Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1523/13.7T2AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CAUSAS SUCESSIVAS
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
INCÊNDIO
MORTE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RECURSO DE REVISTA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
SEGURO DE INCÊNDIO
DANO MORTE
RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÕRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO ( PRESSUPOSTOS ).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 563.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3, 679.º, 682.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 21 DE SETEMBRO DE 2006, PROC. N.º 06B2739;
-DE 21 DE MAIO DE 2008, PROC. N.º 08B1567, DE 27 DE NOVEMBRO DE 2008, PROC. N.º 07B4585, OU DE 14 DE ABRIL DE 2011, PROC. N.º 3075/05.2TBPBL.C1.S1.
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Sumário :
I - Não cabe no âmbito do recurso de revista alterar o julgamento de facto que vem das instâncias, salvo quando estejam em causa meios de prova com valor tabelado ou regras que exijam determinado meio de prova (cfr. arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC).

II - Quanto ao nexo de causalidade, necessário enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, apenas compete ao STJ verificar se foram ou não observados na subsunção dos factos os critérios legalmente definidos pelo art. 563.º do CC.

III - Nem todas as causas fácticas ou naturalísticas poderão ser juridicamente havidas como causa do dano ocorrido; para tanto, hão-de integrar o critério da causalidade adequada, constante do citado art. 563.º do CC.

IV - Um dano não é, apenas, a consequência da sua causa imediata; em regra, é produto de um encadeamento ou sequência de causas.

V - Ainda que da interpretação da decisão de facto fixada pelas instâncias resulte naturalisticamente assente que a inalação de fumos pelo falecido aquando da sua presença durante 27 horas num combate a um incêndio não foi a única causa da infecção respiratória que directamente lhe provocou a morte, não está o STJ impedido de analisar o encadeamento factual que veio a culminar nessa infecção respiratória hospitalar e na morte, procurando determinar se foi ou não relevantemente desencadeada pela participação no combate ao incêndio.

VI - Tendo em conta as regras da experiência, é objectivamente provável que a participação num combate prolongado a um incêndio de grandes proporções, por parte de um bombeiro com um estado de saúde débil como o do falecido, fosse apta a desencadear um processo que implicasse um internamento e que o tornasse particularmente vulnerável ao desenvolvimento de uma infecção respiratória de origem hospitalar que culminasse com a sua morte, pelo que se considera verificado o nexo de causalidade, pressuposto da existência de responsabilidade civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa de BB, propôs uma acção contra CC - Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 106.875,00, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 12 de Agosto de 2010, até integral pagamento.

Para o efeito, e em síntese, alegou que, em 12 de Agosto de 2010, BB morreu em consequência de “uma infecção respiratória grave” determinada por inalação de fumos num “incêndio de grandes dimensões” em cujo combate participara, “em pleno exercício das suas funções de bombeiro”, e que provocara a sua hospitalização.

Alegou ainda que a morte de BB se encontrava coberta por um seguro de vida contratado com a ré, no montante de € 106.875,00.

A ré defendeu-se invocando ilegitimidade de AA por estar desacompanhada dos demais herdeiros e negando que a morte estivesse abrangida pelo seguro, uma vez que “o agravamento das dificuldades respiratórias, que conduziu à (…) lamentável morte” de BB “deveu-se a peritonite bacteriana espontânea e ao seu estado clínico debilitado por antecedentes de cirrose hepática e insuficiência hepática, que conduziram a uma situação de septicemia”, não ocorrendo “nexo causal entre a morte e a factualidade alegada pela autora”.

Disse ainda a ré não ter podido conhecer “de qualquer situação clínica pré-existente” porque ficou provado numa outra acção que BB declarara, “ embora com respeito a outro contrato de seguro, (…) não estar nem nunca ter sido sujeito a tratamento médico regular por doença ou acidente”.

