interpor recurso do Acórdão proferido nos autos, que o condenou nos termos acima indicados, pois, no seu entender considera que as penas parcelares e a pena única que lhe foi aplicada não se mostra devidamente fundamentada e, por isso, a decisão deve ser revogada, ou a não se entender assim, as penas devem ser reduzidas para os limites que indica, pois, as mesmas mostram-se demasiado severas.


2ª – Também entende que a decisão recorrida violou o estabelece o art.º 71º, do Código Penal, pois não foram tecidas considerações que fundamentem a pena.


3ª - Entende ainda que o Tribunal a quo não terá apreciado e valorado corretamente a prova, colocando, de certa forma, em crise a convicção do julgador.


4ª – Entendemos, contudo, que em qualquer das matérias em causa não assiste razão ao recorrente.


5ª - Na determinação da medida concreta da pena, é de atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, sendo certo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal.


6ª - As finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo40º, n.º 1, do Código Penal.


7ª – A medida da pena há de ser dada tendo por base a necessidade de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias (prevenção geral positiva ou de integração), sem, contudo, poder ultrapassar a medida da culpa, atuando depois e em ultima instância a prevenção especial de socialização como forma de determinar a medida da pena.


8ª - Por isso, na determinação da medida da pena, deverá atender-se às exigências de prevenção que satisfaçam as necessidades comunitárias de se punir o crime e, bem assim, de se realizarem as finalidades das penas.


9ª – E será dentro da moldura de prevenção geral de integração que a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização (neste sentido cf. Acórdão do STJ de 20-09-2006, - processo n.º 03P4425, acessível em www.dgsi.pt).


10ª - Nas situações de punição de concurso de crimes, na medida da respetiva pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.º 77º, n.º 1, do CP).


11ª-Assim, o nosso sistema consagra um regime de pena conjunta, referida a cada crime imputado ao agente, e rejeita um regime de pena unitária, referida à imagem global dos crimes imputados e da personalidade do agente (v. Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário ao Código Penal – 5ª edição atualizada, p. 420).


12ª – É, pois, à consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente que o art.º 77º, n.º 1, do CP, atende.


13ª - Por isso, o n.º 2, do citado art.º 77º, distingue as penas concretas dos crimes em concurso, procedendo-se à punição do concurso de crimes com uma pena conjunta que é determinada no âmbito de uma moldura cujo limite máximo resulta da soma das penas concretas aplicadas a cada crime imputado, mas cuja medida concreta é decidida em função da imagem global dos crimes e da personalidade do agente (v. Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário ao Código Penal – 5ª edição atualizada, p. 420).


14ª-Ora, no caso dos autos, se bem lermos o segmento da decisão recorrida respeitante à Escolha e Determinação da Medida Concreta da Pena, constata-se que foi dado integral cumprimento ao disposto nos artigos 40º, 71º e 77º, do Código Penal.


15ª – Por sua vez, também entendemos que a decisão recorrida observou o disposto nos artigos 97º, n.º 5, e 374º, n.º 2, do CPP, 205º, n.º 1, 32º, n.º 1 e 202º, n.º 1, da CRP.


16ª - Assim, ao contrário do sustentado pelo arguido, as penas parcelares e a pena única, resultante do cúmulo jurídico efetuado, aplicadas ao mesmo, mostram-se devidamente fundamentadas.


17ª - Para além disso, consideramos que a pena única aplica ao arguido se mostra justa e em conformidade com as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto.


18ª– No que respeita ao facto de o arguido, sem ser muito especifico, alegar que o Tribunal a quo não terá apreciado e valorado corretamente a prova, colocando, de certa forma, em crise a convicção do julgador, dir-se-á que o juiz tem que fazer a valoração da prova de acordo com a sua própria convicção e não segundo a convicção dos arguidos, do Ministério Público ou dos assistentes.


19ª - Deve, contudo, valorar a prova de forma racional e crítica e não de forma subjetiva ou arbitrária.


20ª - Por isso, para que a valoração não seja meramente subjetiva, o julgador deve valorar a prova com recurso às regras da experiência, que são aquelas adquiridas pelo julgador e pela generalidade das pessoas ao longo das suas vidas.


21ª- Para além disso, tem que valorar cada prova de forma crítica e racional em si mesma e também no confronto com as demais provas, fundamentando assim a sua decisão, conforme aliás resulta do estabelecido nos artigos 97º, n.º 5, e 374º, n.º 2, do CPP, e 205º, n.º 1, 32º, n.º 1 e 202º, n.º 1, da CRP.


22ª – Atento ao teor do segmento da decisão recorrida respeitante à motivação da matéria de facto, constatamos que assim foi, pois, a prova foi valorada de forma crítica e racional e com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art.º 127º, do CPP.


23ª - No processo de valoração da prova efetuada de acordo com a convicção do julgador, não detetamos qualquer elemento que nos pudesse levar a concluir que essa mesma valoração não assentou em critérios racionais e críticos. 24ª – É de notar ainda que a motivação da matéria de facto mostra-se de tal forma assente em critérios racionais e lógicos, que é possível entender completamente todo o percurso efetuado pelo julgador para ter considerados provados os factos que veio a dar como provados e não outros.


24ª – É de notar ainda que a motivação da matéria de facto mostra-se de tal forma assente em critérios racionais e lógicos, que é possível entender completamente todo o percurso efetuado pelo julgador para ter considerados provados os factos que veio a dar como provados e não outros.


25ª-Donde, é de concluir que o Recorrente o que pretende é valorar a prova em causa de acordo com a sua própria convicção, para assim fundamentar a não aplicação de uma pena ou, sendo aplicada, a sua redução nos termos subsidiariamente sustentados.


*


Por tudo o que vai exposto, consideramos que a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente.


Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.


Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA. (…)».


5. O Ministério Público no STJ emitiu, em 1 de março de 2024, fundamentado parecer, que se transcreve parcialmente:


«(…) E, na verdade, entendemos igualmente que não se justifica a alteração das penas parcelares e única impostas.


Como é sabido, quanto ao controle da fixação concreta da pena a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça tem de ser necessariamente “parcimoniosa”, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.(Neste sentido cfr., entre muitos outros – alguns ali referenciados – o acórdão deste STJ de 14.05.2009, no processo 19/08.3PSPRT – Relator – Raúl Borges).


No mesmo sentido ainda, o recentíssimo (da data de ontem, tendo em conta a do presente parecer) acórdão deste STJ proferido no processo 122/20.1PAVPV.L1.S1 – Relator – Jorge dos Reis Bravo:


«Na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida.


Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida – designadamente, neste caso, a do tribunal de primeira instância –, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da(s) pena(s) aplicada(s).


(…)


O escrutínio da adequação ou correção da medida concreta da pena em sede de recurso, bem como a sua alteração, impor-se-á, apenas, em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica uma intervenção do tribunal de recurso que altere a escolha e a determinação da medida concreta da pena.».


Ora, se se forem ver os fundamentos utilizados na decisão recorrida, verifica-se que os mesmos tiveram na sua base a matéria de facto dada como provada, a gravidade daquela factualidade e as fortes necessidades de prevenção geral que se fazem sentido num tempo em que a vida humana parece estar cada vez mais desvalorizada e as armas são facilmente empregadas na prática de atos constitutivos das ações desvaliosas que atentam, precisamente, contra aquela, e a necessidade de se inverter essas tendência e facilidade, bem como todos os elementos referentes à personalidade do arguido traduzida na prática da factualidade em causa, à sua culpa e comportamento anterior e posterior à prática dos crimes, onde avultam as circunstâncias de, embora primário e estar inserido socialmente, não ter assumido a prática dos factos, destes não mostrando arrependimento ou valoração crítica.


A fundamentação da escolha das penas concretas mostra-se efetuada de forma adequada, compreensível, em obediência às exigências legais relativas à matéria, nada tendo sido esquecido em favor e desfavor do arguido.


Na verdade, não pode deixar de se notar, as penas parcelares tiverem em conta todos os aspetos positivos referidos no recurso, pois que, se assim não fosse, bem mais gravosas teriam: Basta ver que se situaram bem próximo aos limites mínimos (numa pena que podia ascender a mais de 22 anos, com o mínimo de mais de 3 anos, o coletivo fixou-a em 7 anos e 6 meses; numa outra, que podia chegar aos 5 anos, com o mínimo de 1 ano, foi aplicada a de 2 anos e 3 meses; e, finalmente, numa pena que podia ascender aos 2 anos, foi aplicada a pena de 7 meses de prisão).


Assim sendo, não se verifica situação que mereça correção por parte deste Supremo Tribunal quanto às penas parcelares.


Igualmente quanto à pena única, numa moldura que se situa entre o máximo de 10 anos e 4 meses de prisão (somatório das penas parcelares em concurso) e o mínimo de 7 anos e 6 meses (correspondente à pena parcelar mais grave aplicada), a única achada – de 9 anos – mostra-se igualmente adequada, atendendo, como referiu o coletivo, a uma atitude de desconsideração pelos bens jurídicos violados, motivada por deficiente interiorização da importância dos mesmos por parte do condenado, que demonstrou possuir uma personalidade impulsiva, vingativa e auto-centrada.


- Termos em que é parecer do Ministério Público de que a decisão recorrida deverá ser mantida integralmente, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.».


6. Observado o contraditório, o recorrente não respondeu ao parecer do Ministério Público.


7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso


1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:


a) à severidade e excessividade da medida da(s) pena(s) de prisão, parcelares e única, aplicadas em violação do artigo 71º do Código Penal (CP).


III. Fundamentação


1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor o acórdão recorrido:


«(…)


2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


2.1 FACTOS PROVADOS


Discutida a causa e produzida a prova, com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:


1 O arguido manteve uma relação de cariz amoroso com BB, companheira de CC, durante lapso temporal não concretamente apurado mas situado entre Agosto de 2021 e Fevereiro de 2022, relacionamento que terminou, por iniciativa de BB, quando este último saiu da prisão.


2 Em data que, em concreto não foi possível apurar, mas situada nos dias que antecederam o Natal de 2022, o arguido adquiriu, pelo valor de 150€, uma arma de fogo de cano curto, semi-automática, do tipo pistola, de cor prateada e com o punho de cor preta, de calibre 6,35mm, com as inscrições gravadas a frio na lateral esquerda da corrediça, “TANFOGLIO GIUSEPPE S.R.L. GARDONE V.T. ITALY”, bem como “MOD.GT28 CAL 6.35 A SALVA”, sem número de série visível, e ainda duas munições.


3 Tal arma de fogo resulta da transformação artesanal das características originais da arma, calibre nominal 8mm, destinada apenas a munições sem projéctil nomeadamente de alarme, pela adaptação de um cano, rudimentarmente estriado, e com a câmara redimensionada ao calibre referido em 2 e 3., em bom estado de funcionamento.


4 Desde essa aquisição e pelo menos até ao dia 01.01.2023, o arguido, foi portador e conservou consigo a aludida arma, bem como as respectivas munições.


5 O arguido não possuía qualquer título legal que o habilitasse a adquirir, deter, usar, possuir, transportar e manusear qualquer arma de fogo ou munições.


6 No dia 01.01.2023, entre as 10h30 e as 11h00, encontrando-se o arguido no interior das instalações da A......... ........ . .......... .. ....., sita em ..., ao aperceber-se que CC, ali havia chegado, dirigiu-se ao exterior daquele estabelecimento, mais propriamente à zona do parque de estacionamento e, do interior do seu veículo automóvel da marca Fiat, modelo 185 Marea, com a matrícula ..-..-OU que ali se encontrava estacionada, retirou a arma descrita em 2 e 3., e colocou-a no bolso do casaco do tipo fato de treino, que trajava.


7 De seguida, na posse da referida arma, dirigiu-se novamente à esplanada da mencionada Associação.


8 Quando CC saiu do interior da Associação, o arguido encaminhou-se na sua direcção, fitou-o, ao que aquele lhe disse tás a olhar? O que é que queres?


9 Acto contínuo, encontrando-se a uma distância de cerca de 1 metro de CC, o arguido empunhou a aludida arma, apontou-a em direcção à barriga daquele e, de imediato, premiu o gatilho da arma efectuando um disparo na direcção do ofendido, atingindo-o na zona do hemotórax direito, o qual permaneceu de pé.


10 Seguidamente, ainda com a arma na mão disse da próxima vez é na cabeça


11 Após, caminhou cerca de 66,50 metros com o intuito de esconder a arma, o que fez, na cavidade de um tronco de uma oliveira localizado junto dos contentores do lixo, sitos na localidade da ....


12 Ainda apeado, fez o caminho de regresso e colocou-se em fuga ao volante do veículo da marca Fiat, modelo 185 Marea, com a matrícula ..-..-OU, de que é proprietário


13 Com a conduta descrita o arguido causou directa e necessariamente a CC ferimento no hemitórax direito, alterações contusionais parenquimatosas bibasais, com alojamento de projétil em T10, com esquírolas ósseas em relação com fratura do muro anterior e uma cicatriz rosada com vestígios de pontos, linear, oblíqua ínfero-anteriormente, no terço superior da face lateral do hemitórax direito, medindo 2 cm e cicatriz rosada, no terço superior da face lateral do hemitórax direito, inferiormente à cicatriz atrás descrita, medindo 0,2 cm de diâmetro, lesões que lhe determinaram um período 60 dias de doença com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.


