Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
435/19.5GESTB-M.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
COMPETÊNCIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :

I - O art.º 222.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, ao referir-se, como fundamento de habeas corpus, à ilegalidade da prisão proveniente de ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente, está querer significar que a prisão é determinada por autoridade “que não um juiz (prisão a non judice), sendo que esse fundamento não inclui a prisão determinada por juiz incompetente, pois o juiz incompetente também pode ordenar a prisão preventiva (art.º 33.º, n. º 3)” (Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª Edição, pág. 635 e também, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.10.2002, proc. n.º 3420/02).


II – No presente caso, não somente a medida de coação, prisão preventiva, foi aplicada ao arguido pelo juiz de instrução criminal (artigos 119.º da LOSJ e art.º 202.º n.º 1 do CPP), como a providencia de habeas corpus, face ao seu carácter excepcional, destinada apenas a apreciar a privação ilegal da liberdade, não é o meio adequado para se arguirem nulidades, como que pretende a requerente - o que deve ser feito através do recurso ordinário.


III - Assim, uma vez que a privação da liberdade do arguido foi determinada por autoridade competente, por facto que a lei permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração, é de indeferir a petição de habeas corpus apresentada pela requerente.

Decisão Texto Integral:

Proc. 435/19.5GESTB-M


Petição Habeas Corpus – 5.ª Secção


Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


1. Relatório


1.1. AA, vem ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.° 222.° do Código de Processo Penal e do art.º 31.° n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, requerer a providência de habeas corpus relativamente a BB, arguido, sujeito à medida de prisão preventiva no âmbito do processo n.º 435/19.5GESTB a correr termos no tribunal judicial da Comarca de Lisboa -... - Juízo Central Criminal, J... .. Invoca, para o efeito, os seguintes fundamentos:


DA LEGITIMIDADE


1.° Como decorre do artigo 31.° n.° 1 e n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, o próprio interessado ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus, em virtude de prisão ou de detenção ilegais.


2.° O n.° 2, do artigo 222.° do Código de Processo Penal, no desenvolvimento desta norma constitucional, reitera que a petição pode ser formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, especificando as als. a), b) e c) as situações de prisão ilegal que podem constituir fundamento da providência de habeas corpus.


3.° Assim, tem a Requerente legitimidade para apresentar a presente providência de habeas corpus.


DOS FACTOS


4.° A 13 de Julho de 2022, na sequência da sua detenção, veio o Arguido BB a ser submetido a primeiro interrogatório judicial por se encontrar iniciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 14.°, n.° 1 do Código Penal e 21.°, n.° 1 e 24.°, als. f) e j), ambos do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela l-C anexa ao mesmo diploma.


5.° Foi em sede de primeiro interrogatório aplicado pelo Juiz de Instrução Criminal a medida e coação de prisão preventiva, conforme Douto Despacho que se junta sob o documento n.° 1.


6.° Decorrido o inquérito, veio a ser proferida acusação, sendo aí o arguido BB acusado em coautoria (art.º 26.°, 2.ª parte do Código Penal) e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 14.°, n.° 1 do Código Penal e 21.°, n.° 1 e 24.°, alíneas f) e j), ambos do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela l-C anexa ao mesmo diploma.


7.° Dispõe o art.º 119.°, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que: "1 - Compete aos juízos de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica.


2 - Quando o interesse ou a urgência da investigação o justifique, os juízes em exercício de funções de instrução criminal podem intervir, em processos que lhes estejam afetos, fora da sua área territorial de competência."


8.° Por sua vez, dispõe o artigo 120.°, n.° 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que: "a competência a que se refere o n.° 1 do artigo anterior, quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação, cabe a um tribunal central de instrução criminal, quanto aos seguintes crimes:


a)- Contra a paz e a humanidade;


b)- Organização terrorista e terrorismo;


c)- Contra a segurança do Estado, com exceção dos crimes eleitorais;


d)- Tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores, salvo tratando-se de situações de distribuição direta ao consumidor, e associação criminosa para o tráfico;


e)- Branqueamento de capitais;


f)- Corrupção, peculato e participação económica em negócio;


g)- Insolvência dolosa;


h)- Administração danosa em unidade económica do sector público;


i)- Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;


j)- Infrações económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática;


k)- Infrações económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional."


