Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
979/12.0TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ACÇÃO DE DESPEJO
AÇÃO DE DESPEJO
RESOLUÇÃO
NULIDADE DO ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
TRANSACÇÃO JUDICIAL
LOCATÁRIO
LOCADOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ACTOS PROCESSUAIS / ACTOS EM GERAL / NULIDADES DOS ACTOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, p. 134;
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 2.ª edição, p. 247 ; Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), p. 742-770;
- António Pereira de Almeida, Revista de Direito Comercial, p. 150 e 151, in www.revistadedireitocomercial.com;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, p. 536 ; Manual de Processo Civil, 1985, p. 393;
- Baptista Machado, RLJ, Ano 119, p. 171;
- Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, p. 478-508;
- José Alberto Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 367-373 ; vol. II, p. 507;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., p. 546;
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8.ª edição, Almedina, p. 178 e 179;
- Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 10.ª edição, Almedina, p. 284 e 285;
- Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade pela confiança nos 35 anos do Código Civil. Balanço e perspectivas, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III – Direito das obrigações, FDUC, 2007, p. 285-307 ; Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, p. 345 e ss.;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 183;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, p. 161;
- Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil, BFDUC, Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, p. 269-322;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, p. 296.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 199.º E 665.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2014, IN D.R. N.º 39, I SÉRIE, DE 25-02-2014;
- DE 06-12-2018, PROCESSO N.º 300/13.0TJPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-01-2013, PROCESSO N.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-03-2019, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Não padece de nulidade por excesso de pronúncia o acórdão que conhece de causa de resolução do contrato de arrendamento invocada na petição inicial, que não fora conhecida na sentença por ter ficado prejudicada a sua apreciação, e que foi objecto de ampliação do âmbito do recurso pela recorrida, ainda que não tivesse sido observado o disposto no n.º 3 do art. 665.º do CPC, não havendo violação do princípio do contraditório, nem decisão surpresa.
II - A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos surgidos na pendência do processo, a decisão a proferir deixa de ter qualquer efeito útil, porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.
III - A transacção judicialmente homologada, celebrada entre a locatária e as locadoras no âmbito do processo de verificação ulterior de créditos, sobre as rendas em dívida não determina a extinção da instância da acção de resolução do contrato de arrendamento com fundamento diferente.
IV - A declaração de insolvência do locatário insolvente não torna inútil a acção de resolução do contrato de arrendamento celebrado com fundamento em cedência ilícita a terceiro.
V - O prosseguimento da acção de despejo após o encerramento da insolvência do locatário não é susceptível de constituir nulidade processual e, se fosse, por ser secundária, sempre estaria sujeita ao regime de arguição do art. 199.º do CPC.
VI - A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente, não configurando uma situação abusiva o prosseguimento de uma acção de despejo após o encerramento do processo de insolvência e que havia sido instaurada antes da declaração de insolvência do locatário.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA, BB, CC e DD, S.A.,  instauraram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra EE, Ld.ª, todos com os sinais dos autos, pedindo que:

a) fosse decretada a cessação do arrendamento por resolução, com a condenação da ré na entrega do locado imediatamente, livre e devoluto;

b) fosse a ré condenada no pagamento às autoras das rendas vencidas e não pagas, no valor de 190.598,50 € (cento e noventa mil, quinhentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos), e as vincendas até entrega do locado, bem como dos correspondentes juros de mora à taxa legal;

c) fosse a ré condenada a pagar às autoras, por via de todos os custos e demais despesas ou encargos, bem como os prejuízos sofridos pelas autoras e por estas suportados, por via da presente acção.

Para tanto, alegaram, em resumo, o seguinte:

Celebraram com a ré um contrato de arrendamento, em 1/6/2005, que teve por objecto o imóvel que identificaram, destinado ao exercício da actividade comercial e industrial ou de serviços, mediante o pagamento da competente renda que aquela deixou de pagar a partir de Julho de 2011 até Setembro de 2012, no total de 190.598,50 €.

A partir de Fevereiro de 2012, a ré permitiu a ocupação do locado por sociedade terceira, com a mesma tendo celebrado contrato de sublocação de todo o imóvel ou de cedência do mesmo, sem autorização e contra a vontade manifestada em sentido oposto pelas autoras.

Nessa medida subsistem motivos para a resolução do aludido contrato, à luz do prescrito no art.º 1083.º, n.ºs 2, al. e) e n.º 3, do Código Civil, com a consequente procedência dos pedidos deduzidos.

A ré, regularmente citada para os termos da acção, citação essa repetida na sequência da procedência de recurso de revisão intentado por aquela, não apresentou contestação.

Face à ausência de contestação, foi proferido despacho a considerar confessados os factos alegados na petição inicial.

Em sede de alegações, no âmbito do disposto no art.º 567.º, n.º 2, do CPC, a ré suscitou a excepção do caso julgado, posto que, já após a instauração da presente lide, foi declarado o seu estado de insolvência e, na acção de verificação ulterior de créditos que correu por apenso, foi proferida sentença homologatória de transacção celebrada entre as partes relacionada com as rendas em causa na presente acção; mais adiantou que sempre a presente acção deveria ser julgada extinta, em face da sentença que decretou a sua insolvência, desde logo atenta a jurisprudência uniformizadora fixada pelo Ac. n.º 1/14, do STJ; devendo ainda as autoras ser condenadas como litigantes de má fé, com pagamento duma indemnização a seu favor não inferior a 1.500,00 €, face ao seu comportamento processual de pretenderem a apreciação das pretensões deduzidas no articulado inicial, mesmo após ter sido regularizada a problemática atinente ao pagamento de rendas, tudo em face do ocorrido no aludido processo de insolvência.

Por sua vez, as autoras, para além de defenderem a procedência dos pedidos que formularam na acção, responderam ao aduzido pela ré nas alegações no que concerne à matéria de excepção conducente à extinção da instância, pugnando pelo seu não acolhimento, bem assim pela não verificação de litigância de má fé da sua parte.

            Seguiu-se sentença, onde se decidiu:

- julgar extinta a instância na parte correspondente ao pedido de condenação da ré no pagamento das rendas vencidas desde Julho de 2011, atento o que havia sido decidido no âmbito do processo de verificação ulterior de créditos;

- julgar procedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento por falta do pagamento de rendas, com a consequente condenação da ré a entregar o locado às autoras, livre e devoluto.

