Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5223/19.6T6STB.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
SANAÇÃO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
EXTEMPORANEIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OBJETO DO RECURSO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula por aplicação do n.º 1 do art. 195.º do CPC, sendo que o meio processual próprio para arguir a nulidade é a reclamação para o tribunal onde ela foi cometida, salvo na hipótese prevista no n.º 3 do art. 199.º do CPC.

II. Apenas a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, gera a nulidade do acórdão (art. 615.º, n.º 1, d), do CPC), não integrando tal vício a fundamentação deficiente, errada ou não convincente.

III. Não sendo admissível recurso ordinário, em termos gerais, por virtude da ocorrência de dupla conforme, as nulidades previstas nas als. b) a e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC só são arguíveis por via recursória se a revista for interposta por via excepcional (art. 672.º, n.º 1, do CPC) ou nos casos em que o recurso é sempre admissível (art. 629.º, n.º 2, do CPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. No âmbito da presente acção de impugnação pauliana proposta por Eeos Credit Funding Dac contra AA, BB e CC, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, a 27-05-2021, que, julgando improcedente o recurso de apelação interposto pela 3.ª ré, confirmou a sentença da 1.ª Instância que decidiu julgar a acção procedente.

O réu AA, mediante reclamação apresentada junto do Tribunal da Relação, veio arguir a nulidade, por omissão de pronúncia, de tal acórdão quanto às questões de ilegitimidade da apelada e da existência de causa prejudicial.

Por acórdão, proferido em conferência a 23-09-2021, foi julgada inadmissível a arguição de tais nulidades por via incidental, considerando-se que as mesmas deveriam ter sido suscitadas em sede de recurso, em conformidade com o disposto no art. 615.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, atenta a recorribilidade do acórdão proferido.

Deste acórdão veio o réu AA interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

«I. Por requerimento datado de 9.06.2021, veio o R. AA arguir nulidade do acórdão proferido no Tribunal da Relação de Évora datado de 27.05.2021, ao abrigo do disposto no art.º 666.º, n.º 1, e n.º 2, ex vi art.º 613.º, n.º 2, art.º 615.º, n.º 1, al. d), e n.º 4 todos do Cód. Proc. Civil.

II. Sob a aludida arguição de nulidade decidiu o Tribunal da Relação de Évora, com notificação à parte a 23.09.2021, o seguinte: “(…) acordam em conferência os Juízes desta Relação em julgar inadmissível legalmente a arguição de nulidade invocada pelo R. AA relativamente ao acórdão proferido nestes autos.”

II. Entendeu o Tribunal da Relação de Évora, não poder conhecer o objeto da aludida reclamação de arguição de nulidade, por considerar inadmissível legalmente. Esta decisão estribou-se na aplicação do art.º 615.º, n.º 4 por via do at.º 666.º, n.º 1 ambos do Cód. Proc. Civil, por entender a admissibilidade de recurso ordinário, em vista à impugnação das nulidades do acórdão nos termos recursivos do art.º 672.º, todavia, não especificando a qual dos números e alíneas a que corresponde tal entendimento, nem tampouco a que matéria fática dirá respeito o enquadramento no aludido preceito.

III. Decidiram os juízes da Relação julgar inadmissível legalmente a reclamação e, consequentemente, não conhecer do objeto considerando extinta a instância.

IV. Verte sobre esta matéria o Cód. de Proc. Civil, no seu artigo 655.º, n.º 1, “Se entender que não pode conhecer do objeto do recurso, o relator, antes de proferir a decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.”

V. Atento ao elemento sistemático e teológico dos art.º 655.º, e art.º 666.º, do Cód. De Proc. Civil, encontram inserção no Capítulo II, Secção II - “Julgamento do Recurso” pelo que, o disposto no n.º 1 do art.º 655.º, rege por essa ordem de ideia, a reclamação de arguição de nulidades nos termos expostos no n.º 2, do art.º 666.º, bem ainda por consideração à máxima a maiori, ad minus.