14 Para tratamento das lesões referidas, CC foi medicamente assistido no Centro Hospitalar ..., onde esteve internado até dia 03.01.2023, cuidados médicos que tiveram um custo de € 1.290, 26


15 Ao adquirir a arma dias antes da prática dos factos, transportando-a consigo, designadamente no carro onde se deslocou à A......... ........ . .......... .. ....., com o intuito de a utilizar, sabendo que a vítima era frequentadora daquele estabelecimento, o arguido agiu de forma reflectida, ciente de que poderia encontrar CC naquele local, persistindo no seu propósito de lhe tirar a vida.


16 Ao dirigir-se ao veículo automóvel com a matrícula ..-..-OU após constatar que CC se encontrava naquele local, com o propósito concretizado de dali retirar a arma descrita em 2., que bem sabia ali estar guardada, levando-a consigo e dirigindo-se de volta às instalações da A......... ........ . .......... .. ....., onde bem sabia que se encontrava CC, agiu de forma lucida, fria e reflectida, persistindo assim no propósito de utilizar a aludida pistola, o que fez.


17 Bem sabia que para deter a mencionada arma de fogo e munições, como efectivamente detinha, necessitava de ser titular de autorização emitida pela autoridade competente, a Polícia de Segurança Pública, e não se encontrando munido da aludida autorização especial, o que lhe foi indiferente, não se absteve, porém, de deter tais bens.


18 Bem conhecia a capacidade letal da pistola que trazia consigo e, ao empunha-la direccionando-a ao corpo de CC, disparando-a uma distância de cerca de um metro, atingindo-o com o projétil deflagrado na zona do hemotórax direito, bem sabia que tal acção era idónea a atingir órgãos vitais, visando com tal comportamento tirar-lhe a vida, o que só não aconteceu por mero acaso, alheio à sua vontade.


19 Com as palavras por si proferidas conforme descrito em 10., acompanhadas do circunstancialismo acima enunciado, o arguido quis provocar em CC medo e inquietação que concretizasse o mal futuro anunciado contra a sua vida.


20 Estava ciente que as palavras que usou, o tom sério com que as proferiu no seguimento das acções que concretizou e que atrás se descreveram, eram próprias a condicionar o comportamento do ofendido, e que as mesmas eram adequadas a causar-lhe medo e desassossego, limitando-o na sua liberdade pessoal fazendo-o temer pela sua vida, o que conseguiu.


21 Bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, não se abstendo, porém, de assim agir.


22 O arguido não tem antecedentes criminais.


23 Os factos atrás descritos tiveram impacto na comunidade onde o arguido estava inserido já que este e o ofendido eram reputados de amigos.


24 À data dos factos residia sozinho em casa propriedade dos pais.


25 Fazia biscates na área da construção civil, auferindo cerca de € 1.000 mensais.


26 Tem hábitos regulares de trabalho.


27 Está divorciado há 11 anos, relação que durou 15 anos, e da qual tem uma filha com 27 anos de idade, com a qual não tem contactos.


28 Revela rigidez de pensamento e dificuldade de compreensão da realidade que o rodeia.


29 O seu trajecto vivencial aponta para fragilidades emocionais e défices de algumas competências designadamente ao nível do auto controlo, com interferência na adaptabilidade pessoal e social.


30 Em relação aos presentes autos, apesar de não apresentar distanciamento, e de reconhecer a gravidade de factos idênticos e o provável impacto em vítimas, tende a minimizar a responsabilização no caso da existência de problemas relacionais entre arguidos e vítimas.


31 Conta com o apoio das irmãs e de amigos.


32 Tem vindo a adaptar-se gradualmente à vivência prisional.


33 Tem ocupado o tempo com actividade escolar, através da frequência de Curso de Educação e Formação de Adultos B2, com avaliação positiva.


34 Formalizou pedido para iniciar actividade profissional.


35 Continua a não reconhecer a necessidade de mudança de algumas condutas.


36 É reputado de bom amigo, disponível e afável.


2.2 FACTOS NÃO PROVADOS


Sem prejuízo da factualidade que resultou provada, com relevância para a decisão, não resultou demonstrado que:


A. O relacionamento do arguido com BB terminou há 3 anos.


B. Devido a tal relacionamento, CC começou a perseguir e a ameaçar o arguido, esperando pelo mesmo nas obras onde este trabalhava e fazendo com que se despedisse ou fosse despedido.


C. CC agrediu fisicamente o arguido em mais do que uma ocasião.


D. Para evitar encontrar-se com o ofendido nos cafés mais próximos de sua casa, o arguido frequentava o café da A......... ........ . .......... .. ....., situado a 6 km da sua habitação.


E. Por recear pela sua vida, e para protecção pessoal, o arguido começou a andar com a arma descrita em 2 e 3, a qual havia adquirido há 12 anos atrás.


F. Na data referida em 6., o ofendido estava noutro café, viu a carrinha do arguido passar e foi atrás dele.


G. Nessa data, após a chegada de CC e BB, o arguido não se ausentou do local apenas porque tinha o seu telemóvel a carregar.


H. Naquelas circunstâncias de medo e lugar, o arguido apenas foi buscar a arma descrita em 2., por temer pela sua vida.


I. Quando saiu do interior da A......... ........ . .......... .. ....., CC dirigiu-se ao arguido e, agarrando-o pelo pescoço, disse-lhe que o matava como tinha feito com o cão, referindo-se ao seu cão que havia desaparecido.


J. O arguido efectuou o disparo com medo do ofendido e para que este o largasse.


K. Após o disparo, o arguido abandonou o local porque, ciente do que tinha feito, precisava de solicitar a ajuda de terceiros para lhe guardarem alguns pertences e para lhe tomarem conta dos seus animais.


L. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., o arguido apontava a arma à cabeça de CC.


M. No circunstancialismo descrito em 12 o arguido, aproximando-se de CC e de BB, companheira deste, que ali se encontrava, dirigiu-se-lhes dizendo que “os iria matar”.


N. Ao proferir palavras que sabia serem aptas a tal, o arguido quis causar medo e inquietação a BB, fazendo-a temer pela sua vida e que o arguido concretizasse, no futuro, o mal que lhe anunciava.