Na sequência do despacho de fls. 79, a autora provocou a intervenção principal dos demais herdeiros, DD, EE e FF, bem como as dos cônjuges GG e HH, que foi admitida pelo despacho de fls. 97.

Pela sentença de fls. 217, a acção foi julgada improcedente, por se entender não ter ficado provado “que o evento morte (…) ocorreu por causa das funções de bombeiro e por via disso não é susceptível de se encontrar abrangido pelo seguro de responsabilidade civil, celebrado com a ré”.

Para assim decidir, a sentença começou por afastar a exclusão invocada pela ré – “ao que parece, a ré limitou-se a aceitar o seguro, com a listagem” das pessoas seguras “enviada, sem aquilatar ou exigir uma declaração individual de cada uma das pessoas seguras. Apenas se o tivesse feito, e daí decorressem declarações inexactas ou desconformes coma realidade, era-lhe lícito invocar a exclusão” –, verificando seguidamente não estar provado que a morte tenha resultado do incêndio.

Esta sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 368, aprovado com um voto de vencido, também por não se considerar estabelecido o necessário nexo de causalidade entre o combate ao incêndio e a infecção respiratória de que resultou a morte, nestes termos:

“Os Apelantes continuam a sustentar que a inalação de fumo durante mais de 27 horas, foi conditio sine qua non da infecção respiratória grave que consta do certificado de óbito como causa da morte, num registo meramente empírico e baseado na circunstância de o falecido ter estado a combater um incêndio antes do internamento.

Contudo, como se decidiu no recurso da matéria de facto, com base nos depoimentos dos médicos e nos registos clínicos, a infecção respiratória causa da morte ao marido da A. foi nosocomial, ou seja, teve origem no internamento hospitalar e não no incêndio.

Assim, não se provaram factos donde se possa concluir que a causa da morte do marido da A. e pai dos intervenientes se tivesse devido a qualquer evento súbito e inesperado, exterior ao próprio, que pudesse, de algum modo, ser imputável a ter estado a combater o incêndio.

Não há, pois, fundamento para se considerar que ter estado a combater o incêndio foi concausal da infecção respiratória grave que foi causa directa da sua morte.

Em suma, não tendo os AA. logrado provar, como lhe competia nos termos do art. 342º n.º 1 do CC, o nexo causalidade entre a inalação dos fumos no incêndio nos dias 23 e 24 de Junho de 2010 e a infecção respiratória grave que lhe causou a morte em 12 de agosto de 2010, a apelação terá de improceder.”

 

2. Os autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:

 “(…)                 

IV. Resultaram provados os factos elencados na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a qual foi sujeita a recurso para o Tribunal da Relação, vindo este Tribunal a confirmar a decisão da 1ª Instância, pese embora com um voto vencido, que com o devido respeito por opinião em contrário, deveria o mesmo ter sido corroborado pelos restantes desembargadores, vindo a confirmar-se a apelação apresentada pelos autores.

V. Entendem os aqui recorrentes que deveria, também, ter sido dado como provado, pelo Tribunal de 1ª Instância, o artigo 15° da p.i., nos seguintes termos:

"o falecimento de BB ficou a dever-se, única e exclusivamente, ou também, à grande inalação de fumo aquando da sua presença no incêndio durante 27 horas seguidas, que lhe determinou uma infecção respiratória grave, que o levou à morte".

VI. Tal facto deveria ter sido dado como provado, com base quer na prova documental quer na prova testemunhal, quer documental existente nos autos.

Sendo certo que a certidão de óbito indica como causa directa da morte "infecção respiratória grave ", embora a médica Dra. II, que certificou o óbito, tenha consignado que essa infecção foi "nosocomial", apanhada no hospital e não causada pelo incêndio, tendo esta posição sido corroborada pelos médicos que assistiram o doente na urgência e no internamento.

Ora, é aqui que reside a questão, a de saber qual a origem da infecção respiratória grave em si também determinante para o falecimento do bombeiro BB.

