Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P4426
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOURENÇO MARTINS
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
CRIME DE RESULTADO
Nº do Documento: SJ200301290044263
Data do Acordão: 01/29/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J MATOSINHOS
Processo no Tribunal Recurso: 303/00
Data: 07/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - O dever de cooperação entre cônjuges contempla a "obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram" (artigo 1674º do CCivil).
II - O dever de auxílio previsto no artigo 200º do CPenal tem como fundamento a solidariedade social devida àqueles que se encontram em perigo no que toca a bens jurídicos eminentemente pessoais, a vida, a integridade física ou a liberdade.
III - Em face do critério tradicional, o crime de omissão de auxílio do artigo 200º do CPenal - correspondente ao artigo 219º da versão originária do CP82 - é considerado como um crime de omissão própria ou pura, também designado de mera omissão ou de omissão simples.
IV - Perante uma situação de hemorragia decorrente de aborto espontâneo, carecida de assistência médica, nem a sua gravidade, nem o arrastamento da situação, foram de molde a repercutir-se em lesão da integridade física da vítima.
V - O arguido não tem que ser responsabilizado criminalmente pela violação do dever de socorro e auxílio a que estava juridicamente obrigado para com o seu (ao tempo) cônjuge, uma vez que não se está perante um crime de resultado que lhe competia evitar ou impedir - artigo 10º, n.º 2, do CPenal.
V - A situação de "grave necessidade" a que o artigo se refere pressupõe a impossibilidade de a pessoa a socorrer, por si só, poder afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia.
VI - Não se verifica a indispensabilidade do auxílio se se provou que foi a própria ofendida quem "telefonou ao número nacional de urgência 112, e foi conduzida por uma ambulância ao mencionado Hospital, ambulância que em cerca de 15 minutos acorreu à residência", não havendo qualquer indício de que o recorrido a tenha impedido de antes o ter feito.
VII - A indiferença do então marido é censurável a vários títulos, porém, tal censura não pode ser a penal, pois que não se realiza o ilícito-típico.
Votado em 29.01.03
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. No P.º comum n.º 303/00.4PRPRT, do 1º Juízo Criminal de Matosinhos, foi submetido a julgamento, mediante acusação do Ministério Público, o arguido:
A, divorciado, gerente comercial, nascido a 11.03...., na freguesia de Pinhal do Norte, concelho de Carrazeda de Ansiães, filho de .. e de ..., e residente na Travessa ..., 2º dto., Leça do Balio, Matosinhos,
sob imputação da autoria material de um crime de omissão de auxilio, pp. pelo artigo 200º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (1).
Após audiência de julgamento, o Colectivo condenou o arguido, por acórdão de 9 de Julho de 2002, como autor material do crime de omissão de auxílio, pp. pelo artigo 200º, n.º 1, do Código Penal, na pena de noventa dias de multa à taxa diária de cinco euros.
2. Não se conformou com o decidido a Digna Magistrada do Ministério Público junto dos Juízos Criminais, concluindo assim a sua motivação (transcrição):
"1 - O arguido A foi condenado nestes autos, pela prática, em autoria material de um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art. 200º nº 1 do Código Penal na pena concreta de noventa dias de multa à taxa diária de cinco euros;
2 - Tendo em atenção as regras da punição consagradas nos arts. 70º e 71º do Código Penal afigura-se desajustada a pena concreta aplicada;
3 - Considerando a regra do art. 70º do Código Penal deveria, tal como foi, ser aplicada ao arguido uma pena não detentiva da liberdade;
4 - Porém, as exigências de prevenção geral revelam-se muito elevadas já que tem vindo a ocorrer com maior frequência ilícitos criminais de natureza igual ao praticado pelo arguido, sendo certo que o cidadão comum vem manifestando um sentimento de desinteresse pelo próximo e pelas suas necessidades passando cada vez mais a preocupar-se consigo mesmo, esquecendo-se de que necessita dos outros concidadãos para sobreviver;
5 - Não obstante o arguido ser delinquente primário, as exigências de prevenção especial também se revelam acentuadas já que o arguido demonstrou completo desinteresse e frieza perante os apelos da ofendida que sangrava abundantemente e que pedia ajuda. Ao invés de a auxiliar (como lhe era exigido) o arguido ordenou à ofendida que se calasse e que o deixasse descansar, demonstrando assim frieza de carácter e indiferença por valores básicos que norteiam a sociedade em que vivemos;
6 - O dolo assume a sua forma mais intensa - a de dolo directo -, o arguido tinha plena consciência da ilicitude do facto e não confessou a prática do mesmo nem revelou qualquer arrependimento;
7 - Acresce ainda que não ocorrem no caso quaisquer circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - art. 72º do Código Penal;
8 - Tendo em consideração as circunstâncias em que ocorreu o ilícito, as exigências de prevenção, a culpa e a ilicitude evidenciadas, deveria o arguido ter sido condenado em pena de prisão não inferior a 8 (oito) meses, suspensa na sua execução por período não inferior a 2 (dois) anos, nos termos do preceituado no art. 50º do Código Penal.
