Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
214/21.0BELSB.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
Para que a Formação aprecie a admissibilidade do recurso por via excepcional, é necessário que o recorrente exerça o ónus de requerer o recurso de revista por via excepcional e de o instruir em conformidade.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Reclamante: AA

1. Nos presentes autos, foi proferido, neste Supremo Tribunal de Justiça, o seguinte despacho:

Dispõe-se no artigo 671.º, n.º 3, do CPC:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Ora, a admissibilidade do presente recurso depara-se, justamente, com o obstáculo previsto nesta norma. Se não veja-se.

Com bem refere o recorrente, a decisão do Acórdão recorrido consiste em “julgar procedente a exceção perentória de caso julgado” [cfr. conclusão i)].

E as questões suscitadas na presente revista são fundamentalmente as mesmas que já foram suscitadas na apelação, pretendendo o recorrente, em síntese, que este Supremo Tribunal avalie se o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu bem concluindo que:

1.ª) a decisão sobre o mérito não importava violação da lei, designadamente dos artigos 3.º, n.º 3 (princípio do contraditório) e 595.º, n.º 1, do CPC, nem violação da lei fundamental, designadamente do artigo 20.º da CRP (princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva);

2.ª) se verificava excepção de caso julgado;

3.ª) não se verificavam as inconstitucionalidades alegadas (por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 22.º da CRP) quanto à interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado.

A verdade é que, ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, o decidido pelo Tribunal de 1.ª instância.

Esclareça-se que a declaração de voto apresentada pelo Exmo. Adjunto não invalida esta conclusão.

O Exmo. Desembargador Adjunto manifesta a sua discordância apenas quanto à qualificação da nulidade adveniente da violação do princípio do contraditório mas não põe em causa a decisão do Acórdão.

Pode ler-se naquela declaração de voto:

“A posição vencedora advoga que a nulidade invocada de violação do contraditório, possa ser incluída nas nulidades da sentença previstas no artº 615, nº1, d), parte final, do C.P.C., por ao decidir sem cumprir o contraditório, ou dispensando uma formalidade essencial, o magistrado ter decidido quando (ainda) o não podia fazer.

É neste ponto que divergimos da posição vencedora (…).

Pelo exposto, e pelas razões expostas, advogo que a violação do contraditório, a existir, seria uma nulidade processual e não uma nulidade de sentença, que no caso já se encontraria sanada, por se terem esgotado os 10 dias a que o art.º 149.º, alude”.

Quer isto dizer que, mesmo partindo de um pressuposto diferente, o Exmo. Desembargador Adjunto chega à mesma conclusão quanto ao argumento da violação do princípio do contraditório – de que não há nulidade do despacho por violação do princípio do contraditório.

A declaração de voto não afecta, em suma, a decisão e, por isso, é irrelevante para o efeito de desconfigurar a dupla conformidade das decisões das instâncias, deparando-se o recurso com o impedimento do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

Pelo exposto, são fundadas as dúvidas sobre a admissibilidade do presente recurso.

Deve ouvir-se o recorrente, dado que o recorrido já se pronunciou sobre esta questão.

Cumpra-se o disposto no artigo 654.º, n.º 2, ex vi do 655.º, nº 2, do CPC”.

2. Veio o recorrente pronunciar-se, sustentando, naquilo que releva, o seguinte:

3. (…) salvo o devido respeito, não acompanhamos tal entendimento preliminar.

4. Sendo certo que indo além da letra da lei, o douto despacho de fls. acaba caindo num verdadeiro subjectivismo, qual seja o de definir fundamentação essencialmente diferente.

5. Por outro lado, recorde-se que o enquadramento da causa de pedir nos presentes autos à luz da figura do erro judiciário resulta, desde logo, da sentença de 1ª Instância do TAC Lisboa proferida em 19/02/2021.

6. Decisão confirmada pelo Acórdão proferido em 20/10/2021 proferido pelo TCA Sul.

7. É perante este quadro normativo, que a parte requereu, à luz do art. 14º, nº 2 do CPTA, a remessa do processo ao Tribunal Judicial competente.

8. Quando na presente acção, por banda do Autor, apenas se assaca uma ilegalidade manifesta a uma certa decisão judicial.

9. Ora, a confirmar-se que nos presentes autos uma decisão definitiva de não verificação da figura de erro judiciário cair-se-á num verdadeiro conflito entre jurisdições – o que oportunamente se alegará.

10. Razão acrescida para uma revista, mesmo que excepcional, a fim de decidir questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – VIDE art. 672º, nº 1 a) do CPC”.

3. Foi proferido, então, neste Supremo Tribunal, novo despacho com o seguinte teor, no essencial:

Dispõe-se no artigo 671.º, n.º 3, do CPC:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Ora, a admissibilidade do presente recurso depara-se, justamente, com o obstáculo previsto nesta norma. Se não veja-se.