9.° Estabelece assim o artigo 120.°, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), que quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação, cabe a um tribunal central de instrução criminal a prática dos atos jurisdicionais na fase de inquérito se estiver em causa um dos crimes elencados no n.° 1, de entre os quais consta o crime que aqui esteve sob investigação, ou seja trafico do estupefaciente (vide alínea d), do n.° 1 do artigo 120.° da LOSJ).


10.° No caso concreto, encontramo-nos perante um caso especial de competência funcional Tribunal Central de Investigação Criminal tal como é definido no artigo 120.° da LOSJ.


11.° Ora, todo o inquérito veio a ser dirigido pela D.I.A.P e todos os actos jurisdicionais vieram a ser praticados pelo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal de ....


12.° Tudo em manifesta ilegalidade.


Continuando,


13.° Dispõe o artigo 58.° do ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO que:


1 - Compete ao DCIAP coordenar a direção da investigação dos seguintes crimes:


a) Violações do direito internacional humanitário;


b) Organização terrorista e terrorismo;


c) Contra a segurança do Estado, com exceção dos crimes eleitorais;


d) Tráfico de pessoas e associação criminosa para o tráfico;


e) Tráfico internacional de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores de droga e associação criminosa para o tráfico;


f) Tráfico internacional de armas e associação criminosa para o tráfico;


g) Branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo;


h) Corrupção, recebimento indevido de vantagem, tráfico de influência, participação económica em negócio, bem como de prevaricação punível com pena superior a dois anos;


i) Administração danosa em unidade económica do setor público;


j) Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;


k) Infrações económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática;


l) Infrações económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional;


m) Crimes de mercado de valores mobiliários;


n) Crimes previstos na lei do cibercrime.


2 - Compete ao DCIAP dirigir o inquérito e exercer a ação penal relativamente aos crimes indicados no n.° 1 em casos de especial relevância decorrente da manifesta gravidade ou da especial complexidade do crime, devido ao número de arguidos ou de ofendidos, ao seu caráter altamente organizado ou às especiais dificuldades da investigação, desde que este ocorra em comarcas pertencentes a diferentes procuradorias-gerais regionais (...)".


14.° O Arguido BB veio a ser submetido a primeiro interrogatório com a indiciação da prática um crime de tráfico internacional de estupefacientes, ou seja, pelo artigo 21.°, n.° 1 e 24.°, alíneas f) e j), ambos do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela l-C anexa ao mesmo diploma;


15.° E conforme a alínea e) n.° 1, do art.º 58.º, do Estatuto do Ministério Público a competência era a do D.C.I.A.P e não á do D.I.A.P.


16.° E assim sendo, a competência para os actos jurisdicionais, também competiam ao T.C.I.C e não ao T.I.C de ..., tudo em conformidade e em conjugação das disposições acima referidas.


17.° Quando o Juiz é chamado a praticar atos jurisdicionais, na fase de inquérito, o mesmo aprecia a sua competência para a prática daquele ato naquele momento (momento processualmente relevante).


Trata-se, pois, de uma competência em aberto.


18.° Assim sendo, o Juiz, durante a fase de inquérito e quando é chamado a intervir para a prática de atos jurisdicionais, avalia a sua competência em razão da matéria e verifica se tem competência para intervir naquele ato. Tal competência é aferida em relação àquele momento concreto.


19.° Ou seja no momento que em que o Arguido BB é presente ao Juiz de Instrução criminal iniciado que vinha pela prática de um crime de estupefaciente internacional, deveria o Juiz ter-se declarado incompetente para tal ato, reenviando os autos para o tribunal competente ou seja T.C.I.C, tribunal competente para proferir os atos jurisdicionais deste inquérito.


20.° O que não veio a acontecer.