9 - Mesmo que assim se não entenda e se considere que a pena de multa é suficiente sempre o arguido deveria ter sido condenado em quantitativo diário superior ao fixado na sentença. Tendo em conta que não se apurou, em concreto, o rendimento médio do arguido mas que se deu como provado que o mesmo aufere salário compatível com o cargo de gerente de um restaurante, o quantitativo diário deveria ter sido fixado em montante não inferior a 8 (oito) €;
10 - Em suma, ao condenar o arguido nos termos em que o fez, violou o Tribunal o preceituado nos arts. 40º, 47º, n.º 2, 70º e 71º, todos do Código Penal.
Respondeu o recorrido a pedir a manutenção do que foi decidido.
3. Neste STJ, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto promoveu a realização do julgamento.
Após exame preliminar, o recurso foi admitido e colheram-se os vistos legais. Procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo, tendo sido produzidas alegações orais.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto salientou a conduta chocante do arguido, verdadeiro causador do incidente, entendendo que a pena a aplicar deve ser a de prisão, suspensa com o dever de indemnização a instituição de apoio à vítima.
O Exmo. Advogado constituído considera que não sendo o comportamento do arguido "exemplar", o Ministério Público exorbita nos seus pedidos. Em rigor, não se verifica o crime de omissão de "auxílio necessário", devendo, quando muito, ser mantida a decisão.
Cumpre ponderar e decidir.
II
Eis a matéria de facto que o Colectivo considerou provada e não provada.
"Factos Provados
O arguido e a ofendida B eram casados entre si, desde há 6 anos, com referência à data em que foi deduzida a acusação (17/12/2001), tendo nascido dessa relação uma filha, então com 3 anos de idade. Actualmente estão divorciados.
O arguido sempre teve para com a ofendida comportamentos agressivos, mesmo antes de contraírem casamento, sendo conflituosa a relação conjugal, e ainda mais deteriorada no último ano de vida em comum entre ambos.
Desde essa altura que o arguido originou episódios de violência no seio familiar, molestando física e psicologicamente a ofendida sua mulher, contra quem proferia ameaças de morte na presença da filha de ambos.
Na sequência dessas agressões, e por várias vezes, a ofendida careceu de tratamento hospitalar, ocultando sempre, por vergonha, ter sido vítima de agressões.
No dia 28 de Janeiro de 2000, cerca das 23 horas, o arguido e a ofendida discutiram por questões relacionadas com o comportamento violento do arguido, tendo a ofendida dito que não aguentava mais a vida que levava.
Na sequência dessa discussão o arguido empurrou a ofendida, com violência, contra a cama do casal, vindo a ofendida a bater com o abdómen na esquina dessa cama, o que lhe causou dor.
A ofendida encontrava-se no segundo mês de gravidez, o que era do perfeito conhecimento do arguido. Cerca das 4,30 horas da manhã a ofendida começou a sentir fortes dores, verificou estar com uma grande hemorragia, e sentiu a saída de substância fetal, que caiu no chão do quarto do casal.
Transportada ao Hospital de S. João, verificou-se ter abortado, sendo então alvo do tratamento médico adequado.