Inconformada com essa decisão, a ré interpôs recurso de apelação, o qual foi apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 7/2/2019, tendo deliberado nos seguintes termos:

 “Pelo exposto, embora sendo de acolher parcialmente os fundamentos a sustentar a apelação interposta pela Ré, decide-se julgar procedente o pedido formulado na acção pelas Autoras de resolução do contrato de arrendamento em causa nos autos, com consequente despejo do locado, ainda que com fundamentação distinta da seguida na decisão recorrida”.

Ainda irresignada, a ré interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

«A)      Conforme resulta do Douto Acórdão ora colocado em crise, a sua decisão baseia-se no disposto no artigo 665° n° 2 do CPC e daí que os seus fundamentos sejam totalmente diversos dos que resultam da decisão da primeira instância.

B) Antes de ser proferida a Douta Decisão ora colocada em crise, cada uma das partes deveria ter sido ouvida pelo prazo de dez dias conforme resulta do nº 3 do artigo 665° do CPC, tramitação esta obrigatória e que foi "in casu" omitida pelo que, contrariamente àquilo que resulta do seu teor, não foi garantido o contraditório.

C) Tem a Recorrente de concluir que o Douto Acórdão ora recorrido pronunciou-se sobre questões que não poderia tomar conhecimento sem que previamente a notificasse, acabando pois por consubstanciar uma "decisão surpresa" não permitida pelo nº 3 do artigo 3º do CPC.

D) Daí ter a Recorrente de arguir a nulidade do Douto Acórdão ora recorrido, ao abrigo do disposto nos artigos 666º nº I e 615º nº 1 al. d) do CPC.

E) Do Douto Acórdão ora recorrido está provado que:

- a presente acção deu entrada em Juízo no dia 08.10.2012;

- a Recorrente foi declarada insolvente a 26.11.2012. por sentença transitada em julgado a 21.03.2013, conforme decorre do doc. nº 8 junto ao requerimento apresentado pela Recorrente a 09.03.2017, referência 14165884.;

- As Recorridas pretenderam ver os seus créditos reconhecidos no processo de insolvência respectivo, através da propositura de uma acção de verificação ulterior de créditos, na qual unicamente reclamaram o pagamento das "rendas vencidas desde Julho de 2001 até hoje…";

- A Recorrente e as Recorridas celebraram um acordo tendente ao pagamento de tais rendas, o qual foi judicialmente homologado.

F) Estes quatro pontos obrigam forçosamente a extinção, "in totum", da presente instância e não somente no que tange ao pedido de pagamento das rendas.

G) Estando o pagamento das rendas judicialmente acordado e regularizado no processo de insolvência, deixa de existir causa de pedir, pelo que tem de obrigatoriamente "falecer" o consequente pedido de restituição da coisa locada.

H) Não é concebível uma "autonomização" do pedido de restituição do locado quando existe um acordo de regularização das rendas, sancionado por Sentença, que se encontra a ser cumprido.

I) A Recorrente persiste que a presente acção judicial deveria ainda ter sido extinta a partir do momento em que a sentença que declarou a insolvência da Recorrente transitou em julgado a 21.03.2013, por força do preceituado nos artigos 88º nº 1 e 108º nº 4 al. a) do CIRE bem como do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 1/2014 o qual dispõe que “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu eleito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do CP.C "

J) Desta forma, todo o processado a partir da data de tal trânsito, requerimento das Recorridas de 20.06.2016, referência 10897024 inclusive, deverá ser anulado e declarado de nenhum efeito, nulidade esta que expressamente se invoca para todos os demais efeitos legais.

K) E a comprovar que este também era o entendimento das Recorridas está o facto destas terem e bem, instaurado uma acção ulterior de verificação ulterior de créditos para exigir o pagamento dos créditos/rendas em dívida.

L) E assim, estavam igualmente obrigadas a recorrer a uma acção de despejo, como apenso ao processo de insolvência, com fundamento na alegada sublocação do locado, pois a tal não as coartava o disposto no artigo 108º nº 4 al. a) do CIRE.

M) É manifesto de que as Recorridas estavam adstritas a invocar no processo de insolvência os demais factos que, para além do pagamento das rendas, poderiam resultar no incumprimento e consequente resolução do contrato de arrendamento, dado que os mesmos, repete-se, já não se encontravam englobados nos pressupostos da predita alínea a) do nº 4 do artigo 108° do CIRE.

N) A realidade é que voluntariamente não o fizeram, contentando-se assim com o acordo atingido na já supra mencionada ação ulterior de verificação de créditos.

O) Resta referir adicionalmente que as Recorridas conformaram-se com o teor, aprovação e homologação do plano de recuperação, contra ele não reagindo.

P) Desta forma, a prossecução da presente acção sempre estaria vedada às Recorridas por força do disposto no artigo 233º nº 1 al. c) do CIRE, pois é certo que, como estas bem sabem, o plano de recuperação da Recorrente assentava e assenta unicamente na exploração do locado cuja resolução do arrendamento ora se dirime.

Q) Com efeito, pelo facto da peticionada resolução do contrato de arrendamento contender com o cerne do plano de recuperação aprovado e homologado, sempre estariam as Recorridas impedidas de invocar tal resolução face às naturais restrições que resultam do plano de recuperação.

R) E caso tal se não entenda, o que por mera cautela se admite, as Recorridas ao apresentarem o seu requerimento de 20.06.2016. referência 10897024 a requerer a prossecução desta lide sempre consubstancia um manifesto abuso de direito não permitido de acordo com o disposto no artigo 334º do CC pois acomodaram-se e não "atacaram" a homologação judicial do mesmo plano de recuperação pelos credores aprovado.

S)Desta forma, a presente lide teria de ser extinta nos termos do artigo 277º al. e) do CPC, por manifesta inutilidade superveniente da lide.

T) O Douto Acórdão "a quo" violou o disposto nos artigos 3º nº 3, 665º nºs 2 e 3 do CPC, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2014, os artigos 88º nº 1, 108º nº 4 al. a), 233º nº 1 al. c) do CIRE bem como o artigo 334º do CC.

