Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
585/22.0YRLSB.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: UNIÃO DE FACTO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
NACIONALIDADE
REQUISITOS
Data do Acordão: 01/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - A revisão de sentença estrangeira com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é de natureza formal, envolvendo tão só a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma;
II - Para a revisão da sentença não podem ser adicionados, e como tal exigíveis, outros requisitos para além dos indicados no art. 980.º do CPC, como a exigência da adequação da ação à finalidade pretendida pela parte, irrelevando assim aferir da idoneidade da decisão revidenda para a obtenção da nacionalidade portuguesa
III - Só tendo cabimento a exceção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública, quando se verifique uma contradição flagrante, com uma ofensa grosseira e correspondente atropelo dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional, e em conformidade a conceção de justiça material, tal como é entendida pelo Estado Português.
IV - Na ordem jurídica portuguesa está regulada a união de facto, com similitude à união estável brasileira, ainda que com efeitos e contornos não exatamente coincidentes, mas que em nada afetam os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, permitindo esses mesmos princípios que seja confirmada a decisão revidenda, na ordem jurídica portuguesa.
Decisão Texto Integral:


 

Revista 585/22.0YRLSB.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I- RELATÓRIO
1. AA, de nacionalidade portuguesa,  e BB vieram interpor ação declarativa, com processo especial nos termos do art.º 978 e ss., do CPC, pedindo a revisão e confirmação de sentença declaratória de reconhecimento de união estável, de 26.10.2021, do Estado do Rio de Janeiro, de acordo homologado pelo Poder Judiciário, declarando a existência de União Estável a partir do ano de 2017, sob o regime de separação total de bens.

2. Instados para esclarecer qual a finalidade que pretendem obter na ordem jurídica portuguesa com a revisão da sentença estrangeira, vieram os Requerentes que pretendem tal revisão para posterior instrução e requerimento de nacionalidade para o Requerente BB, nos termos do art.º 3, da Lei da Nacionalidade, Lei 37/21, de 3.10 e posteriores alterações.

3. Face ao alegado nos esclarecimentos prestados pelos Requerentes, foram os mesmos informados da possibilidade de vir a ser proferida decisão que não atendesse à sua pretensão[1].

4. Cumprido o disposto no art.º 982, n.º1, do CPC, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido de a ação ser julgada improcedente, ou, no mínimo ressalvar que não poderá ter consequências na aquisição da nacionalidade.

Por sua vez, os Requerentes pronunciaram-se no sentido que a união estável existente no Brasil foi declarada por sentença transitada em julgado e não por escritura declaratória de união estável, devendo o pedido de revisão proceder.

5. Foi proferido Acórdão da Relação de Lisboa que julgou a ação totalmente improcedente, com voto de vencido.

6. Inconformados vieram os Requerentes interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: (transcritas)

A. Vem o presente recurso interposto do  Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 5 de abril de 2022, nos termos do qual aquele tribunal entendeu considerar improcedente a ação de reconhecimento de sentença estrangeira intentada pelos Recorrentes, por entender que o “(…) o reconhecimento da sentença revidenda na ordem jurídica nacional ofende a Ordem Pública Internacional do Estado Português”, com a seguinte fundamentação: “(…) considerando que os requerentes declaram expressamente, no requerimento inicial, que a revisão e confirmação do acórdão brasileiro que constitui objeto da presente ação se destina a instaurar processo de aquisição da nacionalidade junto da Conservatória de registo civil, verifica-se que a presente ação é absolutamente inidónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura, visto que a ação judicial que correu termos no Brasil não foi intentada contra o Estado Português, nem aliás o foi contra quem quer que fosse, não tendo réus ou requeridos, não foi objeto de qualquer contraditório, nem os requerentes fizeram prova da existência da situação de união estável que invocaram, tendo o Tribunal brasileiro decidido com base naquilo que os próprios requerentes declararam.”

B.      O Tribunal a quo decidiu pela improcedência da presente ação por entender que o reconhecimento de uma sentença estrangeira que, ela própria, reconhece e confirma a existência de uma relação de “união estável”, atenta contra a Ordem Pública Internacional do Estado Português, uma vez que a ação correspondente à sentença revidenda não foi, por um lado, intentada contra o Estado Português e, por outro lado, não é apta à pretendida finalidade de atribuição da nacionalidade portuguesa a um dos Recorrentes.

