Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6431/13.9TBOER.L1.S3
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: HERANÇA
LEI PESSOAL
TESTAMENTO
APLICAÇÃO DE LEI ESTRANGEIRA
FORMA DO TESTAMENTO
CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - Para os efeitos do n.º 2 do art. 65.º do CC não é toda e qualquer exigência relativa à forma, que se contenha na lei pessoal do autor da herança, que deve ser respeitada no momento da declaração, mas apenas aquelas que a lei pessoal do autor manda aplicar ainda que o acto seja praticado no estrangeiro;
II - Assim, para o caso de um espanhol que faça o testamento em Portugal, só terá relevância, nos termos do referido n.º 2 do art. 65.º do CC, uma norma do ordenamento jurídico espanhol que, à semelhança do art. 2223.º do CC português, afirme a sua vontade de aplicação ainda que o acto seja praticado no estrangeiro;

III - Não estabelecendo a lei espanhola a observância dos requisitos de forma previstos nos arts. 695.º e 696.º no CC espanhol para os actos praticados no estrangeiro, não tem o testamento feito em Portugal por cidadã espanhola de observar os referidos requisitos de forma;

IV - A apreciação judicial da capacidade da testadora espanhola no momento da outorga do seu testamento em Portugal deve ser feita de acordo com a lei espanhola interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nela fixadas, com apelo à jurisprudência e à doutrina dominantes em Espanha;

V - Neste contexto, verifica-se que a jurisprudência espanhola, em concreto, a Sala Civil do Supremo Tribunal Espanhol tem interpretado os arts. 662.º a 666.º no CC espanhol, consistentemente, no sentido de se presumir a capacidade mental do testador para entender e querer o sentido da sua declaração testamentária, sendo tal presunção susceptível de ser ilidida mediante prova inequívoca, completa e convincente em contrário;

VI - De acordo com a mesma jurisprudência, é ao interessado na invalidade do testamento que compete o ónus de ilidir essa presunção e provar a ausência ou a falta de capacidade mental do testador no momento da outorga do do testamento;

VII - Ora, no caso em apreço, apesar de se ter provado que a testadora padecia de doença neurodegenerativa que afectava a sua capacidade cognitiva, em concreto, uma “atrofia cerebral difusa e bilateral com maior preponderância em regiões amigdalo-campais e insulo-opercular”, devendo incluir-se no diagnóstico diferencial “doenças de índole neuro degenerativa tipo Alzheimer”, que tinha, na altura, em que foi celebrado o testamento oscilações cognitivas ao longo dos dias, tendo, por vezes, um discurso incoerente e de confusão, verifica-se, no entanto, que não se provaram factos que permitam concluir que, no preciso momento em que foi celebrado o testamento, a testadora não estivesse no seu juízo normal ou desprovida das capacidades mentais necessárias para o efeito.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:



*




AA, BB, CC e DD intentaram acção declarativa de simples apreciação, com a forma de processo comum, contra EE, FF e GG, pedindo que seja judicialmente reconhecido e declarado que:


HH aquando da outorga do testamento identificado na petição, se encontrava no pleno gozo das suas faculdades mentais e com capacidade para o outorgar;


- a testadora entendeu perfeitamente o sentido das declarações prestadas no testamento, bem como das disposições que nele fez ;


-outorgou o referido testamento de livre e espontânea vontade.


Para tanto, alegam, em síntese: que em 8/10/2010, HH, no pleno gozo das faculdades mentais e de livre e espontânea vontade, outorgou testamento no qual instituiu legados a favor dos A.A. e de outros, tendo falecido em .../9/2013; que os R.R. têm questionado a capacidade cognitiva da testadora para compreender o alcance das declarações prestadas e que o testamento tenha obedecido ao formalismo da lei espanhola, condutas que dificultam a execução das deixas testamentárias e a partilha de bens, pelo que os A.A. optam pela acção de simples apreciação.


Regularmente citados, vieram os R.R. contestar, defendendo-se por excepção, invocando a preterição de litisconsórcio necessário, a ineptidão da petição inicial, e a nulidade da cláusula proibitiva da impugnação do testamento.


Deduziram, ainda, pedido reconvencional, alegando: que a testadora, à data do testamento, se encontrava num estado de incapacidade cognitiva geral que a impossibilitava de redigir um documento com a complexidade do que assinou, com considerações que foram impostas ou dolosamente sugeridas pelos A.A. AA e BB; que a testadora foi impedida de exercer livremente a sua vontade em consequência de coacção moral exercida pelos A.A. AA e BB, tendo assinado o testamento que não entendida minimamente, depois de treino a que foi submetida pelos A.A. AA e BB, com medo de ser abandonada pela filha AA e ante acusações de desamor dos demais filhos; e que a testadora violou a proibição de disposição de bens alheios, pelo que estas disposições, mesmo que tivessem sido feitas de forma livre e voluntária, encontram- se feridas de nulidade.


Concluem pela sua absolvição da instância, em virtude de ilegitimidade dos R.R. e ineptidão da petição inicial, devendo considerar-se nula e de nenhum efeito a cláusula sancionatória da apreciação de tais ilegalidades do Testamento, de linhas 16a a 20a, do Testamento de 8/10/2010.


Formulam os seguintes pedidos reconvencionais:


-Que se declare o testamento em causa nulo, ou anulado, por ofensa ao art° 670° do Código Civil Espanhol, que o qualifica como um acto pessoalíssimo, não correspondendo à vontade de HH, que não participou na sua elaboração, sendo coagida moralmente e faltando-lhe a capacidade genérica, para gestão da sua pessoa e em especial para o ato impugnado (alínea D) do pedido reconvencional);


-Que se declare o testamento nulo, por a Testadora em 8/10/2010, no acto de assinar o Testamento o ter feito como resultado de uma continuada coacção moral - art° 673° do Código Civil Espanhol - exercida pela filha AA e pelo filho BB, num quadro de ausência cognitiva, sendo levada a assinar um acto que não entendia, minimamente, mas que por medo de ser abandonada pela filha AA (alínea E) do pedido reconvencional);


-Que se condenem os Reconvindos AA e BB, em consequência da coacção e do dolo essencial, que praticaram de forma contínua e determinante sobre sua mãe, levando- a a assinar aquele acto coagida, ao afastamento, por indignidade, da herança cujas legítimas reverterão a favor dos demais herdeiros, para além de a terem coagido e impedido de poder mudar o Testamento (alínea F) do pedido reconvencional) ;


-Que se anule o testamento impugnado, não só por efeito do n° 5o do art° 756° do Código Civil Espanhol, mas igualmente a coberto do seu n° 6o tendo como referência o momento subsequente (em que se procurou impedir a revogação ou modificação do Testamento), que constitui causa de indignidade (alínea G) do pedido reconvencional);


-Que se considere que testadora não possuía o juízo normal (cabal juicio), a que se refere o Acórdão do Tribunal Supremo de 11/12/1962 (alínea H) do pedido reconvencional);


-Que se declare o testamento nulo, por dolo e fraude, traduzidos nas atitudes enganosas da Testadora, falsos motivos da sua saída de casa no dia 8/10/2010 e às escondidas dos demais herdeiros, com falsas declarações que impuseram às enfermeiras para o camuflarem, nos termos ainda do art° 673° do Código Civil Espanhol (alínea I) do pedido reconvencional) ;


-Que se anule o Testamento, quanto aos bens de que não era a única titular, em virtude de a Testadora ter disposto, como se fossem coisas exclusivamente suas, de bens legados, que não eram bens próprios e da sua meação nos bens comuns (alínea J) do pedido reconvencional);


-Que, se se entender não ser fundamento de anulabilidade, deverão as deixas de bens parcialmente próprios, nos termos dos art°s. 817° e 818°, do mesmo diploma, serem reduzidos por inoficiosidade (alínea K) do pedido reconvencional) ;


-Que se qualifiquem os A.A./Reconvindos, AA, BB, como herdeiros indignos, para os efeitos do art° 756° n° 5 do Código Civil Espanhol, e daí considerados incapazes para sucederem à Testadora, acrescendo as suas legítimas às dos demais herdeiros (alínea L) do pedido reconvencional);


-Que, face à recusa dos Reconvindos em facultarem toda e qualquer documentação que ao património de seus pais se refere, nomeadamente à documentação bancária que se encontra na residência da testadora, não resta aos Reconvintes outra solução, que não seja requerer o arrolamento de todos os bens, inclusive dessa documentação, na posse do herdeiros AA e BB (alínea M) do pedido reconvencional);


-Que os bens são facilmente sonegáveis à herança e estão na livre disposição da herdeira AA, impede aos demais, o acesso ao andar pertencente à herança, 11° andar, do prédio sito na Rua ..., ..., correndo o risco de poderem ser sonegadas à partilha, em especial, as jóias de valor elevadíssimo, que se encontram nos cofres existentes na residência da A. da sucessão (alínea N) do pedido reconvencional);


-Que a mesma herdeira, retém ainda ilegalmente numerosa documentação, composta por muitas dezenas de cartas e documentação oficial, pertencentes a sua mãe, imprescindíveis para a elaboração do inventário e partilha, a requerer, e ao cálculo do valor da herança e da legítima, de cada herdeiro, sendo a correspondência furtada e documentação nela incluída, enviada à autora da sucessão, é essencial para determinar o valor da herança a declarar na partilha, de que faz parte a correspondência enviada pelos Bancos “Millennium BCP” e “Banco Popular” (alínea O) do pedido reconvencional) ;


-Que, dada a nulidade do Testamento, ou a sua anulabilidade, o mesmo destino terá a Testamentária, a qual é atingida pela invalidade total do Testamento, cuja anulação igualmente se requer (alínea P) do pedido reconvencional).


Os A. A., em réplica, responderam às excepções deduzidas pelos R.R., pugnaram pela não admissão do pedido relacionado com a nulidade da cláusula proibitiva da impugnação do testamento, bem como pela ilegitimidade passiva relativamente aos pedidos reconvencionais.


Referem que os problemas de saúde de HH não reduziram a sua capacidade cognitiva, tendo a mesma dado ao Dr. II, que veio a ser nomeado testamenteiro, as instruções relativamente ao testamento que pretendia outorgar; negam que tivesse sido exercida qualquer coacção sobre a testadora, alegando que esta se deslocou ao escritório do Dr. II com perfeito conhecimento do que ia ali fazer.


Pugnam pela improcedência dos pedidos reconvencionais constantes das alíneas D), E), F), G), H), I), J), L), pela existência de erro na forma do processo relativamente aos pedidos constantes das alíneas K), M), N), e O).


Impugnam diversa factualidade alegada pelos R.R. e concluem pela improcedência das excepções por estes deduzidas, pela procedência da excepção de ilegitimidade passiva relativamente aos pedidos reconvencionais, pela improcedência da reconvenção, pela procedência do incidente de falsidade, e pela procedência da acção.


Os R.R. vieram requerer a intervenção principal provocada de JJ e de KK, atenta a sua qualidade de legatários.


Foi admitida a intervenção daqueles como associados dos A.A./Reconvindos quanto ao pedido reconvencional contra os mesmos deduzido de declaração de nulidade/anulação do testamento.


Regularmente citados, JJ e KK apresentaram articulado no qual declaram aderir aos factos e fundamentos invocados pelos R.R..


Foi elaborado despacho saneador que :


-Indeferiu a suspensão da instância.


-Admitiu parcialmente o pedido reconvencional, apenas no que tange aos pedidos formulados relativos à invalidade do testamento e indignidade sucessória dos A.A..


-Absolveu os A.A. da instância reconvencional relativamente aos pedidos formulados nas alíneas J, K, M, N, e O.


-Julgou improcedentes as excepções de ineptidão da petição inicial e ilegitimidade.


Em consequência, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.


Após julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a reconvenção improcedente, constando da parte decisória da mesma :


“Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente e improcedente a reconvenção e em consequência decide-se :

a) declarar que HH aquando da outorga do seu testamento em 08 de Outubro de 2010, encontrava-se com capacidade necessária para o outorgar e entendeu o sentido das declarações prestadas no testamento, bem como das disposições que nele fez;

b) declarar que HH outorgou o referido testamento de livre e espontânea vontade;

c) Não julgar nula a cláusula constante das linhas 16a a 19a, da ??? página do testamento de HH, nos termos da qual, se algum dos herdeiros não respeitar as disposições testamentárias, aquando da partilha hereditária, a sua quota hereditária ficará reduzida à legítima estrita, a qual lhe deverá ser abonada em dinheiro e entregue pelo testamenteiro, após prévia colação do que o herdeiro em causa tiver recebido em vida;

d) Absolver os Autores e Intervenientes dos pedidos reconvencionais formulados e admitidos.


Condenam-se os RR nas custas da acção e da reconvenção (cfr. art. 527°n°s 1 e 2 do N.C.P.C.) com parcial dispensa do pagamento do remanescente a partir do valor de €1.000.000,00 - um milhão de euros (entendendo que a faculdade de dispensar ou não o pagamento do remanescente inclui a faculdade de dispensar parcialmente), por considerar que o valor da causa fixado no despacho saneador não é consentâneo com a sua real complexidade, justificando-se a sua redução para este efeito, embora não a dispensa total, face ao longo processado, à profusão de testemunhas ouvidas e duração do julgamento, e relativa complexidade das questões a analisar envolvendo direito estrangeiro que foi necessário estudar (cfr. art. 527°n°s 1 e 2 do N.C.P.C. e art. 6o 7 do R.C.P.).


Registe e notifique”.


Desta decisão interpuseram os R.R. FF, e GG recurso de apelação, tendo a Relação elencado as seguintes questões decidendas: saber se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na Ia instância: saber se o testamento em causa é nulo quanto à forma.; saber se a cláusula sociniana constante do testamento é válida.


O R. EE também interpôs recurso de apelação da sentença tendo a Relação identificado, a partir das conclusões, as seguintes questões: saber se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na Ia instância; saber se o testamento é nulo por inobservância dos requisitos imperativos da lei espanhola para a feitura de testamento aberto; saber se o testamento é nulo por incapacidade da Testadora; Saber se o testamento é nulo por ausência de expressão da vontade livre e espontânea da testadora.


Conhecendo das respectivas apelações, a Relação concluiu que nem a apelação deduzida pelas R.R. FF e GG, nem a apelação deduzida pelo R. EE mereciam provimento, pelo que confirmou a sentença, sintetizando, assim, em sumário, os fundamentos:


“1. O despacho saneador que absolva o autor do pedido reconvencional é susceptível de recurso autónomo de apelação ao abrigo do art° 644° n° 1, al. b) do Código de Processo Civil, pelo que não pode o mesmo ser objecto de impugnação no recurso que vier a ser deduzido da sentença final.


2. Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”.


3. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640° do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados.