Termos em que revogando o Douto Acórdão ora recorrido e substituindo-o por outro que declare a presente instância totalmente extinta, estarão V. Exas., Venerandos Conselheiros, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA!!!!»

As autoras contra-alegaram pugnando pela confirmação do acórdão recorrido e, subsidiariamente, requereram a ampliação do âmbito do recurso (a que erradamente chamaram recurso subordinado, que não foi admitido – cfr. fls. 361), oferecendo as seguintes conclusões:

“II.      Nos termos do artigo 636.º n.º 1 do CPC assiste às recorridas o direito de, subsidiariamente, suscitar a ampliação do objecto do recurso como cautela para a hipótese de vir a ser dada razão à recorrente.

III. Para o caso de este Venerando Supremo Tribunal entender que não deveria o contrato de arrendamento ter sido resolvido com fundamento na cessão ilícita do gozo do locado a terceiros, nos termos do disposto no artigo 1083.º n.º 2 e) do Código Civil, então requer-se que seja apreciada a questão, improcedente no Acórdão recorrido e procedente em primeira instância, da resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento de rendas.

Assim:

IV.       A presente acção teve início em 08-10-2012, tendo, no âmbito do Recurso de Revisão apenso a este processo, sido declarado nulo, por falta de citação, todo o processado nos autos principais, com aproveitamento apenas da Petição Inicial, decisão que foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-05-2016.

V.        Em 20-06-2016, na sequência do trânsito em julgado do referido Acórdão, as aqui recorridas requereram que o processo retomasse a sua tramitação para efeitos de citação da ré.

VI.O processo de insolvência da recorrente havia encerrado em 08-06-2015, tendo cessado, consequentemente, todos os seus efeitos, nomeadamente os previstos no artigo 85.º do CIRE, relativos a acções de natureza patrimonial pendentes e a acções relativas a bens compreendidos na massa insolvente.

VII.      A aqui recorrente regressou à sua normal actividade baseada no plano de insolvência judicialmente homologado, o qual se encontra em total incumprimento.

VIII.    O plano de insolvência não tem qualquer interferência na questão da resolução do contrato de arrendamento sub judice.

IX.A transacção judicialmente homologada, celebrada entre a recorrente e as recorridas no âmbito do apenso ao seu processo de Insolvência, de Verificação Ulterior de Créditos, com vista à regularização do pagamento das rendas em dívida, não configura uma transacção quanto à resolução do contrato de arrendamento e despejo e encontra-se em total incumprimento, não estando o valor do crédito a ser pago pela recorrente nem regularizado ao abrigo do referido plano.

X.        Em caso de incumprimento do dever de pagamento das rendas por parte do inquilino, o senhorio dispõe da faculdade, não só de cobrança dos valores das rendas em dívida, como também, de resolução do contrato de arrendamento com esse fundamento legal, e consequente despejo.

XI.       Não é aplicável ao caso em apreço, o disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 108.º do CIRE, que estatui que o locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário com fundamento na falta de pagamento das rendas respeitantes a período anterior à data da declaração de insolvência.

XII.      O pedido de resolução do contrato de arrendamento, datado de 08-10-2012, é anterior à declaração de insolvência da recorrente, datada de 26-11-2012, pelo que in casu não se verifica tal impedimento.

XIII.    É facto provado que a recorrida não procedeu ao pagamento de metade da renda vencida no mês de Julho e das rendas vencidas nos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2011, e de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro de 2012.

XIV.É fundamento de resolução do contrato o incumprimento que, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, é inexigível a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ao abrigo do disposto no artigo 1083.º n.º 3 do Código Civil.

XV.      A recorrida incumpriu a sua obrigação de pagamento de rendas por catorze meses e meio consecutivos.

XVI.Encontram-se reunidos os pressupostos para a resolução do contrato em apreço e consequente despejo.

XVII.   Em suma, conclui-se que, é igualmente fundamento de resolução do contrato de arrendamento o não pagamento de rendas.

XVIII.  Decisão que deverá ser tomada nesta sede caso este Venerando Tribunal entenda que não deveria o contrato de arrendamento ter sido resolvido, como foi no Acórdão recorrido, com fundamento na cessão ilícita do gozo do locado a terceiros, nos termos do disposto no artigo 1083.º n.º 2 e) do Código Civil.

Fazendo-se assim inteira JUSTIÇA!”

O recurso interposto pela ré foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar. Já o recurso interposto pelas autoras como “subordinado” não foi admitido, por não serem vencidas, sendo apenas admitida a sua alegação por poder ser considerada para os efeitos do art.º 636.º, n.º 1, do CPC, que também invocaram.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
            Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões apresentadas, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber se:
1.  O acórdão recorrido padece da nulidade por excesso de pronúncia por ter conhecido do fundamento da cedência ilícita do locado a terceiros, também alegado para a resolução do contrato de arrendamento, sem antes ter ouvido cada uma das partes;
2. O acordo celebrado no processo de verificação ulterior de créditos, relativo ao pagamento das rendas reclamadas, implica a extinção da instância da presente lide quanto à cedência ilícita do locado;
3. A declaração de insolvência da recorrente impunha a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide;
4. Com o prosseguimento da acção foi cometida uma nulidade processual ou se as recorridas agem com abuso de direito.
5. Para o caso de ser rejeitada a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na cedência ilícita, se se verifica o fundamento da falta de pagamento de rendas.