Apesar de ver a ofendida esvair-se em sangue, com fortes dores e com dificuldades de se movimentar, e não estando mais ninguém que pudesse socorrer a ofendida, o arguido nada fez para a socorrer, sendo certo que estava em condições de o fazer, designadamente dispunha de automóvel para a conduzir ao Hospital.
Não ignorava o arguido que àquela hora da madrugada a ofendida não tinha quem a socorresse, o que dificultaria ou inviabilizaria a prestação imediata do adequado auxílio médico.
Depois de pedir por várias vezes ao marido que a ajudasse, de lhe dizer que estava cheia de dores e com forte hemorragia, o que o arguido também viu, nomeadamente por ter caído substância fetal no quarto do casal, pedidos a que o arguido respondia com ordens para que se calasse para o deixar descansar, a ofendida telefonou ao número nacional de urgência 112, e foi conduzida por uma ambulância ao mencionado Hospital, ambulância que em cerca de 15 minutos acorreu à residência. A ofendida deu entrada no Hospital pelas 6,22 horas do dia 29/01/2000.
Também mais uma vez por vergonha, a ofendida não revelou no Hospital ter sido vítima de agressões do marido.
O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente com o propósito de não socorrer a vitima na altura oportuna o que lhe era possível e exigível, e sabendo que a sua conduta é reprovada e punida por lei.
Na casa de habitação de arguido e ofendida vivia também um hóspede do casal que trabalha no restaurante de que é gerente o arguido. Esse hóspede acordou ao ouvir o barulho que o casal fazia, vestiu-se, e quando saiu do seu quarto viu a ofendida a movimentar-se com muitas dificuldade para o exterior da habitação onde já se encontrava parada uma ambulância. Reconhecendo que a ofendida não estava em condições físicas de andar sozinha, esse hóspede ajudou-a a entrar na ambulância, e acompanhou-a ao hospital. A ofendida desceu as escadas da residência, para entrar na ambulância, com muitas dificuldades e com dores, levando com ela um recipiente onde tinha colocado a substância fetal que caíra em conjunto com a hemorragia.
O arguido não tem antecedentes criminais, tem bom comportamento anterior e posterior aos factos, é trabalhador e bem considerado no meio em que se insere e aufere salário de montante não apurado, mas compatível com o cargo de gerente de um restaurante.
Factos não provados
Nada mais se provou, para além dos factos supra descritos, e, nomeadamente não se provou que:
- a ofendida tenha pedido socorro a uma amiga;
- tenha sido essa amiga quem transportou a ofendida para o hospital;
- o arguido tenha reparado a ofendida de quaisquer danos".
O Colectivo fundamentou a sua convicção:
"1º - Nos depoimentos sérios, honestos, e conscienciosos das testemunhas a seguir indicadas que evidenciaram conhecimento dos factos pelas razões expostas:
- C, médico no Hospital de S. João, que apenas presta assistência médica à ofendida B na altura em que lhe é concedida alta do Hospital e para esse efeito; viu-a no segundo dia do pós operatório, quando ela já se sentia bem e sem dores; verificava-se então uma hemorragia escassa, sendo o toque com evolução normal; face aos registo clínicos que observou explicitou que na véspera a ofendida tinha sido submetida a esvaziamento uterino, porque tinha iniciado trabalho de aborto; não foi o depoente que a atendeu aquando da entrada na urgência do Hospital e desconhece os antecedentes; quem fez a intervenção cirúrgica foi uma médica, e quem a atendeu na urgência foi o seu colega médico, que é a testemunha seguinte; não se recorda se a paciente tinha um hematoma no abdómen, mas pensa que a existir tal teria sido registado no processo clínico; foi o depoente que fez o preenchimento do processo clinico a fls. 12 dos autos, mas fê-lo por indicação do colega, e foi também ele que preencheu o que consta de fls. 120, apenas porque os colegas directamente intervenientes não o tinham feito; a única referência mais objectiva no processo é que o produto do abortamento é enviado para análise patológica, e, no caso, há sintomas de prévia mal formação do embrião, o que pode sempre ter determinado o aborto;
- D, médico de ginecologia e obstetrícia no Hospital de S. João, que explicitou detalhadamente o atendimento e intervenção que foi efectuada, uma vez que a ofendida já deu entrada na urgência em pleno trabalho de abortamento; face ao relatório de fls. 121 considera que há uma indicação de anomalia no embrião incompatível com o normal prosseguimento da gravidez; se nada se refere no processo clínico sobre uma pancada anterior ao inicio das hemorragias, é porque a paciente nada referiu nesse sentido; face aos elementos clínicos de que dispõe não pode precisar o momento do início do abortamento;
- E, vizinha, F, vizinha e G, patroa da ofendida, que apenas sabem que a ofendida estava grávida e que abortou, e que ela lhes contou que esse aborto aconteceu na sequência de o marido lhe ter batido; e
- H, patrão do arguido, I, fornecedor do restaurante onde o arguido trabalha e J, colega de trabalho do arguido, que o descrevem como pessoa trabalhadora, cumpridora e responsável.