(…)

VIII. In casu pretende-se saber se à luz da matéria de facto dada como provada é possível estabelecer uma relação de imputação de resultado – morte do bombeiro – à inalação do fumo no incêndio onde se encontrava a trabalhar. Resulta da matéria provada que da declaração de óbito que a mesma se ficou a dever a infecção respiratória e outros estados mórbidos, factores ou estados fisiológicos que contribuíram para o falecimento da vítima. Ponderando globalmente o processo causal de que derivou a morte do bombeiro, constata-se que se inserem neste processo como condições essenciais do mesmo, ou seja, condições sem as quais o resultado não teria ocorrido, a inalação de fumos.

(…)

XI. (…) Não se provaram quaisquer circunstâncias anormais que permitam afirmar que in casu a morte ocorreria sem a inalação de fumo. O facto do estado clínico debilitado da vítima não afasta a imputação do resultado em causa, ou seja, a exposição prolongada ao fumo e por tal motivo não afasta a responsabilidade da ré.

Efectivamente, resultando apurado que a grande inalação de fumos foi a primeira causa da morte e o agravamento do estado clínico que se deveu a esse facto apenas se pode concluir que aquela é a causa adequada da morte do bombeiro.

XII. Ora, é caso para colocar a questão se não teria sido importante, em relação a este ponto da matéria de facto, que é fulcral, que o Tribunal de 1ª Instância tivesse desenvolvido esforços probatórios adicionais, o que sempre poderia ter sido ordenado pelo Tribunal de que se recorre ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, b) do CPC. Aliás, a tese de que a infecção respiratória foi também causada pelos fumos inalados durante o incêndio combatido pelo malogrado bombeiro durante 27 horas seguidas merece-nos mais credibilidade (…).

XIII. Destarte, por toda a prova documental e testemunhal que supra se explanou, não podem V.as Ex.as deixar de concluir que esta matéria alegada no artigo 15º da p.i., deveria ter sido considerada provada pelo Tribunal de 1ª Instância, passando a fazer parte dos factos provados da sentença proferida pelo referido Tribunal, nos seguintes termos:

“O falecimento do BB, ficou a dever-se única e exclusivamente, ou também, a grande inalação de fumo, aquando da sua presença no combate ao incêndio referido em B) e C) dos factos provados, o que lhe determinou uma infecção respiratória grave, que o levou a morte".

XIV. Assim, estando em crer, numa análise crítica exigente que fazemos da prova produzida, que no foi absolutamente inequívoca, quer num sentido quer noutro, julgamos que, ante a normalidade e a experiência da vida, com apoio nos elementos clínicos, estamos em crer que o BB deu entrada no Hospital com uma infecção grave de ordem respiratória (por diversas vezes, durante o combate ao incêndio o mesmo se queixou de insuficiência respiratória aos seus colegas de combate), causada pela inalação de fumos do incêndio a que esteve exposto durante 27 horas, tendo mesmo vindo a ser a causa da sua morte, embora coadjuvada com outros estados mórbidos relacionados como cirrose hepática de que padecia (contudo, segundo os elementos clínicos, estava estabilizada desde 2005 — altura em que já não foi necessário transplante hepático por não ter insuficiência hepática grave, nem nenhuma complicação), vindo a desencadear-se um choque séptico abdominal, com peritonite bacteriana espontânea.

XV. Destarte, mais uma vez se diga que, efectivamente, resultando apurado que a grande inalação de fumos foi a primeira causa da morte e o agravamento do estado clínico que se deveu a esse facto apenas se pode concluir que aquela foi causa adequada da morte do bombeiro, caso contrário, ainda hoje, certamente estaria vivo.

Assim sendo, mostrando-se apurado o nexo de causalidade entre o facto e o dano (morte), deverão V.as Ex.as concluir pelo preenchimento, in casu, de todos os pressupostos da responsabilidade civil da Ré devendo esta ser condenada no peticionado pelos autores, mormente o montante de 106.875€. acrescido de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.