VI. O art.º 655.º, n.º 1, alude o princípio do contraditório explanado no disposto no n.º 3, do art.º 3.º do Cód. Proc. Civil, a saber: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

VII. O Tribunal da Relação não cumpriu o preceituado no art.º 655.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, e decidiu julgar inadmissível legalmente a reclamação, sem que para esse efeito tenha dado às partes a possibilidade de exercer o contraditório, violando claramente o disposto art.º 3.º, n.º 3, do Novo Código de Processo Civil.

VIII. A omissão de tal notificação negou às partes o direito assegurado pelo art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a um processo equitativo e leal, designadamente por violação do princípio do contraditório, princípio este que vem sendo considerado pela jurisprudência ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1, desse mesmo art.º 20.º, da Lei Fundamental.

IX. Tal omissão e consequente violação do princípio do contraditório - cfr. n.º 3, do art.º 3.º, do Código de Processo Civil - é suscetível de consubstanciar a prática de uma nulidade processual prevista no art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

X. A omissão da audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que o acórdão seja considerado decisão-surpresa, inquinando-o de nulidade nos termos disposto no art.º 615.º, n.º 1. al. d), por remissão do art.º 666.º, n.º 1, ambos do Cód. de Proc. Civil, dado que se pronunciou sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.

XI. No domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de Direito já se pronunciou o Supremo Tribunal de justiça, em Acórdão de 22.02.2017 in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6577425a12338875802580cf005b3190?OpenDocument

XII. O acórdão que se recorre, viola o disposto no art.º 655.º 1, em referência a princípio do contraditório explanado no n.º 3 do art.º 3, inquinando-o de nulidade por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), o que se arguiu, pugnando a revogação do acórdão recorrido.

XIII. O meio de reação próprio a esta decisão judicial é o recurso a interpor da mesma, com fundamento na sua nulidade por falta de audição das partes antes de ter sido proferida a decisão que não conheceu do objeto da Reclamação nos termos seguintes:

XIV. Entre outros ensinamentos doutrinários sobre esta matéria, adianta Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 424., refere que “se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo.”

Não podendo o Recorrente de Revista, deixar de pronunciar-se sob o seguinte:

XV. Sobre o segmento da possibilidade recursiva (revista excecional) exclusivamente na arguição de nulidades cometidas pelo Tribunal da Relação, profere no acórdão que se recorre, “Ora, analisando o acórdão em causa verifica-se que o mesmo é suscetível de recurso (Cfr. art.º 672.º ), pelo que o requerimento aqui em análise – de arguição de nulidade do referido aresto proferido nesta Relação – só poderá ter lugar em sede recursiva, como decorre, aliás, da simples leitura do n.º 4 do citado art.º 615.º acima transcrito.”

XVI. O acórdão que se recorre, não fundamenta de fato a decisão da possibilidade recursiva de revista excecional, ausentando-se também da fundamentação de Direito sobre o número ou alínea do art.º 672.º do CPC., a que dirá respeito tal decisão.

XVII. Sobre o pedido deduzido pela A. em primeira Instância, recaiu decisão a 11.12.2020 – Ref.ª ......01, considerando procedente a totalidade dos mesmos.

XVIII. Sobre recurso apresentado pela R., recaiu Acórdão da Relação a 27.05.2021 – Ref.ª .....71, confirmando inteiramente a decisão proferida pela M.ma Juiz “a quo”.

XVIII. No vertido do disposto no art.º 671.º, n.º 3, não é admitida revista do Acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em Primeira Instância.

XIX. Em face do supra preceito, e padecendo o Acórdão da Relação de Évora que, julgou o recurso de apelação, de nulidades de ilegitimidade ativa da Autora/Apelada, e causa prejudicial, não existindo outra causa recursiva, arguiu-as o 3.º R., em sede de Reclamação perante o Tribunal que as proferiu, nos termos do disposto nos art.º 666.º, n.º 1, e n.º 2, ex vi art.º 613.º, n.º 2, art.º 615.º, n.º 1, al. d), e n.º 4, todos do Código de Processo Civil.

