Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6/16.8ZRCBR.C1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
JUIZ
IMPARCIALIDADE
ESCUSA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA/DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I. Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo deve atender-se a que a cláusula geral enunciada no n.º 1 do artigo 43.º revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada pela comunidade com desconfiança e com suspeita sobre a sua imparcialidade.

II. Os fundamentos podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excecionais e objetiváveis, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de circunstâncias de relação com algum dos interessados no processo ou de contexto suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa.

III. Dependendo da sua intensidade, estas circunstâncias devem fundamentar um juízo prudencial de decisão do pedido de escusa que não pode deixar de ser próximo do juízo formulado pelo requerente, se nas razões do pedido de escusa estiverem motivos de natureza pessoal suscetíveis de pôr em causa as condições de afirmação da imparcialidade subjetiva.

IV. Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adoptado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave (artigo 43.º, n.º 1, do CPP).

V.  O critério objectivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

VI. As ligações de natureza pessoal do juiz aos sujeitos processuais são suscetíveis de preencher este critério, desde que, do ponto de vista do cidadão comum, possam ser vistas como podendo gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade.

VII. Convergindo razões de natureza pessoal e profissional, resultantes das relações de amizade entre a juíza e o advogado do arguido e do facto de este ser advogado da juíza em processo de divórcio e de regulação de responsabilidades parentais do filho desta e em processo crime em que a juíza havia apresentado queixa por denúncia caluniosa contra si, e tendo em conta que o recurso em que a juíza é chamada a intervém requer decisão em matéria de facto com considerável margem de apreciação, configura-se uma situação em que a duração e intensidade das relações entre a requerente e o advogado da arguida podem, na perceção do cidadão comum e, em particular, dos destinatários da decisão, gerar desconfiança sobre a imparcialidade da requerente para decidir o recurso.

VIII. Nestas circunstâncias, num juízo aproximado do formulado pela requerente, mostra-se justificado concluir que existe um risco fundado em motivo sério, grave e adequado a que requerente possa ser alvo de desconfiança quanto às condições para atuar de forma imparcial, pelo que se defere o pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


1. A Senhora Juíza Desembargadora AA, a exercer funções na ....ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de ..., com fundamento no disposto no artigo 43.º, n.ºs 1, e 4, do Código de Processo Penal («CPP»), apresenta pedido de escusa de intervir no julgamento do recurso interposto no processo n.º 6/16.8ZRCBR.C1, que lhe foi distribuído, fazendo-o nos termos seguintes:

«. No dia de hoje [17-01-2024] foi distribuído à ora requerente o Processo Comum nº 6/16.8ZRCBR.C1, no qual é arguida BB, cujo Mandatário se trata do Exmo. Senhor Dr. CC, com domicílio profissional na Rua ..., 2o ..., em ...;

. Sucede que aquele ilustre Advogado foi quem, há cerca de 14 anos, intermediou as negociações entre a aqui requerente e o seu então marido e pai de sua filha DD com vista ao divórcio por mútuo consentimento ocorrido, bem como quanto à estipulação das responsabilidades parentais da filha de ambos, então menor;

. Outrossim foi aquele mesmo ilustre Advogado quem a aqui requerente mandatou para a representar, na qualidade de Denunciante, Assistente e Demandante Cível, no âmbito do Processo Comum nº 11871/16.9..., processo que correu termos contra EE e FF, tendo sido quem acompanhou a aqui requerente em todas as diligências processuais, incluindo na fase de recurso.

Isto posto, e para além da elevada estima pessoal e profissional que aquele Ilustre Advogado lhe merece, veio a estabelecer laços de amizade com o mesmo e alguns elementos da sua família chegada;

. Entende, nesta conformidade, a ora requerente que a sua intervenção no aludido processo deve ser escusada, na medida em que há o risco de vir a ser considerada suspeita - com efeito, por um lado, a existência de um anterior contrato de mandato judicial, e, por outro, o estabelecimento de uma relação pessoal de amizade são de molde a entenderem-se como motivos, sérios e graves, susceptíveis de virem a gerar desconfiança acerca da imparcialidade da aqui requerente.