4. É formalmente válido o testamento público celebrado em Portugal por cidadão espanhol, com as formalidades da lei portuguesa.


5. Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal.


6. Essa interpretação, de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura.


7. Atento o preceituado no art0 342° n° 1 do Código Civil, é sobre o interessado na anulação do testamento que recai o ónus da prova dos factos dos quais se possa concluir por essa incapacidade do testador.”


Não se conformaram os réus que interpuseram recurso de revista normal e, subsidiariamente, revista excepcional do acórdão da Relação.


Na Relação, o relator não admitiu o recurso de revista normal com fundamento na existência de dupla conformidade, mas admitiu a revista excepcional.


Entretanto, os recorrentes reclamaram do despacho que não admitiu a revista excepcional, o que deu origem a dois processos: o da reclamação relativo à retenção da revista normal e o da revista excepcional que foi atribuída a outro relator.


Ponderou-se, então, que a reclamação tinha de ser decidida prioritariamente: se fosse deferida, o processo da revista excepcional deveria ser apensado à reclamação (art. 643º, nº 6 do CPC), para prosseguir como revista normal, com o mesmo relator; se não fosse deferida, o despacho que não admitiu a revista normal transitaria em julgado (cfr. Ac. STJ de 9.11.207, proc. nº 2780/10.6TBSTB.E2.A1, Sumários do STJ) e a reclamação deveria ser remetida para apensação ao processo da revista (excepcional), que continuaria afecta ao outro relator (a).


De seguida, conheceu-se da reclamação nos seguintes termos:


“(…) O despacho reclamado, que não admitiu o recurso de revista normal, referiu que a fundamentação do acórdão da Relação, se bem que com algumas diferenças, acolheu totalmente a decisão da 1ª instância e tanto assim foi que na parte da decisão decisória não fez qualquer ressalva na confirmação, pelo que concluiu estar-se perante num caso nítido de dupla conforme.


Reclamam os recorrentes deste entendimento, argumentando, que tendo a questão da invalidade do testamento por inobservância da forma prescrita pelo direito espanhol sido só apreciada pela Relação não se pode dizer que a fundamentação das decisões das duas instâncias não seja essencialmente diferente.


Vejamos.


Os recorrentes suscitaram na Relação uma questão: a de que o testamento outorgado por D. HH é nulo uma vez que o notário não apôs no mesmo a hora em que se realizou o testamento, não explicou o seu conteúdo à testadora, nem consignou no mesmo que, a seu juízo, a D. HH se encontrava com capacidade para outorgar um testamento. E daí concluíram que o testamento devia ter sido considerado nulo por não ter observado os requisitos de forma previstos nos arts. 731º, 687º, 884º e 698º do CCE (Código Civil Espanhol), matéria que era do conhecimento oficioso. Apreciando, a Relação concluiu, todavia, que o testamento é válido a face da lei portuguesa, que é a aplicável, uma vez que não se vislumbra no mesmo qualquer motivo de invalidade formal; que o testamento da D. HH observou a forma do local onde foi outorgado (Portugal) o que é suficiente para lhe conferir validade e eficácia, sendo que as omissões apontadas pelos recorrentes, mencionadas na lei espanhola, são algo de diverso da forma do acto, razão pela qual tais omissões não podem conduzir à sua nulidade.


Esta questão da nulidade por inobservância dos requisitos da lei espanhola para a feitura do testamento não foi apreciada pela 1ª instância.


Como assim, não existe, em relação a esta matéria, dupla conformidade decisória, impeditiva do recurso de revista normal (cfr. Ac. STJ de 12.7.2018, proc. 2069/14.1T8PRT.P1.S1 e Ac. STJ de 14.7. 2016, proc. 111/12.0TBAVV.G1.S1, ambos em www.dgsi.pt; v., ainda, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, págs 368-369).


Mas no recurso de revista, os recorrentes invocam, ainda, o não cumprimento dos deveres da Relação em matéria da reapreciação da prova nos termos do art. 662º do CPC.


Ora, como é jurisprudência dominante, a impugnação do acórdão recorrido, na parte respeitante à decisão da matéria de facto, deve fazer-se através do recurso de revista em termos normais (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 366 e segs).


Por todo o exposto, defiro a reclamação e admito a revista normal.


Do mesmo passo, e porque, doravante, ficarei incumbido das funções de relator do processo distribuído à Conselheira Dr.ª Maria João Tomé, ordeno a apensação do referido processo a estes autos de reclamação (…).”


No recurso de revista, os recorrentes formularam conclusões, que remataram com o pedido: de que fosse declarado nulo o acórdão por omissão de pronúncia; de que fosse considerada violada a lei do processo, pelo não cumprimento dos deveres do art. 662º do CPC; em qualquer caso, de que fosse revogado o acórdão e substituído por outro que declare o testamento nulo por inobservância das disposições de que o direito espanhol faz depender a feitura e a validade do testamento aberto ou anulado por incapacidade da testadora para testar.


Os recorridos contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.


Apreciando o recurso de revista interposto, por este Supremo foi proferido acórdão que, concedendo a revista, anulou o acórdão recorrido e determinou a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para reapreciação da decisão de facto relativamente aos pontos 16, 29 e 30 e, de seguida, proferir nova decisão de direito. (…) “


Em conformidade, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu novo acórdão em que julgou totalmente improcedentes os recursos de apelação interpostos, confirmando a sentença.


Novamente inconformadas com tal decisão, as rés FF e GG vêm agora interpor novo recurso de revista normal e, subsidariamente, recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto pelos recorrentes FF e GG contra o acórdão proferido pelo Tribunal a quo em 17 de abril de 2023, que julgou totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelas recorrentes e manteve na íntegra a decisão de primeira instância que declarou é validado do testamento deixado pela Senhora D. HH dias Penha feito em 8 de Outubro de 2010 por considerar que a mesma se encontrava com capacidade ncessária para o outorgar.

B) O que fazem porque o Tribunal a quo fez uma errada aplicação do direito (i) quer quanto à questão da validade formal do testamento por inobservância das disposições de forma (imperativas) da lei pessoal da testadora ( cf. artigo 65.º, n.º 2 do CC; (ii) quer quanto à apreciação da capacidade de testadora para compreender e querer as disposições por morte que deixou em testamento-é este o objeto do presente recurso.


C) À luz deste objeto o presente recurso é admissível como revista comum,, porque não há dupla conformidade entre as decisões da primeira instância e da Relação: porque a Relação conheceu pela primeira vez a questão da validade formal do testamento de D. HH à luz do direito espanhol nos termos do artigo 65.º, n.º 2 do CC) e porque, para aferir da capacidade da testadora para testar a primeira instância aplicou uma “presunção”, com fundamento no direito espanhol, de capacidade da Testadora para testar, ao passo que a Relação aplicou a regra geral de repartição do ónus da prova do direito português.


D) Donde, seja porque, quanto à (in)validade formal do testamento só tenha havido uma pronúncia (a da Relação) e, por isso, não haja dupla conformidade, seja porque os fundamentos das decisões de primeira e de segunda instância são diferentes, o recurso é admissível como revista comum, em conformidade com o disposto no artigo 671.0, n.0 1, e n.0 3, a contrario, do CPC.

E) De todo o modo, ainda que assim não seja, o presente recurso é (subsidiariamente) admissível como revista excecional, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo n.0 672.0, n.0 1, als. a) e c), do CPC.

F) Primeiro, porque, tendo em conta as questões objeto deste recurso, a sua apreciação é necessária para uma melhor aplicação do direito.

G) A primeira questão que se coloca é a de saber quais as solenidades formais previstas na lei pessoal do autor de uma disposição por morte subsumíveis na norma do artigo 65.0, n.º 2, do CC, que, portanto, espoletem a reserva de aplicação dessa lei pessoal à validade formal do Testamento.

H) A segunda questão é a de saber como se reparte o ónus da prova entre os interessados na invalidade do Testamento e os interessados na manutenção do Testamento, quando esteja em causa apreciar essa (in)validade com fundamento em incapacidade acidental do Testador.

I) Ambas as questões são complexas do ponto de vista exegético — em particular a primeira, que convoca os conceitos de «qualificação» e de determinação da ratio da reserva de aplicação do estatuto pessoal do testador à validade formal do testamento — e não têm resposta unanime ou pacifica — em particular a segunda, que tem gerado decisões diferentes nas diferentes Relações e no Supremo.

J) E ambas as questões têm potência «extra muros», tendo em conta o aumento exponencial de residentes «estrangeiros» em Portugal, nos últimos anos, e tendo em conta — infelizmente — que são cada vez mais preponderantes (e crescentes) as afeções neurodegenerativas entre as populações dos países civilizados — o que faz com que haja uma grande probabilidade de multiplicação de casos como o que nos ocupa.

K) De todo o modo, o presente recurso é também admissível como revista excecional porque o Acórdão Recorrido está em contradição com outro, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 11 de abril de 2013, sobre a mesma questão fundamental de direito.

L) Conforme já vimos, uma das questões que se colocou perante o Tribunal Recorrido foi a de saber como se reparte o ónus da prova entre os interessados na invalidade do Testamento e os interessados na manutenção do Testamento, quando esteja em causa apreciar essa (in)validade com fundamento em incapacidade acidental do Testador e os interessados na invalidade provem que em período contemporâneo da feitura do testamento a testadora estava afetada de doença neurodegenerativa.

M) Quanto a esta questão, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu, no Acórdão recorrido, aplicar a regra geral de repartição do ónus da prova dizendo que «é sobre o interessado na anulação do Testamento que recai o ónus da prova dos facto dos quais se possa concluir por essa incapacidade [acidental] do testador» e, por isso, diz que a prova feita «não legitima a conclusão de que na data do Testamento e nas semanas que precederam a sua celebração, com vista à sua preparação a testadora não estivesse dotadas [sic] das condições intelectuais necessárias à sua feitura, mesmo que não estivesse no esplendor da sua capacidade cognitiva».

N) Já este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão-fundamento, decidiu, diferentemente, que «ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico testamentário. por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença, que no plano clinico. é comprovada e cientificamente susceptivel de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento. e passivel de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente».

O) E mais que «Provado o estado de demência em periodo que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit: está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez».

P) Donde, é evidente que os acórdãos em questão decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito.

Q) Ademais, o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, uma vez que foram ambos proferidos a propósito da repartição do ónus da prova para efeitos de anulabilidade de testamento, à luz do disposto no artigo 2199.º do Código Civil, quando esteja em causa apreciar essa (in)validade com fundamento em incapacidade acidental do testador.

R) Por fim, não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre esta questão.

S) Consequentemente, havendo contradição entre os dois acórdãos e estando verificados os pressupostos de aplicação do artigo 672.º n.º 1, al. c), do CPC, deve a presente revista ser admitida como revista excecional.

Quanto aos fundamentos do recurso:

T) Pela primeira vez no recurso de Apelação as Recorrentes colocaram a questão — de conhecimento oficioso — da validade formal do testamento deixado por Senhora D. HH.

U) Com fundamento no facto de, apesar de o testamento ter sido feito em Portugal e poder considerar-se formalmente válido por observar as disposições de forma do lugar da sua feitura (cf. artigo 65.º, n.º 1, do CC), não terem sido observadas as prescrições de que a lei pessoal da Testadora — a lei espanhola — prevê, sob pena de nulidade, para a feitura do Testamento (cr. artigo 65.º, n.º 2, do CC).

V) As disposições por morte relativamente às quais se possa suscitar um conflito de leis potencialmente aplicáveis — como no caso presente, em que temos um testamento feito em Portugal, deixado por uma cidadã espanhola — são formalmente válidas se observarem os requisitos de forma previstos em alguma de várias leis (em alternativa): a do lugar do ato; a lei pessoal do autor da herança no momento do ato ou no momento da morte; a lei para que remeta a norma de conflitos da lei local.

W) Esta conexão alternativa tem a reserva prevista no n.º 2 do artigo 65.º do CC: se por aplicação de alguma das leis alternativas previstas no número anterior um Testamento fosse formalmente válido, ele não o será, em todo o caso, se a forma observada na sua feitura não respeitar as exigências que a lei pessoal ao momento da feitura da disposição por morte exija sob pena de nulidade ou ineficácia da disposição.

X) A ratio desta norma é acautelar um adequado processo de formacño da vontade que deve valer como a última; ou seja, garantir que o processo de formação de vontade previsto (sob pena de nulidade) na lei pessoal do autor da herança é seguido nas disposições por morte que este faça, onde quer que as faça.

Ora,

Y) Das normas dos artigos 695.º e 696.º do Código Civil Espanhol resultam as seguintes solenidades quanto ao processo de formação da vontade de dispor por morte em Testamento aberto:

a. Que o Testamento tenha indicação do lugar, ano, mês, dia e hora da sua outorga;

b. Que o Notário advirta o testador do direito que tem, de ler o Testamento por si;

c. Que o Notário faça constar que, no seu juízo, se encontra o testador com capacidade legal necessária para outorgar o Testamento.

Z) Já quanto às consequências da omissão destes requisitos essenciais prevê o artigo 687.º do CCE que: «Será nulo o Testamento cuja outorga não tenha observado as respectivas formalidades estabelecidas neste capítulo.»

AA) E a jurisprudência espanhola tem entendido que «o cumprimento destes requisitos de forma [a aposição da hora e a declaração do Notário] é inultrapassável e sem possibilidade de convalidação posterior».

BB) Donde, os requisitos de que os artigos do 695.º e 696.º do Código Civil fazem depender a feitura do testamento aberto não são «formalidades».

CC) São solenidades que consubstanciam o próprio Testamento, confundindo-se com a forma que o Direito espanhol exige para a feitura do Testamento aberto: elas asseguram um determinado modo de formação da vontade que o Direito espanhol exige para aquela que deve valer como última vontade, de tal forma que, não sendo observadas, o Testamento é nulo (cf. artigo 687.º do CCE).

DD) Foi justamente a observância destes requisitos que a reserva de aplicação da lei pessoal do Testador à validade «formal» do testamento que o legislador português quis assegurar ao preferir uma qualificação de substância (em vez de uma qualificação de forma): só assim se assegura que, independentemente de as formas de Testamento «público» e «aberto» serem admissíveis nos direitos português e espanhol, respetivamente, e, portanto, de um Testamento «público» feito por um espanhol em Portugal poder ser formalmente válido nos termos do artigo 65º, n.º 1, do CC, ele não será válido se os requisitos de que a lei espanhola faz depender, sob pena de nulidade, a expressão de vontade do Testador num Testamento aberto não forem observados.

EE) Conforme reconhecido no Acórdão recorrido «[n]o caso em apreço o Notário não declarou expressamente no Testamento que. em sua opinião, a testadora tinha capacidade legal para testar. Também não apontou a hora da sua realização. Igualmente não consta que as testemunhas presentes tenham declarado que o texto do Testamento estava feito, foi lido e perguntado se existiam dúvidas» (cf. Acórdão Recorrido, pp. 80 e 81) e que «essas eram as regras formais em face da lei espanhola» (cf. Acórdão Recorrido, p. 81).