XX. Sobre a oportunidade da recorribilidade por preenchimento da causa de irrecorribilidade fundada na “dupla conformidade” nos termos exposto no art.º 671.º, n.º 3, do Cód. de Prc. Civil, e não sendo achada pelo Reclamante, matéria (face ao supra decisão do Tribunal da Relação de 27.05.2021, que decide confirmar inteiramente a decisão proferida pela M.ma Juiz “a quo”) enquadrável nos termos excecionais das alíneas do n.º 1, do art.º 672.º, do Cód. de Proc. Civil, a saber:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

XXI. Considerou o Reclamante os termos do n.º 4 do art.º 615.º “4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”

XXII. É consabido que o recurso de revista excecional é tipificado por ordinário, porém confinado às matérias previstas nas alíneas do n.º 1 do art.º 672.º do Cód. de Proc. Civil, e como se disse não sendo achado na decisão de segunda instância, matéria cabal ao preenchimento das mesmas, obedeceu ao preceituado no n.º 2 do art.º 613.º do Cód. de Proc. Civil, a saber: “É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.”

XXIII. É das regras de competência material do Tribunal da Relação, suprir nulidades cometidas em acórdão por si proferido, quando perante dupla conformidade e inexistência de fundamento recursório nos termos do n.º 1 do art.º 672.º do Cód. de Proc. Civil.

XXIV. Sobre esta matéria já decidiu Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-11-2016, Proc. N.º 470/15.2T8MNC.G1-A.S1, In www.dgsi.pt. In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/24CFC6B2F654D338802581FD005EC284 confirmou a decisão da relatora de não admissão do recurso de revista interposto pelo recorrente, sem prejuízo da eventualidade de o Tribunal da Relação conhecer das invocadas nulidade de omissão e de excesso de pronúncia, ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 5 do CPC.

XXV. No supra Acórdão, decidiu a Sra Relatora, no demais, o seguinte:

“É que se é certo que, de harmonia com o disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do artigo 615.º do CPC, não menos certo é que a norma da al. c) do nº 1 do citado art. 674º não pode deixar de ser conjugada com o preceituado no n.º 4 deste mesmo artigo, segundo o qual, tais nulidades só são arguíveis por via de recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, ou seja, como fundamento acessório desse recurso.

Significa isto que, não sendo admissível recurso ordinário de revista e não tendo o recorrente interposto a presente revista a título especial ou excecional, aquelas nulidades terão de ser arguidas mediante reclamação perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, nos termos da 1.ª parte do n.º 4 do artigo 615.º e n.º 6 do artigo 617.º do CPC.”

XXVI. No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça a 28.04.2021, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/087377633f88bfff802586c600380d66? OpenDocument

“(…) uma vez que, não sendo admissível recurso ordinário deste acórdão por preenchimento da causa de irrecorribilidade fundada na “dupla conformidade” e não tendo sido alegadas quaisquer das pretensões recursivas no âmbito dos arts. 629º, 2, e 672º, 1, do CPC, essas nulidades apenas e somente são arguíveis perante o tribunal que proferiu a decisão, nos termos conjugados dos arts. 615º, 4, 1ª parte, e 617º, 6, 1ª parte, aplicáveis por força do art. 666º, 1, do CPC, e decidindo em conferência, nos termos do art. 666º, 2, do CPC.”

XXVII. Entendemos portanto, que o acórdão que decidiu de apelação, configurar a “dupla conformidade” com a decisão da 1.º instância na sua integralidade, e as nulidades arguidas sobre tal acórdão, de ilegitimidade da A./Apelada, e causa prejudicial, não configuram nenhum dos números e/ou alíneas do art.º 672.º, impugnando-as perante o tribunal que as proferiu.

XXVIII. As nulidades invocadas junto do Tribunal da Relação de Évora são do conhecimento oficioso até trânsito em julgado da decisão, não recaindo sobre as mesmas conhecimento na 1.ª instância, não formando sobre elas, caso julgado formal.