XVI. Porém, mesmo mantendo-se intacta a matéria factual provada em 1ª instância, entendem os recorrentes que ainda assim se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil da Ré, mormente, nexo de causalidade entre o facto e o dano. Isto porque: A nossa lei acolheu, no artigo 563º do C.C., a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente (…)

XVII. (…), o STJ tem perfilhado o entendimento de que, segundo a doutrina da causalidade adequada consignada no artigo 563° do Código Civil, para que um facto seja causa de um dano, é necessário antes de mais, que no plano naturalístico ele seja condição sem a qual o dano não se terá verificado e depois que em abstracto ou em geral seja causa adequada do mesmo.

XVIII. Não existe causalidade adequada quando o dano se verifique apenas por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que tenham interferido no processo de causalidade. No nosso sistema, o art.° 563° do Código Civil consagra a vertente mais ampla da causalidade adequada, ou seja, a sua formulação negativa, certo que não exige a exclusividade do facto condicionante do dano.

XIX. Neste contexto, é configurável a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, do mesmo passo que se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie um outro que suscite directamente o dano. Este não tem que ser necessariamente provocado por uma só condição e a doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição. O nexo causal entre o facto e o dano não tem de ser directo ou imediato (…).

XX. In casu está em causa saber se à luz da matéria de facto dada como provada é possível estabelecer uma relação de imputação do resultado — morte do bombeiro — à inalação do fumo no incêndio onde se encontrava a trabalhar. Resulta da matéria provada que da declaração de óbito quer a mesma se ficou a dever a infecção respiratória grave e/ou outros estados mórbidos, factores ou estados fisiológicos que contribuíram para o falecimento da vítima. Ponderando globalmente o processo causal de que derivou a morte do bombeiro, constata-se que se inserem nesse processo como condições essenciais do mesmo, ou seja, condições sem as quais o resultado não teria ocorrido, "a inalação de fumos".

XXI. Na verdade, a resposta que o tribunal deu à causa da morte — insuficiência respiratória grave com outros estados mórbidos –, não poderia daí concluir-se, como fez o Tribunal de 1ª Instância e posteriormente o Tribunal de que se recorre, que a morte do bombeiro foi causada pelo seu anterior estado clínico, mas ao contrário, que a causa primeira dessa morte foi a inalação de fumo a que o mesmo esteve exposto.

XXII. Assim sendo, mostrando-se apurado o nexo de causalidade entre o facto e o dano (inalação excessiva de fumo/morte), ou pelo menos, o falecimento do bombeiro BB ficou a dever-se, também, à grande inalação de fumo aquando da sua presença no incêndio referido em B) e C), que lhe determinou uma infecção respiratória grave, que por seu turno, desencadeou o estado mórbido de ordem hepática, que o levou à morte, e os demais pressupostos da responsabilidade civil, deverão V.as Ex.as condenar a Ré no peticionado pelos autores.

XXIII. Porém, mesmo que não se alterasse a decisão da matéria de facto (a qual deveria ser alterada nos termos que referimos, isto para além de existirem motivos para que mais diligências probatórias se realizem ao abrigo do disposto no artigo 662°, n° 2 do CPC), uma vez confrontados com uma situação de várias causas determinantes do falecimento do malogrado bombeiro, importaria determinar em que medida ou percentagem foi a infecção respiratória causada pelo incêndio causa da morte, nessa mesma medida devendo ser arbitrada indemnização aos autores.

Ao decidir nos termos constantes da sentença recorrida, violou o tribunal a quo o disposto nos artigos 563°, 562° e 566°, todos do C.C., bem como a al. b) do nº 2 do artigo 662° do CPC.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, condenando-se a recorrida no montante peticionado pelos autores. Assim sendo, farão V.as Ex.as inteira e sã justiça”.