FF) Donde, aplicando corretamente ambos os números do artigo 65.º do CC, deveria o Tribunal recorrido ter decidido que, pese embora o Testamento deixado pela Senhora D. HH pudesse considerar-se válido quanto à forma por corresponder às prescrições da Lei portuguesa, , nos termos do n.º 1, na medida em que não foram observadas as solenidades de forma que a Lei espanhola exige, sob pena de nulidade, para a disposição por morte por meio de Testamento aberto, o Testamento é nulo.

GG) Por assim não ter decidido o Tribunal a quo, o Acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, tendo interpretado e aplicado incorretamente as disposições conjugadas dos artigos 65.º do CC e dos artigos 695.º, 696.º e 687.º do CCE, devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que, interpretando-os conforme proposto, declare nulo e de nenhum efeito o Testamento deixado pela Senhora D. HH.

Quanto à invalidade do testamento por incapacidade da Testadora:

HH) No que concerne à questão de saber se a Testadora estava incapacitada de, no momento da feitura do Testamento, entender o sentido da declaração testamentaria e de dispor dos seus bens e, por isso, o testamento é nulo, diz o Tribunal recorrido que «atento o preceituado no artº 342º n.º 1 do Código Civil Português. é sobre o interessado na anulação do testamento que recai o ónus da prova dos factos dos quais se possa concluir por essa incapacidade do testador» (cf. Acórdão recorrido, p. 110) e, depois, conclui que «a matéria de facto apurada não permite confirmar uma tal situação de incapacidade na ocasião em que o Testamento foi outorgado» (cf. Acórdão recorrido, p. 111).

II) A repartição do ónus da prova assim feita — e, portanto, a conclusão de que não se provou que a Testadora estivesse incapacitada no momento da outorga do Testamento — está em contradição com a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça sobre como se distribui o ónus da prova quando está em causa aferir a incapacidade acidental para testar.

JJ) Da jurisprudência firmada pelos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de julho de 2001 e de 11 de abril de 2013, seguindo ambos de perto a opinião de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, resulta a regra de que, quando a parte interessada na anulação do Testamento prove que o Testador sofria de uma doença degenerativa (e evolutiva) das condições de perceção, compreensão, raciocínio e aptidões de pensamento abstrato e concreto é de presumir (de facto), sem necessidade de mais, que na data do ato aquele estado se mantinha sem interrupção.

KK) Por conseguinte, à parte interessada na manutenção do ato caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o ato recaiu num momento de lucidez.

Ora,

LL) As Recorrentes lograram provar que a Senhora sua Mãe, D. HH padecia, de acordo com os diagnósticos feitos três anos antes e um ano antes do Testamento, de «atrofia cerebral difusa, com preponderância na região amígadalo-hipocampal», de tal forma que no diagnóstico foram incluídas «doenças de índole degenerativa, do tipo de Alzheimer», concretamente:

a. Que Senhora D. HH se queixava de, desde o verão de 2006, «sentir desorientação e dificuldade em reter informação ou lembrar-se de acontecimentos recentes. Nos últimos meses os sintomas pioraram de forma lenta e progressiva» (cf. ponto 10 da matéria de facto provada).

b. Que em 9 de março de 2007, foi observado relativamente a Senhora D. HH que «está desorientada e é com frequência que pergunta o que faz no local ent que se encontra. Recebe flores no dia do seu aniversário e não sabe muito bem porquê» (cf. ponto 10 da matéria de facto provada).

c. Que em março de 2007, Senhora D. HH foi submetida a vários testes destinados a avaliar o seu estado cognitivo. Um dos testes que fez foi o Trail Making Test e, quanto a esse teste, apurou-se que «não realiza bem a parte B do Trail Making Test devido a incompreensão do mesmo, comete quatro erros e é incapaz de o terminar», ou seja, que não conseguia unir com uma linha em sentido crescente números de 1 a 13 e letras de A a L de forma alternada (ou seja, 1-A, 2-B, 3-C, etc.) (cf. ponto 10 da matéria de facto provada).

d. Que, durante um internamento em 2009, foi diagnosticada a Senhora D. HH «marcada deterioração cognitiva com irritabilidade, tendência à sonolência, astenia e desorientação espaço/temporal. (…) Durante a realização do TC cerebral observa-se uma importante atrofia cerebral difusa» (cf. ponto 11 da matéria de facto provada).

e. Que, nesse mesmo internamento em 2009, foi diagnosticado à Senhora D. HH o seguinte: «processo involutivo cerebral com maior intensidade a nivel insulo-opercular e região amigdalo-hipocampal bilateral. (...) Atrofia cerebral difusa e bilateral com maiorpreponderância em regiões amigdalo-campais e insulo-opercular. No diagnostico diferencial devem incluir-se doenças de indole neurodegenerativa tipo Alzheimer» (cf. ponto 11 da matéria de facto provada).

MM) A atrofia cerebral difusa, como a verificada no cérebro de Senhora D. HH, em 2009, é irreversível — as células cerebrais que morrem e determinam a perda de volume cerebral não são recuperáveis e, portanto, as faculdades que estejam associadas a essas células cerebrais perdidas já não são recuperáveis — e piora com o tempo.

NN) A atrofia cerebral predominante nas áreas da amígdala e do hipocampo, como a verificada medicamente quanto ao cérebro de D. HH (conforme consta do ponto 11 da matéria de facto provada), fazia com que a capacidade cognitiva da Testadora para aprender e reter novas informações estivesse comprometida, o que é compativel com a «marcada deterioração cognitiva» também diagnosticada pelos médicos.

OO) Em suma, foi provado pelas Recorrentes que a Testadora apresentava um quadro clinico demencial e de «deterioração cognitiva acentuada», e que lhe afetava as condições de perceção, compreensão e raciocínio e a capacidade de reter informação nova, desde pelo menos 2009.

PP) Deve ser tida ainda em conta a seguinte factualidade provada e adquirida nos autos sobre o dia da outorga do Testamento e os dias antecedentes:

a. No dia 1 de outubro de 2010, a Senhora D. HH «pelas 20h, começa com ansiedade, muitos «ais». Pelas 21.•30h. na sala com os membros inferiores elevados e apoiados. mantém periodos de ansiedade. Pelas 22h, vê TV com pouco interesse. Polipneica, saturações a 93%» (cf. facto provado pelos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 519);

b. No dia 2 de outubro de 2010, a Senhora D. HH «após as 20h períodos de ansiedade «ais». C/ alguns acessos de tosse seca («chamadas de atenção») pelas 22h vê TV com relativo interesse intercalando alguns «ais». pelas 22:50h "continua a ver TV (c/ alguns «ais»)» (cf. facto provado pelos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 521);

c. No dia 6 de outubro de 2010, a Senhora D. HH «pelas 9:30h, "acorda aos «ais» e pede para urinar —já com a cueca muito molhada e ao sentar-se urinou também o pijama (...) volta a adormecer referido que «quer muito dormir mais»", pelas 11:30h "acorda de novo aos «ais»", pelas 21:25h, "na sala solta alguns «ais»"» (cf. facto provado pelos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 528);

d. No dia 7 de outubro de 2010, a Senhora D. HH «pelas 10:45h, acorda para urinar e tem cueca-fralda encharcada. Pelas 22:00h, "D. HH encontrava-se na sala c/ m. inf I e apoiados, olhar triste e distante"» (cf. facto provado pelos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 530);

e. No dia 8 de outubro de 2010 — dia da outorga do testamento (cf. ponto 4 da matéria de facto provada) --, a Senhora D. HH «pelas 10:20h "acorda para urinar, tinha pijama + cueca c/ urina. Foi trocada e realizados cuidados de higiene c/ água e sabão (...) está pouco colaborante. Foi necessário dar à boca 1/4 de torrada", pelas 13.20h "evacuou fezes moles na cueca-fralda mais bacio. Foi novamente trocada", pelas 14:00h, "está apática, pouco comunicativa. Fez xanax 1 comprimido", pelas 16:45h, "saida para lanchar", pelas 19:40h, "regresso a casa", pelas 22:00h, "vê TV com pouco interesse"» (cf. facto provado pelos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 532).

QQ) Esta factualidade não consta do elenco de factos provados porquanto, apesar de as aqui Recorrentes e o Réu EE terem requerido o seu aditamento ao elenco de factos provados nos seus recursos de apelação, o Tribunal a quo considerou que os mesmos constam de «documento adquirido nos autos e que, como tal, será objeto da devida análise (...), não se vislumbrando qualquer interesse em indicar factos que se limitam a "descrever " aquilo que consta do documento», pelo que «não existem motivos para aditar novos factos» relativamente a estes documentos (cf. página 70, alínea k), página 71, alíneas l) e m), páginas 91-92, alínea z). páginas 103, 104, 105 e 106, alíneas bb) e cc) e dd), do Acórdão Recorrido).

RR) Consequentemente, independentemente das criticas que possam ser dirigidas ao entendimento adotado pelo Tribunal a quo, estando a referida factualidade provada através de documentos adquiridos nos autos e não constando a mesma do elenco de factos provados apenas porque o Tribunal a quo entendeu ser suficiente essa factualidade constar de documentos adquiridos nos autos, deve a mesma ser «objeto da devida análise» por parte deste Douto Tribunal.

SS) Em especial, porque tal factualidade se reporta ao estado da Senhora D. HH no dia da outorga do Testamento e nos dias antecedentes e é relevante para demonstrar que ficou provado que no dia da outorga do Testamento e nos dias antecedentes, a Senhora D. HH, no pano de fundo de um quadro clinico demencial e de deterioração cognitiva acentuada comprovado, registou oscilações cognitivas ao longo dos dias.

TT) Por conseguinte, devia o Tribunal a quo, conforme sucedeu no caso decidido pelo Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11 de abril de 2013, e que em termos factuais é semelhante ao presente, ter presumido que, de acordo com um padrão de normalidade, perante um quadro clinico demencial e de deterioração cognitiva acentuada comprovado, as condições de perceção, compreensão e raciocínio e a capacidade de reter informação nova da Testadora se encontravam diminuídas, e que na data do Testamento aquele estado se mantinha sem interrupção.

UU) Por conseguinte, devia o Tribunal a quo, com base na presunção de incapacidade da Testadora, fruto do estado de «acentuada deterioração cognitiva» e da doença de índole neurodegenerativa do tipo de Alzheimer que, em 2009, lhe foi diagnosticada, ter julgado que no momento da feitura do Testamento D. HH estava acidentalmente incapacitada para a prática desse ato e, nessa medida, concluído pela invalidade do Testamento.

VV) Por assim não ter decidido, o Acórdão recorrido enferma de erro de julgamento na aplicação da norma artigo 342.º do CC, devendo ser revogado e substituído por outro que, aplicando aquelas normas conforme proposto pelas recorrentes conclua pela invalidade do Testamento de D. HH por incapacidade acidental desta para testar.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e substituído por outro que declare o Testamento nulo por inobservância das disposições de que o direito espanhol faz depender a feitura (e validade) do testamento aberto ou anulado por incapacidade da testadora para testar.”


Os réus habilitados LL e MM, habilitados como herdeiros do réu EE, vieram, para o caso de se entender que o caso o vertente não configura um litisconsórcio necessário passivo, aderir ao recurso de revista interposto nos autos, aceitando e subscrevendo as alegações das recorrentes FF e GG, nos termos do disposto no Artº 634º nº 2 alíneas a) e b) do CPC.


Os autores recorridos responderam ao recurso pugnando pela sua improcedência.


Cumpre decidir.


Admissibilidade do recurso:


Tendo-se decidido, no despacho prévio, que incidiu sobre a reclamação, que inexistia dupla conforme relativamente ao primeiro acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, por a fundamentação das decisões das instância ser essencialmente diferente, e tendo a Relação mantido a mesma fundamentação jurídica no acórdão que é objecto de recurso, deve a revista normal ser admitida sem necessidade de remessa dos autos à Formação de Apreciação Preliminar.


Questões a solucionar:


De acordo com as alegações do recurso de revista interposto nos autos, importa apreciar e decidir as seguintes questões:


a) Apreciação da validade formal do testamento outorgado pela Senhora D. HH por alegada inobservância das disposições de forma imperativas da lei pessoal da testadora (lei espanhola), o que exige a interpretação do disposto da norma de conflitos prevista no art. 65.º, n.º 2, do CC português;


b) Apreciação da validade material do testamento, em concreto, a capacidade da testadora para compreender e querer as disposições por morte que deixou em testamento, o que convoca a questão de saber como se reparte o ónus da prova entre os interessados na invalidade do testamento e os interessados na manutenção de tal acto quando está em causa a eventual invalidade com fundamento em incapacidade acidental do testador. Alegam os recorrentes que provando-se que o testador, no período contemporâneo da disposição por morte, padecia de doença neurodegenerativa do tipo de Alzheimer, se presume de facto a sua incapacidade acidental para testar, cabendo ao interessado na manutenção do acto a prova de que o testamento foi feito num “período lúcido”.


A matéria de facto dada como provada é a seguinte:


“1. Em 17/9/2013 faleceu HH, de nacionalidade espanhola, residente na Rua ..., viúva de NN com quem fora casada em únicas núpcias de ambos, segundo o regime de “gananciales” regido pelo Direito espanhol.


2.Sucederam-lhe como únicos herdeiros os seus filhos: AA e BB (A.A.) e EE, FF e GG (R.R.), todos de nacionalidade espanhola.


3.Após a morte do seu marido, ocorrida em .../3/1989, a D. HH repudiou a herança daquele, conforme escritura pública de Repúdio, outorgada no 6o Cartório Notarial de ..., conforme documento de fls. 238 e ss., o qual se dá aqui por inteiramente reproduzido.


4.A falecida HH fez testamento público outorgado em 8/10/2010 perante o Notário OO, em cujo Cartório Notarial o mesmo se encontra arquivado a fls. 42 a fls. 44 v. do Livro de Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação, constando cópia desse documento a fls. 18 a 24 o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.


5. No testamento de HH pode ler-se na parte inicial, antes das deixas, na primeira e segunda páginas do testamento (ver fls. 19 e 20), o seguinte:


“"(...) após o óbito do seu falecido marido, não procedeu à partilha da respectiva herança, pelo que os bens se encontram se encontram em comum e sem determinação de parte, ou de direito a favor dos herdeiros, ou seja, a ora testadora e seus cinco filhos”.


6. E pode também ler-se seguidamente: “Que tanto seu falecido marido como a própria testadora fizeram doações em vida aos seus herdeiros legitimários, sendo que a testadora considera que as mesmas, juntamente com as quotas hereditárias respeitantes ao acervo patrimonial que deixa, cobrem sobejamente o que lhes corresponderia pela legítima”.