XXIX. Nos termos jurisprudenciais e artigos supra exposto, designadamente o disposto do art.º 615º, 4, 1ª parte, e 617º, 6, 1ª parte, aplicáveis por força do art. 666º, 1, do CPC, as nulidades arguidas pelo Reclamante, ora Recorrente, apenas são decididas em conferência, nos termos do art. 666º, 2, do CPC., pelo Tribunal que as cometeu (Tribunal da Relação de Évora), face “dupla conformidade” e ausente alegação por Aquele, de quaisquer das pretensões recursivas no âmbito dos arts. 629º, 2, e 672º, 1, do CPC, por força da inexistente verificação.

XXX. Ao decidir o Tribunal da Relação de Évora, pela inadmissibilidade legal da reclamação de arguição de nulidades invocadas perante si, estribado na possibilidade de recurso de revista excecional, sem que para tanto haja fundamentado de fato e de Direito tal conclusão, viola as regras de competência em razão da matéria, nos termos do disposto no art.º 629.º, 2, al. a), e termos vertidos no n.º 1 do art.º 666.º, ex vi art.º 613.º, n.º 2 e 615.º. n.º 1 d) e n.º 4, este último com referência ao n.º 3 do art.º 671.º, e a lei do processo nos termos do art.º 674.º n.º 1, al. b) todos do CPC..

XXXI. Encontra-se nos termos supra exposto, o acórdão que se recorre ferido de nulidade, o que se arguiu, pugnando a revogação do acórdão recorrido.».

Não foram apresentadas contra-alegações.

2. Tendo o recurso sido apresentado neste Supremo Tribunal em 09-02-2022, veio a ser considerado admissível por decisão do primitivo relator datada de 27-11-2023, já transitada em julgado.

3. Em 28-02-2024, foi o recurso redistribuído, por sorteio, à relatora do presente acórdão.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, identificam-se as seguintes questões em discussão:

• Do vício resultante da prolação de decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório, imputável ao acórdão da conferência (que não conheceu das nulidades do acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação);

• Da nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação;

• Do meio processual próprio para suscitar as nulidades, por omissão de pronúncia, do acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação.

III – Fundamentação

1. Do vício resultante da prolação de decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório, imputável ao acórdão da conferência (que não conheceu das nulidades do acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação)

No âmbito da presente acção de impugnação pauliana proposta por Eeos Credit Funding Dac contra AA, BB e CC, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, a 27-05-2021, que, julgando improcedente o recurso de apelação interposto pela 3.ª ré, confirmou a sentença da 1.ª Instância que decidiu julgar a acção procedente.

O réu AA, mediante reclamação apresentada junto do Tribunal da Relação, veio arguir a nulidade, por omissão de pronúncia, de tal acórdão quanto às questões de ilegitimidade da apelada e de existência de causa prejudicial.

Por acórdão, proferido em conferência a 23-09-2021, foi julgada inadmissível a arguição de tais nulidades por via incidental, considerando-se que as mesmas deveriam ter sido suscitadas em sede recursória, em conformidade com o disposto no art. 615.º, n.º 4, do CPC, atenta a recorribilidade do acórdão proferido.

É deste acórdão que o réu AA vem interpor recurso de revista, imputando ao Tribunal da Relação a prática de uma nulidade processual, em conformidade com o estatuído no art. 195.º, n.º 1, do CPC, por ter omitido a realização da notificação, prevista no art. 655.º, n.º 1, do CPC, tendente a permitir exercer contraditório prévio à tomada de decisão de considerar legalmente inadmissível a reclamação, de cujo objecto não tomou conhecimento. Cumulativamente, e incorrendo em alguma confusão conceitual, o recorrente invoca que a decisão em crise padece de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por se ter pronunciado sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se poderia pronunciar.

Em sede de conferência, o Tribunal da Relação rejeitou a existência de tal nulidade, reiterando que as nulidades relativas ao acórdão de 27-05-2021 deveriam ter sido arguidas em sede de recurso de revista a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos.

1.1. Não tem obtido resposta unânime, no âmbito da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

No último sentido, na esteira das posições assumidas por Teixeira de Sousa (Decisão-surpresa; nulidade da decisão, publicado in blog do IPPC) e de Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 26), se pronunciaram os acórdãos de 13-10-2020 (proc. n.º 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), de 16-12-2021 (proc. n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) e de 13-04-2021 (proc. n.º 2019/18.6T8FNC.L1.S1,), disponíveis em www.dgsi.pt.