2º - Declarações sérias, convincentes e honestas da ofendida B, que descreveu os factos ocorridos nos exactos termos em que resultaram provados, com detalhe e rigor que mereceram a credibilidade do Tribunal Colectivo, tendo sido ela quem esclareceu que já estava com uma hemorragia desde há 3 dias, mas que o médico lhe tinha dito que era normal e ia passar.
3º- Para a prova dos factos o Tribunal Colectivo baseou-se também nos exames periciais, relatórios médicos e demais documentos juntos nos autos, nomeadamente, o registo clínico de fls. 10 e seguintes, o relatório médico legal de fls. 19 e seguintes, a informação hospitalar de fls. 88, o registo clínico de fls. 111 a 136, o relatório do Instituto de Reinserção Social de fls. 200 e seguintes e o certificado de registo Criminal.
4º - Não foi considerado o depoimento da testemunha L, hóspede do casal que acompanhou a ofendida ao Hospital, pela manifesta inconsistência desse depoimento, que admitindo ter acompanhado a ofendida ao Hospital porque ela não estava em condições de andar sozinha, diz que o fez a pedido do arguido, o qual ficou em casa para acompanhar a filha do casal, ou então porque estava alcoolizado, mas que prestou à ofendida todo o auxilio que lhe era possível; das suas declarações releva a evidência de que subordinado do arguido no restaurante e que não quer prestar declarações que o aborreçam".
III
1. O recurso do Ministério Público visa o agravamento da pena aplicada ao arguido A, para prisão não aquém de oito meses, suspensa na sua execução por período não inferior a dois anos; a não se entender assim, o quantitativo diário da pena de multa deveria ter sido fixado em montante não inferior a oito euros.
Baseia a sua posição nas exigências de prevenção geral, pela frequência deste tipo de crimes, em que o cidadão comum vem manifestando um sentimento egoísta de desinteresse pelo próximo e pelas suas necessidades; não obstante ser primário, também as exigências da prevenção especial são acentuadas já que o arguido demonstrou completo desinteresse e frieza perante os apelos da ofendida que sangrava abundantemente e pedia ajuda.
Na opinião do recorrido - a pedir a confirmação do acórdão sob exame -, a conduta imputada representa um acto excepcional e absolutamente isolado na sua existência, e para haver omissão de auxílio não basta que a vida ou a saúde de alguém corra perigo "é necessário que a vítima não possa pedir ou obter socorro pelos seus próprios meios". E o facto de ter sido a ofendida a pedir auxílio "até poderia descaracterizar a qualificação jurídico-penal dos factos e a sua ilicitude, com a decorrente absolvição". A perda do filho não ficou a dever-se à conduta do arguido pois as malformações do embrião sempre tornariam a gravidez inviável.
2. Vejamos.
2.1. Dispõe-se no artigo 200º do CPenal:
"1 - Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 - A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível".
Como se viu, o Colectivo não considerou provada a acusação de omissão de auxílio em situação que tivesse sido criada pelo próprio omitente do auxílio, por isso que afastou a prática do crime pp. pelo n.º 2 do artigo 200º, por não entender demonstrado o nexo de causalidade entre o empurrão que o arguido deu à ofendida, fazendo-a embater na esquina da cama, e o aborto.