Ao demais alegado na acusação, na contestação e no pedido de indemnização civil não se responde por ser irrelevante para a decisão a proferir, matéria de direito e/ou conclusiva


(…)»


2. Avancemos para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso.


2. 1. Medida das penas, parcelares e única, de prisão aplicadas.


Numa aplicação rigorosamente formalista, poderia concluir-se que a única questão suscitada pelo recorrente consistia na severidade e excesso da pena única de 9 (nove) anos de prisão que lhe foi aplicada, uma vez que apenas a essa se refere expressamente nas conclusões.


Porém, numa interpretação mais conforme com a pretensão do recorrente manifestada na motivação e correspondentes conclusões, admite-se e aceita-se que o objeto do recurso inclua também a medida das penas parcelares, tal como, de resto, o Ministério Público considerou na resposta e parecer acima referenciados.


Entendimento que, na verdade, é o mais condizente com o teor das conclusões 6ª, em que, a culminar a discordância com a pena única manifestada nas anteriores conclusões, pede a revogação da decisão, e 7ª, na qual, subsidiariamente e na improcedência desse anterior pedido, pede a sua diminuição e, necessariamente, as das penas parcelares de cujo cúmulo jurídico aquela resultou, para as medidas concretas que indicou na parte final da sua motivação, do seguinte teor: ”Ao condenar o arguido em sete anos e 6 meses de prisão pela pratica de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, em 2 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida e 7 meses de prisão pela prática de um crime de ameaça, 9 anos de prisão, em cumulo pela prática dos crimes de que vinha acusado, o Tribunal a quo violou, por conseguinte, o disposto no artigo 71º do Código Penal, traduzindo-se a pena aplicada numa pena demasiado severa, atenta a factualidade considerada, abstendo-se de tecer considerações que fundamentem a sua decisão.


Entende-se, pois, que, no caso concreto, nem a culpa do agente, nem as exigências de prevenção - atenta a factualidade provada - indicam a necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva de nove anos, sendo suficiente as penas de cinco anos de prisão pela pratica de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, em 1 ano de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida e 6 meses de prisão pela prática de um crime de ameaça”.


O objeto do recurso abrangerá, assim, a medida das penas parcelares e única de prisão em que o recorrente foi condenado, sem qualquer discussão sobre a respetiva espécie, que, de facto, o recorrente não questiona.


Tanto mais quanto é certo que o objeto do recurso assim definido se enquadra na jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 5/2017, publicado no DR. n.º 120/2017, Série I, de 23.06.2017, a pp.3170 – 3187, segundo a qual «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas».


Apreciando.


O recorrente discorda da medida das penas parcelares e única que lhe foram aplicadas, considerando-as severas e excessivas à luz dos factos provados, da sua culpa e das necessidades de prevenção, em conformidade com uma adequada interpretação aplicativa do artigo 71º do CP, diferente da que entende erradamente adotada pelo tribunal a quo, de que decorreria a fixação das seguintes penas de prisão, todas inferiores às fixadas no acórdão recorrido, conforme consignou na motivação do recurso para as penas parcelares, mas sem correspondência expressa nas respetivas conclusões, incluindo a pena única2, antes por mera remissão para a motivação constante da conclusão 7ª:


- 5 (cinco) anos de prisão pela pratica de 1 (um) crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 72º, 73º, 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea j), todos do CP, agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, [por contraposição à pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão em que foi condenado, numa moldura penal abstrata de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, resultante da consideração da moldura do tipo legal qualificado de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos de prisão, agravada primeiramente nos termos do artigo 86º, n.º 3, do RJAM, para a de 16 (dezasseis) a 25 (anos) de prisão, limite máximo inultrapassável por força do artigo 41º, n.ºs 2 e 3, do CP, sobre esta incidindo depois a atenuação especial decorrente da tentativa, fixando-a naquela primeira medida, nos termos do artigo 73, n.º 1, als. a) e b), do CP]3;


- 1 (um) ano de prisão pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 2º, n.º 1, alíneas p), i) e x), ambos RJAM, [por contraposição à pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão em que foi condenado, numa moldura penal abstrata de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão ou multa até 600 (seiscentos) dias];


- 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de ameaça, p.e p. pelos artigos 153º e 155º, n.º 1, al. a), CP, [por contraposição à pena de 7 (sete) meses de prisão em que foi condenado, numa moldura penal abstrata de 30 (trinta dias) dias a 2 (dois) anos de prisão ou multa até 240 dias];


- E, pese embora, não tenha indicado qualquer medida concreta para a pena única resultante do cúmulo jurídico a efetuar em função das propostas penas parcelares, forçoso é concluir que, atento o disposto no artigo 77º, n.º 2, do CP, ela teria que se conter na correspondente moldura abstrata situada entre o mínimo de 5 (cinco) anos da pena mais grave relativa ao crime de homicídio tentado e o máximo de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, resultante da soma das três penas parcelares englobadas no cúmulo [por contraposição à pena única de 9 (nove) anos de prisão em que foi condenado, numa moldura penal abstrata de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses a 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão].


*


Como resulta inquestionável da motivação e conclusões do recurso, o recorrente não discute a matéria de facto assente, o enquadramento jurídico-penal deles efetuado, nem a espécie das penas por que foi condenado no acórdão recorrido, pugnando apenas pela redução da respetiva medida nos termos antes expostos, pelo que, nada justificando a intervenção oficiosa do STJ nesse âmbito, porque devidamente fundamentada naquela decisão a opção pela pena de prisão em detrimento da de multa, alternativamente aplicável aos crimes de detenção de arma proibida e de ameaça, a indicada moldura abstrata ou legal dessa pena de multa não releva para este efeito.


Para sustentar tal entendimento e pretensão, convoca as circunstâncias da ausência de prova quanto à sua motivação e sentimentos manifestados na prática dos factos e de antecedentes criminais, ter hábitos de trabalho e apoio familiar, aliado ao que considera insuficiente fundamentação da sua culpa e deficiente ponderação das exigências de prevenção geral e especial, que considera suficientes para atenuar a sua culpa e as referidas necessidades de prevenção e justificar a pretendida redução da medida das penas.


Vejamos se lhe assiste razão.


Na esteira de Figueiredo Dias4, escreveu Adelino Robalo Cordeiro, in “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, Centro de Estudos Judiciários , Lisboa 1998, a pp. 30 a 54:


«a determinação da pena é susceptível de ser analisada em três perspectivas, correspondentes a outras tantas fases ou operações em que se desdobra a aplicação judicial de uma pena: a determinação da respetiva medida ou moldura legal (também chamada pena abstracta), da sua medida judicial ou individualizada (pena concreta) e da espécie de pena a aplicar (escolha da pena)».