7. E acrescenta, ser sua vontade atribuir por efeitos daquele instrumento, legados de carácter “ganancial”.


8. No referido testamento, HH fez diversos legados, alguns deles a favor dos A.A..


9. Em 12/10/ 2005, D. HH foi internada na Clínica “...”, em ..., a fim de ser operada a uma fractura óssea, tendo a partir de então efectuado mais oito internamentos sucessivos, nos anos seguintes, o último dos quais teve lugar de 23/2/2009 a 12/4/2009.


10. Aquando da consulta de 9/3/2007, apresentou as queixas e foi diagnosticada nos termos do documento n° 8, junto à contestação, com tradução livre a fls. 165 a 168, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, e onde se pode ler:


“Anamnese


(...)


Vem à consulta por apresentar perda de memória e instabilidade.


Refere a D. HH que desde o verão de 2006 vem sentindo desorientação e dificuldade em reter informação ou lembrar-se de acontecimentos ou conversas recentes. Nos últimos meses os sintomas pioraram de forma lenta e progressiva, ainda que aparentemente tenham começado de forma mais ou menos repentina.


Percebe-se que está desorientada e é com frequência que pergunta o que faz no local onde se encontra. Recebe flores no dia do seu aniversário e não sabe muito bem porquê.


Todos estes sintomas produzem uma grande angústia e minaram o seu estado de animo.


Devido a uma queda onde fracturou um braço viu-se impedida de conduzir o que limitou a sua actividade e vida social.


(...)


É igualmente uma pessoa nervosa e com marcada tendência para a preocupação excessiva e inquietude face a qualquer problema. Dorme mal. Ressona muito e está diagnosticada com síndrome de apneia obstrutiva do sono, ainda que não use o CP AP (…). Ultimamente apresenta episódios frequentes de angústia, acompanhados de sensação de morte e nervosismo. Teve algumas tonturas com sensação de perda de equilíbrio e com alguma frequência sente a sensação de “boca seca”.


(...)


Outros exames de diagnóstico


(...)


A função executiva encontra-se levemente afectada com um déficit de raciocínio lógico e abstracto, em flexibilidade mental e na resolução de problemas. Obtém uma pontuação de 24/36 nas matrizes progressivas de Raven, não realiza bem a parte B do Trail Making test devido a incompreensão do mesmo, comete quatro erros e é incapaz de o terminar. A fluência verbal encontra-se diminuída especialmente com chave fonética. Realiza o teste Stroop com muita lentidão e sem entender bem a parte de interferência.


Os sintomas sugerem a existência de uma deterioração cognitiva ligeira com predomínio de afectação nas áreas que integram a função executiva como a atenção, pensamento abstracto, flexibilidade mental, sequencialização (dcl - não amnésico). Mantém preservadas o resto das áreas cognitivas. Não existe repercussão funcional dos défices cognitivos nas actividades diárias, IDDD 35/99 (...).


11. Em 23/2/2009 a testadora foi internada até 12/4/2009 na mesma Clínica ..., cujo relatório traduzido foi junto como documento n° 9 da contestação, a fls. 183 a 209, e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, do qual consta o seguinte:


(...)


História actual


Desde 20.02.09 refere dispnea progressiva, acompanhada de diminuição do nível de consciência, que se intensificou nas últimas 24 horas. Apirética em todos os momentos. Não apresentou tosse nem aumento da expectoração. Sem dores torácicas, nem dor pleurítica. Aumento progressivo de edemas em membros inferiores.


Sem sintomas gastrointestinais ou urinários. Não apresenta outra sintomatologia. Foi-nos solicitado o relatório no ARE, para suporte ventilatório com ventilação mecânica não evasiva (VMNI) e tratamento de possível reagudização de asma bronquial. TAC Cérebro (01/04/09)


Diagnóstico


Processo involutivo cerebral com maior intensidade a nível insulo-operculador e região amigdalo-hipocampal bilateral.


Desvio do septo nasal.


Comentário


Atrofia cerebral difusa e bilateral com maior preponderância em regiões amigdalo- campais e insulo-opercular. No diagnóstico diferencial devem incluir-se doenças de índole neuro degenerativa tipo Alzheimer (...).


Em 2005, sofreu uma fractura luxação do úmero proximal e fractura do perónio direito com hematomas múltiplos no braço esquerdo operado.


Insuficiência renal aguda de origem pré-renal por desidratação. Herpes simples recorrente tipo II diagnosticado neste internamento.


Tiroidectomia total em Novembro de 2000 por bócio multinodular com hipertiroidismo subclínico com diagnóstico anatomopatológico de hiperplasia nodular. (...)


A família refere alteração da memória anterógada com episódios de desorientação no seu domicílio. (...)


Diagnóstico


Encefalopatia multifactorial precipitada por infecção urinária, com componente farmacológica em paciente com provável demência vascular incipiente.


Insuficiência respiratória global secundária à reagudização da asma bronquial por sobreinfecção respiratória. (...)


Observações


(...)


Devido à situação actual recomendamos manter no seu domicílio suporte de enfermaria e valorizações médicas periódicas para o ajuste do tratamento actual.


Evolução


(...)


É avaliada pelo departamento de medicina interna por apresentar marcada deterioração cognitiva com irritabilidade, tendência à sonolência, astenia e desorientação espaço/temporal e alteração do ritmo sono/vigília (já se conheciam episódios de desorientação no domicílio).


Descartam-se insuficiência suprarrenal e hipotiroidismo. Durante a realização do TC cerebral observa-se uma importante atrofia cerebral difusa junto com sedimento urinário compatível com infecção do trato urinário orientando um diagnóstico de encefalopatia multifactorial precipitada por dita infecção, em paciente com provável demência vascular incipiente. Trata-se de infecção urinária (sem isolamento microbiológico - dependente de resultados do último urocultivo) com Levofloxacino mostrando melhoria do estado geral, ainda que persistindo episódios de sonolência e desorientação ocasional. Desta maneira, inicia-se tratamento com Rexer e Haloperidol, melhorando o descanso noctumo. Após estabilização da paciente, decide-se, de comum acordo com todos os departamentos implicados, a alta.


12. Desde Abril de 2009, após regressar de ..., que a testadora, D. HH, dependia 24 horas por dia de enfermeiras, que vigiavam o seu estado de saúde, delas necessitando para se alimentar e vestir, para lhe serem feitos os actos de higiene, diversas vezes ao dia, para urinar e evacuar, passando parte dos dias em estado de sonolência.


13. Desde então a Testadora passava grande parte dos dias em casa, na cama a dormir, ou no cadeirão frente à televisão, a que assistia, por vezes indiferente ou sem interesse.


14. Depois de regressar de Espanha em Abril de 2009, a D. HH expressava-se de forma parca com as enfermeiras, frequentemente por monossílabos e em resposta a estímulos, embora com outras pessoas mantivesse conversas mais alongadas.


15. Por vezes interagia com as enfermeiras, recebia visitas e telefonemas que a animavam, mas também tinha frequentemente momentos de apatia, tristeza, e pouco interesse por tudo quanto a rodeava.


16. O seu progressivo decréscimo cognitivo, num quadro degenerativo, que se desenvolveu a partir de 2007, foi-se acentuando com a idade, não obstante ter apresentado algumas melhorias após o regresso de ....


17. Na sequência dos momentos em que dormia e acordava, padecia com a insuficiência de oxigénio no sangue, resultante de problemas respiratórios, acordando com dispneias, tendo necessidade de usar quase diariamente o Bipap.


18. Em 2009 e 2010 a testadora apresentava um estado de debilidade física, circulando maioritariamente em cadeira de rodas, com dependência de terceiros, e por vezes tinha um discurso incoerente e de confusão.


19. Porém, depois de vir de ... em Abril 2009, a testadora ainda recuperou e, pelo menos até à altura da assinatura do testamento, analisou documentação bancária, assinou contratos, saiu algumas vezes de casa, ainda que acompanhada, nomeadamente para visitar os filhos, para ir mensalmente à consulta no Hospital ... onde, ao longo de vários anos, foi acompanhada pelo médico Dr. PP, e para lanchar ou ir ao restaurante almoçar.


20. Aquando da assinatura do testamento, em 8/10/2010, a testadora era assistida permanentemente por três pessoas (enfermeiras e empregadas) em turnos, que não abandonavam nunca o quarto onde dormia, por indicação médica e sob o controle de vistas da filha AA.


21. A A. AA controlava e limitava as visitas da mãe, incluindo dos demais filhos R.R., e controlava as enfermeiras que a assistiam permanentemente, pedindo o seu afastamento quando com elas se desentendia, o que aconteceu em 2011 com a enfermeira QQ, depois de esta a ter censurado por ter irrompido no quarto da mãe às 4 da manhã de modo muito exaltado.


22. Em algumas ocasiões em datas não concretamente apuradas, posteriores a Abril de 2009, a A. AA disse à mãe que a abandonaria, deixando-a com as enfermeiras e empregadas, e frequentemente elevava o tom de voz com a mãe, como com as enfermeiras e outras pessoas que se deslocavam a casa.


23. Em diversas ocasiões anteriores e posteriores à assinatura do testamento a A. AA declarou à mãe na presença das enfermeiras que o R. MM “só gostava de mulheres”, que a R. GG “era louca” e “que só queria dinheiro”, e que a R. FF e marido “eram uns monstros”.


24. As enfermeiras receberam indicações da A. AA para nunca deixar D. HH sozinha com os seus filhos, MM, FF e GG.


25. A A. AA era uma pessoa instável, conflituosa, e exaltava-se com frequência e facilmente.


26. Em data não concretamente apurada depois de Abril de 2009, enquanto a mãe era viva, a A. AA levou a cabo a mudança das fechaduras da casa onde vivia com sua mãe e proibiu as visitas a partir de determinada hora.


27. A D. HH transmitiu ao advogado Dr. RR, amigo da família há dezenas de anos, que queria fazer um testamento, ao que este respondeu que não queria dar orientações a esse propósito, limitando-se a dizer que poderia falar com um notário para o efeito.


28. Contactado o Dr. II, advogado, que a testadora já conhecia há mais de 20 anos, este aceitou falar-lhe.


29. O Dr. II, que veio a ser nomeado testamenteiro, visitou pelo menos três vezes a testadora, e, em conversas a sós, recebeu instruções dela relativamente ao testamento que pretendia outorgar.


30. A testadora transmitiu ao Dr. II os legados que pretendia fazer.


31. SS, gerente da conta da testadora no “Millennium BCP” de 1995 a 2010, insistiu junto da testadora que a mesma deixasse algo em testamento aos filhos da R. FF, JJ e KK.


32. Durante o mês de Setembro de 2010, o Dr. II preparou a minuta do testamento e, considerando que a sucessão seria regulada pela lei espanhola, contactou a jurista de Madrid, TT, para que o mesmo fosse elaborado em harmonia com aquela legislação.


33. Depois da referida jurista ter transmitido o que entendia e feito as sugestões que teve por pertinentes, foi combinada a outorga do testamento, com conhecimento de HH, para o dia 8/10/2010, pelas 16 horas.


34. Na semana em que foi assinado o testamento, conforme consta nos relatórios de enfermagem juntos aos autos, a D. HH teve momentos em que se revelou pouco conversadora, com expressão triste e deprimida, e apática.


35. Contudo, conforme consta nos relatórios de enfermagem juntos aos autos (ver fls. 519), na tarde de 1/10/2010 a testadora foi à rua dar um passeio, voltando a casa muito bem disposta.


36. No dia 2/10/2010 (ver fls. 520 e 521) almoçou com apetite, mantendo-se calma durante a manhã e a tarde.


37. No dia 3/10/2010 (ver fls. 522) comeu com apetite e em grande quantidade, indo à casa de banho pelo seu pé e mostrando-se bem-disposta vendo TV com interesse.


38. Na tarde do dia 4/10/2010 (ver fls. 524 e 525) viu televisão na companhia da R. GG e às 19 horas recebeu telefonemas e conversou animadamente com a R. FF.


39. No final do dia 5/10/2010 (ver fls. 517) assistiu, com interesse, a um filme na TV.


40. Na tarde do dia 6/10/2010 (ver fls. 528) foi à casa da R. GG, onde viu fotografias das netas com alegria, e à noite desse dia viu um filme com interesse.


41. Na tarde do dia 7/10/2010 (ver fls. 530) a testadora deslocou-se ao Hospital ..., para consulta ao referido Dr. PP, recebendo mais tarde a visita do A. UU e de um filho deste.


42. Com conhecimento de D. HH, o testamento foi outorgado no escritório profissional do Dr. II, então pertencente à sociedade de advogados “...”, na Avenida ..., onde se deslocou o Notário OO.


43. No dia do testamento foi referido às enfermeiras que acompanhavam a D. HH que a mesma ia sair para tomar chá.


44. Na tarde daquele dia, a testadora, na viatura do A. UU que conduzia, e acompanhada da A. AA e da enfermeira VV, deslocou-se àquele escritório onde a esperavam SS, cuja presença havia sido solicitada pela testadora, e WW, amiga da testadora em quem a mesma confiava, que iriam intervir como testemunhas.


45. O Dr. II, no entanto, achou preferível que interviessem como testemunhas uma advogada e uma secretária daquele escritório, XX e YY.


46. As testemunhas do testamento XX e YY não conheciam a testadora.


47. O testamento foi celebrado por um Notário desconhecido de D. HH.


48. A A. AA era portadora de uma declaração emitida pelo referido Dr. PP, junta à réplica como documento n° 4, a fls. 1227, em que o mesmo declarou que HH, doente que segue há 2 anos, “se encontra na posse plena das suas capacidades mentais, estando apta a tomar decisões”.


49. O Notário, depois de conversar durante alguns minutos com a testadora, afirmou que não precisava de tal declaração por não ter dúvidas sobre a capacidade da mesma para outorgar e compreender o testamento.


50. No dia do testamento, 8/10/2010 (ver fls. 532), após regressar a casa, mostrava- se bem-disposta, tendo jantado com apetite.


51. A A. AA não queria que ninguém desse conhecimento da existência do testamento aos demais herdeiros R.R., que só souberam da sua existência após a morte da testadora.


52. No dia em que a D. HH se ausentou para assinar o testamento, a A. AA solicitou à enfermeira VV que colocasse no relatório diário que a mãe se tinha ausentado de casa para ir lanchar e não para realizar o testamento.


53. A enfermeira VV recebeu instruções da A. AA para não dizer a ninguém que a D. HH tinha saído para outorgar um testamento.


54. No dia 12/1/2011, encontrando-se em casa da testadora, a A. AA e a R. FF envolveram-se numa discussão, com agressões recíprocas, tendo a A. AA recebido assistência no Hospital “CUF - ...” no dia seguinte.