. Se é certo que a aqui requerente não vê, de modo algum, toldada a sua capacidade de análise e decisão perante tal circunstancialismo, julga prudentes as palavras do seu Mestre Manuel Cavaleiro Ferreira quando afirma que "Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição."

Por todo o exposto, e considerando o vertido no artigo 43°, nºs 1 e 4 do Código do Processo Penal, requer-se a V. Exa. que a ora requerente seja escusada de intervir nos autos de Processo Comum n° 6/16.8ZRCBR.C1.»

2. Posteriormente, veio complementar o pedido esclarecendo que:

No processo 6/16.8ZRCBR.C1, que lhe foi distribuído, «importa conhecer o recurso apresentado pela arguida por ter sido condenada pela prática em co-autoria material e sob a forma consumada de:

- um crime de tráfico de pessoas, previsto e punido pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea a) e alínea d) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

- um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 169.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e alínea d) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Pelo que veio a ser condenada, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de no mesmo período, entregar à Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (CPVC) a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) comprovando anualmente nos autos o pagamento de quantia não inferior a € 500,00.

Outrossim foi julgado procedente o incidente de liquidação tendente à perda alargada de bens, e, em consequência, declarado perdido a favor do Estado o montante de 2.853,60 (dois mil oitocentos e cinquenta e três euros e sessenta cêntimos), equivalente ao valor do património incongruente detetado, com inerente condenação da arguida no pagamento da mencionada quantia.

. A lide recursal apresentada naqueles identificados autos tem por objecto:

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, e contradição insanável entre os factos dados corno provados, nos termos do artigo 410º nº 2, al. b) do Código de Processo Penal;

- A medida da(s) pena(s), sua justeza e correcção.

II. Por outra banda, como a ora requerente fez já menção no requerimento inicial, o Exmo. Senhor Dr. CC foi quem, há cerca de 14 anos, intermediou as negociações entre a aqui requerente e o seu então marido e pai de sua filha DD com vista ao divórcio por mútuo consentimento ocorrido, bem como quanto à estipulação das responsabilidades parentais da filha de ambos, então menor;

. Outrossim, como também foi aludido no requerimento inicial, o mesmo Ilustre Advogado foi quem a ora requerente mandatou para a representar, na qualidade de Denunciante, Assistente e Demandante Cível, no âmbito do Processo Comum nº 11871/16.9..., processo que correu termos contra EE e FF, tendo sido quem acompanhou a aqui requerente em todas as diligências processuais, incluindo na fase de recurso;

. Tal processo iniciou-se, após o encerramento de um procedimento levado a efeito pelo Conselho Superior da Magistratura e o despacho de arquivamento de inquérito pelo Ministério Público, que foram suscitados pela denúncia que aquele EE alinhou junto do DIAP em ...;

- Em todas as diligências preparatórias para a apresentação da mencionada denúncia - tanto quanto nas demais que foram suscitadas pela apresentação da denúncia por aquele EE — a ora requerente contou com o acompanhamento pessoal e conselho técnico daquele Ilustre Advogado;

- Além disso todas as peças processuais foram subscritas pelo mesmo Senhor Advogado, tendo sido, ainda, quem esteve presente em todas as diligências processuais em que era admissível a presença do advogado da queixosa/demandante cível/assistente e, bem assim, quem acompanhou a aqui requerente quando depôs em audiência de julgamento;

III. Como se infere do predito o Ilustre Senhor Dr. CC desde há cerca de, mais de catorze anos, que é o advogado da ora requerente.

Pelo seu conhecido profissionalismo, como a sua elevada educação e estima para com a ora requerente foi estabelecido, para além do respeito próprio que ressuma da relação de mandato, um sentimento de amizade recíproca, que se estendeu às respectivas famílias nucleares.