Acrescentando relativamente à determinação da pena concreta, que, como dito, é o que aqui está em causa.


«Em síntese e à guisa de conclusão:


A culpa posiciona-se como pressuposto e limite (não fim) da pena, cuja medida (e forma de execução ou cumprimento) há-de ser fixada em função das exigências de prevenção, concebidas como finalidades da punição, e a necessidade da pena (para realizar o fim que visa) assume-se como fundamento da sua legitimidade, a sobrepor-se à concepção retributiva da pena (arts. 40º, n.ºs 1 e 2 e 71º, n.º 1; v., ainda, embora diretamente relativos à aplicação das penas de substituição e, portanto, à escolha da pena, arts. 45º, n.º 1, 48º, n.º 1, 50º, n.º 1, 58º, n.º 1, 59º, n.º 6, 60º, n.º 2, e 70º).


A quantificação da culpa e bem assim da intensidade ou grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da ponderação das circunstâncias gerais presentes no caso concreto (…. circunstâncias que … depuserem a favor do agente ou contra ele … - art.71º, n.º 2).


Estas circunstâncias – sob pena de sair maltratada a proibição da dupla valoração, também aqui relevante (… circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime … -art. 71º, n.º 2) – não hão-de ter sido já levadas em conta na determinação da medida abstrata da pena, seja através da sua contribuição para a formação do tipo de crime, de que seriam então elementos típicos (….), seja porque já antes funcionaram como circunstâncias modificativas estranhas ao tipo (…), e até na medida em que já utilizadas para a escolha da pena. O que não significa que algumas delas não possam ser reavaliadas, embora numa perspectiva diferente, sem ofensa do ne bis in idem (p. ex., numa visão global ou conjunta, para efeito de aplicação da pena relativamente indeterminada ou da pena única no concurso – arts. 77º, n.º 1, e 83º, n.º 1;(…).


Uma vez identificadas, com recurso aos exemplos padrão do art. 71º, n.º 2 (e até do art. 72º, n.º 2, desde que fora da previsão do seu n.º 1), as circunstâncias que relevam para a pena concreta, impõe-se classificá-las enquanto se repercutem nesta através da culpa ou da prevenção – ou mesmo por ambas as vias, já que podem ser ambivalentes (p. ex., a utilização de um instrumento de trabalho – digamos, uma foice – como arma do homicídio, se agrava a ilicitude do facto, é igualmente susceptível de suscitar, nomeadamente se tal uso se mostra frequente, uma determinada postura ou expectativa da comunidade quanto aos termos da reação penal, e ainda de traduzir uma certa atitude ou modo de ser desajustados do agente, havendo então de refletir-se na pena concreta respetivamente através da culpa e da prevenção, geral e especial».


Em suma, a determinação concreta da pena não está dependente de qualquer exercício discricionário ou “arte de julgar” do juiz, não se compadece com o recurso a critérios de índole aritmética, nem almeja uma “precisão matemática”, antes reclama a ponderação e valoração das finalidades das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP, no que às penas singulares concerne, ao que acresce, quanto à pena única ou conjunta, resultante do cúmulo jurídico das penas fixadas para os crimes em concurso, um critério peculiar estabelecido no seu artigo 77º, n.º 1, in fine, qual seja, o da consideração, “em conjunto, (d)os factos e (d)a personalidade do agente”.


Conforme, aliás, constitui jurisprudência constante do STJ e pode ver-se do seguinte trecho extraído do acórdão de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que aqui se segue de perto, «A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).


Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).


Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.


Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.


Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º 1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.


Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.


Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.


Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Processo 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.».


À luz de tais considerações, importa verificar a fundamentação do acórdão recorrido a este propósito e se dela emerge ou não alguma dúvida sobre a sua observância, devendo, em caso negativo e em princípio, o tribunal de recurso abster-se de qualquer modificação, pois, como tem sido jurisprudência constante do STJ, “Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada5.


No que aqui releva, essa fundamentação foi do seguinte teor:


«1.1 ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA


O crime de homicídio qualificado tentado, agravado nos termos do disposto no artigo 86º, nº 3 Regime Jurídico das Armas e Munições, é punido com pena de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 22 anos 2 meses e 20 dias.


Já o crime de detenção de arma proibida, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou multa até 600 dias.


Quanto ao crime de detenção de arma e ao crime de ameaça, nos termos do disposto no artigo 70º do Código Penal, sendo o mesmo punível com pena privativa e pena não privativa da liberdade, dará o Tribunal prevalência a esta ultima se considerar que ela é adequada e suficiente para prosseguir as finalidades da punição previstas no artigo 40º Código Penal: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente.


Em relação a este tipo de ilícitos, as necessidades de prevenção geral são elevadas seja pela frequência do cometimento dos mesmos, seja, quanto à arma, pela perigosidade da detenção de armas, as de fogo em especial, para a vida, integridade física e segurança das pessoas.


Embora o arguido não tenha antecedentes criminais registados, a verdade é que o seu comportamento, as palavras proferidas no contexto em que o foram, o uso que deu à arma, o contexto de tal uso e a detenção de arma absolutamente proibida, demonstram à saciedade que a pena de multa não é suficiente para acautelar as necessidades punitivas de prevenção especial, seja na sua vertente positiva seja na sua vertente negativa que, in casu, se fazem sentir.


Com efeito, o arguido demonstrou pouca ou nenhuma valoração crítica do seu comportamento, justificando-se de forma incessante, sem grande sucesso como se viu, aludindo apenas e só ao impacto que a situação teve em si desconsiderando de forma estóica e absoluta as consequências para a vitima.


A função primordial da pena consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos - prevenção geral – função essa prosseguida no quadro da moldura penal abstracta entre o mínimo, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.


Na operação de determinação da medida da pena, momento em que se realiza a Justiça na ordem dos factos e em que o próprio Direito se vem a concretizar no caso concreto, temos que partir do disposto nos artigos 40° e 71° do Código Penal.


Da sua interpretação, em conjugação aliás com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da sua liberdade, ínsitos a um Estado de Direito Democrático, a culpa assume-se como pressuposto e fundamento ético da pena, pelo que constituirá o seu limite máximo.


Saliente-se que para esta relevam apenas as consequências típicas do facto, isto é, aquelas que são ainda recondutíveis ao sentido social do tipo como um todo, dando tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime limita de forma inultrapassável a medida da pena.