A ré contra-alegou, sustentando a decisão recorrida e concluindo nestes termos:

“(…).

H. Apresentando-se exuberantemente demonstrado nos autos, em termos de prova produzida, e factualidade provada em rigorosa e total consonância com aquela prova – que a morte do BB foi consequência de patologia de infecção respiratória grave de origem nosocomial (surgida, provocada e desenvolvida por virtude de internamento hospitalar), de entre outras patologias antecedentes do próprio BB, que potenciaram o agravamento do seu estado clínico muito fragilizado.

I. Perante a exuberante prova produzida e a factualidade em discussão, os factos provados apresentam-se exaustivamente esclarecidos e motivados, inexistindo fundamento para quaisquer diligências de prova adicionais, questão aliás que os autores, ora recorrentes, nunca antes suscitaram”.


3. Vem provado o seguinte (da 1ª Instância e mantido pela Relação, que desatendeu a impugnação de parte da decisão de facto):

“A. BB, em Julho de 2010, era Bombeiro da Cooperação dos Bombeiros Voluntários de E…;

B. No dia 23 de Junho de 2010, foi solicitado pela CDOS-A… à Corporação dos Bombeiros Voluntários de E… a sua colaboração num combate a um incêndio de grandes dimensões que lavrada, nessa altura, em Arcos de Valdevez, Concelho de Ponte de Lima, distrito de Viana do Castelo;

C. Na sequência desse pedido, encontrando-se em pleno exercício das suas funções de Bombeiro, e sobre as ordens e orientação dos Bombeiros Voluntários de E…, o BB, juntamente com mais 4 bombeiros, deslocaram-se, no dia 23 de Julho de 2010, pelas 18h55m, para efectuar o combate ao fogo, onde permaneceram até às 22h30m do dia 24-07-2010, já que este era de grandes proporções, com uma frente activa de vários quilómetros;

D. Enquanto a Corporação de BV de E… permaneceu no local, efectivando todos os esforços ao seu alcance para combater o referido incêndio, o referido BB era um dos elementos dessa Corporação que se encontrava na frente de combate, aliás como era seu apanágio em todos os incêndios;

E. A referida Corporação de Bombeiros permaneceu no local de combate ao incêndio cerca de 27 horas e 35m, período que o BB também permaneceu a trabalhar no combate àquele;

F. Na manhã do dia 24 de Julho de 2010, o BB, que se encontrava na linha da frente de combate ao incêndio, sentiu-se cansado e, nessa sequência, os seus companheiros de “luta”, decidiram resguardá-lo do combate ao incêndio, ficando na rectaguarda.

Ao final do dia foram substituídos por colegas, sendo transportados para o quartel dos BBV de E…, onde chegaram por volta da 1h30m, do dia 25 de Julho de 2010;

G. No percurso entre o local do incêndio até ao Quartel e mesmo já na Corporação o BB queixava-se de dificuldades em respirar;

H. Uma vez regressados ao quartel não foi transportado para o hospital, decisão, esta, que o BB aceitou;

I. Porém, quando o BB já se encontrava em casa, e porque não apresentava quaisquer melhorias no seu estado de saúde, a Autora, ainda no dia 25 de Julho de 2010, transportou-o ao Hospital S. S…, em …, onde deu entrada nesse mesmo dia, pelas 23h57m, tendo aí ficado internado 14 dias seguidos, até ao seu falecimento;

J.O falecimento ocorreu no dia 12 de Agosto de 2010 e teve como causa directa infecção respiratória grave, e como outros estados mórbidos factores ou estados fisiológicos que contribuíram para o falecimento cirrose hepática e peritonite bacteriana espontânea;

L. Sob a apólice BO4…, foi celebrado entre a Câmara Municipal de O… e a então JJ - Companhia de Seguros, S.A., contrato de seguro designado de “Seguro Obrigatório de Acidentes Pessoais – Bombeiros”, que abrangia os membros da Corporação de Bombeiros de E…, que o falecido integrava, com as cláusulas gerais constantes de fls. 51 e ss. e 160 e ss dos autos;

M. Nesse seguro vida/acidentes pessoais, eram beneficiários os Bombeiros que faziam parte da Corporação de B. V. E…, incluindo o BB.