Face a tal vínculo de amizade, que perdura há mais de uma década, a ora requerente, acompanhada da sua família, foi convidada para a cerimónia de casamento da filha daquele Ilustre Senhor Advogado, que conhece desde a adolescência; outrossim, também acompanhada da sua família, acompanhou as exéquias fúnebres da falecida mãe do mesmo Ilustre Senhor Advogado.

Destarte, e porfiando na consideração de que, não obstante todo o descrito circunstancialismo, a aqui requerente entende não ter toldada a sua capacidade de análise e decisão, o certo é que entende existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e, consequentemente, a colocar em crise a imagem da própria Justiça que se crê deve ser evitado com a concessão da escusa peticionada.

Requer a junção de nove documentos.»

3. Devendo o processo prosseguir e não havendo necessidade de produção de prova, colhidos os vistos, cumpre decidir (artigo 45.º, n.ºs 4 e 5, do CPP).

4. Dispõe o artigo 43.º, n.º 4, do CPP que o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 do mesmo preceito, isto é, quando a sua intervenção no processo correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Sendo a requerente Juíza Desembargadora no Tribunal da Relação de Coimbra, é este Supremo Tribunal de Justiça o competente para apreciar o pedido de escusa, por ser o tribunal imediatamente superior [artigo 45.º, n.º 1, al. a), do CPP].

5. O princípio da independência dos tribunais implica uma exigência de imparcialidade que, na projeção do direito fundamental a um tribunal independente e imparcial, elemento essencial do processo equitativo, constitucionalmente garantido (artigo 203.º da Constituição) e reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de protecção dos direitos humanos, vigentes na ordem interna – Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 6.º) e Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º) –, justifica uma previsão legal suficientemente ampla de suspeições do juiz (artigos 39.º a 47.º do CPP), de modo a garantir aquele direito e a «defendê-lo» de suspeita de não ter conservado a imparcialidade no exercício da sua função, perante qualquer dúvida que, no caso concreto, a possa pôr em causa, assim se reforçando a confiança da comunidade nas decisões judiciais (acórdão de 19.04.2023, Proc. 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1, www.dgsi.pt, que se segue de perto, e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, GestLegal, 2022, p. 38-40).

A proteção da garantia de imparcialidade do juiz, que passou a constituir um dever inscrito no Estatuto dos Magistrados Judiciais (artigo 3.º, inserido pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto), é assegurada pelos impedimentos (artigos 39.º a 42.º do CPP) e pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (artigos 43.º a 45.º do CPP).

Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo por recurso à cláusula geral enunciada no n.º 1 do artigo 43.º do CPP deve atender-se a que esta «revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada pela comunidade com desconfiança e com suspeita sobre a sua imparcialidade»; «para que a suspeição se atualize no afastamento do juiz, não é necessário demonstrar uma efectiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objectivo de que, vista a questão sob a perspectiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para actuar de forma imparcial» (Figueiredo Dias /Nuno Brandão, loc. cit., p. 61; assim também, entre outros, o acórdão de 19.4.2023, com citação de jurisprudência reiterada).

Os fundamentos – que também podem referir-se à imparcialidade subjectiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excecionais e objetiváveis – dão corpo a um critério objetivo, por relação com «circunstâncias relacionais ou contextuais objectivas susceptíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa», como pode suceder com «circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados» (Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2022). Sendo idênticos os motivos que constituem fundamentos de recusa e de escusa, o juízo de decisão do pedido de escusa será «da mesma natureza do que decida um pedido de recusa nos casos em que respeitem à imparcialidade objetiva», mas «o juízo será diverso, e por natureza aproximado do pedido do juiz, se nas razões do pedido de escusa estiverem motivos de natureza pessoal e que sejam suscetíveis de pôr em causa as condições de afirmação da imparcialidade subjetiva» (id. ibid.).

Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (assim, os acórdãos de 15.1.2015, Proc. 362/08.1JAAVR.P1 apud acórdão de 18.12.2019, Proc. 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, cit., de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, e de 19.04.2023, cit.), como requer o artigo 43.º, n.º 1, do CPP.