E se o nexo de causalidade constitui matéria de facto excluída da competência deste Supremo Tribunal, nem importará discutir agora se a ofendida já estava com hemorragia há cerca de 3 dias, e se o embate na cama apenas a agravou.
Se a malformação do embrião tornava inviável a gravidez, suscitando-se a possível relevância de causa virtual em direito criminal, apenas o arguido levanta tal questão, ainda que não lhe dando uma sequência decisiva (2).
De qualquer modo, o que em definitivo torna inútil a discussão é o facto de o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de omissão de auxílio em caso de grave necessidade da vítima, e não de qualquer forma de participação num crime de aborto (artigos 140º e 141º do CPenal).
2.2. O que o recurso põe em causa é a leveza da pena aplicada, quer na modalidade da pena escolhida quer no seu montante, se se mantiver a pena de multa.
Sintetizemos os factos provados:
- arguido e vítima eram casados um com o outro há cerca de 4 anos, na altura da prática dos factos (3), tendo nascido dessa relação uma filha, então com 1 ano de idade, estando agora divorciados;
- O arguido sempre teve para com a ofendida comportamentos agressivos;
- Desde o último ano da sua relação conjugal que o arguido originou episódios de violência no seio familiar, molestando física e psicologicamente a sua mulher, contra quem proferia ameaças de morte na presença da filha de ambos, das quais, por várias vezes, a ofendida careceu de tratamento hospitalar, ocultando sempre, por vergonha, ter sido vítima de agressões;
- No dia 28 de Janeiro de 2000, cerca das 23 horas, na sequência de mais uma discussão, o arguido empurrou a ofendida, com violência, contra a cama do casal, tendo batido com o abdómen na esquina dessa cama, o que lhe causou dor, estando no segundo mês de gravidez, o que era do conhecimento do arguido.;
- Cerca das 4,30 horas da manhã a ofendida começou a sentir fortes dores, verificou estar com uma grande hemorragia, e sentiu a saída de substância fetal, que caiu no chão do quarto do casal;
- Apesar de ver a ofendida esvair-se em sangue, com fortes dores e com dificuldades de se movimentar, e não estando mais ninguém que pudesse socorrer a ofendida, o arguido podendo, designadamente porque dispunha de automóvel para a conduzir ao Hospital, nada fez para a socorrer;
- Depois de pedir por várias vezes ao marido que a ajudasse, de lhe dizer que estava cheia de dores e com forte hemorragia, o que o arguido também viu, nomeadamente por ter caído substância fetal, pedidos a que o arguido respondia com ordens para que se calasse para o deixar descansar, a ofendida telefonou ao número nacional de urgência 112, e foi conduzida por uma ambulância ao mencionado Hospital, onde foi socorrida;
- Foi um hóspede do casal, que trabalha no restaurante de que é gerente o arguido, acordado com o barulho que o casal fazia, que se vestiu e ajudou a ofendida a entrar na ambulância, e a acompanhou ao hospital;
- "O arguido não tem antecedentes criminais, tem bom comportamento anterior e posterior aos factos, é trabalhador e bem considerado no meio em que se insere e aufere salário de montante não apurado, mas compatível com o cargo de gerente de um restaurante".
Justificando a medida da pena (e não a escolha da pena de multa), o Colectivo afastou a explicação do arguido para a sua indiferença em relação à situação da mulher em virtude de ficar a cuidar da filha do casal, a qual bem podia ter acompanhado os pais ou ter ficado sob a vigilância de uma vizinha, acrescentando de seguida:
"É altamente censurável a conduta do arguido. Não fora a ofendida ter conseguido pedir a ajuda do 112, que poderiam, a indiferença do arguido e a sua omissão, ter provocado um resultado bem mais trágico.
Na determinação da pena concreta, de harmonia com o disposto nos arts. 70º e 71º, ponderamos o dolo intenso, o perfeito conhecimento da ilicitude da conduta e a frieza do comportamento.
A favor do arguido o facto de ser delinquente primário, trabalhador e com bom comportamento.