O outro termo do binómio na determinação da medida concreta da pena serão as exigências de prevenção. Por conseguinte, a medida da pena há-de ser dada pela premência da protecção dos bens jurídicos face ao caso concreto, protecção esta que assume um carácter prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da vigência da norma infringida. Esta ideia de prevenção geral positiva ou prevenção de integração fornecer-nos-á uma moldura de prevenção, cujo limite mínimo é constituído pelo ponto comunitariamente suportável da medida de tutela dos bens jurídicos violados e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, dentro da qual actuará o critério da prevenção especial. Este último critério satisfaz as exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade (Cf. Figueiredo Dias, ob. cit., especialmente a págs. 238 ss; Anabela Rodrigues – “A Medida da Pena” e Acs. STJ 21/9/94, proc. n° 46290, 24/5/95, proc. n° 47386, 8/11/94, proc. n° 48318 e 21/3/90 in RPCC, 1991, 2, p. 241, com anotação de Anabela Rodrigues e ainda o Ac. Rel. C. 24/5/95 in CJ, 1995, tomo II, p. 210).


No que ao crime de homicídio tentado respeita as necessidades de prevenção geral são elevadíssimas não apenas pelo facto de estar em causa o bem jurídico supremo, a vida, mas igualmente porque, infelizmente, não raras vezes, diferendos de natureza várias têm desfechos similares aos dos presentes autos (ou ainda mais gravosos).


Quanto às necessidades de prevenção especial, se é um facto que o arguido está mais ou menos inserido e não tem antecedentes criminais, não se pode ignorar quer o comportamento concreto do mesmo e as circunstâncias em que agiu, quer a sua postura em audiência a qual demonstra à saciedade a inexistência de qualquer tipo de arrependimento ou valoração crítica da sua conduta.


Importa, ainda, ponderar que a culpa é muito intensa, o impulso criminoso que moveu o arguido revelou-se em mais do que uma conduta apta ao fim desejado, morte, sendo elevado, também, o grau de ilicitude.


O arguido não manifestou qualquer arrependimento ou valoração crítica da sua conduta.


A favor do arguido milita a sua inserção e a ausência de antecedentes criminais sendo que, esta última circunstância, não pode deixar de ter reduzido valor atenuativo porquanto o cumprimento da lei mais não é do que a conduta que se espera da generalidade dos cidadãos.


Tudo ponderado tem-se por adequada a condenação do arguido nas seguintes penas parcelares:


7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado agravado tentado, agravado nos termos do Regime Jurídico das Armas e Munições;


2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida.


7 (sete) meses de prisão pelo crime de ameaça agravada.


*


De harmonia com o disposto no artigo 77.º, n.º 1, 1.ª parte do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única.


Há, pois, lugar à efectivação de cúmulo jurídico.


Conforme dispõe o artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, a pena aplicável – ou seja, a moldura abstracta do concurso de crimes – tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, acrescentando o seu nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.


Na determinação da pena conjunta, deverá atender-se a critérios gerais e a um critério especial, que entre si se conjugam e interagem.


Na verdade, tal determinação obedece, em primeiro lugar, aos critérios gerais constantes do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, já supra expostos.


No que concerne ao critério especial alude, por seu turno, o artigo 77.º, n.º 1 in fine do Código Penal, na medida em que são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.


De harmonia com este critério, a conjugar com os demais supra referidos, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade ( ... ). De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente ( ... )“ (Cfr. J. Figueiredo Dias in ‘Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime’, Lisboa, Aequitas, ed. Notícias, 1993, pág. 214 e segs.).


Assim, no caso concreto, verifica-se que a pena prisão aplicável ao arguido, tem como limite máximo a pena de 10 anos e 4 meses de prisão (somatório das penas parcelares em concurso) e como limite mínimo a pena de 7 anos e 6 meses (correspondente à pena parcelar mais grave aplicada).


Considerando, pois, que o conjunto dos factos praticados, sendo, além do mais, expressivo de uma atitude de desconsideração pelos bens jurídicos violados, motivada, porventura, por deficiente interiorização da importância dos mesmos salientando-se, pela sua relevância, a desconsideração intensa do bem jurídico supremo, demonstrando o arguido uma personalidade impulsiva, vingativa e auto-centrada, dentro dos limites supra referidos, fixa-se a pena única em 9 (nove) anos de prisão.


(…)».


Conforme resulta do confronto entre o afirmado no trecho transcrito e o que acima se consignou quanto ao limite máximo da moldura abstrata ou legal da pena respeitante ao crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, o acórdão recorrido incorreu em manifesto erro de cálculo, pois tal limite, ao invés dos 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias ali referidos, é de 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses.


Todavia, tratando-se de um manifesto lapso que não importa modificação essencial do decidido, corrige-se o mesmo em conformidade, ao abrigo do disposto no artigo 380º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP.


No mais, a fundamentação do acórdão recorrido quanto à medida da(s) pena(s) parcelar(es) fixadas e aqui em apreço mostra-se criteriosa e respeitadora das operações a realizar e das finalidades e critérios legalmente definidos para a determinação do seu quantum.


Referenciou e valorou em favor do recorrente a sua inserção social e laboral e a ausência de antecedentes criminais, embora não lhes tenha concedido o especial relevo por ele reclamado, na medida em que essa inserção já se verificava antes da prática dos factos criminosos por que foi condenado e, não obstante, foi insuficiente para obstar ao seu cometimento.


O mesmo sucedendo com a ausência de antecedentes criminais registados, o que evidenciando o seu percurso normativamente enquadrado e, nessa estrita medida, o favoreça, não lhe confere um valor atenuativo da culpa, da ilicitude e das exigências de prevenção, porque correspondente ao comportamento esperado da generalidade dos cidadãos cumpridores das regras legal e socialmente vigentes.


Por outro lado, ao contrário do alegado pelo recorrente, fundamentou devidamente a culpa, de muito elevada intensidade, não apenas por ter atuado com dolo direto relativamente a todos os três crimes em apreço, consciente da respetiva proibição e punibilidade, mas também em face do juízo de especial censurabilidade justificativo da qualificação do crime de homicídio, na forma tentada, nos termos do artigo 132º, n.ºs 1 e 2, al. j), que o arguido não contesta, nem se afigura contestável perante os factos provados sob os pontos 1 a 12 e 15 a 21, podendo dizer-se, com o acórdão recorrido, que eles preenchem os três indícios da premeditação ali prevista, é dizer, “a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas”.


Quanto à ilicitude, igualmente de elevado grau, como refletem as molduras penais abstratas em função do relevo dos bens jurídicos aqui em causa, desde a vida à liberdade pessoal, também o acórdão a destacou e fundamentou adequadamente.


