Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3074/07.0TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO CONTRATO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : 1. Compete ao autor alegar e provar os factos que, com recurso ao chamado método tipológico, permitam concluir que a sua prestação foi executada em regime de subordinação jurídica.
2. A remuneração mensal, a existência de horário de trabalho e de instruções relativas ao modo como o trabalho devia ser prestado não são incompatíveis com o contrato de prestação de serviço.
3. Tendo a autora sido contratada pela Direcção-Geral de Veterinária, para prestar serviços inseridos no domínio da inspecção sanitária do pescado, na lota da Nazaré, em período consentâneo com o funcionamento da mesma, é óbvio que a sua prestação tinha de estar adstrita a um horário de trabalho, o qual, por via disso, deixa de constituir indício relevante quanto à existência da subordinação jurídica.
4. E, no circunstancialismo referido, o mesmo acontece no que concerne aos indícios referentes ao local de trabalho e aos meios e instrumentos de trabalho postos à disposição da autora pela Direcção- -Geral de Veterinária.
5. O silêncio da matéria de facto relativamente ao pagamento da retribuição de férias e dos subsídios de férias e de Natal também não abonam a tese da subordinação e o mesmo acontece com o facto da retribuição ser paga mediante a apresentação do recibo modelo 6, a que se refere o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do Código do IRS (o chamado recibo verde).
6. O nomen iuris que as partes deram ao contrato (Contrato de Avença) e o facto das cláusulas nele inseridas se harmonizarem com o contrato de prestação de serviço, não sendo decisivos para a qualificação do contrato, não deixam de assumir especial relevo, uma vez que a vontade negocial assim expressa no documento não poderá deixar de assumir relevância decisiva na qualificação do contrato, salvo nos casos em que a matéria de facto provada permita concluir, com razoável certeza, que outra foi realmente a vontade negocial que esteve subjacente à execução do contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Na presente acção, intentada, em 31.7.2007, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, por AA contra o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas - Direcção Geral de Veterinária, a autora pediu que o despedimento de que diz ter sido alvo por parte do réu fosse declarado ilícito e que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 20.464,66, acrescida de juros de mora a partir da citação, sendo € 5.788,81 a título de indemnização pelo despedimento e o restante a título de retribuição de férias e de subsídios de férias e de Natal.

Em resumo, a autora alegou que trabalhou, remuneradamente, para o réu, desde 2 de Julho de 2001 até 30 de Junho de 2007, ao abrigo de um denominado “contrato de avença”, mas que, na prática, revestiu as características de um contrato de trabalho, razão pela qual a sua cessão por vontade unilateral do réu configurava uma situação de despedimento ilícito.

Na sua contestação, o réu excepcionou a incompetência material do tribunal e sustentou a improcedência total da acção, por entender que o contrato em questão era de prestação de serviço e não de trabalho subordinado.

E, sem prescindir, alegou que o contrato seria nulo, caso se viesse a entender que era um contrato de trabalho subordinado, não tendo, por isso, a autora direito a receber a indemnização que peticionou.

No despacho saneador, a excepção invocada pelo réu foi julgada improcedente e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, declarando a existência de um contrato de trabalho nulo, julgou ilícito o despedimento da autora e condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 9.783,90, a título de subsídios de férias e de Natal, e o montante de € 5.788,81, a título de indemnização de antiguidade.

O réu apelou da sentença, por continuar a entender que o contrato celebrado com a autora era um contrato de prestação de serviço e por considerar, caso assim não se entenda, que a nulidade do contrato não conferia à autora o direito a quaisquer créditos laborais nem o direito à indemnização por antiguidade, pois, como se decidiu no acórdão do STJ de 8.11.2006, hão-de ter-se como validamente produzidos os efeitos de direito que resultam do contrato tal como ele foi celebrado entre as partes, o que significa que a autora, por referência ao período de execução do contrato, não poderá reclamar quaisquer diferenças ou outros direitos estatutários que pudessem derivar da qualificação jurídica da relação contratual como contrato de trabalho subordinado.