21.° Aliás, conforme se pode ler no Douto Despacho proferido pelo Tribunal de Investigação Criminal de ... aquando da receção do requerimento de abertura de instrução este veio ao declarar-se incompetente, conforme se pode ler do Douto Despacho que se junta sob o documento n.° 2 que se dá para os devidos reproduzidos: "(...) Todavia, e em face da regra especial decorrente do artigo 120.° da LOSJ, não é assim que sucede, sendo competente, na realidade, o Tribunal Central de Instrução Criminal. Como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-01-2009, proc. número 3003/08-1, relatado por Ribeiro Cardoso, disponível em www.dgsi.pt "O estabelecimento das regras relativas à competência em matéria penal tem uma finalidade essencial que preside e tem de conformar a organização: permitir determinar ex ante o tribunal que há-de decidir um caso penal, evitando-se o risco de manipulação da competência, e especialmente, que a acusação possa escolher o tribunal que lhe parecer mais favorável, respeitando o princípio do juiz natural." Enfim, pelas razões que se deixam expostas se considera que, à luz das normas legais, a situação dos autos, com o seu objeto atual, é enquadrável na previsão legal do artigo 120.°, número 1, alíneas d) e f), da LOSJ, supratranscrito, sendo a competência para realizar a instrução reservada ao Tribunal Central de Instrução Criminal. A incompetência do tribunal pode ser oficiosamente conhecida, podendo-o ser nesta fase (art.º 32.°, n.º 1, do Código de Processo Penal).


Face ao exposto, há razão para considerar que este tribunal de instrução criminal da Comarca de ... não é competente para realizar a instrução nos presentes autos – art.º 120.°, número 1, alíneas d) e f), da LOSJ, antes o sendo o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). Esta declaração de incompetência não se reporta a competência material (este tribunal e o TCIC são ambos tribunais da área da instrução criminal) mas antes funcional, relacionada com a especificidade das matérias objeto do processo, e razão de criação de um tribunal especializado em função das mesmas."


22.° Dispõe o art.º 119.° alínea e), do Código de Processo Penal que: "Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:


e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.°2, do artigo 32. °(...)"


23.° Assim entende-se que todos os atos praticados pelo Juiz de Instrução de ... o foram em violação do art.º 58.° do EMP, e dos artigos 119.° e 120.° da LOSJ e padecem de nulidade insanável advinda do disposto na alínea e), do artigo 119.°, do Código De Processo Penal;


24.° Atos nos quais se inclui o Douto Despacho de medida de coação aplicada em 13 de julho de 2022 ao Arguido BB, encontra-se ferido de nulidade em consequência de que a prisão do Arguido é uma prisão ilegal.


Vê-se, pois, assim a Requerente Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Presidente do STJ, compelida a lançar mão deste expediente processual, para que V.ª Ex.ª, na mais alta e condigna ponderação, afira da bondade e do (de)mérito dos fundamentos por si aduzidos, e para que a final se cumpra o desígnio do exercício deste direito, "dando-se Corpo ao arguido", com a dimanação de mandados de ordem de libertação imediata, repondo-se a legalidade!


Nestes termos e nos mais de Direito, deve a presente providência de habeas corpus ser julgada procedente.


1.2. Pelo Exmo. Juiz do Tribunal Judicial da comarca de ..., Juízo Central Criminal, J... ., foi prestada a informação a que alude o disposto no art.º 223.º n.º 1, do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:


Ao arguido BB, foi aplicada a medida de cocção de prisão preventiva, por despacho proferido no dia 14 de Julho de 2022, em primeiro interrogatório judicial de arguido (cfr. fls. 5868 a 5898), mantida em despacho de pronúncia de 21/03/2023 e pelos ulteriores despachos de reexame de 19/06/2023, 19/09/2023 (este último de fls. 7961) e 18/12/2023 (ref.ª 98554833).


Nos presentes autos procedeu-se à realização da audiência de julgamento, cuja última sessão teve lugar no passado dia 21de Dezembro de 2023, com observância dos formalismo legais, em que, para além do arguido, são arguidos CC e DD; EE, FF; GG; HH; II; JJ; KK; LL, MM; NN; OO; PP; PP, QQ; RR; SS e TT.


Por acórdão proferido nos presentes autos no dia 12 de Janeiro de 2024 (inserido no sistema citius na madrugada de 13 de Janeiro de 2024 após a revisão de texto das 192 páginas) o arguido BB e os arguidos PP, QQ, RR e SS foram condenados, em co-autoria e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 21.º, n.º 1, por referência às tabelas I-B e I-C do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro nas penas de 8 anos e 6 meses de prisão.