II. Fundamentação


1. De facto

No acórdão recorrido, tal como já havia sucedido na sentença da 1.ª instância, foram dados como provados os seguintes factos:

 «1 - Por documento particular de 1.6.2005, as Autoras deram de arrendamento à Ré o prédio urbano composto por casa de três pavimentos, situado na ........., n.ºs 000, 000 e 000, Freguesia de ........, na cidade do Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ............e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 712......;

2 - As Autoras são as donas, legitimas possuidoras e senhorias do referido prédio;

3 - O contrato teve o seu início no dia 1.1.de 2006 e foi celebrado pelo prazo de duração efetiva de catorze anos;

4 - O locado destinou-se ao exercício de quaisquer atividades lícitas, sejam comerciais, industriais e/ou de serviços;

5 - A renda anual veio a fixar-se, no ano de 2011, em 154.668 €, a pagar em duodécimos mensais de 12.889 €, até ao oitavo dia do mês a que disser respeito, no domicílio da locadora ou em conta bancária a indicar por esta;

6 - No ano de 2012, a renda mensal fixou-se em 13.301 €;

7 - Com a celebração do contrato, a Ré passou a ocupar o prédio em causa;

8 - Nos termos do n.º 5, da Cláusula 4.ª, do contrato de arrendamento, as rendas serão oferecidas e pagas pela segunda contraente em duodécimos do valor pactuado para cada ano, até ao dia oito do mês a que diga respeito, na residência do primeiro contraente ou depositadas em conta bancária a indicar por este;

9 - Sucede que a Ré não procedeu ao pagamento de metade da renda vencida no mês de Julho e das rendas vencidas nos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2011, bem como não pagou as rendas vencidas nos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro do ano de 2012, na data de vencimento;

10 - Tampouco, a Ré procedeu ao pagamento de cada uma das rendas indicadas nos oito dias seguintes, nem posteriormente, apesar das insistentes tentativas das Autoras e senhorias e das sucessivas promessas de cumprimento da Ré e inquilina;

11 - Pelo que, neste momento, a Ré já deve às Autoras catorze meses e meio de rendas, o que perfaz o montante de 190.598,50 €;

12 - Com fundamento no não pagamento de rendas, as Autoras requereram a notificação judicial avulsa da Ré, a qual foi distribuída à 1.ª Secção, do 3.º Juízo Cível desta comarca, sob o n.º 1123/12.9TJPRT;

13 - Acontece que, não foi possível efetuar a notificação judicial na sede da Ré, uma vez que as pessoas que se encontravam no locado informaram o Sr. Agente de Execução que a Ré havia abandonado o locado;

14 - Foi, ainda, tentada a notificação dos gerentes da Ré, na sua residência, constante do registo comercial, mas revelou-se infrutífera;

15 - No contrato de arrendamento supra referido ficou acordado que a locatária não poderá ceder a sua posição contratual no presente contrato sem consentimento escrito do locador (Cláusula sétima);

16 - A Ré, atento o facto de no prédio poderem coexistir várias atividades com objeto diferente, foi autorizada a sublocar parte ou partes do prédio (Cláusula oitava);

17 - À Ré foi autorizada a realização de obras, nos termos das cláusulas sexta e décima do contrato de arrendamento;

18 - Contudo, conforme resulta do contrato e, de resto, é do expresso conhecimento da Ré, as partes nele contratantes subscreveram uma cláusula, nos termos da qual todas ou quaisquer obras ou benfeitorias, instalações e construções efetuadas pela locatária no decurso do contrato … tornar-se-ão pertença do prédio, sendo, por isso, a locatária obrigada a deixá-las no prédio, sem que possa exigir qualquer indemnização, compensação ou exercer direito de retenção (Cláusula dez, n.º 2);

19 - Em 22.2.2012, constitui-se a sociedade comercial anónima com a firma “FF, S.A.”, que instalou a sua sede social no locado;

20 - A sociedade “FF, S.A.”, a partir daquela data de 22.2.2012, passou a ocupar o locado;

21 - Contudo, nunca a Ré comunicou às Autoras que o arrendado estava a ser ocupado, detido ou fruído pela “FF, S.A.”;

22 - Por sua vez, as Autoras nunca reconheceram a “FF” como cessionária;

23 - A Ré nunca efetuou qualquer comunicação às Autoras sobre esta cedência;

24 - As Autoras só tiveram conhecimento da factualidade descrita em 30 de Abril de 2012;

25 - Por carta datada de 4.2.2012, a Ré notificou as Autoras da sublocação que havia feito do prédio objeto dos presentes autos;

26 - O contrato de sublocação celebrado entre a Ré e a sociedade “FF, S.A.” tem a data de 30.3.2012;

27 - A partir daquela data a referida sociedade “FF” manteve e reforçou a ocupação que já vinha a fazer do locado;

28 - Nos termos daquele contrato de sublocação comercial (Cláusula primeira), a Ré dá em sublocação o “estabelecimento” pertencente ao já referido prédio;

29 - Por sua vez, na cláusula quarta é estabelecido o valor da renda por cada um dos andares que compõem o prédio;

30 - Além disso, na mesma cláusula estipula-se que sublocatária pagaria a renda diretamente às Autoras;

31 - Por essa razão, as Autoras reagiram de imediato contra o contrato de sublocação comercial;

32 - No imóvel objeto dos presentes autos nunca existiu um estabelecimento de que a Ré fosse titular;

33 - O contrato de arrendamento objeto dos presentes autos permitia a sublocação parcial, nunca a total;

34 - A Ré foi autorizada a realizar obras dentro do condicionalismo do contrato de arrendamento, nomeadamente nos termos das cláusulas sexta e décima;

35 - O único ocupante atual do imóvel é a sociedade “FF, S.A.”, conforme se alcança da certidão negativa da notificação judicial avulsa;

36 - A presente ação deu entrada em Juízo no dia 8.10.2012;

37 - A Ré “EE, Ld.ª” foi declarada insolvente por sentença datada de 26.11.2012, proferida pelo Tribunal Judicial de Penafiel, no processo 2362/12.8TBPNF, atualmente Juízo Central - Seção de comércio, do Tribunal Judicial de Porto Este;

38 - No apenso de Verificação Ulterior de Créditos do mesmo processo- 2362/12.8TBPNF-B, onde as Autoras reclamaram créditos constituídos pelas rendas vencidas desde Julho de 2001, até hoje, conforme resulta do documento de fls. 220 v e segs., as partes celebraram entre si transação com conteúdo de fls. 230 v, tendo sido proferida sentença em 14.11.2013 que homologou a transação junta a fls. 230 v e 232 v;

39 - Conforme certidão permanente junta a fls. 194 e segs., o processo de insolvência encontra-se encerrado, conforme registo de decisão judicial de encerramento do processo de insolvência (AP 3/20160607);

40 - Encontra-se igualmente registado (Of. 2 da AP3/20160607) - “Regresso à atividade baseado na homologação de plano de insolvência”.»