N. Sob o nº 2700/11.0T2OVR, correu termos pelo Juízo de Média Instância Cível de Ovar, Comarca do Baixo Vouga, acção declarativa, processo sumário, em que foram autores todos os herdeiros do falecido, incluindo a aqui autora, e a aqui ré;

O. Em tais autos, cuja causa de pedir era parcialmente coincidente com a dos presentes autos, na parte em que assentava no falecimento de BB, foi proferida douta Sentença, transitada em julgado, que julgou provados, de entre outros, os factos seguintes:

“ /…/

9º O falecido era seguido em consulta de oncologia do Hospital S. S…, em …, por pico monoclonal igg (mieloma), estando controlado desde 2008 e apresentava antecedentes de hepatopatia diagnosticada e controlada desde 2007.

/…/

14º Do certificado de óbito do marido da autora, BB, consta como causa da morte “ infecção respiratória grave” e como outros estados mórbidos, factores ou estados fisiológicos que contribuíram para o falecimento:

“cirrose hepática, insuficiência hepática e peritonite bacteriana espontânea” . /…/ ”

P. O falecido BB vinha sendo seguido em consulta de oncologia, no Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, EPE desde Junho de 2008.

Q. O seu historial clínico revelava antecedentes de

“ /…/

- DHCA, abstinente desde 2002, e com Seguido pela gastrenterologia (Dra. KK)

Com insuficiência hepática variável entre Child A e B, com hipertensão por tal (varizes esofágicas grau I ) e bicitopenia.

Em 2005 foi referenciado para transplante hepático, mas não prosseguiu o estudo porque não tinha insuficiência hepática grave, nem nenhuma complicação.

Manteve-se em rastreio do CHC semestralmente.

- MGUS ( IgG/ lambda) : seguido pelo Dr. LL – HTA /…/”

R). E o internamento do falecido BB foi devido a “ insuficiência hepática e infecção respiratória nosocomial + PBE em resolução”, segundo informação prestada pelo Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, EPE.

S) De acordo com as informações prestadas por aquela Instituição, o que motivou a admissão do falecido BB, o diagnóstico de “ /…/ choque séptico ponto de partida abdominal, DHCA com indicação de transplante se vier a melhorar estado geral, insuficiência respiratória + colonização Sten e pancitopenia /…/ ”.

T) Durante o internamento, foram identificados a BB os seguintes problemas:

“ /…/

# choque séptico com ponto de partida abdominal: peritonite secundária?

 PBE?

# cirrose hepática Child C

- com http: ascite hipetesplenismo com pancitopenia. Varizes esofágicas.

# insuficiência hepática agravada com diátese hemorrágica

# infecção respiratória grave – provavelmente nosocomial.

U) A inalação de fumos seria apta, porventura, a desencadear um quadro de insuficiência respiratória que pudesse necessitar de compensação por oxigenoterapia;

V). O quadro séptico que leva à morte tem componente toráxica e abdominal, em doente fragilizado por insuficiência hepática grave;

W). Por processo de fusão entre a “JJ - Companhia de Seguros, S.A.” e a “Companhia de Seguros MM, S.A.” (operada por transferência global do património da primeira, incorporada, para a segunda, incorporante), no dia 31 de maio de 2012 procedeu-se ao registo desta fusão e de alterações efectuadas aos Estatutos, de que também resultou a alteração da denominação da firma da sociedade incorporante;

X. Assim, a partir de tal data, a “Companhia de Seguros MM, S.A.” , passou a usar a denominação / firma “ CC – Companhia de Seguros, S.A. ”;