C.      Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, misturando conceitos, procedimentos e sua idoneidade e finalidades da ação de revisão de sentença estrangeira com o interesse em agir dos próprios Recorrentes e o que deve ser entendido como violador da Ordem Pública Internacional do Estado Português, sendo de subscrever o pugnado no voto de vencido da Veneranda Desembargadora Micaela Sousa: “Votei vencida, quer por não acompanhar a orientação atinente a uma possível falta de interesse em agir dos requerentes por inadequação deste meio processual para efeitos de obtenção da nacionalidade portuguesa, quer por não identificar na concessão da revisão qualquer ofensa à Ordem Pública Internacional do Estado Português. Conforme sustentei no acórdão proferido em 28 de Setembro de 2021, no processo n.º 1274/21.9YRLSB, de que fui relatora, ainda que a propósito da revisão de escritura pública de declaração de união estável outorgada no Brasil, nada impede que uma escritura ou, por maioria de razão, uma sentença estrangeira proferida no âmbito de ação declarativa de reconhecimento de união estável, possa ser objeto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos regulados pelo artigo 978º e seguintes do Código de Processo Civil, sem que na aferição da verificação dos pressupostos da sua confirmação deva ser atendida a probabilidade de a finalidade última dos requerentes ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, posto que venha apenas pedida a revisão e confirmação da escritura/sentença, pois, ainda que possa não ter utilidade mediata ou imediata para os requerentes, não há razões para não admitir que vigore em Portugal. Nesta decorrência, e porque na aferição da violação da Ordem Pública Internacional do Estado Português o que releva não é a propriamente a decisão, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento, ou seja, este apenas será de rejeitar se o resultado da sentença chocar flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico, entendo que, no caso, não obstante a finalidade visada (que nunca poderá ser alcançada pela mera revisão da sentença em causa), não é possível concluir por uma violação da Lei da Nacionalidade.”

D.      Pelo Acórdão recorrido o Tribunal a quo considerou dever determinar a improcedência da ação intentada pelos Recorrentes por considerar que a sua revisão e confirmação seria violadora da Ordem Pública Internacional do Estado Português.

E.      Verifica-se que o Tribunal a quo decidiu pela improcedência da ação por entender que, considerando que a ação de revisão de sentença – ainda que enquanto ação de simples apreciação – tem que ter um determinado objetivo ou finalidade (o esclarecimento daquela concreta situação jurídica na ordem nacional) para que haja interesse em agir e, por outro lado, sendo, no caso concreto, o objetivo dos Requerentes, ora Recorrentes, iniciar o processo de aquisição da nacionalidade do Recorrente BB, a revisão da sentença estrangeira pelo Tribunal a quo violaria a Ordem Pública Internacional do Estado Português, porquanto não é o meio processualmente idóneo para o cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade, no que manifestamente não se pode concordar.

F.      Desde logo, porque como bem é referido no voto de vencido da Veneranda Desembargadora Micaela Sousa, de acordo como disposto nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, para que se afira da procedência ou improcedência de uma ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira não é necessário apurar da utilidade mediata ou imediata dessa mesma revisão para os Requerentes, devendo o Tribunal bastar-se com a verificação de certos pressupostos formais.

G.      O critério da não ofensa à Ordem Pública Internacional do Estado Português apenas deve ser tomado em consideração para a própria decisão de revisão e confirmação da sentença estrangeira, com vista a aferir se da sua conformidade com os princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, e não para os potenciais benefícios legais que os Requerentes possam querer retirar da sentença assim revista e confirmada.

H.     Com efeito, o critério da Ordem Pública Internacional do Estado Português apenas impede a revisão e confirmação, por exemplo, de uma sentença que decretasse um casamento de um adulto e um menor, que é proibido no nosso país.

I.       Ora, no caso em apreço e analisando o Acórdão recorrido, verifica-se que em  momento algum o Tribunal a quo afirma que a decisão revidenda, per se, é contrária a algum princípio da Ordem Pública Internacional do Estado Português.