Acresce que as necessidades de prevenção, em particular da prevenção geral, são elevadíssimas, nomeadamente em função daqueles bens jurídicos protegidos, em especial o da vida, valor supremo e inviolável constitucionalmente consagrado e protegido e erigido no Código Penal como o primeiro a merecer proteção, como demonstra a inserção sistemática do tipo legal incriminador, que abre o Livro II respeitante à sua Parte Especial, cujo atentado é sempre gerador de grande alarme social e comunitário e cujo forte impacto no meio em que o arguido e ofendido estavam inseridos se mostra patenteado no facto provado sob o ponto 23.


Sendo igualmente evidentes as necessidades de prevenção especial reclamadas pelo caso em apreço, ainda que menos intensas do que as de ordem geral, como evidenciam os factos provados nos pontos 22 a 36, em que se incluem circunstâncias favoráveis ao arguido, ainda que sem relevo especialmente atenuativo, mas com virtualidade para sustentar um juízo de prognose positivo sobre a sua capacidade de regeneração e adequação futura a uma vida normativamente enquadrada, como sejam:


- a inserção social e laboral já referida, embora algo diluída numa vivência mais ou menos solitária ou isolada e precariedade ocupacional, a ausência de antecedentes criminais registados, e a sua consideração social como bom amigo, bem como o seu comportamento anterior, sem registo de antecedentes criminais e de quaisquer outros factos desabonatórios, e posterior aos factos, nomeadamente quanto ao aproveitamento da reclusão preventiva para melhoria da sua formação académica e profissional e ajustamento às normas vigentes no meio prisional, pela positiva;


- pela negativa, a referida tendência para o isolamento familiar e social (factos 24, 27 e 29) e alguma inconstância laboral, traduzida na respetiva precariedade, já que, se por um lado tinha hábitos de trabalho, por outro, dedicava-se a “biscates” (factos 25 e 26), outrossim com uma personalidade que, não obstante a consideração de que beneficia no seu meio, onde é considerado “um bom amigo, afável e disponível” (facto 36), “revela rigidez de pensamento e dificuldade de compreensão da realidade que o rodeia” (facto 28), algumas “fragilidades emocionais e défices de algumas competências designadamente ao nível do auto controlo, com interferência na adaptabilidade pessoal e social” (facto 29), e, “em relação aos presentes autos, apesar de não apresentar distanciamento, e de reconhecer a gravidade de factos idênticos e o provável impacto em vítimas, tende a minimizar a responsabilização no caso da existência de problemas relacionais entre arguidos e vítimas”, como aqui se verificou, sendo possível extrair dos factos provados que agiu motivado por razões passionais e despeitado por ter sido trocado em favor da vítima pela companheira deste, com quem mantivera um relacionamento durante a sua reclusão.


Ao que acresce, para além de não ter demonstrado qualquer arrependimento, em coerência com a referida muito própria e pessoal interpretação e avaliação dos acontecimentos, continuar “a não reconhecer a necessidade de mudança de algumas condutas” (facto 35), precisamente naqueles contextos relacionais, permanecendo alheado da sorte do amigo ofendido e mais preocupado com as consequências criminais que da prática dos factos lhe poderão advir, ou seja, autocentrado.


Tudo isso, como dito, foi devidamente ponderado e sopesado na justa medida no acórdão recorrido e se mostra refletido nas penas parcelares de prisão fixadas, em medida, de resto, condizente com a bitola habitual do STJ para situações similares, variando as penas concretas entre os 6 (seis) anos e 6 (seis) meses e os 8 (oito) anos de prisão para o crime de homicídio tentado qualificado, sem e com arma de fogo, 1 (um) ano e 6 (seis) meses e os 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, para o crime de detenção de arma proibida, e até 8 (oito) meses de prisão para o crime de ameaça, como evidenciam os acórdãos 5438/21.7JAPRT.S!, de 21.06.2023, 266/21.2JAVRL.C3.S1, de 20.03.2024, (este com a agravante da reincidência), 179/22.0PSLSB.S1, de 27.09.2023, 2540/22.1JAPRT.P1.S1, de 31.01.2024, 367/21.7PCPDL.L1.S1, de 15.12.2022, e 163/17.6GCMMN.E1:S1, de 27.01.20236, referencial cuja consideração confere uma reforçada garantia da adequação, necessidade e justiça das penas aplicadas, em função das elevadas necessidades de prevenção que neste caso se verificam, da prevenção geral em particular, sem ultrapassar a medida da culpa, e que, por isso, se mantêm, com a improcedência do recurso nesta parte.


*


E que dizer da pena única de 9 (nove) anos de prisão fixada, que o recorrente igualmente discute, pretendendo a sua redução para medida que não concretiza diretamente, mas por inferência das medidas que propôs para as penas parcelares, o que, se lograsse êxito, obrigaria à sua fixação na moldura abstrata do cúmulo daí resultante entre os 5 (cinco) e os 6 (seis) anos e 6 (seis) meses?


Antes de mais que, face à improcedência daquela pretensão redutora das penas parcelares, também a redução da pena única naquela medida tem de improceder, perante a manutenção da pena parcelar de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, medida que, nos termos do artigo 77º, n.º 2, do CP, constitui o limite mínimo da moldura abstrata ou legal da pena única resultante do cúmulo jurídico efetuado.


Ainda assim, considerando o que acima se referiu a propósito da abstenção de princípio do tribunal de recurso na definição do quantum concreto das penas fixadas no acórdão recorrido e da observância e respeito pelas operações a realizar e das finalidades e critérios legalmente definidos para a determinação da medida das penas parcelares, haverá, in casu, razões justificativas da redução da pena única de 9 (nove) anos de prisão nele fixada, dentro da respetiva moldura abstrata, situada entre os 7 (sete) anos e 6 (seis) meses e os 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão, nele igualmente considerada?


Como antes se sublinhou, essa possibilidade de intervenção corretiva apenas deverá ter lugar se ocorrer desvio daqueles critérios e parâmetros de que resulte uma situação de injustiça da pena, por desproporcionalidade ou desnecessidade.


Como também já referido, aos critérios gerais de determinação da medida da pena estabelecidos no artigo 71º do CP, acresce, para a pena única, o critério peculiar ou específico previsto no artigo 77º, n.º 1, do mesmo diploma legal, segundo o qual “na medida da pena são considerados , em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, de modo a poder concluir-se se a ilicitude dos factos considerados em conjunto e na sua unidade relacional e em conjugação com a personalidade do arguido neles refletida e por eles evidenciada, aponta para uma “certa tendência ou mesmo carreira delinquente”, ou antes para uma atuação isolada, episódica ou “(pluri)ocasional”, acentuando ou desvanecendo as necessidades de prevenção especial e, em função disso, fixar a medida da pena em função delas dentro da moldura da prevenção geral, com o limite inultrapassável da culpa.