Com bem refere o recorrente, a decisão do Acórdão recorrido consiste em “julgar procedente a exceção perentória de caso julgado” [cfr. conclusão i)].

E as questões suscitadas na presente revista são fundamentalmente as mesmas que já foram suscitadas na apelação, pretendendo o recorrente, em síntese, que este Supremo Tribunal avalie se o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu bem concluindo que:

1.ª) a decisão sobre o mérito não importava violação da lei, designadamente dos artigos 3.º, n.º 3 (princípio do contraditório) e 595.º, n.º 1, do CPC, nem violação da lei fundamental, designadamente do artigo 20.º da CRP (princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva);

2.ª) se verificava excepção de caso julgado;

3.ª) não se verificavam as inconstitucionalidades alegadas (por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 22.º da CRP) quanto à interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado.

A verdade é que, ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, o decidido pelo Tribunal de 1.ª instância.

Não é possível acompanhar o recorrente quando, no requerimento por ele apresentado, diz que a definição de “fundamentação essencialmente diferente” significa “cai[r] num verdadeiro subjectivismo”.

Desde logo, é a própria lei que exige que se atenda a este factor para o efeito de aferir a dupla conforme. Depois, não há grandes dúvidas quanto às condições em que se configura a hipótese: é consensualmente entendido que a fundamentação essencial de uma decisão consiste na sua ratio decidendi e que a fundamentação essencialmente diferente quando a decisão assenta em quadros normativo e / ou dogmáticos diversos, sendo absolutamente irrelevantes os argumentos acessórios, secundários, adicionais que, designadamente, apenas sirvam para reforçar os argumentos centrais1.

Esclareça-se ainda que a declaração de voto apresentada pelo Exmo. Adjunto não perturba a dupla conforme, i.e., não impede que se dê por verificada a exigência de que não haja voto de vencido.

O Exmo. Desembargador Adjunto manifesta a sua discordância apenas quanto à qualificação da nulidade adveniente da violação do princípio do contraditório mas não põe em causa a decisão do Acórdão.

Pode ler-se naquela declaração de voto:

“A posição vencedora advoga que a nulidade invocada de violação do contraditório, possa ser incluída nas nulidades da sentença previstas no artº 615, nº1, d), parte final, do C.P.C., por ao decidir sem cumprir o contraditório, ou dispensando uma formalidade essencial, o magistrado ter decidido quando (ainda) o não podia fazer.

É neste ponto que divergimos da posição vencedora (…).

Pelo exposto, e pelas razões expostas, advogo que a violação do contraditório, a existir, seria uma nulidade processual e não uma nulidade de sentença, que no caso já se encontraria sanada, por se terem esgotado os 10 dias a que o art.º 149.º, alude”.

Quer isto dizer que, mesmo partindo de um pressuposto diferente, o Exmo. Desembargador Adjunto chega à mesma conclusão quanto ao argumento da violação do princípio do contraditório, qual seja a de que não há nulidade do despacho por violação do princípio do contraditório.

A declaração de voto não afecta, em suma, a decisão (i.e., a decisão é unânime) e, por isso, é irrelevante para o efeito de desconfigurar a dupla conformidade das decisões das instâncias, deparando-se o recurso com o impedimento do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

Diga-se ainda, a terminar, que a invocação da relevância jurídica da questão em causa nos presentes autos e da revista excepcional não tem aptidão para alterar a conclusão quanto à inadmissibilidade do recurso: a revista excepcional é a via adequada para superar o obstáculo da dupla conforme mas o facto é que o presente recurso não veio interposto (nem devidamente instruído) como excepcional2.

Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o presente recurso de revista”.

4. Vem agora o recorrente apresentar requerimento com o seguinte teor:

1. Foi proferida decisão singular datada de 26/01/2024 nos seguintes termos:

2. Todavia, não se pode acompanhar semelhante decisão.

3. Como tal, nos termos previstos no art. 652º, nº 3 do CPC, a parte que se considere prejudicada por qualquer decisão do relator pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão.

4. A reclamação para a conferência constitui, pois, o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator – art. 652º, nº 1 c) e nº 3, ex vi do art. 656º do CPC.

5. Certo é que, nessa reclamação, pode o reclamante restringir o objecto próprio da reclamação, identificando, concretamente, a parte da decisão sumária de que discorda (da qual se sente prejudicado) e os seguintes decisórios sobre os quais demonstra o seu inconformismo (art. 635º, nº 4 do CPC e Acórdão da Relação do Porto de 23/02/20215).

6. Deduzida reclamação para a conferência, o colectivo de juízes reaprecia as questões que foram objecto da decisão singular do Relator, sem qualquer vinculação ao anteriormente decidido.