O critério objectivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, (“a justiça não deve apenas ser feita: deve ser vista como sendo feita”), enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a propósito da densificação do conceito de «tribunal imparcial» constante do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. As ligações de natureza pessoal aos sujeitos processuais num processo submetidas à decisão do juiz são, em princípio, suscetíveis de preencher este critério, desde que, do ponto de vista do cidadão comum, possam ser vistas como podendo gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade (como se sublinha no acórdão de 30.10.2019 cit.; cfr., por todos, na jurisprudência do TEDH, salientando a sujeição da imparcialidade aos testes objectivo e subjectivo, e realçando a importância das «aparências», o acórdão Şahiner c. Turquia, n.º 29279/95, de 25.09.2001, §36, e outros nele citados, bem como Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit. p. 63)”.

6. Porém, como se tem afirmado em jurisprudência reiterada, a mera relação de amizade entre o juiz que deve decidir e o mandatário de um sujeito processual intervindo nesse processo não constitui necessariamente fundamento de recusa; a apreensão ou dúvida quanto à imparcialidade gerada pela relação de amizade terá de ter por base um motivo sério e grave que justifique objetivamente o afastamento do juiz [assim, o acórdão de 15.2.2023 (Ana Barata Brito), Proc. 16/20.0GALLE.E1-A.S1, citando, em particular o acórdão de 8.6.2022 (Teresa de Almeida), Proc. 27/16.0GEMMN.E1-A.S1, mas salientado as diferenças das situações em exame, bem como os acórdãos de 23.2.2023 (Agostinho Torres), Proc. 9/20.8GEPLM.E1-A.S1 – em que se concluiu que uma amizade «de longa data» pode fundadamente dar azo a suspeita –, de 6.4.2023 (Leonor Furtado), Proc. 127/19.5YUSTR.L1-M.S1-A, e de 26.9.2022 (Pedro Branquinho Dias), Proc. 819/17.3T9ABF.E1-A.S1, todos em www.dgsi.pt].

Concluiu-se no citado acórdão de 8.6.2022 (Teresa Almeida), em que o agora relator interveio como adjunto (ECLI:PT:STJ:2022:27.16.0GEMMN.E1.A.S1.52), numa situação diferente da que se aprecia nos presentes autos: «(…) «VII - O requerimento de escusa funda-se na relação de amizade entre o relator do recurso e o mandatário do arguido, sendo acentuada a intensidade e publicidade do convívio entre ambos, no círculo de amigos comuns. VIII - As relações de amizade entre magistrados judiciais, do MP e advogados, são frequentes, recuando, muitas vezes, aos tempos de vida académica. São, em regra, proporcionadas por circunstâncias como a formação comum, a vida judiciária, atividades de formação ou o convívio organizado pelas associações profissionais, a nível local. IX - A ligação de Desembargador relator e de advogado com o processo é profissional e orientada, num e noutro caso, por regras legais e normas deontológicas e éticas rigorosas. X - Em causa está, exclusivamente, a perceção exterior de imparcialidade; saber se, numa compreensão de razoabilidade dos limites das aparências, esta amizade pode suscitar, no público conhecedor da situação relacional exposta, e especialmente nos destinatários da decisão a proferir, apreensão quanto à imparcialidade. XI - Mas não uma apreensão qualquer; terá de, razoavelmente, ter motivo “sério e grave”, de modo a cumprir a exigência legal e afastar o princípio do juiz natural. XII - A mera desconfiança sem fundamento sério ou motivação grave, suscetível de ser entendida como tal pelo cidadão médio, não integra razão para escusa de juiz.».