J.       Na verdade, não obstante tecer longas considerações sobre as similitudes e diferenças entre a figura da união estável brasileira e a união de facto portuguesa, o Tribunal a quo não afirma, nem poderia afirmar, que o reconhecimento da figura da união estável por um Tribunal português ofenderia a Ordem Pública Internacional do Estado Português,  já que a mesma corresponde, no essencial, à figura da união de facto e, no que concerne aos efeitos patrimoniais diversos dos previstos no caso da união de facto, também os mesmos em nada contendem com a Ordem Pública Internacional do Estado Português, pelo que nada impedia assim o reconhecimento da sentença revidenda.

K.      Como bem reconhece o Tribunal a quo, o próprio Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou neste sentido, decidindo pela admissibilidade da revisão e confirmação da escritura pública que reconhece a existência de uma união estável, por Acórdão proferido em 9.08.2020, no âmbito do processo n.º 1884/19.4YRLSB.S1.

L.      Sendo que, no caso em apreço nos presentes autos, os Requerentes foram mais longe e submeteram essa mesma escritura a homologação por parte de um Tribunal, submetendo a revisão a própria sentença homologatória proferida pelo Tribunal brasileiro e não apenas a escritura pública de declaração de união estável.

M.     Assim se tendo que concluir desde logo pela admissibilidade da revisão e confirmação da decisão sujeita a apreciação nos presentes autos, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, devendo a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que considere a ação procedente, revendo e confirmando a decisão revidenda.

N.      Por outro lado, e conforme já aludido supra, para a decisão a proferir nos presentes autos não releva saber se a mesma é suficiente e se constitui o meio idóneo para a atribuição de nacionalidade portuguesa.

O.      Com efeito, o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade estabelece que a nacionalidade portuguesa pode ser requerida pelo “(…) estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”

P.      No entanto, quer do mencionado normativo, quer do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º237-A/2006, de 14 de dezembro, consta qualquer exigência de que a decisão de reconhecimento da união de facto seja proferida por um tribunal cível português.

Q.      A Lei apenas determina que, para aquisição de nacionalidade, a situação de união de facto tem que ser reconhecida por um tribunal cível, não especificando igualmente que tipo de ação tem que ser intentada com vista a esse reconhecimento nem qual é o Tribunal competente.

R.      Ora, no caso dos autos resulta claro que os Requerentes, residindo no Brasil, intentaram no tribunal cível competente daquele país uma ação para reconhecimento da escritura de união estável que existe naquele ordenamento jurídico, não sendo lógico que seja um tribunal cível português a aferir se existe ou não coabitação e comunhão de leito e economia num outro Estado soberano.

S.      Mas mais, também não cabe aos Tribunais Portugueses, no âmbito de uma ação de revisão de sentença estrangeira, aferir se a mesma é idónea ou suficiente para a aquisição da nacionalidade portuguesa, porquanto tal está dependente de procedimento administrativo que terá que ser decidido pela autoridade competente para tal, conforme decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 29.01.2019, no âmbito do processo n.º 896/18.0YRLSB.S1.

T.      Termos em que, também por estes fundamentos deverá ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que conceda provimento à ação, revendo e confirmando a sentença homologatória de escritura pública de união estável dos Recorrentes.

7. Cumpre apreciar e decidir.
*
II – ENQUADRAMENTO FACTO-JURIDICO
1. Dos factos.
Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1- A requerente AA nasceu em .../.../1994 e é filha de CC e de DD.
2- Os requerentes intentaram “ação declaratória de reconhecimento de união estável consensual” que correu termos na ... vara de Família da C..., Brasil, pedindo que “seja reconhecida a existência de união estável, sob o regime de separação total de bens, entre os autores, iniciada em 17 de novembro de 2017.”
3- Na ação referida em 2- não indicaram os requerentes qualquer entidade ou pessoa para ali intervir na qualidade de ré ou requerida.
4- No âmbito do processo referido em 2-, em 08-02-2021 foi proferida sentença com o seguinte teor: “Homologo o acordo”.
5- A sentença referida em 4- foi objeto de “embargos de declaração”, deduzidos pelos ora requerentes, pedindo que daquela sentença passe a constar “a expressa e específica declaração de reconhecimento de união estável iniciada desde 17 de novembro de 2017”.
6- No âmbito do mesmo processo referido em 2-, em 20-10-2021 pela 23ª Camara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro foi proferido acórdão, em cujo dispositivo consta o que segue:
“… DAR PROVIMENTO ao recurso, para esclarecer que a união estável de AA e BB, nos termos do pacto homologado pelo Poder Judiciário existe desde 17 de novembro de 2017, sob o regime de separação total de bens.”
7- O acórdão referido em 6- transitou em julgado em 26-10-2021.