55. O A. UU entregou a carta junta à réplica como documento n° 5, a fls. 1228 e que aqui se dá por reproduzida, a KK, dizendo-lhe que a deveria transmitir aos R.R. FF, GG e MM.


56. Os R.R. tomaram conhecimento da carta.”


Matéria de facto não provada:


“A matéria alegada pelos Autores nos arts. 55º (que até muito próximo do falecimento em 2013, a testadora conseguisse fazer a sua assinatura), 60º (que no Verão de 2010, a testadora tivesse contactado telefonicamente o Autor UU, dando-lhe nota dum grave incidente ocorrido entre a Autora AA e a Ré GG e pedindo-lhe que falasse com os advogados RR ou II, no sentido de se preparar um testamento), 61º (na parte em que RR também tenha dito ao Autor UU que entendia preferível manter-se à margem já que, conhecendo muito bem toda a família, seria a forma de melhor ajudar HH), 65º (que também a A. AA insistiu para que a mãe deixasse algo aos netos filhos de FF), 74º (que a testadora não pretendia que os Réus ou quaisquer terceiros soubessem que fora outorgar o testamento e que por isso tivesse sido a própria a dar instruções à enfermeira VV para que no relatório que se encontra a fls. 532 fizesse constar que tinha saído para lanchar), 105º e 106º (que desde finais de 2010 que as Rés FF e GG, influenciadas pelo marido daquela, KK, procuravam que os titulares de todas as contas pertencentes a HH passassem a ser exclusivamente os seus cinco filhos, não sendo esse o desejo de D. HH), 107º (que no dia 12 de Janeiro de 2011, as Rés GG e FF foram a casa da testadora e, em alta voz e aos gritos, exigiram dela que pusesse todos os filhos como únicos titulares das contas bancárias), 109º (que o Autor UU foi contactado telefonicamente pela testadora, que lhe pediu que regressasse imediatamente porque queria com urgência falar-lhe, ao que ele acedeu, indo visitá-la na tarde de 14 de Janeiro), 110º (que a testadora pediu-lhe que chamasse II no sentido que fosse redigido um documento a enviar aos Réus FF, GG e MM alertando-os que não deveriam voltar a tentar ingerir-se na sua vida patrimonial, questioná-la sobre as suas faculdades ou insultá-la ou agredi-la, incluindo às pessoas da sua casa), 111º (que após a hora de jantar daquele dia, II deslocou-se, efectivamente, à casa da testadora e tivesse minutado a carta junta à réplica como doc. nº 6, dirigida aos referidos FF, GG e MM, e que a testadora, confirmando o seu conteúdo, a tivesse subscrito), da réplica;


A matéria alegada pelos Réus nos arts. 71º (que a fracção autónoma legada à neta CC tivesse há vários anos sido “oferecida” ao neto mais velho KK), 72º (na parte em que o testamento foi subscrito depois de muito ensaio e treino, da sua assinatura, e que a mesma tivesse evidente total incapacidade para perceber e ou querer o Testamento que lhe impuseram, sendo no demais conclusivo), 73º (que os AA, perante a mãe, tenham atribuído intenções aos RR de pretenderem apropriar-se do maior número de bens da herança, em prejuízo dos demais filhos, além de não amarem a mãe, só se interessando pela sua fortuna), 75º (que a testadora acordasse sempre ou grande parte dos dias desde essa data angustiada e com manifestações de agressividade e com perdas de consciência espaço temporal), 77º (na parte em que, nos dias que antecederam o testamento e nessa data a testadora passasse os dias “indiferente” de frente para a televisão com os olhos em alvo e sem reacção, e “no maior isolamento, em estado crepuscular de inconsciência”), 79º (na parte em que na data em que fez o Testamento, vivesse “em estado de débil”, cumprindo o ritual diário que lhe era imposto, sem vontade própria, nem capacidade para ler ou conversar), 80º (na parte em que chegasse a arrancar o bipap durante as crises, o que muito a prejudicava), 84º (na parte em que a testadora tivesse sido “privada da liberdade de testar” em virtude do isolamento a que a Autora AA a sujeitava limitando todas as visitas da testadora, e esta tivesse ameaçado abandonar a Mãe se o testamento não fosse realizado e lhe não garantisse a titularidade do andar onde viviam, o recheio, as jóias e as demais vantagens patrimoniais constantes do testamento), 85º (que a testadora não entendesse minimente o testamento que assinou e que o fez por receio de ser abandonada pela filha AA), 92º (que no dia do testamento a testadora estivesse “privada de vontade própria” em virtude das suas doenças e que os AA tivessem chegado a proibir a entrada em casa da pessoa que diariamente ministrava a comunhão à Testadora), 95º (que à data do testamento a testadora estivesse sem capacidade de se movimentar e incapaz de ler), 96º (que à data do testamento a testadora nunca lia o que quer que fosse, passando o dia com os olhos em alvo, a olhar cenas de televisão e programas que não escolhia, por não ter vontade nem entendimento, que lhe eram servidos ao gosto de quem os escolhia), 97º (que à data do testamento a Testadora se expressasse exclusivamente em espanhol), 99º (que nas poucas saídas do seu apartamento, a Testadora, Dª HH, fosse sempre conduzida pelo seu motorista ZZ), 100º (que no dia do testamento em que o motorista ZZ estava à disposição da Testadora, os seus serviços tivessem prescindidos como forma de ocultarem o conhecimento do local onde a levavam, por parte do condutor habitual da viatura e de que este o comunicasse aos demais herdeiros), 101º (que ao sair de casa, a testadora D. HH desconhecesse que ia outorgar o seu primeiro e único testamento), 102º (que os AA tivessem invocado à mãe para a convencer a sair de casa, ocultando-lhe a verdadeira finalidade da sua deslocação, um falso pretexto, irem tomar chá, num local que ela desconhecia), 105º (que a fim de convenceram a Testadora que apenas de um lanche se tratava, os AA AA e BB convidaram a estar presentes no acto, um representante do Millennium BCP e um casal amigo dos AA AA e BB), 109º, 110º (que após a outorga do testamento, a Autora AA passou a manter um total controle sobre as visitas que sua Mãe recebia, e ameaçando-a de que a abandonaria, saindo de casa, se não fizesse o que a mesma lhe impunha), 112º (na parte em que na semana em que assinou o testamento a testadora teve momentos de incapacidade de manter uma conversa e/ou diálogo), 113º (na parte em que, não obstante ser parca a conversação, desde que regressou de ... a testadora se expressasse com as enfermeiras quase exclusivamente por monossílabos e em resposta estímulos), 116º (na parte em que o Autor BB também o tenha solicitado), 117º (que perante as graves dificuldades da testadora em assinar qualquer documento, não controlando os movimentos da mão direita, os AA AA e BB a tivessem submetido durante várias semanas antes da outorga do testamento, a treinar assinatura), 118º (na parte em que, a esmagadora maioria dos actos notariais realizados pela D. HH eram feitos em sua casa, ou no Cartório Notarial de ..., próximo da sua residência), 126º (que também o Autor BB tivesse dado ordens para nunca deixar a mãe sozinha com os seus filhos, MM, FF e GG), 135º (que a Autora AA dissesse à mãe que a abandonaria caso a mãe revelasse a existência do testamento), e 158º da contestação.


Os restantes artigos ou parte deles não mencionados foram considerados repetitivos, conclusivos, sem relevância para a causa ou contendo matéria de direito.”


O Direito.


Da validade formal do testamento:


No acórdão recorrido considerou-se que o testamento que é objecto desta acção não é nulo porque foram observadas as regras formais da lei portuguesa que é a aplicável por ser a lei do lugar onde o testamento foi realizado e, como tal, uma das leis alternativas previstas na norma do artigo 65º, nº 1, do CC. Por outro lado, entendeu a Relação que a reserva de aplicação da lei pessoal do testador à forma do testamento, constante do artigo 65º, nº 2, do CC, remete apenas para a «forma» fixada nessa lei pessoal e já não para as «formalidades». Na medida em que a «falta de indicação da hora» e a «falta de declaração notarial expressa sobre a capacidade do testador para testar» – que faltam no testamento de D. HH – são «meras formalidades» que não se destinam a acautelar um adequado processo de formação de vontade, as mesmas não estão abrangidas pela reserva de aplicação da lei pessoal do artigo 65º, nº 2, do CC.


Conclui a Relação que o testamento da D. HH observou a forma do local onde foi outorgado (Portugal), o que é suficiente para lhe conferir validade e eficácia, sendo que as omissões apontadas pelas recorrentes, mencionadas na lei espanhola, são meras formalidades, algo de diverso da forma do acto, razão pela qual tais omissões não podem conduzir à sua nulidade.


Os recorrentes discordam deste entendimento porquanto defendem que “desta reserva de aplicação da lei pessoal (art. 65.º, n.º 2, do CC), resulta que, se porventura, por aplicação de alguma das leis alternativas previstas no artigo 65.º, n.º 1, do CC, determinado Testamento pudesse considerar-se formalmente válido, ele não o será, em todo o caso, se a forma observada na sua feitura não respeitar as exigências que a lei pessoal ao momento da feitura da disposição por morte exija sob pena de nulidade ou ineficácia da disposição.”


Alegam os recorrentes que no caso dos autos, não foram cumpridas as exigências ou solenidades de que a Lei espanhola faz depender a feitura de um testamento aberto válido, previstas nos artigos 695º e 696º do Código Civil Espanhol (CCE), em concreto:


a) Que o testamento tenha indicação do lugar, ano, mês, dia e hora da sua outorga;


b) Que o Notário advirta o testador do direito que tem de ler o testamento por si;


c) Que o Notário faça constar que, no seu juízo, se encontra o testador com capacidade legal necessária para outorgar o testamento.


Mais prevê o direito espanhol que a consequência da omissão desses requisitos essenciais é o da nulidade nos termos previstos no artigo 687º do CCE. Citando a doutrina e a jurisprudência espanholas a respeito destes requisitos, sustentam os recorrentes que os mesmos não foram cumpridos no testamento em análise, o que o torna nulo à luz do direito espanhol, aplicável por via do referido art. 65º, nº 2, do nosso CC.


Argumentam, ainda, os recorrentes que aquilo que o acórdão recorrido diz serem «formalidades» e que não se verificaram na feitura do testamento da Senhora D. HH – ou seja, a aposição da data e hora da feitura do testamento, a declaração do Notário de que, no seu juízo, o testador tem capacidade para testar e a advertência, feita pelo Notário, de que o testador tem o direito de ler o testamento por si, e de que, dispensando essa leitura, deve manifestar se está de acordo com a sua vontade – não são meras formalidades pois, citando Inocêncio Galvão Telles, as mesmas «constituem o próprio Testamento, que nelas se consubstancia, confundindo-se pois com a forma».


Mais alegam, citando Baptista Machado, a propósito do artigo 65º, nº 2, do CC, que a razão de ser da reserva consagrada neste artigo, de que devem ser observadas as exigências sobre a forma de expressão da vontade do autor de determinada disposição por morte previstas na respectiva lei pessoal, traduz uma preferência do legislador português pela qualificação de fundo (ou de substância) do acto à qualificação de forma.


Ou seja, segundo os recorrentes, o que se pretendeu evitar com este preceito foi justamente o resultado a que o acórdão recorrido chegou e que foi o de, no juízo de validade formal, tomar o acto pela forma e não pela substância.


Assim, afirmam os recorrentes que a norma do nº 2 do art. 65º deve ser interpretada no seguinte sentido: “independentemente de as formas de Testamento «público» e «aberto» serem admissíveis nos direitos português e espanhol, respetivamente, e, portanto, de um Testamento «público» feito por um espanhol em Portugal poder ser formalmente válido nos termos do artigo 65.º, n.º 1, do CC, ele não será válido se os requisitos de que a lei espanhola faz depender, sob pena de nulidade, a expressão de vontade do Testador num Testamento aberto não forem observados. Porque só este resultado prefere a qualificação de fundo (ou de substância) do ato à qualificação de forma – só este resultado realiza a ratio do artigo 65.º, n.º 2, do CC.”


E concluem: as “formalidades” a que se refere o acórdão recorrido são solenidades que consubstanciam o próprio testamento, confundindo-se com a forma que o Direito espanhol exige para a feitura do testamento aberto; elas asseguram um determinado modo de formação da vontade que o Direito espanhol exige para aquela que deve valer como última vontade, de tal forma que, não sendo observadas, o testamento é nulo (cf. artigo 687º do CCE). Pelo que, na medida em que tais exigências de forma não foram observadas no caso concreto dos autos, o testamento deixado pela Senhora D. HH é nulo, o que deve ser declarado.


Mas cremos que não terão razão.


Como afirmam os recorrentes, a norma de conflitos segundo a qual se deve determinar a lei aplicável à forma das disposições por morte é a do artigo 65º do CC.


Com efeito, resulta dos factos provados que o testamento foi feito em Portugal (cf. pontos 4 e 42 da matéria de facto provada), a testadora era de nacionalidade espanhola quer no momento da declaração testamentária, quer no momento da morte (cf. pontos 1 e 32 da matéria de facto provada), pelo que a lei pessoal é a lei espanhola (art. 31º, nº 1, do CC), estando a validade do testamento a ser apreciada nos tribunais portugueses. Assim, como se referiu no acórdão recorrido, a questão em litígio não é puramente interna, existindo um conflito de leis potencialmente aplicáveis à questão da validade do testamento; e, estando a mesma a ser discutida perante os tribunais portugueses, é de acordo com o direito dos conflitos português que deve ser determinada a lei aplicável.


Sendo a testadora uma cidadã espanhola que outorgou o testamento em Portugal e aqui residia habitualmente no momento do falecimento, poder-se-ia equacionar a aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.


Apesar de esse Regulamento se encontrar em vigor desde 16 de Agosto de 2012 (art. 84º desse diploma), nos termos do disposto no respectivo art. 83º, nº 1, o mesmo só é aplicável às sucessões das pessoas falecidas em 17 de Agosto de 2015 ou após essa data, o que não abrange o caso dos autos, resultando da factualidade provada que a testadora faleceu em 17.9.2013. Apesar dos nºs 3 e 4 do referido art. 83º do Regulamento conterem normas relativas à validade formal e material de disposições por morte feitas pelo falecido antes de 17 de Agosto de 2015, como afirma João Gomes de Almeida (“Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, In Revista do CEJ – n.º 2, (2.º semestre 2014), p. 30 e 31): “O favor validitatis dos n.ºs 2 a 4 do artigo 83.º está, contudo, condicionado a um evento futuro e incerto: o de que o autor da sucessão faleça em 17 de Agosto de 2015 ou em data posterior. Estes preceitos não permitem a aplicação das normas do regulamento a sucessões de pessoas falecidas antes de 17 de Agosto de 2015. O que significa que a regra geral do n.º 1 do artigo 83.° tem plena aplicação: as normas do regulamento, inclusive os n.ºs 2 a 4 do artigo 83.º só são aplicáveis às sucessões de pessoas falecidas a partir de 17 de Agosto de 2015. Esta solução é, no plano do direito a constituir, criticável porque não permite aos cidadãos planificar, com total segurança, a sua sucessão, mas é a solução que se retira da conjugação dos artigos 83.º e 84.º do Regulamento sobre sucessões.”