Numa situação semelhante à destes autos, disse-se claramente no acórdão de 20.10.2022 (António Gama), Proc. 981/17.5PBMTS.P2-A.S1 (em www.dgsi.pt, ECLI:PT:STJ:2022:981.17.5PBMTS.P2.A.S1.44), que deferiu o pedido de escusa: «O homem médio poderia suspeitar da decisão que o requerente viesse a adotar nos autos quando soubesse que o mandatário do assistente é o mesmo mandatário que o requerente escolheu em processo do seu foro pessoal. A Justiça não se compadece com dúvidas sobre a imparcialidade de uma decisão. Impõe-se que quem venha a decidir esteja livre de qualquer suspeição, assim se assegurando a necessária tranquilidade enquanto condição indispensável a um sadio sistema judicial. Decorre do que fica dito que a intervenção do requerente como relator do recurso em que intervém como mandatário do assistente, o mesmo advogado que esse juiz mandatou numa ação que correu termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., corre o risco de aos olhos de observadores externos poder ser considerada suspeita

7. Alega, em síntese, a Senhora Juíza Desembargadora a existência de uma relação pessoal muito próxima, profissional e de amizade, prolongada no tempo, por mais de 14 anos, com o advogado da arguida, que entende constituir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade para, como relatora, intervir na decisão do recurso da decisão condenatória e, em consequência, colocar em crise a «imagem da justiça».

O advogado da arguida é também advogado da requerente, há mais de 14 anos, e foi ele que, no seu processo de divórcio, intermediou as negociações com o então seu marido com vista ao divórcio por mútuo consentimento e na estipulação das responsabilidades parentais da filha de ambos, então menor, o que, pela natureza dos processos e das matérias em causa, obrigou à partilha de informações detalhadas sobre a sua privacidade, vida pessoal e familiar, no quadro da relação de confiança própria da função. O advogado da arguida foi também mandatário da requerente na qualidade de denunciante, assistente e demandante civil num processo-crime instaurado contra o autor de denúncia caluniosa contra si que levou a um procedimento disciplinar de averiguação sumária instaurado pelo Conselho Superior da Magistratura e a um inquérito no DIAP de Lisboa, tendo, em ambos os processos, nas suas várias fases, contado com o acompanhamento pessoal e aconselhamento técnico do seu mandatário. Tudo conforme vem especificado no requerimento complementar e se confirma pelos documentos juntos.

Ao mesmo tempo, estabeleceu-se entre ambos uma sólida relação de aproximação e amizade que se estendeu às respetivas famílias nucleares, tendo a requerente sido convidada para a cerimónia de casamento da filha do seu advogado e participado nas exéquias fúnebres da sua mãe.

O conhecimento do recurso agora distribuído à requerente não se limita a apreciar questões de natureza estritamente jurídica, envolvendo apreciável margem de apreciação sobre os factos que constituem objeto do processo e sobre a pena aplicada, tendo em conta o âmbito do recurso, em que se discutem vícios da decisão em matéria de facto e a medida da pena, sua justeza e correção.

8. Evidencia-se, assim, uma situação em que a duração e intensidade das relações profissionais e de amizade estabelecidas entre a requerente e o advogado da arguida, também seu advogado, em que se associam e cruzam dimensões de natureza pessoal e familiar, podem, na perceção do cidadão comum e, em particular, dos destinatários da decisão, gerar desconfiança sobre a imparcialidade da requerente para decidir o recurso.

Nestas circunstâncias, num juízo aproximado do formulado pela requerente, mostra-se justificado concluir que existe um risco fundado em motivo sério, grave e adequado a que requerente possa ser alvo de desconfiança quanto às condições para atuar de forma imparcial.

Havendo esse risco, razoavelmente fundado, impõe-se que devem ser garantidas as condições de decisão sem base para qualquer suspeição.

Nesta conformidade, satisfeita a cláusula geral do artigo 43.º, n.º 1, do CPP, deve ser deferido o pedido de escusa.

Decisão

9. Pelo exposto, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 45.º, n.ºs 1, alínea a), 5 e 6, do Código de Processo Penal, decide-se deferir o pedido de escusa da Senhora Juíza Desembargadora AA para intervir como relatora no julgamento do recurso interposto no processo n.º 6/16.8ZRCBR.C1.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de fevereiro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Teresa Féria de Almeida

Ernesto Vaz Pereira