2. Do Direito.

2.1. A questão tal como surge configurada prende-se em saber se estão reunidos os pressupostos necessários para a revisão de sentença estrangeira, relativamente à sentença/Acórdão apresentado para tanto.

Aliás, sem prejuízo do que mais se dirá, atente-se que no requerimento inicial, o pedido formulado pelos Requerentes, ora recorrentes, reportou-se tão só à revisão da sentença a fim de produzir efeitos em Portugal, tendo a referência à aquisição de nacionalidade sido realizada a solicitação do Tribunal, indicando que pretendiam fazer a respetiva utilização em termos de instrução e requerimento com vista a tal obtenção, e assim perante duas realidades diversas, que não se confundem, só a primeira estando em causa nos presentes autos.

2.2. No Acórdão sob recurso, no entendimento que vez vencimento, na análise dos requisitos necessárias para a confirmação e revisão de sentença constantes do art.º 980, do CPC, apresentado um acórdão proferido por Tribunal de recurso brasileiro que reconheceu a existência de uma união estável entre os requerentes desde 17.11.2017, consigna-se ser amplamente debatido na Jurisprudência saber se a “mencionada escritura” está ou não sujeita a este processo especial, mas também em sentença homologatória de reconhecimento da união estável assente nas declarações das pessoas que assim vivem, tendo como bom o sentido de não deverem tais situações estar abrangidas por aquele processo.

Afastada a exceção dilatória de falta de interesse em agir, considera-se em conformidade, que a inadequação da sentença revidenda para alcançar o efeito pretendido na ordem jurídica portuguesa prende-se com o mérito da causa, pelo que tendo como único objetivo a obtenção da nacionalidade portuguesa, em desrespeito pelos requisitos consagrados na Lei da nacionalidade, ofende a Ordem Pública Internacional do Estado Português, al) f, do art.º 980, do CPC, obstando à pretendida revisão.

2.3. Os Recorrentes manifestam o seu desacordo, invocando que para aferir da procedência de uma ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira não é necessário apurar da utilidade mediata ou imediata dessa mesma revisão, nem é apontado que a decisão revidenda seja contrária a algum princípio da Ordem Pública Internacional do Estado Português, pois a união estável, com as diferenças que possa ter com a figura da união de facto, em nada contende com a Ordem Pública Internacional do Estado Português.

2.4. Apreciando, diz-nos o  artigo 978.º do CPC, sob a epígrafe “necessidade da revisão”, que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada” (nº1);  e que: “não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”.

Discutiu-se na Jurisprudência se expressão “decisão sobre direitos privados”, constante do aludido no art.º 978, do CPC devia ser interpretada por forma a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciárias, quer por autoridades administrativas, e nessa conformidade, quanto à escritura pública declaratória de união estável de acordo com o direito brasileiro, correspondendo a respetiva celebração a um ato administrativo em que a intervenção notarial tinha a natureza de caucionamento, por forma a serem desencadeados efeitos, como no caso de uma declaração judicial em sentido estrito, com o devido respaldo nos artigos 1723.º e seguintes do Código Civil Brasileiro, de modo a que fosse admitida a sua revisão.

A querela mostra-se resolvida pelo Acórdão de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2020, publicado no Diário da Republica, Iª série, de 24.11.2022, no qual se consignou: “A escritura declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados, daí que não seja suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”.

2.4.1. Por seu turno, o artigo 980.º do mesmo diploma estabelece como requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira, que: não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão, a); tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida, b); provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses, c); não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a Tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição, d); o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, e); contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, f).

A revisão de sentença estrangeira com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é de natureza formal, envolvendo tão só a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma[2].