É assim, unicamente aplicável o nosso direito interno, dispondo o art. 65º do CC o seguinte:


“1. As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local.


2. Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada.”


Como se afirma no acórdão recorrido, do mencionado art. 65º, nº 1, do Código Civil Português, resulta uma conexão plúrima alternativa, segundo a qual o testamento aqui em causa será válido se corresponder às prescrições de uma qualquer das quatro leis ali mencionadas:

a. A lei do lugar onde o acto for celebrado;

b. A lei pessoal do autor da herança no momento da morte;

c. A lei pessoal do autor da herança no momento da declaração;

d. A lei para que remeta a norma de conflitos da lei local.


Trata-se de uma manifestação da ideia de favor testamenti, tendente a favorecer a validade formal das disposições por morte.


Há aqui uma nítida preocupação de justiça material, uma ideia de favor negoti (aqui favor testamenti), na acepção de favor validitatis, tendente a favorecer a validade formal das disposições por morte, segundo o princípio ut res magis valeant quam pereant” (Parecer do Prof. Marques dos Santos, publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, 1995, Tomo II, págs. 6-10)


Tendo o testamento sido celebrado em Portugal, não há dúvida que uma das leis aplicáveis à situação dos autos é a lei portuguesa, sendo pacífico entre as partes que foram cumpridas plenamente as exigências formais previstas na nossa lei.


A dúvida assenta na interpretação do nº 2 do art. 65º do CC que dispõe o seguinte: “Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada”.


E aqui cremos que tanto os recorrentes como o acórdão recorrido laboram em erro na interpretação de tal norma.


Com efeito, o nº 2 do art. 65º segue o regime previsto na última parte do nº 1 do art. 36º do CC que regula a lei aplicável à forma da declaração negocial no qual se dispõe o seguinte: “A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no estrangeiro.”


Mas como sublinha Luís de Lima Pinheiro, sobre esta última parte do nº 1 do art. 36º do CC: “esta exigência formulada pela lei reguladora da substância só tem de ser respeitada quando for aplicável mesmo que o negócio seja celebrado no estrangeiro. Não é isto que se verifica, em regra, com as exigências de forma” ( in “Direito Internacional Privado, vol. II, Direito dos Conflitos. Parte Especial”, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pág. 278).


Como afirma Maria João Matias Fernandes (in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, coord. de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Lisboa, Univ. Católica Portuguesa, 2014, pág. 160), em anotação ao nº 2 do art. 65º do CC: “Registe-se que não é toda e qualquer exigência relativa à forma que na lei pessoal do autor da herança no momento da declaração se contenha a ter, nos termos e para os efeitos do n.º 2, de ser respeitada. O n.º 2 confere relevância - apenas confere relevância - às disposições materiais da lei pessoal do autor da herança que, regendo em matéria de forma das disposições por morte, estabeleçam exigências que se aplicam ainda que o ato seja celebrado no estrangeiro(sublinhado da própria autora).


Esta ressalva da norma assume importância fundamental e cremos que à mesma não foi dada a devida relevância no acórdão recorrido. Como prossegue a mesma autora: “Constitui-se o n.º 2 do artigo 65.º, desta sorte, em fonte de uma norma de remissão condicionada que permite ter em conta normas materiais estrangeiras que, como a consagrada pelo artigo 2223.º do CC, têm uma vontade de aplicação ainda que o ato seja praticado no estrangeiro.”


Com efeito, prevê-se no art. 2223º do nosso CC que: “O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.”


No sentido de que o referido art. 65º, nº 2 apenas remete para normas materiais estrangeiras que, como a consagrada pelo artigo 2223.º do CC português, têm uma vontade de aplicação ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, pronunciaram-se Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, pág. 101) e Baptista Machado, citado pelos recorrentes (in Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed. actualizada, reimpressão, Almedina, 1999, pág. 451). Este último autor indica ainda como um outro exemplo o art. 992º do Código Civil Holandês afirmando o seguinte, a propósito deste nº 2 do art. 65º: “já vimos que o art. 992.° do Código civil holandês constitui o exemplo típico (e um dos raros exemplos) de normas que têm o conteúdo configurado por este n.º 2 do art. 65.° Outro exemplo fornece-no-lo o art. 2223.º do nosso Código civil, segundo o qual, o testamento feito por português no estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação. Não é líquido o conceito de «forma solene», mas parece que deve significar o mesmo que forma escrita; pelo que só ficaria excluída, portanto, a eficácia do testamento puramente nuncupativo” (cit., pág. 451).


No mesmo sentido pronunciou-se Marques dos Santos em parecer publicado na C.J. - Acórdãos do S.T.J., ano III, tomo II, 1995, páginas 5 a 10, elaborado para processo judicial de contornos bastantes similares ao caso dos autos, como adiante se dará nota, em que o referido autor dá como exemplos das “assaz/raras-normas materiais que cabem no âmbito do artigo 65.º, n.º2, do Código Civil Português”, para além do artigo 2223º do Código Civil Português, o antigo artigo 992.º do Código Civil neerlandês - segundo nota o mesmo autor, este artigo foi revogado pela lei holandesa de 10/03/82, em razão da ratificação pela Holanda da Convenção da Haia de 05/10/61 sobre os Conflitos de Leis em Matéria de Forma das Disposições Testamentárias (assinada, mas não ratificada por Portugal), que entrou em vigor para a Holanda em 01/08/82 e que não admite uma disposição do tipo do antigo artigo 992.2 do Código Civil Holandês; veja-se também do mesmo autor o artigo intitulado “Lei aplicável a uma sucessão aberta em Hong-Kong”, in RFDUL, vol. 39, n.º 1, 1998, págs. 115-134, em especial, pág. 120- nos termos do qual, segundo a respectiva versão francesa:


«Un sujet néerlandais qui se trouve en pays étranger ne pourra passer de testament qu'en la forme authentique et en observant les formes en vigueur dans le pays ou l’acte será passé” (tradução livre: “um súbdito neerlandês que se encontre num país estrangeiro só pode fazer um testamento na forma autêntica e em conformidade com os formulários em vigor no país onde a escritura será feita”).


Assim, só terá relevância nos termos do referido nº 2 do art. 65º do CC, uma norma do ordenamento jurídico espanhol que, à semelhança do art. 2223º do CC português, afirme a sua vontade de aplicação ainda que o acto seja praticado no estrangeiro.


Os recorrentes invocam a violação das exigências formais previstas nos artigos 695º e 696º do Código Civil Espanhol aprovado pelo Real Decreto de 24 de Julho de 1889, publicado na «Gaceta de Madrid» n.º 206, de 25/07/1889, o que tem como consequência a nulidade do testamento nos termos previstos no artigo 687.º do mesmo Código.


Dispõem as referidas normas, na redacção em vigor na data da outorga do testamento, o seguinte:


Artículo 695 (redacção introduzida pela Ley 30/1991, de 20 de Dezembro)


El testador expresará oralmente o por escrito su última voluntad al Notario. Redactado por éste el testamento con arreglo a ella y con expresión del lugar, año, mes, día y hora de su otorgamiento y advertido el testador del derecho que tiene a leerlo por sí, lo leerá el Notario en alta voz para que el testador manifieste si está conforme con su voluntad. Si lo estuviere, será firmado en el acto por el testador que pueda hacerlo y, en su caso, por los testigos y demás personas que deban concurrir.


Si el testador declara que no sabe o no puede firmar, lo hará por él y a su ruego uno de los testigos.


(Tradução livre: “O testador deve exprimir oralmente ou por escrito a sua última vontade ao Notário. Depois deste ter redigido o testamento em conformidade com essa vontade e com indicação do local, do ano, do mês, do dia e da hora da sua execução, e de o testador ter sido avisado do seu direito de o ler por si, o Notário lê-lo-á em voz alta para que o testador declare se o mesmo está de acordo com a sua vontade. Em caso afirmativo, o testamento será assinado no local pelo testador que estiver em condições de o fazer e, se for caso disso, pelas testemunhas e outras pessoas que devam estar presentes.


Se o testador declarar que não sabe ou não pode assinar, uma das testemunhas assinará por ele e a seu pedido”).


Artículo 696 (redacção introduzida pela Ley 30/1991, de 20 de Dezembro)


El Notario dará fe de conocer al testador o de haberlo identificado debidamente y, en su defecto, efectuará la declaración prevista en el artículo 686. También hará constar que, a su juicio, se halla el testador con la capacidad legal necesaria para otorgar testamento.


(Tradução livre: “O Notário atestará que conhece o testador ou que o identificou devidamente e, tal não sendo possível, faz a declaração prevista no artigo 686. Também fará constar que, no seu entender, o testador tem a capacidade jurídica necessária para outorgar o testamento”).


Artículo 687.


Será nulo el testamento en cuyo otorgamiento no se hayan observado las formalidades respectivamente establecidas en este capítulo.


(Tradução livre: “Será nulo o testamento em cuja execução não tenham sido observadas as formalidades previstas no presente capítulo”).


Em nenhuma destas disposições legais do Código Civil Espanhol se exige uma determinada forma do testamento que se imponha aos cidadãos de nacionalidade espanhola, sob pena de nulidade ou ineficácia, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro.


No acórdão do STJ de 9.1.1996 (processo n.º 087703, publicado em www.dgsi.pt) que apreciou um caso bastante similar ao dos autos, discutindo igualmente a validade formal de um testamento outorgado em Portugal, com as formalidades da lei portuguesa, por um cidadão espanhol, e no qual também estava em causa a alegada violação, entre outras normas, do disposto no art. 696º do CCE, citando o parecer elaborado para esse processo pelo Professor Marques dos Santos já acima referido, afirmou-se que a situação prevista no nº 2 do artigo 65º, no que respeita ao direito espanhol, “só existe relativamente ao art. 669.º do Código Civil Espanhol que proíbe o testamento de mão comum e isto por força do artigo 733.º absolutamente inequívoco no sentido de impedir que os espanhóis celebrem tal testamento, mesmo num país estrangeiro onde ele seja admitido”.


Com efeito, prevê o art. 669º do CCE o seguinte: “No podrán testar dos o más personas mancomunadamente, o en un mismo instrumento, ya lo hagan en provecho recíproco, ya en beneficio de un tercero” (tradução: “Duas ou mais pessoas não podem testar conjuntamente ou no mesmo instrumento, quer o façam em benefício recíproco, quer em benefício de terceiro”).


Por sua vez, dispõe o art. 733º do mesmo Código o seguinte: “No será válido en España el testamento mancomunado, prohibido por el artículo 669, que los españoles otorguen en país extranjero, aunque lo autoricen las leyes de la nación donde se hubiese otorgado” (tradução livre: “O testamento de mão comum, proibido pelo artigo 669, que os espanhóis outorguem num país estrangeiro não será válido em Espanha, mesmo que a lei do país onde foi outorgado o autorize”).


Como salienta Marques dos Santos no referido parecer acerca destas normas do CCE, “neste caso, para além da norma proibitiva (art. 669º), há uma norma[ o art. 733º] que estende a proibição aos testamentos celebrados por espanhóis no estrangeiro, norma essa que manifestamente não existe em relação aos artigos 694.º, 685.º e 696.º do Código Civil Espanhol”.


Voltando ao caso sub judice, não está aqui em causa qualquer testamento de mão comum, tendo o testamento em causa sido celebrado unicamente pela D. HH, sendo certo que não seria possível celebrar tal testamento em Portugal, atenta a proibição constante do art. 2181º do Código Civil Português.


A questão dos autos não se reconduz, assim, a qualquer distinção entre forma e formalidades nos termos que foram expostos no acórdão recorrido e objecto de crítica no recurso de revista, mas sim à inexistência, nos termos e para os efeitos do art. 65º, nº 2, do CC português, de disposição legal no ordenamento jurídico espanhol que comine com a nulidade ou ineficácia o testamento que é objecto desta acção, o ter observado determinada forma, ainda que tal testamento fosse outorgado no estrangeiro, como foi o caso.


Assume especial importância no caso dos autos o disposto no Código Civil Espanhol quanto aos testamentos feitos por cidadãos espanhóis em países estrangeiros.


Dispõe nessa matéria o art. 732º do CCE inserido na secção que regula o testamento feito em país estrangeiro, o seguinte:


“Los españoles podrán testar fuera del territorio nacional sujetándose a las formas establecidas por las leyes del país en que se hallen.


También podrán testar en alta mar durante su navegación en un buque extranjero, con sujeción a las leyes de la Nación a que el buque pertenezca.


Podrán asimismo hacer testamento ológrafo, con arreglo al art. 688, aun en los países cuyas leyes no admitan dicho testamento”.


(Tradução livre: “Os espanhóis podem fazer testamento fora do território nacional, sob as formas estabelecidas pelas leis do país em que se encontrem.


Podem também fazer testamento em alto mar enquanto navegam em navio estrangeira, sujeito às leis da Nação a que o navio pertence.


Podem também fazer um testamento hológrafo, de acordo com o artigo 688.º, mesmo em países cujas leis não admitam tal testamento”).


Na referida secção relativa aos testamentos feitos no estrangeiro, a única proibição assenta no art. 733º do CCE já acima transcrito respeitante aos testamentos de mão comum que não estão em causa nos presentes autos.


Ou seja, a própria lei espanhola considera válido o testamento feito por cidadão espanhol em país estrangeiro, desde que seja observada a forma prevista na lei do país onde o mesmo se encontre, ou seja, no caso dos autos, as formalidades previstas na lei portuguesa, não aludindo a qualquer necessidade de respeitar as exigências de forma previstas no Código Civil Espanhol, nomeadamente as previstas nos arts. 695º e 696º do mesmo Código.


Em conclusão, tendo o testamento observado as exigências de forma previstas na lei portuguesa, o mesmo é válido, improcedendo a argumentação dos recorrentes.


Da apreciação da validade material do testamento, em concreto, a eventual incapacidade acidental da testadora no sentido de a mesma não ter no momento da outorga de tal acto a capacidade para compreender e querer as disposições por morte que deixou em testamento


Sobre a questão de eventual nulidade do testamento por incapacidade da testadora, a Relação considerou sobretudo a aplicação da lei portuguesa, nomeadamente o disposto no art. 2199º do CC, afirmando-se que as soluções do nosso Código Civil são nesta matéria praticamente idênticas às do Código Civil Espanhol. De igual forma, no acórdão recorrido aludiu-se à doutrina e jurisprudência portuguesas sobre a interpretação da nossa lei interna que rege a matéria relativa à eventual incapacidade acidental da testadora quando outorgou o testamento.