O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida, o que levou o réu a interpor recurso de revista, cujas alegações concluiu da seguinte forma:
a) - Assente a factualidade,
b) - Não se mostra inequívoca a sua tradução jurídica no sentido da natureza laboral do contrato.
c) - E os índices fácticos neles clausulados e concretizados na sua execução não infirmam o "nomen juris" correspondente à vontade que neles subscreveram as partes,
d) - Devendo, decorrentemente, ser esta última a natureza contratual considerada, i. é, como "contrato de avença" no âmbito mais lato da prestação de serviços.
e) - E uma vez declarado nulo por Decisão Judicial, os efeitos do contrato a reconhecer no decurso do tempo em que esteve vigente e em execução são os que dele derivam tal como foi celebrado,
f) - Desde logo por corresponderem à vontade subscrita dos contraentes.
g) - Assim, quer pela natureza contratual em causa quer pelos efeitos da nulidade declarada, e em consonância com os artºs 1154.º do C. Civil, 10.º e 115.º do CT (art.º 1.º e 15.º da LCT/DL 49408, de 24.11.69) e em razão da sua violação,
h) - Deve o Estado ser absolvido por haver pago tudo o que devia na vigência do contrato declarado nulo.

A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, e o M.º P.º não teve vista no processo, por ser o patrono do recorrido.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos que vêm dados como provados pela Relação são os seguintes:
1. A autora foi admitida em 2 de Julho de 2001 ao serviço da ré, Direcção Geral de Veterinária, subscrevendo ambas o documento junto a fls. 12 a 15, designado por "contrato de avença" e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, nomeadamente o seguinte:
Cláusula 1.ª
Objecto do contrato
O objecto do presente contrato consiste na prestação de serviços inseridos no domínio da inspecção sanitária do pescado nas lotas existentes no território continental e efectuar toda a tramitação da atribuição do número do controle veterinário aos estabelecimentos que laborem produtos da pesca.
Cláusula 2.ª
Prazo
O presente contrato vigora pelo prazo de 24 meses, tácita e sucessivamente prorrogável por iguais períodos, reportando o início dos seus efeitos ao dia 2 de Julho de 2001.
(...)
Cláusula 4.ª
Remuneração
1. O primeiro outorgante pagará, mensalmente, ao segundo outorgante, pelos serviços objecto do presente contrato, a remuneração mensal ilíquida de Esc. 170.100$00 (cento e setenta mil e cem escudos), acrescida de IVA à taxa legal, se ao mesmo houver lugar.
2. A remuneração referida no ponto anterior será actualizada em percentagem igual à estabelecida, em cada ano, para os aumentos do Regime Geral da Função Pública.
3. As deslocações realizadas pelo segundo outorgante para fora do local que lhe for destinado como domicílio profissional, necessárias à execução do presente contrato, constituem encargo da DGV nas mesmas condições e até montantes fixados para os funcionários e agentes do Estado com índice inferior a 260.
4. O pagamento será efectuado de acordo com as disposições legais que regulamentam a realização e processamento de despesas nos Serviços da Administração Pública, até ao último dia do mês a que respeita, mediante a apresentação de recibo Modelo 6, a que se refere a al. a) do n.º 1 do artigo 107º do Código do IRS.
Cláusula 5"
Local e Tempo
Os serviços objecto do presente contrato serão prestados na lata da Nazaré, em período consentâneo com o funcionamento da mesma, podendo ser de dia, ou à noite, ou aos sábados.
Cláusula 6"
Situação Jurídica
O presente contrato não confere ao segundo outorgante a qualidade de funcionário ou agente, obrigando-se este a apresentar o resultado do seu trabalho nos locais que lhe forem determinados.
Cláusula 7.ª
Rescisão e denúncia
1. Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 da cláusula 3.ª que tem carácter imperativo, qualquer das partes pode rescindir o contrato, por meio de carta registada com aviso de recepção, dirigida à outra parte, com a antecedência mínima de sessenta dias.

2. Também sem prejuízo dos n.ºs 1 e 2 da cláusula 3.ª qualquer das partes pode denunciar o contrato, por meio de carta registada com aviso de recepção, dirigida à outra parte, com a antecedência mínima de trinta dias, relativamente ao seu termo inicial ou de qualquer das suas renovações.

(...)