2. De direito


2.1. Da nulidade por excesso de pronúncia

          O art.º 615.º do CPC (também aplicável aos acórdãos, por força da remissão do art.º 666.º, n.º 1, do mesmo Código) dispõe, no seu n.º 1, que a sentença é nula, entre outras situações que não importa aqui considerar, quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” [al. d), 2.ª parte].

Esta causa de nulidade está em correlação com o disposto na segunda parte do n.º 2 do art.º 608.º do CPC que só permite ao juiz ocupar-se das “questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

            Radica no conhecimento indevido, isto é, no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso.

A recorrente fundamenta esta nulidade no conhecimento do outro fundamento que havia sido alegado na petição inicial e cuja apreciação foi considerada prejudicada pelo Tribunal da 1.ª instância – a cedência ilícita do locado -, que o Tribunal da Relação apreciou, após julgar improcedente o fundamento da falta de pagamento de rendas, sem lhe dar oportunidade para se pronunciar, nos termos do art.º 665.º, n.º 3, do CPC.

Baseou, assim, esta nulidade não no conhecimento indevido de “questões”, mas na inobservância deste dispositivo legal.

A omissão deste acto prescrito na lei, desde que seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, constitui nulidade processual (cfr. art.º 195.º, n.º 1, do CPC), diferente da arguida nulidade do acórdão.

Ainda assim, cumpre dizer que não se verifica nem uma nem outra.

Desde logo, porque o fundamento apreciado foi alegado na petição inicial, tendo a ré tomado conhecimento dele com a citação.

E a apreciação do mesmo também foi suscitada pelas autoras na ampliação que deduziram, nos termos do art.º 636.º, n.º 1, do CPC, sobre o âmbito do recurso, tendo a ré tido oportunidade de responder à matéria da ampliação, tal como prevê o n.º 8 do art.º 638.º do mesmo Código. Se não respondeu, como não respondeu, foi porque não quis, já que teve conhecimento dessa ampliação e foi-lhe dada essa oportunidade.

A Relação, no acórdão recorrido, antes de apreciar o aludido fundamento e embora se lhe configurasse que não se tratava de uma situação a coberto do mencionado art.º 636.º, n.º 1, não deixou de afirmar que conhecia dessa questão, pelo que passou a tomar conhecimento de tal fundamento, por força do prescrito no art.º 665.º, n.º 2, do CPC, garantido que tinha sido o contraditório.

E, efectivamente, assim foi, como resulta do que se disse.

Por isso, não pode a recorrente vir agora invocar violação do contraditório e “decisão-surpresa”, em desrespeito pelo art.º 3.º, n.º 3, do CPC.

Não se vislumbra, pois, a invocada nulidade, nem ela é correctamente imputada ao acórdão.

Destarte, desatente-se a arguição da nulidade em apreço.  


2.2. Da extinção da instância

O art.º 277.º, al. e), do CPC estabelece que a instância extingue-se com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”. Estes casos de extinção da instância ocorrem quando, em virtude de novos factos surgidos na pendência do processo, a decisão a proferir deixa de ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio[3].

A instância extingue-se, então, porque se tornou inútil ou impossível o prosseguimento da lide.

Nestes casos, verificado o facto, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção.

É evidente, e di-lo claramente a lei, que o facto susceptível de determinar a extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade da lide deve ser superveniente, isto é, de verificação ulterior relativamente ao início da instância.

Não basta, portanto, a existência de um facto que torne a lide inútil ou impossível. Para que se verifique qualquer das referidas causas de extinção da instância, exige-se que o facto seja superveniente.

Como a instância se considera iniciada com a propositura da acção e esta se considera proposta logo que seja recebida pela secretaria a respectiva petição inicial, deve entender-se que só o facto ocorrido posteriormente ao recebimento da petição inicial pode ser considerado superveniente (art.ºs 144.º e 552.º, n.º 1, ambos do CPC).

Se o facto que torna inútil ou impossível a instância é anterior ao seu início, não é caso de inutilidade ou impossibilidade da lide, mas de improcedência da pretensão do autor ou requerente. Se a relação jurídica substancial já era inútil ou impossível no momento em que a acção foi proposta, também já o era a obtenção do efeito jurídico que com a acção se visa alcançar, verificando-se, nessas situações, que a acção não tinha condições para proceder. Nessas circunstâncias, a causa adequada de extinção da instância é o julgamento e não a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide [art.º 277.º, a) do CPC].

“O modo normal de extinção da instância é o trânsito em julgado (art. 628) da sentença final (art. 607) ou do acórdão (art. 663), ou da decisão do relator (art. 656) que o substitua, trate-se de decisão sobre a relação material controvertida (art. 619-1) ou de decisão de absolvição da instância (art. 278). Tem o mesmo valor da sentença final o despacho saneador que julgue de mérito ou julgue procedente uma exceção dilatória (art. 595-3), bem como o despacho de indeferimento liminar (art. 590-1) ou o despacho anómalo de procedência duma exceção dilatória (cfr. art. 98).

Equiparada à sentença que decide sobre a relação material controvertida, por aplicação do direito objectivo aos factos provados, é a sentença homologatória da confissão do pedido, desistência do pedido ou transacção (art. 290-3), assim como é equiparada à sentença de absolvição da instância que julgue não verificado um pressuposto processual a que homologa a desistência da instância”[4].

Aliás, as causas de extinção da instância estão, expressamente, previstas no citado art.º 277.º, realçando-se aqui, para além das referidas, o julgamento [al. a)] e a transacção [al. d)].

Dito isto, vejamos o caso dos autos.

2.2.1. A recorrente defende que a homologação da transacção celebrada no processo de verificação ulterior de créditos deveria ter determinado a extinção da instância, na totalidade, ou seja, também relativamente ao outro fundamento invocado como resolução do contrato de arrendamento e não apenas quanto à falta de pagamento das rendas.

Porém, sem razão.

Analisada a transacção celebrada e homologada, por sentença transitada em julgado, a que se faz referência no n.º 38 dos factos provados, constata-se que a mesma versou, exclusivamente, sobre as rendas vencidas desde Julho de 2001 até à data da sua homologação (14/11/2013).

Nada mais, como não podia deixar de ser, uma vez que estava em causa, naquele processo, unicamente a verificação ulterior de créditos reclamados ao abrigo do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CIRE.