No referido acórdão foram conhecidas as nulidades invocadas pelos arguidos em sede de alegações, designadamente, do arguido BB agora invocada.


Por decisão proferida aquando da leitura do acórdão, no dia 12 de Janeiro, por se manterem os pressupostos de facto e direito e não ter sido ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva, foi mantida a medida de coação de prisão preventiva aos arguidos PP, BB, QQ e RR.


Remeta-se, de imediato ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciação do seu Presidente - art.º 223.º n.º 1 do Código de Processo Penal.


Para melhor esclarecimento envie certidão do acórdão proferido nos presentes autos, despacho de reexame de 18/12/2023 e do presente despacho”.


1.3. Convocada a 5.ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça, foram notificados o Ministério Público e o Defensor do requerente.


Com observância do disposto no art.º 223.º n.º 2 e 435.º, do CPP, teve lugar a audiência, após o que reuniu a Secção, tendo deliberado nos termos infra descritos.


2. Factos provados são os que constam do relatório.


3. O Direito


Num estado de direito democrático, como é a República Portuguesa (art.º 2.º, da Constituição da República Portuguesa – CRP), a liberdade nas suas várias vertentes, constitui um valor essencial para qualquer cidadão. Por ser assim, encontra-se o direito à liberdade consagrado no art.º 27.º n.º 1, da CRP “Todos têm direito à liberdade (…)”, como direito fundamental.


Todavia, uma vez que a liberdade de alguns pode colidir com a liberdade de outros, ou mesmo pôr em causa demais interesses constitucionalmente protegidos, não sendo por isso um direito absoluto, é a própria Lei Fundamental a prever expressamente os casos em que é legítima a privação total ou parcial da liberdade (princípio da tipicidade das situações de privação total ou parcial da liberdade).


Assim, nos termos prescritos no citado art.º 27.º, da CRP para o que ora releva,


“(…)


2-Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.


3. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:


a) Detenção em flagrante delito;


b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;


(…)”.


Podendo, todavia, ocorrer casos de aplicação ilegal de prisão, como meio de garantir a rápida libertação do arguido, consagra a nossa Constituição, o direito fundamental ao Habeas Corpus, preceituando o art.° 31.° o seguinte:


“1 - Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.


2 - A providência de Habeas Corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos.


3 - O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória”.


A figura do Habeas Corpus, consiste numa providência expedita contra a prisão e detenção ilegal, configurando-se, por isso, como garantia privilegiada do direito à liberdade. (Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira in “CRP Anotada”, I Vol. Coimbra Editora, pág. 508). No mesmo sentido o Ac. do STJ de 11-05-2023, proc. n.º 4/22.2GMLSB-B.S1, in www.dgsi.pt. ao afirmar que


Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o Habeas Corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito”.


Em linha com o prescrito na Constituição, prevê o art.º 222.º, do CPP o seguinte:


“1- A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.


2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;


b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”


Impõe-se referir, nos termos assinalados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2023, proc. n.º 27/21.9PJLRS-C.S1, in www.dgsi.pt. que “A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art.º 222.º, n.º 2, do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.


Na verdade, como refere Cláudia Cruz Santos, inPrisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, RPCC, Ano 10, n.º 2, 2000, pág. 310, o “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus”.


Acresce, consoante resulta do prazo concedido para ser proferida decisão (8 dias) e da própria tramitação do respectivo procedimento (art.º 223.º, do CPP), que a mencionada providência assume carácter célere, tendo em vista a obtenção de uma decisão que rapidamente reponha a legalidade no caso de privação ilegal da liberdade, não sendo confundível com o recurso.


O controlo feito pelo Supremo Tribunal de Justiça é exercido apenas em face da decisão que está na origem da requerida providência, não envolvendo valoração dos elementos de prova com base nos quais se decidiu, sendo certo que o habeas corpus, não tem como escopo sindicar o mérito ou os erros de direito da decisão que privou o arguido da liberdade (Vd. Ac. do STJ de 05-09-2019, proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1-A, in www.dgsi.pt). (Nossos sublinhados).