Como exemplos da corrente jurisprudencial enunciada em primeiro lugar refiram-se os acórdãos de 12-07-2011 (proc. n.º 620/1999.C1.S1), de 02-02-2017 (proc. n.º 1062/13.6TBBCL.G1.S1), de 11-07-2019 (proc. n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1), de 02-06-2020 (proc. n.º 496/13.0TVLSB.L1.S1), não publicados, bem como o recente acórdão de 29-02-2024 (proc. n.º 19406/19.5T8LSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo aqui 2º adjunto e votado pelo presente colectivo.

De acordo com esta última posição, que se perfilha, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, em contravenção com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pudesse tomar conhecimento. Ao invés, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá ser-lhe aplicada a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma (assim, cfr. o referido acórdão de 12-07-2011).

Em abono desta tese é de afirmar, nas palavras do recente acórdão de 29-02-2024, que “se, na realidade, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório configurasse um caso de excesso de pronúncia, sujeito ao regime das nulidades da sentença, o que faria sentido é que a nulidade fosse suprida nos mesmos termos em que é suprida a nulidade causada por excesso de pronúncia, o que não acontece”, já que, para suprir a nulidade causada pela inobservância do princípio do contraditório, não se considera sem efeito a parte viciada, antes se anula a decisão recorrida com o objectivo de determinar o cumprimento do formalismo que foi omitido e de proferir nova decisão sobre a questão.

Acrescenta-se, por fim, como argumento corroborante – e acompanhando, também aqui, o acórdão de 29-02-2024 – que “o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC”.

1.2. Assinale-se que o entendimento que se retira do despacho deste Supremo Tribunal, proferido nos autos em 27-11-2023, no qual se afirma que o recurso se mostra admissível “em face do art. 674º, nº 1, al. c) com fundamento em nulidade previsto no art. 615º, nº 1, al. d)”, tendo sido expresso no plano da admissibilidade do recurso, não obsta a que, em sede de análise do mérito, este mesmo Supremo Tribunal venha a qualificar o vício invocado pelo recorrente em norma diversa do pressuposto aplicável para efeitos de considerar recorrível a decisão.

Em suma, o meio processual próprio para a arguição da nulidade (processual) decorrente da violação do contraditório devido é a reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão, no prazo de dez dias (arts. 149.º e 199.º, n.º 1, do CPC), podendo ser interposto recurso da decisão que incida sobre a mesma reclamação.

Assim sendo, acompanha-se o entendimento do acórdão deste Supremo Tribunal de 02-06-2020 (proc. nº 496/13.0TVLSB.L1.S1), não publicado, no sentido de que a nulidade processual arguida apenas nas alegações de recurso de revista se deverá considerar sanada, por não respeitar a vício do acórdão recorrido e na medida em que não se reporte ao indeferimento de uma reclamação oportunamente apresentada.

Deste modo, a nulidade processual decorrente da preterição do contraditório invocada pelo recorrente deveria ter sido objecto de reclamação, no prazo de dez dias desde a notificação da decisão, perante o Tribunal da Relação nos termos da segunda parte do art. 196.º e arts. 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC, uma vez que não se coloca a hipótese prevista no n.º 3 da última disposição.

Não tendo sido deduzida tempestivamente tal reclamação perante o tribunal a quo, verifica-se o efeito preclusivo de perda da faculdade de exercício.

1.3. De qualquer modo, sempre se afigura de acrescentar que não se entende que a norma do n.º 1 do art. 655.º do CPC devesse ter sido aplicada pela Relação, já que o cumprimento do contraditório naqueles termos pressupõe, como assinalou o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-12-2023 (proc. n.º 619/21.6T8VCT.G1-A.S1), disponível em www.dgsi.pt, a hipótese (que não ocorreu) “de um recurso que já foi admitido no tribunal ‘a quo’ (aliás, o art. 655.º do CPC está já sistematicamente inserido na fase de julgamento do recurso, fase que se inicia no art. 652.º do CPC)”.