Considerou-se também no acórdão recorrido que, atento o preceituado no art. 342, n.º 1, do Código Civil Português, é sobre o interessado na anulação do testamento que recai o ónus da prova dos factos dos quais se possa concluir por essa incapacidade do testador. Sendo que, no caso concreto dos autos a Relação, afirmou que a matéria de facto apurada não permite confirmar uma tal situação de incapacidade na ocasião em que o testamento foi outorgado.


Sobre a lei espanhola, no acórdão recorrido considerou-se apenas, em forma de conclusão, que “em face da Jurisprudência espanhola citada na decisão recorrida, teremos de concluir que a D. HH, aquando da outorga do testamento, estava no seu “cabal juicio”, entendendo-se este como o completo e normal juízo.”


Alegam os recorrentes que a repartição da prova nos termos consignados no acórdão recorrido e, portanto, a conclusão de que não se provou que a testadora estivesse incapacitada no momento da outorga do testamento, está em contradição com acórdãos do STJ de 5 de Julho de 2001 e de 11 de Abril de 2013, que seguiram ambos de perto a opinião de Inocêncio Galvão Telles, e sustentam uma regra de repartição do ónus da prova totalmente inversa da que o Tribunal a quo aplicou no presente caso.


Segundo os recorrentes, em tal jurisprudência do STJ (invocando em concreto o acórdão invocado como fundamento do recurso de revista excepcional, de 11.4.2011, proferido no processo n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1), perfilha-se o entendimento de que “quando a parte interessada na anulação do testamento prove que o testador sofria de uma doença degenerativa (e evolutiva) das condições de perceção, compreensão, raciocínio e aptidões de pensamento abstrato e concreto é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Por conseguinte, à parte interessada na manutenção do ato caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o ato recaiu num momento de lucidez.


No caso concreto dos autos, invocam os recorrentes que lograram provar que “a Senhora sua Mãe, D. HH, padecia, de acordo com os diagnósticos feitos três anos antes e um ano antes do Testamento, de «atrofia cerebral difusa, com preponderância na região amígadalo-hipocampal», de tal forma que no diagnóstico foram incluídas «doenças de índole degenerativa, do tipo de Alzheimer»”. Sendo que da matéria de facto provada nos pontos 10 e 11 resulta “inquestionavelmente provado que a Testadora D. HH, em momento contemporâneo da feitura do Testamento – com provável início em 2007 e de forma instalada desde 2009 –, sofria de uma doença neurodegenerativa que afetava a sua capacidade cognitiva e a orientação espácio-temporal.


Acresce ainda, segundo os recorrentes, a factualidade provada e adquirida nos autos sobre o dia da outorga do testamento e os dias antecedentes, através dos documentos juntos através do Anexo D da Contestação, fls. 519, factos que não constam do elenco de factos provados porquanto, apesar de as aqui recorrentes e o réu MM terem requerido o seu aditamento ao elenco de factos provados nos seus recursos de apelação, o tribunal a quo considerou que os mesmos constam de «documento adquirido nos autos e que, como tal, será objeto da devida análise (…), não se vislumbrando qualquer interesse em indicar factos que se limitam a “descrever” aquilo que consta do documento», pelo que «não existem motivos para aditar novos factos» relativamente a estes documentos. Na alegação dos recorrentes resulta dessa documentação que no dia da outorga do testamento e nos dias antecedentes, a Senhora D. HH, no pano de fundo de um quadro clínico demencial e de deterioração cognitiva acentuada comprovado, registou oscilações cognitivas ao longo dos dias.


Concluem, assim, os recorrentes que a Relação, em conformidade com o decidido no referido acórdão do STJ de 11.4.2013, que, em termos factuais, é semelhante ao caso dos autos, deveria ter presumido que, de acordo com um padrão de normalidade, perante um quadro clínico demencial e de deterioração cognitiva acentuada comprovado, as condições de percepção, compreensão e raciocínio e a capacidade de reter informação nova da testadora se encontravam diminuídas, e que na data do testamento aquele estado se mantinha. Nessa medida, e aplicando, como devia, essa presunção de facto, era aos interessados na manutenção do testamento que cabia provar que no momento da sua feitura, a Senhora D. HH se encontrava num intervalo lúcido, prova que não foi feita nos autos, motivo pelo qual se deveria ter concluído pela invalidade do testamento.


Apreciando a questão, importa determinar, antes de mais, a lei aplicável à situação dos autos.


Como acima já se referiu, tendo o testamento sido feito em Portugal e sendo a testadora de nacionalidade espanhola quer no momento da declaração testamentária quer no momento do seu falecimento, a questão em litígio não é puramente interna, existindo um conflito de leis potencialmente aplicáveis à questão da validade do testamento. E tal conflito existe não só quanto à validade formal do testamento, como também à sua validade material e à apreciação da alegada incapacidade acidental da testadora no momento da outorga do testamento.


Como também já acima se referiu, não é aplicável à situação dos autos o teor do Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.


Importa, assim, apreciar o regime de direito dos conflitos previsto no nosso Código Civil.


De acordo com o disposto no art. 62º: “A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança e do executor testamentário.”


Dispõe o art. 63º, n.º 1, que: “A capacidade para fazer, modificar ou revogar uma disposição por morte, bem como as exigências de forma especial das disposições por virtude da idade do disponente, são reguladas pela lei pessoal do autor ao tempo da declaração.”


Por sua vez, prevê o art. 64º o seguinte: “É a lei pessoal do autor da herança ao tempo da declaração que regula:


a) A interpretação das respectivas cláusulas e disposições, salvo se houver referência expressa ou implícita a outra lei;


b) A falta e vícios da vontade;


c) A admissibilidade de testamentos de mão comum ou de pactos sucessórios, sem prejuízo, quanto a estes, do disposto no artigo 53.º”


É assim claro que à situação dos autos é aplicável a lei pessoal da testadora que, como acima notámos, é a lei espanhola por ser a lei da sua nacionalidade quer na data em que o testamento foi outorgado quer no momento do seu falecimento (art. 31º, nº 1, do CC).


Considerando o direito de conflitos da lei espanhola, esta também se considera competente para a apreciação da capacidade da testadora e para a aferição de eventual falta ou vício da vontade do testador no momento da outorga do testamento, nos termos do disposto no art. 9º, n.ºs 1 e 8, do Código Civil Espanhol, na redacção em vigor no momento da outorga do testamento e do falecimento da testadora (de acordo com a última versão introduzida a tal artigo pela Ley 54/2007, de 28-12), nos quais se dispõe o seguinte:


Artículo 9.


1 - La ley personal correspondiente a las personas físicas es la determinada por su nacionalidad. Dicha ley regirá la capacidad y el estado civil, los derechos y deberes de familia y la sucesión por causa de muerte.


(…)


8 - La sucesión por causa de muerte se regirá por la Ley nacional del causante en el momento de su fallecimiento, cualesquiera que sean la naturaleza de los bienes y el país donde se encuentren. Sin embargo, las disposiciones hechas en testamento y los pactos sucesorios ordenados conforme a la Ley nacional del testador o del disponente en el momento de su otorgamiento conservarán su validez, aunque sea otra la ley que rija la sucesión, si bien las legítimas se ajustarán, en su caso, a esta última. Los derechos que por ministerio de la ley se atribuyan al cónyuge supérstite se regirán por la misma ley que regule los efectos del matrimonio, a salvo siempre las legítimas de los descendientes”.


Tradução livre:


“1 - A lei pessoal das pessoas singulares é a lei determinada pela sua nacionalidade. Esta lei regulará a capacidade e o estado civil, os direitos e deveres familiares e a sucessão por morte.


(…)


8 - A sucessão por morte será regulada pela lei nacional do falecido no momento do seu falecimento, qualquer que seja a natureza dos bens e o país em que se encontrem. Todavia, as disposições testamentárias e os pactos sucessórios efectuados em conformidade com a lei nacional do testador ou do disponente no momento da sua execução permanecerão válidos, mesmo que a lei que rege a sucessão seja diferente, mas a legítima deve, se for caso disso, ser conforme a esta última. Os direitos atribuídos de pleno direito ao cônjuge sobrevivo serão regulados pela mesma lei que rege os efeitos do casamento, com exceção da legítima dos descendentes.”


Não há, assim, lugar a qualquer reenvio para a lei portuguesa ou de um terceiro Estado nos termos do disposto nos arts. 17º e 18º do nosso Código Civil.


Pelo exposto, carecem de sentido as considerações sobre a lei portuguesa tecidas no acórdão recorrido e também nas alegações de recurso, bem como a invocação da contradição do acórdão recorrido com jurisprudência do STJ porquanto essa alegada contradição se baseia no direito português que não é o aplicável à situação dos autos nem deve a lei espanhola ser interpretada e aplicada com recurso a fontes doutrinais e jurisprudenciais portuguesas que se pronunciem unicamente sobre a lei portuguesa e não sobre aquela lei estrangeira.


Com efeito, concluindo-se pela aplicação da lei espanhola ao caso dos autos, nos termos do disposto no art. 23º, nº 1 do CC, importa proceder à interpretação da lei estrangeira dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas. Como se defendeu no acórdão do STJ de 26.2.2015 (Revista n.º 693/10.0TVPRT.C1.P1.S1, disponível em www.dgsi.p), esta disposição legal “impõe que se faça apelo à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, que se tenha, como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e que se actue com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, só devendo tal interpretação ser afastada quando puder ser tida como inexacta.”


Atendendo a estas premissas, importa apreciar os preceitos relevantes do direito interno da lei espanhola.


Dispõem os art. 662º a 666º do Código Civil Espanhol, na redacção em vigor na data em que foi outorgado o testamento, o seguinte:


Artículo 662


Pueden testar todos aquellos a quienes la ley no lo prohíbe expresamente.


Tradução livre:


“Podem fazer testamento todos aqueles a quem a lei não o proíba expressamente.”


Artículo 663


“Están incapacitados para testar:


1.º Los menores de catorce años de uno y otro sexo.


2.º El que habitual o accidentalmente no se hallare en su cabal juicio”.


Tradução livre:


“São incapazes de testar:


1.º Os menores de catorze anos, de ambos os sexos.


2.º Quem, habitual ou acidentalmente, não estiver em seu juízo perfeito.”


Versão original do Código. O preceito foi entretanto alterado pela Ley 8/2021, de 2-06 que passou a prever o seguinte: “No pueden testar: 1.º La persona menor de catorce años. 2.º La persona que en el momento de testar no pueda conformar o expresar su voluntad ni aun con ayuda de medios o apoyos para ello.”


Artículo 664.


“El testamento hecho antes de la enajenación mental es válido”


(Tradução livre: “O testamento feito antes da perturbação mental é válido”).


Artículo 665


Siempre que el incapacitado por virtud de sentencia que no contenga pronunciamiento acerca de su capacidad para testar pretenda otorgar testamento, el Notario designará dos facultativos que previamente le reconozcan y no lo autorizará sino cuando éstos respondan de su capacidad.


(Tradução livre: “Sempre que a pessoa incapacitada por força de uma sentença que não contenha uma declaração sobre a sua capacidade para testar pretenda fazer um testamento, o Notário nomeará dois médicos que o reconhecerão previamente e não o autorizarão enquanto não atestarem a sua capacidade”).


Redacção introduzida pela Ley 30/1991, de 20-12.


Artículo 666.


Para apreciar la capacidad del testador se atenderá únicamente al estado en que se halle al tiempo de otorgar el testamento.


(Tradução livre: “Para avaliar a capacidade do testador, só será tido em conta o estado em que se encontrava no momento em que outorgou o testamento”).


A jurisprudência espanhola, em concreto, a Sala Civil do Supremo Tribunal Espanhol tem interpretado estes preceitos de forma consistente no sentido de se presumir a capacidade mental do testador para entender e querer o sentido da sua declaração testamentária, sendo tal presunção susceptível de ser ilidida mediante prova inequívoca, completa e convincente em contrário; a avaliação dessa capacidade do testador deve ser feita com referência ao momento da outorga do testamento e a afirmação feita pelo Notário da capacidade do testador pode ser destruída por provas posteriores, que devem ser completas e convincentes, uma vez que a afirmação notarial tem especial relevância probatória (cfr. Decisão do Tribunal Supremo Espanhol de 26.6.2015 n.º 386/2015, ECLI:ES:TS:2015:3164; esta e as restantes decisões do Supremo Tribunal Espanhol abaixo citadas encontram-se disponíveis para consulta no seguinte site: https://www.poderjudicial.es/search/index.jsp)


Como se afirmou na Decisão do Supremo Tribunal Espanhol de 19.9.1998 n.º 848/1998 (ECLI:ES:TS:1998:5223):“La decisión judicial que declara y confirma la situación de incapacidad, juega a efectos de la ineficacia de la presunción de capacidad para testar del artículo 662, -"favor testamenti"-, que cabe ser destruido por medio de prueba inequívoca, cumplida y convincente en contrario (Ss. de 12-5-1962, 13-10-1990, 30-11-1991, 10-2 y 8-6-1994); prueba que es de cargo, en cuanto excepción, de la parte que sostiene la incapacidad mental del testador en el momento del otorgamiento de su última voluntad (Ss. de 10-4-1987 y 26-9-1988).


(…)


La capacidad para testar equivale a capacidad o aptitud natural y según la jurisprudencia reiterada se presume asiste a todo testador


(…)


El juicio notarial de la capacidad de testamentación, si bien está asistido de relevancia de certidumbre, dado el prestigio y confianza social que merecen en general los Notarios, no conforma presunción "iuris de iure", sino "iuris tantum", que cabe destruir mediante prueba en contrario, que los Tribunales deben de declarar cumplida y suficiente para decidir la incapacidad de quien testa y en el momento histórico de llevar a cabo tal acto, lo que conforma reiteradísima doctrina jurisprudencial ( Sentencias de 26-9-1988, 13-10-1990, 24-7-1995 y 27-11-1995, como las más recientes)”.


Tradução livre:


“A decisão judicial que declara e confirma a situação de incapacidade, tem um papel na ineficácia da presunção de capacidade testamentária do artigo 662.º, - «favor testamenti»-, que pode ser destruída através de prova inequívoca, completa e convincente em contrário (Ss. de 12-5-1962, 13-10-1990, 30-11-1991, 10-2 e 8-6-1994); prova que favorece, a título excecional, a parte que sustenta a incapacidade mental do testador no momento da outorga da sua última vontade (Ss. de 10-4-1987 e 26-9-1988).