Y. Face à referida fusão por incorporação, esta “ CC – Companhia de Seguros, S.A.” sucedeu em todos os direitos e obrigações da “ JJ - Companhia de Seguros, S.A.”;

Z. O contrato de seguro tem o limite de capital indemnizatório de €.106.875,00 para o dano morte, sem franquia.”

                                                   

E foi considerado não provado que

“a)- O falecido BB tenha sentido falta de ar às 22h30m do dia 24 de Julho e nessa hora tenha sido retirado do local do incêndio;

b)- A morte do BB se tenha ficado a dever à grande inalação de fumos aquando da sua presença no incêndio”

4. Estão assim em causa as seguintes questões:

Alteração da decisão de facto, tendo em conta “toda a prova documental e testemunhal” referida nas alegações, da forma indicada na conclusão XIIIª;

– Nexo de causalidade entre a inalação de fumo no incêndio de 23 e 24 de Julho de 2010 e a morte de BB, quer se altere, quer não se altere a decisão de facto.

5. Antes de as apreciar, cumpre porém ter em conta:

– que, como a 1ª instância decidiu e a Relação recordou, e não está em causa neste recurso, BB era beneficiário do seguro contratado com a ré, não valendo como causa de exclusão a sua situação de saúde, provada no processo. Reafirma-se este dado porque é relevante para o apuramento do nexo causal de que resultou a sua morte, pois da motivação do acórdão recorrido decorre que foi ponderado que os médicos ouvidos aceitaram que “a exposição ao incêndio por parte do bombeiro BB, dado o seu estado de doente crónico, aumentou o risco de infecção e a [in]capacidade de a debelar…” (acórdão recorrido, fls. 379).

– que os recorrentes não invocaram perante a Relação a necessidade de produzir novos meios de prova, para completar a prova produzida, por existir “dúvida fundada sobre a prova realizada” (al. b) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil), e que estavam preenchidas as condições para a utilização deste poder-dever da Relação. Aliás, não se retira do acórdão recorrido nenhuma dúvida sobre a prova realizada; a razão da improcedência da acção foi, também na Relação, a falta de prova do nexo de causalidade.

6. Os recorrentes pretendem, em primeiro lugar, que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão de facto, no que respeita ao estabelecimento do nexo de causalidade naturalístico entre a inalação de fumos no incêndio e a morte de BB.

Como todos sabemos, não cabe no âmbito do recurso de revista alterar o julgamento de facto que vem das instâncias, salvo quando estejam em causa meios de prova com valor tabelado, ou regras que exijam determinado meio de prova (cfr. artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2 do Código de Processo Civil). Quanto ao nexo de causalidade, necessário enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, apenas lhe compete verificar se foram ou não observados os critérios legalmente definidos pelo artigo 563º do Código Civil, na subsunção dos factos provados (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 21 de Setembro de 2006, www.dgsi.pt, proc. nº 06B2739, de 21 de Maio de 2008, www.dgsi.pt, 08B1567, de 27 de Novembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B4585 ou de 14 de Abril de 2011, www.dgsi.pt , proc. nº 3075/05.2TBPBL.C1.S1).

No caso, não estão presentes as condições para que o Supremo Tribunal de Justiça possa, no presente recurso, proceder a qualquer alteração. Em particular, e seria essa a alteração vedada ao Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de passar a considerar provado que “o falecimento de BB ficou a dever-se, única e exclusivamente, à grande inalação de fumo aquando da sua presença no incêndio durante 27 horas seguidas, que lhe determinou uma infecção respiratória grave, que o levou à morte”.

Com efeito, vem provado que, naturalisticamente, a causa directa da morte foi uma infecção respiratória hospitalar grave, e que houve “outros estados mórbidos, factores ou estados fisiológicos” – “cirrose hepática e peritonite bacteriana espontânea” – “que contribuíram para o falecimento”. E vem não provado, naturalisticamente também, que “a morte de BB se tenha ficado a dever à grande inalação de fumos aquando da sua presença no incêndio”.