Além do mais, ainda que se considerasse que o recorrente deveria ter sido advertido, nos termos do preceituado no n.º 3 do art. 3.º do CPC, para a possibilidade de não conhecimento do objecto da reclamação, em decorrência do entendimento de que o acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação se afigurava susceptível de recurso ordinário, haveria de considerar-se tal eventual nulidade processual como suprida, uma vez que o recorrente teve hipótese de se pronunciar sobre a matéria ao interpor o presente recurso de revista.

Conclui-se, assim, pela não verificação do invocado vício resultante da prolação de decisão surpresa por violação do princípio do contraditório.

2. Da nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação

Ainda que, nas suas conclusões recursórias, não tenha indicado autonomamente a norma contida no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, o recorrente imputa ao acórdão recorrido o vício nulidade por falta de fundamentação, de facto e de direito, alegando que “o acórdão que se recorre, não fundamenta de fato [sic] a decisão da possibilidade recursiva de revista excecional, ausentando-se também da fundamentação de Direito sobre o número ou alínea do art.º 672.º do CPC., a que dirá respeito tal decisão.”.

A alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC comina com nulidade a decisão que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”.

O vício relativo à falta de fundamentação correlaciona-se com o dever de fundamentação das decisões que se impõe ao julgador “por imperativo constitucional e legal (artigos 208.º, n.º1, da Constituição e 154.º, n.º1, do CPC) tendo ainda a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma e com a própria garantia do direito ao recurso (as partes precisam de ser elucidadas quanto aos motivos da decisão, sobretudo a parte vencida, para poderem impugnar os fundamentos perante o tribunal superior)” (acórdão deste Supremo Tribunal de 04-06-2019, proc. n.º 64/15.2T8PRG-C.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt).

No entanto, como é sublinhado pela doutrina (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 736) e afirmado, de forma constante, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 11-02-2015 (proc. n.º 422/2001.L1.S1), não publicado, de 14-01-2021 (proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1), in www.dgsi.pt, e de 17-01-2023 (proc. n.º 5396/18.5T8STB-A.E1.S1), não publicado), só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, gera a nulidade do acórdão, não integrando tal vício a fundamentação deficiente, errada ou não convincente.

No caso dos autos, o acórdão recorrido, para sustentar a sua posição no sentido de que as nulidades do acórdão proferido a 27-05-2021 deveriam ser arguidas por via de recurso, e não perante o tribunal a quo, afirmou o seguinte: “analisado o acórdão em causa verifica-se que o mesmo é susceptível de recurso (cfr. art.672.º do C.P.C.), pelo que o requerimento aqui em análise - de arguição de nulidades do referido aresto proferido nesta Relação - só poderá ter lugar em sede recursiva, como decorre, aliás, da simples leitura do n.º 4 do citado art. 615.º acima transcrito.”.

Ainda que sintética, a fundamentação do acórdão recorrido quanto à decisão não se encontra ausente, tendo o aresto sido expresso ao considerar que o primitivo acórdão se mostra recorrível, nos termos do art. 672.º do CPC, e que, como tal, a arguição das respectivas nulidades apenas se poderá efectivar em sede recursória, em conformidade com o preceituado no art. 615.º, n.º 4 do CPC.

O facto de o acórdão recorrido não ter analisado a existência de dupla conforme, que o recorrente sustenta constituir um obstáculo à interposição do recurso de revista nos termos gerais, não consubstancia o vício da ausência de fundamentação, entendido como deficiência estrutural da decisão, mas, eventualmente, um erro de julgamento, respeitante ao mérito da mesma.

Conclui-se pela não verificação da referida nulidade.

3. Do meio processual próprio para suscitar as nulidades, por omissão de pronúncia, do acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação

O que o recorrente pretende, em substância, pôr em causa é a correcção do entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que, por ser o acórdão proferido a 27-05-2021 susceptível de recurso de revista, as nulidades, por omissão de pronúncia, que lhe foram assacadas deveriam ser obrigatoriamente conhecidas em via recursória e não através de reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão.

Vejamos.