Considera-se a sua condição económica compatível com a sua função de gerente comercial".

IV
1. Recordemos que "Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência" - artigo 1672º do Código Civil - traduzindo-se o dever de cooperação para aqueles na "obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram" (artigo 1674º do mesmo diploma).
O arguido violou grosseiramente tais deveres pois que, perante uma situação em que a sua mulher carecia de atendimento urgente, não chama um médico, não a leva ao hospital, nem sequer telefona pedindo o serviço de emergência, deixando para terceiro a tarefa de a acompanhar ao hospital, o que este assume motu próprio.
No entanto, e no estrito plano jurídico-penal, há que examinar as coisas com mais pormenor.
2. O dever de auxílio previsto no artigo 200º do CPenal tem como fundamento a solidariedade social devida àqueles que se encontram em perigo no que toca a bens jurídicos eminentemente pessoais, a vida a integridade física ou a liberdade.
O facto criminoso descrito num qualquer tipo legal pode consistir numa acção ou numa omissão.
Encaminhando-nos para os crimes por omissão, esta pode consistir (4):
- "(...) na ausência de uma certa actividade. O preenchimento deste delito resulta tão só de o agente não levar a cabo alguma coisa que se lhe exige. São os crimes de omissão pura;
- na realização ou perigo de realização de um evento na medida em que o agente o não evita. Nestes casos, o preenchimento do tipo legal de crime resulta de o agente deixar de levar a cabo uma actividade que obstaria à produção do evento descrito no tipo. São os crimes de resultado sob a forma de comissão por acção".
Cavaleiro Ferreira (5), salientando como essencial o "evento jurídico" quer nos crimes por acção quer por omissão, elucida que só nos crimes materiais há lugar a um evento ou resultado material. E acrescenta: "haverá então crimes omissivos puros (só com evento jurídico) e crimes comissivos por omissão (delicta commissiva per omissionem), que se contrapõem aos crimes comissivos por acção (delicta commissiva per actionem)".
A classificação de crimes de omissão própria e imprópria, faz equivaler aos primeiros os crimes de omissão pura, ao invés dos crimes de omissão imprópria em que o agente não se limita a uma simples desobediência ao preceito, mas com a sua inactividade causa um resultado normalmente produzido através de uma conduta activa (6).
Em face do critério tradicional, o crime de omissão de auxílio do artigo 200º do CPenal - correspondente ao artigo 219º da versão originária do CP82 - é considerado como um crime de omissão própria ou pura, também designado de mera omissão ou de omissão simples.
A rememoração destas noções permite-nos desde já ponderar no que se dispõe no artigo 10º ("Comissão por acção e por omissão") (7):
1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.
Ainda que sobre o arguido recaísse um dever jurídico (aquele dever de cooperação entre os cônjuges a que fizemos referência) que pessoalmente o obrigasse a prestar socorro e auxílio - estava em causa um perigo para a integridade física, a "saúde" da sua mulher -, tendo esta sido assistida atempadamente não se lhe pode assacar a comissão de um qualquer resultado pela omissão de auxílio. Tanto mais que o aborto ocorrido já vinha de alguns dias antes e não foi estabelecida causalidade entre o empurrão do arguido à ofendida, com violência, contra a cama do casal, tendo batido com o abdómen na esquina dessa cama, e o mencionado aborto.
Como repetidamente se vem afirmando o agente não está obrigado a um comportamento que se revele necessário ao afastamento do perigo muito menos que seja responsável pela não verificação do resultado - neste caso, lesão da vida ou da integridade física.
Havia uma situação de hemorragia decorrente de aborto espontâneo, carecida de assistência médica, mas nem a sua gravidade, nem o arrastamento da situação, foram de molde a repercutir-se em lesão da integridade física da vítima.
O que se disse significa que o arguido não tem que ser responsabilizado criminalmente pela violação do dever de socorro e auxílio a que estava juridicamente obrigado para com o seu cônjuge, uma vez que não se está perante um crime de resultado que lhe competia evitar ou impedir (8).