(…)


A capacidade para testar é equivalente à capacidade ou aptidão natural e, de acordo com a jurisprudência constante, presume-se que está presente em todos os testadores.


(…)


O juízo emitido pelo Notário de capacidade testamentária, embora tenha uma certa relevância, dado o prestígio e a confiança social que os Notários merecem em geral, não constitui uma presunção «iuris de iure», mas «iuris tantum», que pode ser destruída por prova em contrário, que os Tribunais devem declarar preenchida e suficiente para decidir sobre a incapacidade da pessoa que testa no momento da prática de tal acto, o que constitui uma doutrina jurisprudencial muito reiterada (Acórdãos de 26-9-1988, 13-10-1990, 24-7-1995 e 27-11-1995, como os mais recentes).”


Numa outra decisão de 26.4.2008 (n.º 289/2008, ECLI:ES:TS:2008:2218), citada na sentença de 1.ª instância, na qual se identificam outras decisões do mesmo Supremo Tribunal sobre esta temática, é afirmado o seguinte:


“La jurisprudencia ha mantenido reiteradamente la necesidad de que se demuestre "inequívoca y concluyentemente" la falta de raciocinio para destruir la presunción de capacidad para testar (sentencia de 27 de noviembre de 1995 ) y que "la incapacidad o afección mental ha de ser grave... no bastando apoyarla en simples presunciones o indirectas conjeturas" (sentencias de 27 de enero de 1998, 12 de mayo de 1998, 27 de junio de 2005 ); asimismo, que la presunción de capacidad, favor testamenti, "cabe ser destruido por medio de prueba inequívoca, cumplida y convincente en contrario" (sentencia de 19 de septiembre de 1998 ).”


Tradução livre:


“A jurisprudência tem repetidamente afirmado a necessidade de uma prova «inequívoca e concludente» da falta de raciocínio para destruir a presunção de capacidade testamentária (acórdão de 27 de novembro de 1995) e que «a incapacidade ou estado mental deve ser grave... e não basta apoiá-la em meras presunções ou conjecturas indirectas» (acórdãos de 27 de janeiro de 1998, 12 de maio de 1998, 12 de maio de 1998, 12 de junho de 2005); do mesmo modo, que a presunção de capacidade, favor testamenti, «pode ser destruída mediante prova inequívoca, completa e convincente em contrário» (acórdão de 19 de setembro de 1998).”


Sobre o ónus da prova dos factos que demonstrem a incapacidade acidental do testador no momento em que o testamento foi outorgado, afirma-se na decisão do Supremo Tribunal Espanhol de 7.7.2016 n.º 461/2016 (ECLI:ES:TS:2016:3123), o seguinte:


“(…) nuestro Código Civil no establece, tal y como alega la parte recurrente, que en los actos o negocios mortis causa, caso del testamento, la exigencia de la capacidad mental respecto al discernimiento acerca de la finalidad, contenido, o transcendencia del acto realizado deberá ser mayor que en los negocios inter vivos.


Más bien, y en atención al ámbito en donde opera la acción de nulidad entablada, nuestro Código Civil sitúa el contexto del debate en la necesaria prueba, por parte del impugnante, de la ausencia o falta de capacidad mental del testador en el momento de otorgar el testamento.


Esta carga de la prueba deriva del principio de favor testamenti, que acoge nuestro Código Civil, y de su conexión con la presunción de capacidad del testador en orden a la validez y eficacia del testamento otorgado (SSTS de 26 de abril de 2008, núm. 289/2008, de 30 de octubre de 2012, núm. 624/2012, de 15 de enero de 2013, núm. 827/2012 y de 19 de mayo de 2015, núm. 225/2015). Con lo que el legitimado para ejercitar la acción de nulidad del testamento debe probar, de modo concluyente, la falta o ausencia de capacidad mental del testador respecto del otorgamiento del testamento objeto de impugnación y destruir, de esta forma, los efectos de la anterior presunción iuris tantum de validez testamentaria.”


Tradução livre:


(…) “o nosso Código Civil não estabelece, como alega a recorrente, que nos actos ou negócios mortis causa, no caso do testamento, a exigência de capacidade mental no que respeita ao discernimento da finalidade, do conteúdo ou do significado do acto praticado, deva ser maior do que nos negócios inter vivos.


Pelo contrário, e tendo em conta o âmbito da acção de nulidade intentada, o nosso Código Civil situa o contexto do debate na necessária prova, por parte do contestante, da ausência ou falta de capacidade mental do testador no momento da outorga do testamento.


Este ónus da prova decorre do princípio do favor testamenti, consagrado no nosso Código Civil, e da sua ligação com a presunção de capacidade do testador para garantir a validade e eficácia do testamento outorgado (SSTS de 26 de abril de 2008, n.º 289/2008, de 30 de outubro de 2012, n.º 624/2012, de 15 de janeiro de 2013, n.º 827/2012 e de 19 de maio de 2015, n.º 225/2015). Por conseguinte, a parte que tem o direito de intentar uma acção de nulidade do testamento deve provar, de forma conclusiva, a falta ou ausência de capacidade mental do testador no que diz respeito à concessão do testamento contestado, destruindo assim os efeitos da anterior presunção ilidível de validade testamentária.”


No mesmo sentido dos acórdãos acima referidos, veja-se ainda a decisão do Tribunal Supremo Espanhol de 8.4.2016 (n.º 234/2016, ECLI:ES:TS:2016:1627) citada na sentença de 1.ª instância.


Podemos, assim, concluir do exposto que é correcta a afirmação contida na sentença de 1ª instância de que “é constante na jurisprudência do Supremo Tribunal de Espanha a referência a uma presunção iuris tantum de capacidade do testador legalmente estabelecida, exigindo-se como tal prova inequívoca e concludente com vista à sua elisão (…), sendo necessária incapacidade ou afectação mental grave, não apoiada em simples presunções ou conjecturas, para afastar a presunção”.


É, assim, indubitável que é aos aqui recorrentes, interessados na declaração da invalidade do testamento, que cabe o ónus de ilidir a referida presunção, provando factos que atestem a incapacidade mental da testadora D. HH no momento em que outorgou o testamento.


Ora, e revertendo ao caso sub judice, e apesar de resultar da factualidade provada, tal como alegado pelos recorrentes, que a testadora D. HH padecia de doença neurodegenerativa que afectava a sua capacidade cognitiva, em concreto, uma “atrofia cerebral difusa e bilateral com maior preponderância em regiões amigdalo-campais e insulo-opercular”, devendo incluir-se no diagnóstico diferencial “doenças de índole neuro degenerativa tipo Alzheimer”, e tendo na altura em que foi celebrado o testamento oscilações cognitivas ao longo dos dias, tendo por vezes um discurso incoerente e de confusão, o certo é que não se provaram factos que permitam concluir que no preciso momento em que foi celebrado o testamento, a D. HH não estivesse no seu juízo normal ou desprovida das capacidades mentais necessárias para o efeito, no sentido de não compreender o seu alcance.


Na verdade resultaram provados os seguintes factos:


“a) Depois de vir de ... em Abril 2009, a testadora ainda recuperou e, pelo menos até à altura da assinatura do testamento, analisou documentação bancária, assinou contratos, saiu algumas vezes de casa, ainda que acompanhada, nomeadamente para visitar os filhos, para ir mensalmente à consulta no Hospital ... onde, ao longo de vários anos, foi acompanhada pelo médico Dr. PP, e para lanchar ou ir ao restaurante almoçar (ponto 19 dos factos provados).


b) A D. HH transmitiu ao advogado Dr. RR, amigo da família há dezenas de anos, que queria fazer um testamento, ao que este respondeu que não queria dar orientações a esse propósito, limitando-se a dizer que poderia falar com um notário para o efeito (ponto 27 dos factos provados).


c) O Dr. II, que veio a ser nomeado testamenteiro, visitou pelo menos três vezes a testadora, e, em conversas a sós, recebeu instruções dela relativamente ao testamento que pretendia outorgar (ponto 29 dos factos provados).


d) A testadora transmitiu ao Dr. II os legados que pretendia fazer (ponto 30 dos factos provados).


e) A A.AA era portadora de uma declaração emitida pelo referido Dr. PP, junta à réplica como documento nº 4, a fls. 1227, em que o mesmo declarou que HH, doente que segue há 2 anos, “se encontra na posse plena das suas capacidades mentais, estando apta a tomar decisões” (ponto 48 dos factos provados).


f) O Notário, depois de conversar durante alguns minutos com a testadora, afirmou que não precisava de tal declaração por não ter dúvidas sobre a capacidade da mesma para outorgar e compreender o testamento (ponto 49 dos factos provados).


g) No dia do testamento, 8/10/2010 (ver fls. 532), após regressar a casa, mostrava-se bem-disposta, tendo jantado com apetite (ponto 50 dos factos provados).


h) A A. AA não queria que ninguém desse conhecimento da existência do testamento aos demais herdeiros R.R., que só souberam da sua existência após a morte da testadora (ponto 51 dos factos provados).”


Ao mesmo tempo, não se provou, designadamente, a matéria alegada pelos Réus:


-no art. 72º (na parte em que o testamento foi subscrito depois de muito ensaio e treino, da sua assinatura, e que a mesma tivesse evidente total incapacidade para perceber e ou querer o Testamento que lhe impuseram, sendo no demais conclusivo);


- no art.79º (na parte em que na data em que fez o Testamento, vivesse “em estado de débil”, cumprindo o ritual diário que lhe era imposto, sem vontade própria, nem capacidade para ler ou conversar);


- no art. 85º (que a testadora não entendesse minimente o testamento que assinou e que o fez por receio de ser abandonada pela filha AA);


- no art. 92º (que no dia do testamento a testadora estivesse “privada de vontade própria” em virtude das suas doenças e que os AA tivessem chegado a proibir a entrada em casa da pessoa que diariamente ministrava a comunhão à Testadora;


- no art. 95º (que à data do testamento a testadora estivesse sem capacidade de se movimentar e incapaz de ler);


- no art. 96º (que à data do testamento a testadora nunca lia o que quer que fosse, passando o dia com os olhos em alvo, a olhar cenas de televisão e programas que não escolhia, por não ter vontade nem entendimento, que lhe eram servidos ao gosto de quem os escolhia);


- no art. 112º (na parte em que na semana em que assinou o testamento a testadora teve momentos de incapacidade de manter uma conversa e/ou diálogo);


- no art. 113º (na parte em que, não obstante ser parca a conversação, desde que regressou de ... a testadora se expressasse com as enfermeiras quase exclusivamente por monossílabos e em resposta estímulos).


Desta factualidade resulta que não se provou, portanto, que a testadora não entendesse minimamente o testamento que assinou, resultando, aliás dos factos provados que o testamento foi precedido de reuniões com o advogado Dr. II, que foi designado testamenteiro, a quem a testadora deu instruções sobre as deixas, transmitindo a sua vontade, tendo as conversas decorrido a sós, assim como se provou que a testadora estava bem ciente de que no dia em causa (8.10.2010) iria ter lugar a outorga do testamento.


Assim, como se referiu no acórdão recorrido, apesar da deterioração cognitiva da testadora e de a mesma ter momentos de confusão, desorientação e discurso incoerente, não resulta dos referidos factos provados que, no momento em que o testamento foi outorgado, a testadora não estivesse dotadas das condições intelectuais necessárias à sua feitura, mesmo que não estivesse no esplendor da sua capacidade cognitiva, e que esta, admite-se, até estivesse diminuída, pois, como entendeu a Relação, tal não equivale à afirmação de que a testadora se encontrasse desprovida da necessária capacidade de entendimento para compreender o alcance das disposições vertidas no testamento.


Podemos, pois, concluir que, de acordo com o direito espanhol, na forma como tem sido interpretado pela jurisprudência do Tribunal Supremo de Espanha, não se provaram factos que, de forma inequívoca, completa e convincente, permitam ilidir a presunção de capacidade mental da testadora D. HH no momento da outorga do testamento para entender e querer o sentido das suas declarações testamentárias.


Improcede, assim, totalmente o recurso de revista.


Sumário ( art. 663º, nº 7 do CPC):


“1. Para os efeitos do nº 2 do art. 65º do Código Civil não é toda e qualquer exigência relativa à forma, que se contenha na lei pessoal do autor da herança, que deve ser respeitada no momento da declaração, mas apenas aquelas que a lei pessoal do autor manda aplicar ainda que o acto seja praticado no estrangeiro;


2. Assim, para o caso de um espanhol que faça o testamento em Portugal, só terá relevância, nos termos do referido nº 2 do art. 65º do Código Civil, uma norma do ordenamento jurídico espanhol que, à semelhança do art. 2223º do Código Civil português, afirme a sua vontade de aplicação ainda que o acto seja praticado no estrangeiro;


3. Não estabelecendo a lei espanhola a observância dos requisitos de forma previstos nos arts 695º e 696º no Código Civil espanhol para os actos praticados no estrangeiro, não tem o testamento feito em Portugal por cidadã espanhola de observar os referidos requisitos de forma;


4. A apreciação judicial da capacidade da testadora espanhola no momento da outorga do seu testamento em Portugal deve ser feita de acordo com a lei espanhola interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nela fixadas, com apelo à jurisprudência e à doutrina dominantes em Espanha;


5. Neste contexto, verifica-se que a jurisprudência espanhola, em concreto, a Sala Civil do Supremo Tribunal Espanhol tem interpretado os artigos 662º a 666º no Código Civil espanhol, consistentemente, no sentido de se presumir a capacidade mental do testador para entender e querer o sentido da sua declaração testamentária, sendo tal presunção susceptível de ser ilidida mediante prova inequívoca, completa e convincente em contrário;


6. De acordo com a mesma jurisprudência, é ao interessado na invalidade do testamento que compete o ónus de ilidir essa presunção e provar a ausência ou a falta de capacidade mental do testador no momento da outorga do do testamento;


7. Ora, no caso em apreço, apesar de se ter provado que a testadora padecia de doença neurodegenerativa que afectava a sua capacidade cognitiva, em concreto, uma “atrofia cerebral difusa e bilateral com maior preponderância em regiões amigdalo-campais e insulo-opercular”, devendo incluir-se no diagnóstico diferencial “doenças de índole neuro degenerativa tipo Alzheimer”, que tinha, na altura, em que foi celebrado o testamento oscilações cognitivas ao longo dos dias, tendo, por vezes, um discurso incoerente e de confusão, verifica-se, no entanto, que não se provaram factos que permitam concluir que, no preciso momento em que foi celebrado o testamento, a testadora não estivesse no seu juízo normal ou desprovida das capacidades mentais necessárias para o efeito.”


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e, com diferente fundamentação, confirmar o acórdão recorrido.


Custas pelos recorrentes.



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Lisboa, 27 de Fevereiro de 2024


António Magalhães (Relator)


Nelson Borges Carneiro


Jorge Arcanjo