3.1. De acordo com o que preceitua o n.º 4 do art. 615.º do CPC, aplicável aos acórdãos proferidos pela Relação por remissão do disposto no n.º 1 do art. 666.º do mesmo Código, “as nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”.

A este respeito, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sublinhado que, sendo o acórdão de apelação susceptível de recurso de revista, a nulidade deve ser no mesmo arguida, como fundamento do recurso a submeter ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 615.º, n.º 4, 666.º e 679.º, do CPC. Caso contrário, as nulidades deverão ser arguidas, a título incidental, perante o tribunal que proferiu a decisão. Cfr., neste sentido, os acórdãos de 24-11-2016 (proc. n.º 470/15.2T8MNC-A.G1.S1), não publicado, de 10-10-2017 (proc. n.º 198/10.0TBCBC.G3.S1) não publicado, de 11-11-2020 (proc. n.º 6854/18.7T8PRT-F.P1.S1), de 26-01-2021 (proc. n.º 103/06.8TBMNC.G1.S1) , de 10-05-2021 (proc. n.º 1641/19.8T8BRR.L1.S1), de 14-07-2021 (proc. n.º 3791/19.1T8STS.P1-A.S1), de 08-09-2021 (proc. n.º 4054/20.5T8VNF-A.G1-A.S1), de 19-10-2021 (proc. n.º 689/15.6T8EVR.E1-A.S1), de 18-01-2022 (proc. n.º 6798/16.7T8LSB-A.L2.S1) e de 29-09-2022 (proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

Na mesma linha, Abrantes Geraldes (ob. cit., págs. 475-476) realça que a transposição do regime do art. 615.º por via do art. 666.º “implica que só poderão ser autonomamente arguidas as nulidades de acórdãos se acaso não for admissível recurso de revista. Sendo este admissível, é nas alegações de recurso que deverão ser integradas, dando à Relação a possibilidade de, em conferência, sobre as mesmas se pronunciar, nos termos do art. 641.º, n.º 1”.

No caso em que se verifique uma situação de dupla conforme, o mesmo autor (ob. cit., págs. 475-476) destaca que, se não for interposto recurso de revista, a arguição das nulidades do acórdão deverá ser feita directamente perante a Relação, nos termos do art. 615.º, n.º 4, do CPC. Neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão deste Supremo Tribunal de 24-11-2016 (proc. n.º 470/15.2T8MNC-A.G1.S1), não publicado, em que se fez notar que, “não sendo admissível recurso ordinário, em termos gerais, por virtude da ocorrência de dupla conforme, as nulidades previstas nas als. b) a e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC só são arguíveis por via recursória, se a revista for interposta a título especial ou de revista excecional nos termos dos arts. 629.º, n.º 2, e 672.º, n.º 1, do CPC, respetivamente.”.

3.2. Aqui chegados, temos que, se as nulidades por omissão de pronúncia imputadas ao acórdão da Relação que confirmou a sentença da 1.ª Instância, apenas poderiam ter sido arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão na hipótese de o recurso jurisdicional não ser admissível, importa determinar se tal acórdão se mostra passível de revista.

Como vimos, o tribunal recorrido entendeu que sim, numa posição que é posta em causa pelo recorrente, sustentando que, relativamente a tal aresto, se verifica o obstáculo da dupla conforme, previsto no n.º 3 do art. 671.º do CPC, impeditivo da sua recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.

Antecipe-se, desde já, que assiste razão ao recorrente.

Senão vejamos.

O acórdão proferido a 27-05-2021 confirmou, por unanimidade, a sentença que julgou a acção procedente. Para apurar da existência de dupla conforme impeditiva da interposição de recurso de revista nos termos gerais, resta, assim, determinar se as fundamentações das decisões proferidas pelas instâncias são, ou não, essencialmente diversas.