2. As funções da autora consistiam em coadjuvar na inspecção do pescado e as suas condições sanitárias, bem como efectuar toda a tramitação da atribuição do número de controlo veterinário aos estabelecimentos que laborem produtos da pesca, entre outras inerentes à sua categoria.
3. De acordo com a cláusula 5.ª do acordo referido em 1. “Os serviços objecto do presente contrato serão prestados na lota da Nazaré, em período consentâneo com o funcionamento da mesma, podendo ser de dia, ou à noite, ou aos sábados.”
4. A autora auferia mensalmente um valor de € 978,39 (novecentos e setenta e oito euros e trinta e nove cêntimos) a título de remuneração base, acrescido e ajudas de custo quando houvesse deslocações para fora do local destinado como domicílio profissional.
5. Esta remuneração foi sempre actualizada em cada ano, de acordo com os aumentos do regime geral da Função Pública.
6. A autora tinha horário de prestação de trabalho por turnos, podendo laborar períodos de 6 ou 8 horas por dia, com o esclarecimento que dentro do horário de funcionamento das lotas a autora indicava o turno que iria fazer.
7. Se a autora pretendesse alterar o turno inicialmente indicado tinha de pedir autorização ao seu Chefe de Divisão.
8. A indicação da organização das escalas nos respectivos turnos, como a indicação de dia e férias, tinha de ser feita pela autora e seus colegas de trabalho, para a ré, na pessoa do respectivo chefe de divisão a pedido deste.
9. No desempenho das suas funções a autora recebeu instruções da ré emitindo a mesma os documentos de fls. 37 cujo conteúdo se dá por reproduzido.
10. A autora, entre outros, solicitou à ré esclarecimentos conforme consta do documento de fls. 51 e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
11. A autora para entrar no local de trabalho onde desempenhava as suas funções, sempre teve um cartão de identidade, que funcionava para ter livre-trânsito na lota onde era colocada.
12. O cartão de identidade identificava a autora como pertencendo à ré, dando-lhe acesso aos espaços em cada lota, controlados por aquela.
13. Em cada lota, a Direcção Geral de Veterinária tem uma sala, da sua responsabilidade, com material de trabalho, mesas, cadeiras, computadores, telefone, fax que pertencem à ré, dos quais a autora se servia para desempenhar funções.
14. Qualquer comunicação, relatório ou tramitação necessária realizar pela autora, dentro do seu horário de trabalho, era feita com uso dessa sala e do material nela constante.
15. A autora desempenhou funções na ré desde Julho de 2001 ininterruptamente.
16. Por carta datada de 26 de Abril de 2007, a ré na pessoa do Director-Geral da Direcção-Geral de Veterinária, comunicou à autora que considerava o seu contrato rescindido a partir de 30 de Junho de 2007.
17. A autora e outros colegas emitiram e remeteram à ré o documento e fls. 55 e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, solicitando "qual foi o critério seguido para ter sido determinada a rescisão dos contratos de toda a equipa de inspecção da lota da Nazaré".
18. A ré respondeu à autora por carta de 16 de Maio de 2007, junta a fls. 56, e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
19. Foram celebrados pela ré os contratos de avença no âmbito da inspecção "Higio-Sanitária" do pescado nas lotas em 30.06.2007 referidos no documento de fls. 84 [como decorre da fundamentação do despacho que decidiu a matéria de facto, trata-se do documento de fls. 108-109 e não do documento de fls. 84 que, aliás, não existe, uma vez que a fls. 84 diz respeito à contestação].
20. Do documento designado por "Apostila a Contrato de Avença" celebrado em 14 de Agosto de 2003, junto a fls. 15, resulta o seguinte:

Primeiro
A cláusula 2a do contrato celebrado em 2 de Julho de 2001 passa a ter a seguinte redacção:
Cláusula 2.ª
Prazo
O contrato manter-se-á em vigor até 13 de Agosto de 2004 ou, apenas até à data em que seja resolvida a situação que originou a necessidade da contratação, caso a duração de tal necessidade seja inferior ao prazo de um ano, isto nos termos e em cumprimento da autorização dada por sua Excelência o Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, mediante o despacho de 22 de Junho de 2003 acima referido.

A factualidade agora reproduzida não foi objecto de impugnação e também não se vislumbra que padeça de algum dos vícios previstos no art.º 729.º, n.º 3, do CPC (na versão anterior à do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/8, por ser a aqui aplicável) que poderiam levar o Supremo a ordenar oficiosamente a remessa dos autos à Relação para supressão dos mesmos. Será, pois, com base na referida factualidade que as questões suscitadas pelo recorrente terão de ser apreciadas.

3. O direito
Como das conclusões formuladas pelo recorrente se constata, o objecto do recurso restringe-se às seguintes questões:
- saber se a autora prestou a sua actividade ao réu em regime de contrato de trabalho subordinado ou em regime de contrato de prestação de serviço;
- e, verificando-se a primeira hipótese, saber se a autora tem direito às retribuições e à indemnização que lhe foram reconhecidas na sentença da 1.ª instância.