Como tal, nenhuma interferência pode ter na presente lide, relativamente ao fundamento da cedência ilícita do locado, subsistindo a necessidade da sua análise, já que mantém utilidade a respectiva decisão, tendo em vista a pretensão que as autoras querem fazer valer através desta acção.

Assim, contrariamente ao pretendido pela recorrente, a extinção da instância não pode ser declarada, seja por efeito da transacção celebrada e homologada, seja por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

2.2.2. A recorrente sustenta também que a declaração da sua insolvência importa a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, da presente acção.

Apesar de se tratar de um facto superveniente, uma vez que a insolvência foi declarada em data posterior à propositura da presente acção e durante a sua pendência, a verdade é que não vemos como a declaração da sua insolvência possa tornar inútil ou impossível alcançar o escopo visado pelas autoras, através desta acção, e com o fundamento posto em causa, ou seja, repete-se, a cedência ilícita a terceiro do locado.

Ainda que a declaração de insolvência desencadeie efeitos de vária ordem sobre as acções judiciais, não podemos deixar de ter em atenção o tipo e objecto da acção e a intervenção do insolvente.

Os efeitos processuais estão previstos no Capítulo II do Título IV do CIRE, que inclui os art.ºs 85.º a 89.º. Neles não se prevê a extinção generalizada da instância, nem sequer a apensação automática das acções pendentes ao processo de insolvência, mas apenas e excepcionalmente, quanto à apensação, daquelas em que “se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente”, verificados certos requisitos (cfr. art.º 85.º). Todavia, daí não se pode depreender que este regime excepcional seja extensivo a todas as acções declarativas. Se essa fosse a intenção do legislador, tê-lo-ia expressado, sem limitações, como, aliás, fez em relação às acções executivas (cfr. art.º 88.º).

Sendo o processo de insolvência um processo de execução universal (art.º 1.º, n.º 1), é natural que as acções executivas pendentes se suspendam ou se extingam, mas esta solução não é extensível às acções declarativas.

Mesmo nos processos a decorrer nos tribunais arbitrais, o art.º 87.º, n.º 2 manda prosseguir os seus termos, não obstante declarar a suspensão da eficácia das convenções arbitrais (art.º 87.º, n.º 1).

Por maioria de razão, as acções a decorrer nos tribunais judiciais deverão prosseguir os seus termos.[5]

A inutilidade superveniente da lide só poderá ocorrer “a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida sentença de verificação de créditos, já que a partir desse momento, é essa sentença que reconhece e define os direitos dos credores”[6], mas dentro dos limites do objecto desse processo, o que não é o caso.

No presente caso, estamos perante uma acção que visa a resolução do contrato de arrendamento, com dois fundamentos bem concretizados, mas que agora apenas importa considerar o da cedência ilícita a terceiro, cuja verificação nem sequer foi questionada no recurso, em que o locatário é a insolvente.

Por isso, contrariamente ao defendido pela recorrente, não tem aqui aplicação o art.º 88.º, n.º 1, do CIRE, previsto para as acções executivas, como claramente consta da sua epígrafe e do seu conteúdo. Dele resulta que a declaração de insolvência determina a proibição de instauração de qualquer execução ou prosseguimento de acções executivas, bem como de qualquer penhora, arresto ou arrolamento sobre os bens que integram a massa insolvente, vigorando essa proibição enquanto durar o processo de insolvência. “Apenas após o seu encerramento, os credores recuperam a possibilidade de instaurar e fazer seguir acções executivas, salvo se houver restrições a essa faculdade instituídas por plano de insolvência ou plano de pagamentos” [art.º 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE]. Por esse motivo não pode ser decretada a extinção da instância executiva por impossibilidade superveniente da lide, em virtude da insolvência do executado, ocorrendo apenas a suspensão da mesma, enquanto durar o processo, o que veio a ficar definitivamente esclarecido com o aditamento dos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 88.º pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril[7].

O art.º 108.º, n.º 4, al. a), do CIRE, apesar de já regular os efeitos da insolvência do locatário sobre o contrato de locação, a norma indicada apenas retira ao senhorio a possibilidade de resolver o contrato após a declaração de insolvência do locatário com fundamento na “falta de pagamento das rendas ou alugueres respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência”. Não é este, manifestamente, o caso, pois só nos importa considerar a cedência ilícita a terceiro. Quanto a este fundamento, que é o que interessa – repete-se -, os efeitos são os previstos no n.º 1, ou seja, a possibilidade de o administrador da insolvência proceder à denúncia com um pré-aviso de 60 dias, a menos que haja outro inferior. Para além disso, o n.º 5, no caso de não haver entrega da coisa locada à data da declaração da insolvência, como não houve, admite uma livre resolução do contrato por ambas as partes, cujos efeitos não são esclarecidos. De qualquer modo, não são os efeitos desta resolução que estão aqui em causa, que não houve, como revela a existência desta acção. Seja como for, em parte alguma se prevê a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nem a mesma é sustentável, atentos os efeitos previstos no citado art.º 108.º.

O AUJ n.º 1/2014, publicado no D.R. n.º 39, I Série, de 25/2/2014, onde se consignou que “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do C.P.C.”, não tem aqui aplicação.

Efectivamente, a presente acção não se destina a “obter o reconhecimento do crédito peticionado”, mas a obter a resolução do contrato de arrendamento, o qual não se confunde com o reconhecimento de um crédito.

Termos em que, sem mais considerações, improcede a questão da extinção da instância, em qualquer das duas modalidades.


2.3. Do prosseguimento da acção

            A recorrente sustenta, ainda, que sempre estaria vedado às autoras/recorridas requerer o prosseguimento da acção, em face dos efeitos do encerramento do processo de insolvência, por força do disposto no art.º 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE, pelo que é nulo todo o processado, a partir do requerimento que deduziram em 20/6/2016 e abusaram do correspondente direito.

             Mais uma vez sem razão.

             Na certidão a que se alude no n.º 39 da fundamentação de facto, consta, no que agora importa considerar, que o processo de insolvência foi encerrado por decisão de homologação do plano de insolvência, de 8/6/2015, transitada em julgado no dia 23 seguinte.

