Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
353/22.0PVLSB-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
O habeas corpus distingue-se do recurso, designadamente do recurso do despacho que decide aplicar e/ou manter a prisão preventiva, cumprindo unicamente determinar se ocorre no processo alguma situação cujas consequências que se reconduzam aos fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo tribunal de Justiça


1. Relatório

1.1. No processo n.º 353/22.0PVLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ..., o arguido AA veio apresentar pedido de habeas corpus subscrito por si, invocando o art. 222.º, n.º 2 al. a), do CPP e com os fundamentos seguintes:

“Vem o requerente supra melhor acima identificado, no âmbito do processo à margem, requerer em conformidade do artigo 220.º, n.º 1 a) do Código do Processo Penal, o requerimento de Habeas Corpus, tendo como base de alegação a sua não há nenhuma virtude de detenção ilegal.

Acusando a recepção com a notificação com a referência ... ... .26, ao qual regista a promoção do pedido outorgado pelo Ministério Público que confere na aplicação da medida de coação imposta em sede de interrogatório decidida em prisão preventiva, que visa o requerente contestou tal decisão em forma tempestiva de acordo com o prazo de 20 dias com a super legitimidade.

Calculada a contestada medida prevê assim a vigência atual a suspensão da aplicação das medidas de coação aguardando os ulteriores trâmites processuais em liberdade.

Ao invés a 24.01.2024 foi emitido um mandato de desligamento do processo 260/22.6... devido ao término da pena, e ligado ao processo 353/220 PVLSB com a referência ... ... 18, complementando a informação para o cumprimento de prisão preventiva aplicada.

Sucede que à luz do disposto do artigo 215.º n.º 1 al) b) do Código do Processo Penal, o requerente sofreu tempo de privação de liberdade, em superior a quatro meses sem que tenha sido deduzido acusação, ou oito meses sem que havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória

Vejamos….!! Em nenhum dos dispostos dos artigos do Código do Processo Penal consegue-se verificar, que quando em sede de interrogatório exista a aplicação de suspensão das medidas de coação sendo que as mesmas possam mais tarde vir a ser reaplicadas em conjugação de força de privação de liberdade

Em harmonia, e por força dos artigos 221.º, 222.º e 223.º do Código do Processo Penal, julgam-se manifestamente infundados os procedimentos de aplicação da medida de coação de prisão preventiva.

No entanto, e à luz do n.º 4 do 213.º do Código do Processo Penal a fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou revogação de prisão preventiva, Vossa Excelência, oficiosamente, deverá solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social, ou de informação dos serviços de reinserção social ao que o requerente consente com a sua elaboração e realização

Alumiando todos os aspetos fundados no presente requerimento, requer a invocação de Habeas Corpus consignando a detenção e virtude ilegal, pelo que traduz na sua libertação para efeitos imediatos ficando a aguardar em liberdade a contestação efetuada

Respeitosamente pede e aguarde deferimento.”

1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1 do CPP foi a seguinte:

“i. Por despacho datado de 16.05.2022, proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi determinada a aplicação ao arguido AA da medida de coacção de prisão preventiva, indiciado pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, e um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do mesmo diploma legal (cfr. fls. 53 e segts.);

ii. No dia 29.07.2022, foi determinada a emissão de mandados de desligamento e ligamento do arguido ao processo n.º 260/22.6..., do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ... (J5), com vista ao cumprimento da pena de prisão em que aí foi condenado (de 1 ano e 6 meses), por decisão transitada em julgado (cfr. fls. 102 e segts.);

iii. Tais mandados foram cumpridos, com efeitos reportados a 01.08.2022 (cfr. fls. 120);

iv. No dia 29.06.2023, foi deduzida acusação contra o arguido, pela prática, em autoria material e em concurso real, com a agravante da reincidência, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, e ainda um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º, n.º 1, al. e), também do Código Penal;

v. Nesse mesmo despacho, o Ministério Público promoveu a manutenção do estatuto coactivo do arguido, aquando do seu (re)ligamento aos presentes autos;

vi. Na sequência do requerimento datado de 23.01.2024 (cfr. fls. 276), manuscrito pelo arguido, em que o mesmo indica como assunto “contestação”, mas em que põe em causa a promoção do Ministério Público (em sede de acusação) quanto à manutenção do seu estatuto coactivo, foi proferido despacho, datado de 24.01.2024 (cfr. fls. 277), onde se referiu, para além do mais:

- que o arguido se encontrava em cumprimento de pena no âmbito do processo n.º 260/22.0..., a qual terminaria (previsivelmente) no dia 31.01.2024;