3.1 Da qualificação do contrato
Conforme está provado, a relação contratual entre as partes iniciou-se em 2 de Julho de 2001 e veio a terminar em 30 de Junho de 2007, o que vale por dizer que a mesma teve o seu começo antes da publicação e, consequentemente, antes da entrada em vigor, em 1.12.2003, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 98/2003, de 24 de Agosto, e que a sua cessação ocorreu já na vigência daquele Código.

E, sendo assim, a questão que, desde logo, se coloca é a de saber se a qualificação do contrato deve ser aferida à luz do Código do Trabalho ou se, pelo contrário, deve ser apreciada à face do regime jurídico-laboral que anteriormente vigorava.

A resposta encontra-se no n.º 1 do art.º 8.º Lei n.º 98/2003, pois aí se estipula que, sem prejuízo dos disposto nos artigos seguintes – que para o caso dos autos não relevam –, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor, “salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.

Dúvida não há, pois, de que a relação em apreço nos autos, caso se venha a entender que a mesma é de trabalho subordinado, passou a estar sujeita ao Código do Trabalho, após a data em que este entrou em vigor.

Porém, no que diz respeito à sua eventual qualificação como contrato de trabalho, o regime legal a atender já não será o contido no Código do Trabalho, mas sim o regime anterior a este, ou seja, o regime do contrato individual de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1965 (LCT).
Com efeito, estando a qualificação jurídica do contrato dependente da vontade real das partes, aquando da celebração do mesmo, é obvio que a qualificação não pode deixar de ser considerada como um efeito daquela vontade. E, constituindo esta um facto totalmente passado antes da entrada em vigor do Código do Trabalho, torna-se evidente, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 8.º da Lei n.º 99/2003, que o regime aplicável à qualificação do contrato não é o do Código do Trabalho, mas sim o que estava em vigor aquando da celebração do contrato.

Só assim não seria relativamente aos factos ocorridos posteriormente à entrada em vigor do Código do Trabalho, se deles resultasse que o relacionamento entre as partes tinha passado a ser substancialmente diferente do que tinha sido anteriormente, caso em que seria necessário indagar se essa alteração correspondia a uma modificação da natureza do vínculo que até aí se tinha existido.

Da matéria de facto dada como provada não resulta, porém, que o relacionamento entre as partes tenha sofrido oscilações ao longo do tempo em que o vínculo se manteve, razão pela qual, na apreciação da questão agora sub judice, não iremos levar em conta o disposto no Código do Trabalho.

A determinação do regime a atender na qualificação do contrato poderia parecer despicienda, uma vez que o conceito de contrato de trabalho contido no art.º 10.º do C.T. é substancialmente idêntico ao que já constava do art.º 1.º da LCT.

Tal não acontece, porém, dado o disposto no art.º 12.º do Código do Trabalho que estabelece uma presunção legal da existência do contrato de trabalho, verificados que sejam determinados factos, presunção essa que a LCT não previa e que, por essa razão, não pode ser levada em conta na qualificação do contrato.

Entrando, agora, na apreciação da questão da qualificação do contrato, importa referir que “[c]ontrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta”(art.º 1.º da LCT e art.º 1152.º do Código Civil), e que “[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que umas das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição” (art.º 1154.º do C.C.).

Como dos referidos conceitos se deduz, o contrato de trabalho tem por objecto a prestação de uma actividade e o contrato de prestação de serviço a obtenção de um certo resultado proveniente do trabalho prestado por outrem, sendo que só o primeiro tem de ser necessariamente oneroso.

Todavia, como a doutrina e a jurisprudência têm vindo reiteradamente a salientar, o que verdadeiramente caracteriza o contrato de trabalho e o distingue do contrato de prestação de serviço – de que o “contrato de avença” constitui uma das modalidades –, é a chamada subordinação jurídica de uma das partes em relação à outra, subordinação essa que só no contrato de trabalho existe.

Efectivamente, confrontando as referidas noções legais, verifica-se que os elementos que essencialmente distinguem aqueles dois contratos são o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado) e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).

Assim, enquanto que o contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder que o empregador tem de, através de ordens, directivas e instruções, conformar a prestação a que o trabalhador se obrigou, o contrato de prestação de serviço visa, apenas, a obtenção de um determinado resultado que a parte sujeita a tal obrigação obterá por si, em regime de autonomia, isto é, sem estar sujeita ao poder de direcção da outra parte.