Este fundamento para o encerramento do processo está previsto no art.º 230.º, n.º 1, al. b), do CIRE, que não vem posto em causa, nem podia, no presente recurso.

O efeito do encerramento invocado, constante da alínea c) do n.º 1 do art.º 233.º, reporta-se à recuperação pelos credores das faculdades de exercício dos seus créditos. Assim, “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e de plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação ulterior de créditos, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência.”                  

Segundo a alínea d) do mesmo normativo, “os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos”.

A extinção da instância verifica-se relativamente às acções executivas suspensas quanto ao executado insolvente logo que o processo seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do art.º 230.º do CIRE, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto (art.º 88.º, n.º 3).

Também ocorre a extinção da instância nos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, ou se o encerramento decorrer da aprovação de plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de trinta dias [art.º 233.º, n.º 2, al. b)][8].

          Extingue-se ainda a instância nas acções pendentes contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente propostas pelo administrador da insolvência, excepto se o plano de insolvência atribuir a este competência para o seu prosseguimento [art.º 233.º, n.º 2, al. c)].

Não estamos perante nenhuma das acções acabadas de enunciar.

A acção proposta pelas autoras é uma acção de despejo que visa obter a resolução do contrato de arrendamento que celebraram com a ré com fundamento na falta de pagamento de rendas e na cedência ilícita do locado, sendo que, no estado actual do processo, apenas importa considerar este fundamento.

Como tal, nada impedia o seu prosseguimento após o encerramento do processo de insolvência da locatária, e mesmo anteriormente, como bem se afirmou, de forma sintética, no acórdão recorrido, onde se escreveu:

Tenha-se ainda presente que não constituiu impedimento ao prosseguimento da acção para conhecer dessa pretensão resolutiva, baseada no dito fundamento, ter sido instaurado o mencionado processo de insolvência, desde logo por não estar em causa um reconhecimento de um crédito ou a restituição de um bem indevidamente apreendido para a massa insolvente, a integrar alguma das hipóteses contempladas nos arts. 128 a 140 ou 141, do CIRE, respectivamente (v. quanto a este último aspecto, C. Fernandes e J. Labareda, in ob. cit., pág. 574), tão pouco do “Plano de Insolvência” de que se dá notícia nos autos (v. fls. 235 a 264v) resultando alguma restrição oponível às Autoras nesse âmbito.

Temos, assim, como certo que a instauração do mencionado processo de insolvência, bem assim os termos em que o mesmo foi encerrado não têm reflexos na presente lide no que diz respeito ao aludido fundamento invocado para ocorrer a resolução do mencionado contrato de arrendamento.

A recorrente alega que, por existir tal impedimento, as autoras, ora recorridas, não podiam ter requerido o prosseguimento da acção, como fizeram através do requerimento apresentado em 20/6/2016, pelo que foi cometida uma nulidade processual.

Como é sabido, constituem nulidades processuais todos os desvios do ritualismo processual prescrito na lei, com relevância no exame e na decisão da causa.

Estes desvios de carácter formal podem traduzir-se num de três tipos: prática de acto proibido, omissão de acto prescrito na lei e realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas.

A nulidade daquela forma arguida só pode reportar-se a uma nulidade secundária, porque não consta dentre as enumeradas no art.º 196.º do CPC.

Sobre esta matéria, o art.º 195.º, n.º 1, do CPC estabelece que “[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
A lei não comina expressamente de nulidade o prosseguimento da acção, nem se vislumbra que tal prosseguimento possa influir no exame ou na decisão da causa.
Para além de ser admitido legalmente tal prosseguimento, como se deixou dito, as autoras, no requerimento a que a recorrente faz alusão, limitaram-se a pedir que a acção retomasse a sua tramitação, na sequência da decisão do recurso de revisão que concluiu pela declaração de nulidade de todo o processado nestes autos, aproveitando-se apenas a petição inicial.
Foi, então, que, em face da decisão proferida no recurso extraordinário de revisão, foi ordenada a citação da ré, na pessoa do Administrador da Insolvência, tendo a acção retomado a sua tramitação como referido no relatório deste acórdão.
Ainda que se tratasse de uma nulidade meramente secundária, estava dependente de reclamação da parte interessada (cfr. art.º 197.º do CPC).

O prazo de arguição das nulidades secundárias rege-se pelo art.º 199.º, n.º 1, do CPC, que, na 1.ª parte, prevê “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar”; e, na 2.ª parte, estipula que se não estiver se conta do dia em que, “depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.

Tal como transparece destes autos, a recorrente foi citada para a acção e nada disse, pois nem sequer apresentou contestação.
Qualquer irregularidade, a existir, que não existe, devia ter sido arguida no prazo de 10 dias, após o seu conhecimento (cfr. art.º 149.º, n.º 1, do CPC).

Também é sabido que as irregularidades têm de ser arguidas perante o tribunal em que ocorreram e nele devem ser apreciadas e julgadas, com a excepção da prevista no n.º 3 do citado art.º 199.º, que manifestamente não se verifica no presente caso.

Estas regras reconduzem-se ao postulado que a doutrina e a jurisprudência consagraram: das nulidades reclama-se dos despachos recorre-se[9].

Deste modo, a recorrente devia tê-la arguido no tribunal da 1.ª instância, no prazo de 10 dias após o seu conhecimento, que foi, necessariamente, aquando da citação.

Assim, aquando da interposição do recurso já a pretensa nulidade se encontrava sanada, de nada lhe servindo o entendimento de que estava a coberto da decisão impugnada para a poder impugnar por esta via[10].

Assim sendo, não só porque não existe, mas também porque não foi correctamente invocada, é manifesto que jamais poderia proceder a nulidade arguida.

A recorrente invocou, ainda, o abuso de direito pelas autoras ao requererem o prosseguimento da acção.
É sabido que o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.    
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos[11].
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico[12].
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso[13].
Porque é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado, ainda que não o tenha sido em 1.ª ou 2.ª instância, dependendo a sua verificação da alegação e prova dos aludidos factos.
Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado”[14].

Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito[15].   

Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural”[16].
No caso dos autos, o abuso de direito não foi invocado nos articulados, nem foi conhecido no acórdão recorrido, surgindo, pela primeira vez, a sua referência nas alegações da recorrente, o que não impede a sua apreciação por este Tribunal, visto ser de conhecimento oficioso.
 Contudo, a matéria de facto apurada não permite, de forma alguma, concluir que as autoras/recorridas, ao requererem o prosseguimento desta acção, tenham agido com abuso de direito.
Com a celebração da transacção no processo de verificação ulterior de créditos, não criaram na ré/recorrente uma expectativa, sólida e fundada, de que teriam renunciado aos fundamentos invocados na petição inicial que haviam deduzido para resolução do contrato de arrendamento entre elas celebrado e que originou esta acção, cuja prossecução requereram após o encerramento do processo de insolvência. Nem ela se atreveu a tanto, fundando o abuso de direito no “venire contra factum proprium[17]!
Ela funda-o em violação de lei, por entender que não é possível o prosseguimento da acção.
Todavia, sem qualquer razão, como se deixou exposto supra.
Não se verificam, assim, os pressupostos da aplicação da figura do abuso de direito, nalguma das suas modalidades, porquanto não se vislumbra qualquer das mencionadas situações excepcionais ou de limite.
Contrariamente ao referido pela recorrente, as autoras/recorridas não pretendem alcançar um fim contrário à lei, mas obter um resultado que a lei lhes confere.
E o exercício desse direito não constitui, de forma alguma, uma ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, muito menos clamorosa.
Daí que não possa beneficiar da excepção do abuso de direito.
Improcede, deste modo, esta questão.

Destarte, improcede totalmente a revista, ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação da questão suscitada pelas recorridas, a título subsidiário, acima identificada sob o n.º 5, aquando da ampliação do âmbito do recurso que deduziram.

           Sumariando, nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC (ex vi do art.º 679.º do mesmo Código):
1. Não padece de nulidade por excesso de pronúncia o acórdão que conhece de causa de resolução do contrato de arrendamento invocada na petição inicial, que não fora conhecida na sentença por ter ficado prejudicada a sua apreciação, e que foi objecto de ampliação do âmbito do recurso pela recorrida, ainda que não tivesse sido observado o disposto no n.º 3 do art.º 665.º do CPC, não havendo violação do princípio do contraditório, nem decisão surpresa.
2. A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos surgidos na pendência do processo, a decisão a proferir deixa de ter qualquer efeito útil, porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.
3. A transacção judicialmente homologada, celebrada entre a locatária e as locadoras no âmbito do processo de verificação ulterior de créditos, sobre as rendas em dívida não determina a extinção da instância da acção de resolução do contrato de arrendamento com fundamento diferente.
4. A declaração de insolvência do locatário insolvente não torna inútil a acção de resolução do contrato de arrendamento celebrado com fundamento em cedência ilícita a terceiro.
5.  O prosseguimento da acção de despejo após o encerramento da insolvência do locatário não é susceptível de constituir nulidade processual e, se fosse, por ser secundária, sempre estaria sujeita ao regime de arguição do art.º 199.º do CPC.
6. A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente, não configurando uma situação abusiva o prosseguimento de uma acção de despejo após o encerramento do processo de insolvência e que havia sido instaurada antes da declaração de insolvência do locatário.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista improcedente e confirmar o acórdão recorrido.

*

Custas pela recorrente.

*

Lisboa, 1 de Outubro de 2019



Fernando Samões (Relator)
Maria João Vaz Tomé
António Magalhães
_______________


[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, anteriormente da 2.ª Vara Cível do Porto, onde deu entrada em 8/10/2012.

[3] Cfr. Alberto Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, págs. 367-373 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., pág. 546.
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, págs. 545 e 546.
[5] Neste sentido, entre outros, António Pereira de Almeida, Revista de Direito Comercial, págs. 150 e 151, in www.revistadedireitocomercial.com.
[6] Neste sentido, Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, pág.161. 
[7] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8.ª edição, Almedina, págs. 178 e 179 e jurisprudência aí citada.
[8] Cfr. Luís Menezes Leitão, obra citada, pág. 317, onde se dá notícia, de forma concretizada, em nota de rodapé, da controvérsia existente na doutrina e na jurisprudência acerca dos efeitos do encerramento do processo de insolvência em virtude da aprovação do plano de insolvência no apenso de verificação e graduação de créditos, para aqui irrelevante, porquanto não estamos perante este tipo de processo, limitando-nos a referir aqui tal querela e que a posição largamente maioritária da jurisprudência é no sentido de que a aprovação do plano de insolvência não prejudica a continuação do apenso de verificação e graduação de créditos. Igual nota faz o mesmo autor em anotação ao art.º 233.º no seu Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 10.ª edição, Almedina, págs. 284 e 285, sem deixar de tomar posição, em ambos os casos, neste mesmo sentido.
[9] Cfr., designadamente, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. II, pág. 507.
[10] Sobre a distinção dos meios de reacção contra as nulidades, podem ver-se, designadamente:
- o Prof. José Alberto dos Reis que escreveu: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo “ - in Comentário ao Código de Processo Civil, II, 507;
- o Prof. Manuel de Andrade que também escreveu: “Basta um simples requerimento a que se dá o nome de reclamação…Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” - in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183;
- o Prof. Antunes Varela que refere: “Se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”- in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 393;
- o Prof. Anselmo de Castro que também escreveu: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º)”. Porém, depois de algumas reticências relativamente à aplicação do disposto no art.º 666.º a todas as decisões, acrescentou que aquela construção “não tem sequer sentido quanto àquelas nulidades de que o juiz não pode conhecer oficiosamente (todas as nulidades secundárias e as principais a partir do saneador” - in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 134.
              

[11] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[12] Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171.
[13] Cfr., entre muitos outros, com mais ou menos variantes, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; e de 6/12/2018, processo n.º 300/13.0TJPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[14] In Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247.
[15] Cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[16] Citado acórdão de 15/1/2013.
[17] Sobre a proibição do venire contra factum proprium, vide designadamente António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), págs. 742-770; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, págs. 478-508; Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra] – Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, págs. 269-322; Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs. 345 ss.; Manuel Carneiro da Frada, “A responsabilidade pela confiança nos 35 anos do Código Civil. Balanço e perspectivas”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III – Direito das obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 285-307, esp. nas 330-343, citado no acórdão deste STJ de 14/3/2019, in www.dgsi.pt.