Quanto à substância, a figura do habeas corpus «consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade», podendo ser requerido «contra decisões irrecorríveis, (…) mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal. É uma providência que visa, na sua essência, assumir-se como uma sólida garantia do direito à liberdade, à legalidade, à dignidade da pessoa. Como tem sido assinalado pelo Supremo Tribunal de Justiça, figura do habeas corpus tem «carácter excecional, visto se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excecional, haja ou não ainda sido aberta a via dos recursos ordinários (Acórdão do STJ de 03-12-2014, proc. n.º 122/13.TEFLRS-A.S1).


No presente caso, o requerimento de habeas corpus, foi requerido por AA, cidadã no gozo dos seus direitos políticos (artigos 32.º n.º 2 da CRP e 222.º n.º 2 do CPP), relativamente ao arguido BB.


Invoca a requerente a existência de nulidade, nos termos do art.º 119.º do CPP, por violação das regras de competência do tribunal (artigos 58.º do Estatuto do Ministério Público e dos artigos 119.º e 120.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário - LOSJ), visto ter sido o Juiz de Instrução Criminal de ... quem aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva em 13 de Julho de 2022, não tendo mesmo competência para o efeito, sendo como tal ilegal a prisão do arguido BB.


Como acima se viu, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, pode ter como fundamento “Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente” (alínea a), do n.º 2, do art.º 222.º do CPP).


Sucede que, como tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência, quando a lei se refere a entidade incompetente, está-se a referir “à prisão que é determinada por outra autoridade que não um juiz (prisão a non judice), este fundamento não inclui a prisão determinada por juiz incompetente, pois o juiz incompetente também pode ordenar a prisão preventiva (art.º 33.º, n. º 3)” (Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª Edição, pág. 635).


Na verdade, segundo refere Maia Costa, inCódigo de Processo Penal, Comentado”, de Henriques Gaspar et al., Almedina, 2.ª Edição, pág. 855, a norma da alínea a), do n.º 1 do art.º 222.º, do CPP não tem em vista a incompetência funcional (como parece pressupor a requerente). O n.º 2 (do artigo 222.º do CPP) elenca as situações que podem fundamentar a concessão do habeas corpus. Este elenco é taxativo, dado o carácter excepcional da providência. A primeira situação é a incompetência da entidade que efectuou ou ordenou a prisão. A incompetência compreende apenas a de carácter material, a falta de jurisdição; ou seja, haverá incompetência apenas se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, isto é, se não tem o estatuto de juiz. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.10.2002, proc. n.º 3420/02). Nossos sublinhados.


E é assim, porque, a “intervenção de juiz diferente do competente segundo as regras da repartição funcional de competências não envolve nenhuma diminuição de garantias para o arguido e, por isso, não é fundamento de habeas corpus”. A ilegalidade da prisão que fundamenta o habeas corpus radica sempre numa situação de abuso de poder, “pressuposto que se não verifica nos casos de mau entendimento dos juízes sobre a distribuição das respectivas tarefas no âmbito de um mesmo processo (…)”. (Acórdãos do STJ de 25-06-2020, proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1 e de 14.07.2015, proc. n.º 2823/09.6PCCBR-A, em www.dgsi.pt).,


Ora, no presente caso, não somente a medida de coação, prisão preventiva, foi aplicada ao arguido pelo juiz de instrução criminal (artigos 119.º da LOSJ e art.º 202.º n.º 1 do CPP), como a providencia de habeas corpus, face ao seu carácter excepcional, destinada apenas a apreciar a privação ilegal da liberdade, não é o meio adequado para se arguirem nulidades ou se impugnarem decisões judiciais - o que deve ser feito através do recurso ordinário.


Assim, uma vez que a privação da liberdade foi determinada por autoridade competente, por facto que a lei permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração, é de indeferir a petição de habeas corpus apresentada pela requerente.


4. Decisão


Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus requerido por AA relativamente ao arguido BB.


Custas pela Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCS.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 2024-02-22


Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pela Relatora, sendo electronicamente assinado pela própria, pelos Exmos. Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Exma. Senhora Juíza Conselheira Presidente (art.º 94.º n.º 2, do CPP).

Albertina Pereira (Relatora)

Leonor Furtado (1.ª Adjunta)

João Rato (2.º Adjunto)

Helena Moniz (Presidente)