Perante preceito semelhante da lei espanhola (9) diz-se que se castiga "simplesmente no haber actuado para hacer desaparecer o disminuir la situación preexistente de peligro, pero no el no haber evitado la agravación de esa situación" (10).
2. Prossigamos, atentando na defesa do arguido:
"... para haver omissão de auxílio não basta que a vida ou a saúde de alguém corra perigo.
É necessário que a vítima não possa pedir ou obter socorro pelos seus próprios meios.
Pois, o pressuposto do dever de realizar uma acção salvadora e impeditiva da lesão é, desde logo e necessariamente, a impossibilidade de quem se encontra carecido de socorros, não os poder obter por si.
Porém, "in casu", não foi o que ocorreu verificar-se, já que a ofendida foi quem pediu e obteve a ajuda do 112, o que diminui drasticamente a censura e a culpa do arguido e até poderia descaracterizar a qualificação jurídico-penal dos factos e a sua ilicitude, com a decorrente absolvição".
O que agora releva é saber se estamos ou não em face de um "caso de grave necessidade", a que se refere o preceito.
Para Taipa de Carvalho (11).,
"Auxílio necessário é o que, na situação concreta, é, simultaneamente, considerado indispensável e adequado a afastar o perigo. O critério da necessidade, neste duplo sentido, é o do homem comum (salvaguardando a hipótese de conhecimentos especiais - por ex., no caso de se tratar de um médico) na situação concreta: juízo objectivo ex ante" (12).

Com pormenor se pronuncia Maria Leonor Assunção (13) sobre este elemento típico do crime, afirmando em certo passo:
"Por necessidade entende-se, normalmente, carência de alguma coisa que é imprescindível (...). A ideia de necessidade, fundamentando-se numa indispensabilidade, contém em si uma exigência que normalmente actua como princípio energético orgânico que impele a procurar o bem de que se carece, uma vez que a sua não obtenção conduz a consequências prejudiciais. Esse impulso orgânico energético é, consequentemente, pre-determinado pela situação de constrangimento e fatalidade em que o necessitado se encontra.
No caso do art. 219.º, a situação de necessidade decorre de um processo fáctico que, pelo menos a partir de determinado momento, não pode ser controlado pela vítima. Necessidade no sentido do preceito pressupõe, assim, a impossibilidade de por si só afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias. A necessidade deve ainda ser grave. Gravidade que subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da actuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado.
Caso de grave necessidade, para efeitos do art. 219.º, é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, que por si só é incapaz de superar (x).
Ora, a situação de necessidade, tal como a sua gravidade, deverá, quanto a nós, ser averiguada através de uma análise cuidada das circunstâncias fácticas que lhe deram causa, com referência à vítima considerada individualmente, isto é, fazendo apelo à capacidade física e psíquica que revela no momento da ocorrência..." (sublinhados nossos) (14).
3. O requisito da grave necessidade - diga-se, da indispensabilidade do auxílio - está aqui em crise na medida em que ficou provado que foi a própria ofendida quem "telefonou ao número nacional de urgência 112, e foi conduzida por uma ambulância ao mencionado Hospital, ambulância que em cerca de 15 minutos acorreu à residência".
Quer isto dizer que, mesmo ao fim de certo tempo de insistência com o seu marido para que a ajudasse, perto de duas horas, a B estava em condições físicas e psíquicas suficientes para pedir a ajuda dos serviços públicos de emergência, o que fez (15).
É certo que os factos imputados ao arguido não deixam de revelar uma indiferença censurável a vários títulos - era o seu cônjuge, cheio de dores, em trabalho de abortamento espontâneo, a pedir-lhe ajuda, que este podia prestar sem qualquer sacrifício sensível -, porém, tal censura não pode ser a penal, pois que não se realiza o ilícito-típico.
A indispensabilidade do auxílio ficou excluída pelo facto de o pedido de assistência ter sido levado a cabo pela própria vítima, não havendo qualquer indício de que o recorrido a tenha impedido de antes o ter feito.
Este Supremo Tribunal, em matéria de incriminação, não sofre restrição quanto aos seus poderes cognitivos.