Sucede, porém, que o critério do objecto do contrato, ou seja, o critério da natureza da prestação acordada, nem sempre permite distinguir as duas figuras contratuais, por haver muitas situações, em que é difícil apurar o que é que realmente se prometeu – se a actividade em si ou se o seu resultado –, dado que, em regra, toda a actividade conduz a um resultado e todo o resultado pressupõe o desenvolvimento de determinada actividade.

É, por isso, que o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia) acaba por ser, em última análise, o critério decisivo para distinguir os dois tipos de contrato.
A subordinação jurídica é, pois, o elemento fundamental e diferenciador do contrato de trabalho e traduz-se numa posição de supremacia do credor da prestação de trabalho (o empregador) e na correspondente sujeição do prestador da actividade (o trabalhador), cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

Por outras palavras, a subordinação jurídica corresponde, em termos práticos, ao dever de obediência a que o trabalhador se encontra submetido no decurso da prestação da actividade que se obrigou a prestar ao empregador.

Sucede, porém, que a subordinação jurídica, sendo um conceito jurídico, não pode ser directamente apreendida e, daí, que a jurisprudência e a doutrina preconizem o recurso ao chamado método tipológico que consiste em buscar na situação real em que a relação contratual se desenvolve ou desenvolveu os aspectos factuais que normalmente ocorrem no modelo típico do contrato de trabalho e que, em regra, constituem manifestações da sujeição do trabalhador ao poder directivo do empregador, sendo que cada um desses aspectos funcionará como um indício da existência da subordinação jurídica.

E são vários os indícios que costumam ser apontados: uns de carácter interno e outros de carácter externo.

Como elementos indiciários de carácter interno, reveladores da existência de subordinação jurídica ou, pelo menos, de forte presunção nesse sentido, é habitual indicar-se a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo sobre o modo como a prestação do trabalho é efectuada, a obediência às ordens e a sujeição à disciplina imposta pelo empregador, a propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador, a remuneração em função do tempo de trabalho e a integração do prestador da actividade na estrutura organizativa do empregador.

E, como indícios de carácter externo à relação, são referidos a observância do regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem.
Além daqueles indícios, também há que levar em conta, quando o contrato tenha sido reduzido a escrito, o “nomen juris” que as partes lhe deram e o teor das cláusulas que nele foram inseridas, uma vez que tais indícios, apesar de não serem decisivos para a qualificação do contrato – pois o que releva, realmente, não é a denominação que lhe foi dada pelas partes nem as cláusulas que nele foram inseridas, mas sim os termos em que o mesmo foi executado – não podem deixar de assumir relevância para ajuizar da vontade das partes no que diz respeito ao regime jurídico que escolheram para regular a relação entre elas estabelecida (acórdão STJ de 8.10.2008, processo n.º 1328/08, 4.ª Secção).

Por outro lado, importa sublinhar que os indícios atendíveis não podem ser isoladamente considerados, uma vez que, de per si, assumem, como é lógico, uma patente relatividade, devendo, por isso, ser sopesados no seu conjunto, na sua globalidade, impondo-se, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 14.1.2009, proferido no processo n.º 2278/08, da 4.ª Secção, “que o juízo de aproximação a cada modelo se faça no contexto global do caso concreto” (o acórdão referido pode ser consultado na base de dados do ITIJ - processo n.º 08S2278).

E também importa salientar que cabe ao autor/trabalhador alegar e provar, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do C.C., os factos que se mostrem suficientes para, em termos de razoabilidade, convencer o julgador de que o contrato por si invocado assume, realmente, a natureza de contrato de trabalho, e que, em caso de dúvida, as pretensões por ele formuladas com fundamento no alegado contrato de trabalho terão de ser julgadas improcedentes.

Revertendo ao caso dos autos, temos de convir, desde já o adiantamos, que a autora não logrou provar a natureza laboral do vínculo contratual que, ao longo de seis anos, manteve com o réu. Senão, vejamos.

No que toca aos chamados índices internos, provou-se que a autora exercia as suas funções dentro de um horário de trabalho, que era por turnos (factos n.º 6), mas também se provou que tal acontecia dentro do horário de funcionamento das lotas e que as escalas dos turnos eram elaboradas pelo chefe de divisão, mas segundo as indicações fornecidas pela autora e colegas de trabalho (factos n.os 7 e 8).