Vejamos.


O arguido AA, nascido em ........1975, contava à data da prática dos factos, ocorridos entre a época de Natal de 2022 e o dia 1 de janeiro de 2023, 45 anos de idade, tendo, entretanto, completado os 46 anos.


Apesar dos traços de personalidade antes referidos, com manifestações egoístas, de impulsividade e de autossuficiência ou dificuldades de relacionamento, de desconsideração e indiferença pela gravidade dos factos e respetivas consequências para o ofendido, tinha até eles conduzido a sua vida pelos padrões da normatividade vigente, sendo considerado amigo, afável e disponível no seu meio, com hábitos de trabalho e, pese embora o divórcio e o afastamento da filha, mantinha laços estáveis e de afeto recíproco com as irmãs.


Depois de preso preventivamente, adaptou-se gradualmente ao ambiente prisional, cumprindo as respetivas normas e aproveitando as oportunidades que nesse contexto lhe foram proporcionadas no sentido da melhoria e aperfeiçoamento das suas competências académicas e profissionais.


Apesar do seu elevado grau, a unidade relacional e conjunta da ilicitude dos factos criminosos pelos quais foi condenado é indiscutível, pois a aquisição e detenção da arma proibida e suas duas munições foi motivada para a prática do crime de homicídio tentado e a ameaça ocorreu em ato seguido ao disparo e à constatação de que o ofendido não morrera, pelo menos de imediato.


Esse facto, de resto, pode/deve ser analisado numa perspetiva favorável ao arguido, pois, se a arma estivesse carregada com as duas munições que com ela adquirira, tendo ele disparado apenas uma, poderia, naquele momento, persistindo na intenção homicida ou querendo assegurar-se do êxito da sua ação, em vez de ameaçar o ofendido nos termos dados como provados, poderia ter disparado essa segunda munição, agora apontada, como ameaçado, à cabeça daquele, o que não fez.


A culpa é de superior intensidade, a justificar, aliás, a sua integração no tipo especial de culpa previsto no artigo 132º, n.ºs 1 e 2, do CP, sendo especialmente censurável a sua atuação premeditada quanto ao crime de homicídio tentado qualificado e, por arrastamento instrumental e consequencial, os da detenção da arma proibida e de ameaça, sem que até agora tenha expressado ou manifestado qualquer sinal de arrependimento.


A ilicitude é também de elevado grau, pelo número de crimes, pela extrema relevância dos bens jurídicos lesados, como a vida e a liberdade pessoal, e pela natureza dos ilícitos, refletida nas respetivas penas aplicáveis e pela classificação do de homicídio tentado qualificado como criminalidade especialmente violenta, nos termos do artigo 1, als. j) e l), do CPP


Neste quadro, o conjunto dos factos, analisados na sua unidade relacional e por referência à personalidade do arguido, neles projetada e refletida, inscreve-se, sem margem para dúvidas, na referida atuação episódica ou (pluri)ocasional.


E, dessa apreciação conjunta e global relacional, emerge igualmente um vislumbre de possibilidades regeneradoras do arguido, mediante uma clara e indiscutível punição, em prisão efetiva e de algum relevo, sob pena de se postergarem as elevadas necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir de reafirmação da vigência das normas jurídicas violadas e de reforço da tranquilidade e confiança comunitárias nessa vigência e no funcionamento do sistema de justiça, mas, do mesmo passo, compatível com as menos acentuadas necessidades de prevenção especial positiva ou de reintegração que no caso se fazem sentir, em vista da melhor e mais célere ressocialização do condenado.


Assim sendo, afigura-se que dentro da referida moldura penal abstrata ou legal do cúmulo jurídico, situada entre os 7 (sete) anos e 6 (seis) meses e os 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão, a pena única de prisão deve sofrer um ajustamento, face à de 9 (nove) anos decretada pelo acórdão recorrido, fixando-a em 8 (oito) anos, por se mostrar mais justa, proporcional e bastante para acautelar as finalidades de prevenção geral e especial que no caso em apreço se fazem sentir, em linha, de resto, com o que se decidiu no referenciado acórdão do STJ, de 27.01.2022, proferido no processo n.º 163/17.6GCMMN.E1.S1..


IV. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


a) Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, condenando-o na pena única de 8 (oito) anosa de prião.


c) Sem custas.


Lisboa, d. s. c.


(Processado e revisto pelo relator)


João Rato (Relator)


Jorge dos Reis Bravo (1º adjunto)


Celso José Neves Manata (2º adjunto)





____________________________________________

1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, ainda inédito.↩︎

2. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, in “A pena «unitária» do concurso de crimes, RPCC, Ano 16, n.º 1, pp. 151 a 166, em comentário a um acórdão do STJ, no qual se debruça sobre as diferenças concetuais e seus reflexos sobre a determinação da pena concreta no concurso de crimes entre “pena única”, “pena unitária” e “pena conjunta”, concluindo no sentido de que o nosso CP optou pela pena conjunta.↩︎

3. Sobre a aplicação das circunstâncias modificativas ou como tal atuando, agravantes e atenuantes, em caso de concorrência, pode ver-se Jorge de Figueiredo Dias, em Direito Penal Português - Parte Geral - II As consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra Editora, 2005, § 273, p. p. 208.

No mesmo sentido o acórdão do STJ, de 20.03.2024, proferido no processo 266/21.2JAVRL.C3.S1, infra referenciado.↩︎

4. Direito Penal 2, Parte Geral – As consequências Jurídicas do Crime.↩︎

5. Conforme ponto IV do sumário publicado do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado Pela Conselheira Ana Barata Brito, sem prejuízo, naturalmente, da amplitude sindicante dos tribunais de recurso, quando, ainda assim, concluam pela injustiça da pena, por desproporcional ou desnecessidade, como se afirmou, v. g., no acórdão do STJ, de 14.06.2007, proferido no processo n.º 07P1895, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

No mesmo sentido, Souto de Moura, in “A JURISPRUDÊNCIA DO S.T.J. SOBRE FUNDAMENTAÇÃO E CRITÉRIOS DA ESCOLHA E MEDIDA DA PENA”, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/soutomoura_escolhamedidapena.pdf.↩︎

6. Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, e relatados pelos Conselheiros Maria do Carmo Silva Dias, pelo relator do presente, Ernesto Vaz Pereira e Eduardo Loureiro, respetivamente.↩︎