- que a decisão de alteração das medidas de coacção está sujeita ao princípio rebus sic stantibus, verificando-se que os pressupostos de facto e de direito que presidiram à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva se mantinham inalterados/intocados – de resto, e em bom rigor, até se encontravam reforçados com a dedução da acusação –, sendo certo que o arguido também nada alegava de concreto quanto à alteração desses mesmos pressupostos (sendo que o “bom comportamento prisional” não tinha, evidentemente, essa virtualidade); e

- que não foi ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, pelo que o arguido deveria continuar sujeito ao mesmo estatuto coactivo aquando do seu (re)ligamento aos presentes autos;

vii. Cumprida a mencionada pena de prisão, foi o arguido (re)ligado aos presentes autos no pretérito dia 31.01.2024, encontrando-se designada a realização da audiência de julgamento para o próximo dia 2 de Abril, pelas 9 horas e 15 minutos (cfr. fls. 281).

Pelo exposto, é nosso entendimento de que não existem nos autos quaisquer factos que permitam concluir por uma situação de prisão ilegal do arguido, na sequência do seu (re)ligamento aos presentes autos, não se vislumbrando a alegada violação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva..”

1.3. Notificados o Ministério Público e o defensor do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.

2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontrarão no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão.

Assim tem decidido sem divergência o Supremo, como se constata por exemplo no acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” (itálico nosso)

Preceitua, então, o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, o requerente invocou o requisito da al. a). Mas fê-lo infundadamente, como resulta logo bem evidente do teor do requerimento que apresenta.

Da sua mui confusa petição não se descortina sequer um mínimo de base factual que permita reconfigurar a petição à luz de qualquer outra das alíneas do art. 222.º do CPP, já que a expressamente invocada manifestamente não ocorre: o arguido encontra-se privado de liberdade na sequência de uma decisão judicial.

Foi um juiz (e o juiz competente) que determinou a sua prisão preventiva, e foi sempre um juiz que a reapreciou e manteve nos tempos legalmente previstos, em conformidade com a informação da senhora juíza do processo, que por sua vez está em sintonia com os elementos que instruem a presente certidão.

Os incontroversos factos enunciados na informação judicial ilustram bem uma situação que não é passível de integrar fundamento de habeas corpus. Nem o enunciado na petição, nem outro.

Como o Supremo Tribunal de Justiça considera há muito, de forma pacífica, a providência de habeas corpus tem natureza excepcional destinada a assegurar o direito à liberdade, não sendo um recurso. Como remédio único, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade, não pode ser utilizado para impugnar eventuais deficiências ou vicissitudes processuais que tenham no recurso a sua sede própria de apreciação. Deficiências que, precise-se, nem ocorrem aqui.

Se como remédio único o habeas corpus só pode ser utilizado para ultrapassar situações de prisão decretadas a coberto de ilegalidade grosseira, e se nenhuma deficiência ou irregularidade, por menor que seja, se detecta, a negação da providência é a decisão que se impõe manifestamente.

O processo em que o requerente é arguido encontra-se na fase de julgamento, tendo audiência marcada para o próximo dia 2 de Abril, por crime que admite a medida de coacção prisão preventiva (este pressuposto nem foi questionado, inexistindo controvérsia a propósito). A prisão preventiva, ordenada por um juiz de instrução criminal e judicialmente mantida até ao presente, como se disse, não excedeu os limites fixados pelo art. 215.°, n°s 1, al. c) do CPP (um ano e dois meses), pois o arguido esteve preso à ordem dos autos de 16/05/22 a 01/08/22 e desde 31/01/21 até ao presente.

Nada mais cumpre sindicar no âmbito da presente providência, constitucional e legalmente desenhada como meio processual adequado a uma reacção expedita contra o abuso de poder decorrente de prisão ou detenção ilegais. E não como meio processual para reexame ou avaliação dos pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de coacção, que nem se percebe se será o que o requerente pretendeu com a presente providência. Tal objectivo, a verificar-se, só poderia ser obtido através do recurso, recurso que o arguido, assistido no processo por um defensor, sempre teve a possibilidade de interpor.

De tudo se conclui que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de base factual e legal que a suporte.


*


3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelo requerente, com 4 UC de taxa de justiça, indo condenado na importância de 6 UC a título de sanção processual (art. 223.º, n.º 6, CPP).

Lisboa, 14.02.2024

Ana Barata Brito (Relatora)

Maria Teresa Féria de Almeida (adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)