De acordo com a jurisprudência estabilizada deste Supremo Tribunal, o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão da Relação em confronto com a sentença de 1.ª Instância, sendo antes indispensável que, naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa. Cfr., sem pretensões de exaustividade, os acórdãos de 28-04-2014 (proc. n.º 473/10.3TBVRL.P1-A.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 28/16.9T8MGD.G1.S2), de 20-02-2020 (proc. n.º 3938/15.7T8VFR.P1.S1), de 17-11-2021 (proc. n.º 712/19.5T8LSB.L1.S1), de 04-11-2021 (proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1), de 09-06-2021 (proc. n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1), de 22-06-2021 (proc. n.º 15319/16.0T8PRT.P1.S1), de 06-05-2021 (proc. n.º n.º 1097/16.7T8FAR.E2.S1), de 29-04-2021 (proc. n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1) e de 02-03-2021 (proc. n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Neste sentido, se pronuncia Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 425), defendendo que “a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

No caso sub judice, as instâncias entenderam de forma convergente e por referência aos mesmo acervo de factos provados, que se encontravam preenchidos os pressupostos da procedência do pedido de impugnação pauliana contidos no art. 610.º do Código Civil.

A argumentação desenvolvida pelo acórdão da Relação, afastando o invocado desinteresse no objecto da lide e inércia, por parte da autora, em indicar à penhora o imóvel em discussão nos autos na acção executiva, que correu termos no ano de 2013, traduz o aditamento de um fundamento jurídico que não confere ao acórdão recorrido diferença substancial em relação à fundamentação de direito utilizada na sentença da 1.ª Instância.

Considera-se, assim, que as fundamentações das decisões das instâncias não só não se mostram essencialmente divergentes, como se apresentam como essencialmente similares, havendo, por isso, que concluir pela verificação dos pressupostos da dupla conforme, obstativa da interposição de recurso de revista nos termos gerais.

Deste modo, conclui-se que, ao contrário da premissa assumida pelo tribunal a quo, o acórdão que julgou a apelação improcedente não se mostra susceptível de recurso de revista nos termos gerais – sendo certo que pelo réu AA não foi interposto qualquer recurso de revista, por via normal ou excepcional.

Donde se afigura como irrefutável a conclusão de que as nulidades por omissão de pronúncia deveriam ter sido – como foram – processualmente suscitadas através de reclamação junto do tribunal que prolatou a decisão.

Realce-se que esta é, aliás, a solução compaginável com o entendimento deste Supremo Tribunal, no sentido de que não se mostra admissível a interposição de recurso de revista para análise exclusiva de nulidades imputadas à decisão recorrida, devendo tais nulidades ser apreciadas pelo tribunal ad quem apenas enquanto fundamento acessório (art. 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC) e dependente do recurso admitido. Cfr. os acórdãos de 20-12-2017 (proc. n.º 22388/13.3T2SNT-B.L1-A.S1), de 10-05-2021 (proc. n.º 1641/19.8T8BRR.L1.S1) de 18-01-2022 (proc. n.º 6798/16.7T8LSB-A.L2.S1), de 11-10-2022 (proc. n.º 105557/19.3YIPRT.G1.S1), de 02-02-2023 (proc. n.º 2485/19.2T8STS.P1.S1) e de 06-07-2023 (proc. n.º n.º 929/21.2T8VCD.P1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt. Não sendo o recurso admitido, as nulidades da decisão que hajam sido suscitadas deverão ser apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do art. 617.º, n.º 5 ex vi arts. 666.º, n.º 1 e 679.º do CPC.

Por conseguinte, não sendo a arguição de nulidades do acórdão da Relação admitida como fundamento exclusivo de recurso de revista, compreende-se que o ora recorrente, que não pretendeu impugnar o aresto de 27-05-2021 com outros fundamentos para além das imputadas nulidades por omissão de pronúncia, tenha optado pela reclamação, junto do tribunal que proferiu a decisão, como meio processual idóneo a obter a apreciação da sua pretensão.

Conclui-se, assim, pela procedência deste fundamento do recurso.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, datado de 23-09-2021, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação das nulidades por omissão de pronúncia suscitadas pelo ora recorrente, AA, no requerimento datado de 09-06-2021 e imputadas ao acórdão da Relação proferido a 27-05-2021.

Custas pelo recorrido

Lisboa, 4 de Abril de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Fernando Baptista

Emídio Santos