Aliás, e por outra via, apreciando oficiosamente os vícios a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPPenal, a matéria de facto provada mostrar-se-ia insuficiente para a decisão de condenação pela prática do crime de omissão de auxílio imputado ao arguido.
Não pode, assim, ser mantida a condenação.
IV
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido.
Sem custas.
De honorários à Exma. Defensora oficiosa pelo trabalho desenvolvido fixa-se o montante de 3 URs, a adiantar pelo CGT.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2003
Lourenço Martins
Borges de Pinho
Franco de Sá
Armando Leandro
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(1) Na mesma acusação fora-lhe imputada também a prática de um crime de maus tratos, pp. pelo artigo 152º n.os 1 al. a) e 2, do qual houve desistência de queixa por parte da ofendida, que foi homologada.
(2) Sobre a aplicação da teoria da causalidade adequada a todo o processo (típico), e a duvidosa relevância da causa virtual em direito criminal, cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, Coimbra, 1963, p. 260.
(3) Crê-se ser mais apropriada a referência à data da prática dos factos do que à data da acusação, até pela visibilidade nos reflexos, por exemplo, na idade da filha e eventuais cuidados.
(4) Seguindo Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1963, Almedina, p. 286.
(5) Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Verbo, Reimpressão 1997, p. 96.
(6) Cfr. sobre a matéria H-H Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Comares-Granada, trad. de Manzanares Samaniego, 1993, pp. 239 e 550 e sgs., onde se pode ver classificado o crime de omissão de auxílio como delito próprio de omissão e também a crítica de que se deveria preferir à denominação de delito próprio e impróprio de omissão a de delito de omissão "simples" e "qualificado" (p. 551).
Na jurisprudência deste STJ - v. acs., de 21.11.96 - P.º n.º 48973; de 5.12.96, no BMJ n.º 462, 1997, p. 170; de 10.02.99, na CJ, Ano VII, Tomo I, 1999, pp. 209/10; de 6.06.02 - P.º n.º 1252/02-5.ª.
Cfr. também Maria Leonor Assunção, "Contributo para a interpretação do artigo 219º do Código Penal (O crime de omissão de auxílio)", Coimbra Editora, BFDUC, 1994, p. 18, que por vezes acompanharemos de perto.
(7) Redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
(8) Cfr. Cavaleiro de Ferreira, op. cit., pp.98/104.
(9) Artigo 489º bis: "El que no socorriere a una persona que encontrare desamparada y en peligro manifiesto y grave, cuando pudiere hacerlo sin riesgo propio ni de tercero, será castigado...".
(10) Gonzalo Rodríguez Mourullo, "La omisión de socorro en el Código Penal", Tecnos, Madrid, p. 160.
(11) Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 850.
(12) Mais adiante (p. 862), o mesmo Autor, quando indica o exemplo de um concurso efectivo de infracções, deixa implícita a mesma ideia de indispensabilidade, ao afirmar: "...se A fere corporalmente B, seu cônjuge, e - tendo este ficado impossibilitado de por si recorrer a assistência, começam as feridas a infeccionar e a constituir perigo para a vida - não auxilia pessoalmente nem solicita a assistência médica, incorrerá, para além do crime de ofensas corporais, no crime de homicídio por omissão..." (realce nosso).
(13) Citada monografia, pp. 66/71.
(x) De acordo, aliás, com o entendimento comummente aceite pela doutrina alemã « Não se considera necessário o auxílio quando a vítima se pode assistir a da própria» (....).
(14) Caracterizando a figura da pessoa desamparada, referida pelo Código Espanhol, entende-se que se deve responder negativamente à pergunta "se pode considerar-se desamparada quem, achando-se em perigo, se encontra em condições de desempenhar por si mesmo as actividades defensivas necessárias para superar o risco" - Rodríguez Mourullo, op. cit., p. 162:
(15) Sobre um caso em que também se concluiu pela não necessidade do auxílio - cfr. ac. deste STJ, de 10.05.00, no BMJ n.º 497, 2000, p. 140, com indicações sobre modo como se compatibiliza o citado artigo 10º, n.º 2, do CPenal com o preceito do artigo 200º.