Daí que no contexto enunciado, não possam ser adicionados, e como tal exigíveis, outros requisitos para além dos indicados, como a exigência da adequação da ação à finalidade pretendida pela parte[3], pelo que como aliás já se aflorou, irrelava aferir da idoneidade da decisão revidenda para a obtenção da nacionalidade portuguesa, sendo certo que não estavam os Recorrentes, em sede de requerimento inicial, adstritos ao dever de indicar a finalidade próxima ou última da pretendida revisão, como aliás não fizeram, mas também realizada a revisão não pode retirar a sua suficiência para a aquisição da nacionalidade.

Com efeito, a Lei n.º 37/81, de 03 de outubro, com as suas posteriores alterações prevê requisitos e pressupostos de que depende a “aquisição em caso de casamento ou união de facto”, estatuindo o artigo 3.º nomeadamente:   (…) 3 -O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível (…)”[4], mais importando a devida equiparação entre os conceitos de união de facto, e respetivos efeitos nas ordens jurídicas portuguesa e brasileira[5], o que reafirme-se, extravasa o âmbito destes autos.

2.4.2. Sabendo-se que se impõe ao tribunal o conhecimento oficioso da verificação dos pressupostos a que se referem as alíneas a) e f) do citado art.º 980, conforme o disposto no art.º 984, ambos do CPC, de igual modo, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado das suas funções o Juiz poderá apurar se falta alguns dos requisitos exigidos pela alíneas, b), c), d) e e).

No caso sob análise não se mostram questionados os requisitos indicados, com exceção do resultante da alínea f), no que concerne ao conteúdo da sentença ser manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional o Estado Português.

Em traços breves, não encontramos na lei a definição de ordem pública internacional, pelo que como conceito indeterminado, carece de ser preenchido em termos valorativos em cada caso.

Sublinhe-se que importa, sobretudo, aferir o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, e não tanto os princípios consagrados na lei estrangeira que subjazeram à decisão, visando-se, desta forma, impedir que para o caso concreto seja obtido um resultado intolerável, não bastando que a solução dada ao caso estrangeiro seja divergente da do direito interno, impondo-se, sim que seja manifestamente incompatível, só tendo cabimento a exceção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública, quando se verifique uma contradição flagrante, com uma ofensa grosseira e correspondente atropelo dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional, e em conformidade a conceção de justiça material, tal como é entendida pelo Estado[6].

Ora no concerne à ordem jurídica portuguesa, a união de facto está regulada na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, a qual prevê medidas de proteção a unidos de facto há mais de dois anos, com similitude à união estável brasileira, ainda que com efeitos e contornos não exatamente coincidentes, em nada afetam os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, permitindo esses mesmos princípios que seja confirmada a decisão revidenda, na ordem jurídica portuguesa.

Há assim de concluir que, na situação em apreço, se verificam todas as condições exigidas pela lei para a revisão e confirmação da sentença estrangeira.
3. Em conformidade, procedem as conclusões formuladas pelos Recorrentes.

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III – DECISÃO
Nestes termos, decide-se conceder a revista, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a pela a que confirma o acórdão proferido, pela 23ª Camara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 20-10-2021, transitado em julgado em 26-10-2021, que declarou a união estável de AA e BB, nos termos do pacto homologado pelo Poder Judiciário existe desde 17 de novembro de 2017, sob o regime de separação total de bens.

Custas pelos Recorrentes, nos termos do art.º 527, n.º1, parte final, do CPC.


Lisboa, 31 de janeiro de 2023


Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Graça Amaral

                                                          

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Julgando inverificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir; improcedência da ação; decretando a revisão e conformação da sentença revidenda, com a ressalva expressa que a decisão do Tribunal da Relação não tinha reflexos para efeitos de aquisição de nacionalidade.
[2] Cf. Ac. STJ, 23.09.2021, processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Ac. STJ de 15.09.2022, processo n.º 924/22.4YRLSB.L1, in www.dgsi.pt.

[4] Relevando, ainda, o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa aprovado pelo Decreto-lei n.º 237-A/2006, de 14/12, mormente o seu art.º 14º.
[5] Cf. o já aludido Ac. de 15.09.2022
[6] Cf. Acórdão do STJ de 22.04.2021, processo n.º 78/19.3YRLSB.S1, e Acórdão do STJ, de 23.09.2021, processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, com ampla referência jurisprudencial  e doutrinária, que nesta parte se seguiram de perto, in www.dgsi.pt.