Ora, tendo a autora sido contratada para prestar serviços inseridos no domínio da inspecção sanitária do pescado na lota da Nazaré, em período consentâneo com o funcionamento da mesma (cláusula 5.ª do contrato referido no facto n.º 1 e facto n.º 3), é óbvio que a sua prestação não podia deixar de estar adstrita ao cumprimento de determinado horário, sendo que o horário de trabalho, embora típico do contrato de trabalho, não é incompatível com o contrato de prestação de serviço, mormente nos casos em que esta tem de ser necessariamente realizada em determinado local, como era o caso.

Neste contexto, a existência de um horário de trabalho não assume relevância especial no que toca à qualificação do contrato.

Também se provou que a autora exercia as suas funções nos locais que lhe eram indicados pelo réu e que utilizava os meios e equipamentos que o réu tinha à sua disposição (factos n.os 13 e 14), mas tais factos também não assumem relevância especial, atenta a natureza da prestação a que a autora estava obrigada.

E o mesmo se diga do cartão de identificação que lhe foi fornecido pelo réu, uma vez que sem ele não poderia entrar nos locais onde tinha de exercer a sua actividade fiscalizadora (factos n.os 11 e 12).

Por sua vez, no que toca à existência do poder directivo por parte do réu, apenas se provou que, no desempenho das suas funções, a autora recebeu instruções do réu, o que é manifestamente insuficiente para se concluir pela existência do mesmo, uma vez que o contrato de prestação de serviço também não é incompatível com a existência de instruções sob a forma como o serviço deve ser prestado.

No que diz respeito à remuneração, provou-se que a autora auferia uma retribuição mensal e que a mesma foi sempre actualizada anualmente, de acordo com os aumentos do regime geral da função pública (factos n.os 4 e 5), mas tal forma de retribuição também não é exclusiva do contrato de trabalho, sendo que não se mostra provado que a autora auferisse qualquer retribuição a título de férias, de subsídio de férias e de Natal, prestações estas que já poderiam assumir algum relevo para efeitos da qualificação laboral do vínculo contratual, uma vez que se trata de prestações que são típicas do contrato de trabalho. Anote-se, aliás, que, no art.º 42.º da petição inicial, a autora alegou que o réu nunca lhe pagou quaisquer quantias a título de férias nem de subsídios de férias e de Natal.

Acresce que a matéria de facto é absolutamente omissa acerca da eventual sujeição da autora ao poder disciplinar do réu, sendo que este elemento, por ser específico do contrato de trabalho, seria extremamente relevante para ajuizar da natureza laboral do contrato.

Por fim, importa atender ao nomen iuris que as partes deram ao contrato e ao teor das respectivas cláusulas, o que, não sendo decisivo, não deixa de assumir especial relevo, uma vez que se trata de um documento em que as partes expressaram a sua vontade negocial, vontade essa que não poderá deixar de assumir relevância decisiva na qualificação do contrato, salvo nos casos em que a matéria de facto provada permita concluir, com razoável certeza, que outra foi realmente a vontade negocial que esteve subjacente à execução do contrato.

No caso em apreço, as partes apelidaram o contrato que entre si celebraram de “Contrato de Avença” que é uma modalidade do contrato de prestação de serviço, e o teor das suas cláusulas harmoniza-se perfeitamente com este tipo de contrato, nomeadamente no que toca às disposições legais invocadas para a sua celebração e regulamentação, à ausência de qualquer cláusula referente à subordinação jurídica da autora e ao facto de nele se ter estipulado que a retribuição nele acordada era acrescida de IVA e que o pagamento da mesma seria efectuado mediante a apresentação do recibo modelo 6, a que se refere o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do Código do IRS (conhecido por recibo verde).

Dúvidas não há, por isso, de que a vontade negocial das partes, expressa no documento que titula o contrato, foi no sentido de que a prestação da autora ficasse sujeita ao regime do contrato de prestação de serviço, sendo que da matéria de facto dada como provada, devidamente ponderada na sua globalidade, não resulta que a execução do contrato se tenha efectivamente processado noutro regime que não aquele, mais concretamente, que a autora tenha prestado a sua actividade ao réu em regime de subordinação jurídica.

E, sendo assim, a pretensão da autora não pode deixar de improceder, uma vez que sobre ela recaía, como já foi dito, o ónus de alegar e provar os factos que levassem a concluir pela existência da referida subordinação, sendo que a dúvida a esse respeito seria, só por si, suficiente para determinar a improcedência dos pedidos por ela formulados, uma vez que todos eles tinham como pressuposto a natureza laboral do vínculo que manteve com o réu.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedente a revista, revogar a decisão recorrida e absolver o réu do pedido.
Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da autora.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Vasques Dinis