7. Vem o presente despacho consignar:

(…)

8. Porém, e salvo o devido respeito, não acompanhamos tal entendimento singular.

9. É certo que as questões fundamentalmente discutidas são idênticas e nem isso se pretende escamotear.

10. Certo é que além da questão relativa à excepção de caso julgado e da violação do princípio do contraditório em causa no presente recurso está igualmente, o enquadramento da causa de pedir à luz da figura do erro judiciário (conforme sentença de 1ª Instância do TAC Lisboa e Acórdão proferido pelo TCA Sul).

11. É perante este quadro normativo, que a parte requereu, à luz do art. 14º, nº 2 do CPTA, a remessa do processo ao Tribunal Judicial competente.

12. Quando na presente acção, por banda do Autor/Recorrente, apenas se assaca uma ilegalidade manifesta a uma certa decisão judicial.

13. Ora, a confirmar-se que nos presentes autos uma decisão definitiva de não verificação da figura de erro judiciário cair-se-á num verdadeiro conflito entre jurisdições – o que oportunamente se alegará.

14. Aqui chegados, e já de certa forma aflorada nos recursos interpostos, o enquadramento acima identificado, ora feito pelo foro administrativo, ora afastado pelo foro cível, determina que nesta fase se questione qual a sede de julgamento.

15. Ao fim ao cabo matéria que deverá, entre outras, ser levada à decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

16. Antes de se submeter a questão ao Tribunal de Conflitos.

17. Aliás, em plena obediência ao art. 9º da Lei n.º 91/2019, de 04 de Setembro

1 – Para efeitos da presente lei, há conflito de jurisdição quando dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão, dizendo-se o conflito positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Não há conflito de jurisdição enquanto forem suscetíveis de recurso ordinário as decisões proferidas sobre a questão da jurisdição.

18. Neste particular, se diga, da irrelevância de uma invocação expressa a uma revista excepcional quando, na prática se verifique existir fundamento e requisitos da mesma”.


***


A questão a decidir pelos Juízes nesta Conferência é, em síntese, a de saber se é inadmissível o recurso de revista¸ conforme se decidiu no despacho reclamado.

Perante o teor do despacho reclamado, pouco é o que, nesta sede, é possível acrescentar.

Com efeito, é visível – e já foi desenvolvidamente explicitado – que o presente recurso se depara com o obstáculo da dupla conforme, o que impede o seu objecto de ser conhecido por este Supremo Tribunal por via normal.

Nesta reclamação – como já antes –, o recorrente / ora reclamante contrapõe, fundamentalmente, que:

- “em causa no presente recurso está igualmente, o enquadramento da causa de pedir à luz da figura do erro judiciário (conforme sentença de 1ª Instância do TAC Lisboa e Acórdão proferido pelo TCA Sul) (cfr. conclusão 10);

- por isso, em última análise, “cair-se-á num verdadeiro conflito entre jurisdições” cfr. conclusões 9 e 13); e

- “[n]este particular, se diga, da irrelevância de uma invocação expressa a uma revista excepcional quando, na prática se verifique existir fundamento e requisitos da mesma” (cfr. conclusão 18).

Não lhe assiste, porém, razão.

O facto de o recorrente / ora reclamante entender que está em causa “o enquadramento da causa de pedir à luz da figura do erro judiciário” e que “cair-se-á num verdadeiro conflito entre jurisdições” não tem o “condão” de alterar as circunstâncias do presente recurso, designadamente a circunstância de a decisão do Tribunal de 1.ª instância ter sido a de considerar procedente a excepção peremptória de caso julgado e de o Tribunal da Relação ter confirmado, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, esta decisão – de se verificar, em suma, dupla conforme, nos termos e com as consequências que já foram desenvolvidamente expostos no despacho reclamado.

Em particular, nunca o recorrente ficaria dispensado de interpor o recurso por via excepcional se quisesse ter a admissibilidade do recurso apreciada pela Formação e, eventualmente, confirmada com fundamento em algum dos pressupostos do artigo 672.º, n.º 1, do CPC.

Não tendo exercido este ónus, não há forma de equacionar a admissibilidade do presente recurso de revista.


*


III. DECISÃO

Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de inadmissibilidade da revista.


*


Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*


Lisboa, 4 de Abril de 2024

Catarina Serra

Ana Paula Lobo

Fernando Baptista

______


1. Cfr., neste sentido, por exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 7.07.2022 (Proc. 2672/12.4TBPDLL1 -A.S1).

2. Veja-se o que consta logo do requerimento de interposição do recurso: “O recurso é admissível (art. 671º, nº 1 do CPC), segue o regime da revista (art. 671º, nº 3 do CPC (…)”.,