Interpretada globalmente a decisão de facto, é forçoso concluir que está naturalisticamente assente, sem possibilidade de modificação pelo Supremo Tribunal de Justiça, que a inalação de fumos não foi a única causa da infecção respiratória que directamente provocou a morte.

7. Mas o Supremo Tribunal de Justiça não está impedido, sempre respeitando a decisão de facto, de analisar o encadeamento factual que veio a culminar nessa infecção respiratória hospitalar e na morte, procurando determinar se foi ou não relevantemente desencadeada pela participação no combate ao incêndio.

Na verdade, um dano não é, apenas, a consequência da sua causa imediata (no caso, da infecção respiratória de origem hospitalar); em regra, é produto de um encadeamento ou sequência de causas.

É certo que nem todas as causas fácticas ou naturalísticas poderão ser juridicamente havidas como causa do dano ocorrido; para tanto, hão-de integrar o critério da causalidade adequada, constante do já citado artigo 563º do Código Civil.

Há pois que ponderar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não objectivamente provável que a participação num combate prolongado a um incêndio de grandes proporções, como o dos autos, de um bombeiro com o estado de saúde débil como o de BB, era ou não apta a desencadear um processo que implicasse internamento, e que o tornasse particularmente vulnerável ao desenvolvimento de uma infecção respiratória de origem hospitalar que culminasse com a sua morte. E a resposta só pode ser afirmativa.

Note-se que esta conclusão não implica aceitar, como tese geral, que, quanto mais débil for o estado geral de saúde de um beneficiário de um seguro de vida, mais gravosa poderá ser a responsabilidade da seguradora; no caso concreto, terá esse efeito, porque a ré apenas aceitou a lista de beneficiários que lhe foi enviada sem exigir qualquer declaração sobre o respectivo estado de saúde, tornando-o irrelevante para a cobertura do seguro.

Nem tão pouco contraria o que se encontra assente em “U) A inalação de fumos seria apta, porventura, a desencadear um quadro de insuficiência respiratória que pudesse necessitar de compensação por oxigenoterapia”, desde logo por estar em causa uma infecção respiratória hospitalar, não decorrente directamente da inalação de fumos.

8. Aqui chegados, caberia fixar a indemnização a pagar aos recorrentes, obviamente não calculada pela Relação. Entende-se que o Supremo Tribunal de Justiça não o pode fazer, desde logo por a tanto o impedir o disposto no artigo 679º do Código de Processo Civil, quando exclui a aplicação do nº 2 do artigo 665º do mesmo Código.

Assim, anula-se a decisão recorrida e determina-se que o processo regresse à Relação para ser calculada a indemnização, pelos mesmos juízes se for possível.

Custas segundo a proporção que vier a ser fixada a final, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 27 de Abril de 2017

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

Nunes Ribeiro (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)

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Declaração de Voto

Da factualidade apurada pelas instâncias não é possível nem legítimo concluir, em nossa opinião, que a alegada (mas não provada) inalação de fumos pelo falecido BB, durante a sua intervenção no incêndio, tenha sido causa ou concausa da sua morte. Aliás, o tribunal recorrido julgou mesmo como facto não provado que: «A morte do BB se tenha ficado a dever à grande inalação de fumos aquando da sua presença no incêndio».

Por outro lado, tem constituído jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que o juízo sobre o nexo de causalidade constitui matéria de facto e, como tal, subtraída à sua censura, enquanto tribunal de revista (vide, entre outros, Ac. STJ de 17-11-77 e de 23-10-79, in BMJ, respectivamente, 271º-207, e 290º-390, e de 09-7-2015, in proc. nº 5105/12.2TBXL.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt).

Negaria, por isso, a revista e confirmaria o acórdão recorrido, como sustentei no projecto que não obteve vencimento.