Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3322
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
TÍTULO CONSTITUTIVO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
CASA DE PORTEIRO
PARTE COMUM
LEGITIMIDADE ACTIVA
NULIDADE
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200311040033221
Data do Acordão: 11/04/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1026/03
Data: 04/10/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1ª - Sendo proposta pelo condomínio uma acção, que visa a declaração de nulidade parcial de um título constitutivo da propriedade horizontal de um prédio, na parte que individualiza a casa de porteira como fracção autónoma, a subsequente condenação da Ré a reconhecer tal nulidade e a declaração de que esse espaço é parte comum do prédio, contra a antiga proprietária deste - entidade que procedeu a essa constituição de propriedade horizontal -, a qual já não era proprietária de qualquer fracção, não pode ser atendida essa pretensão, pois a mesma nunca vincularia o proprietário dessa fracção, o qual não foi ouvido na acção.
2ª - Tendo todas as aquisições sido feitas após a escritura da constituição da propriedade horizontal, não podem os condóminos - que tiveram acesso ao título dessa constituição - pedir a nulidade parcial do título, invocando um desfasamento entre o aí constante e o que constava do projecto da obra, aprovado pela Câmara Municipal, e do licenciamento do prédio por esta feito, sob pena de tal actuação poder ser considerada um abuso de direito, na modalidade do "venire contra factum proprium".
3ª - O facto de, aquando da comercialização para venda, e celebração dos respectivos contratos-promessa, das fracções autónomas do prédio, o sócio e representante da proprietária ter dito aos promitentes-compradores (e posteriores proprietários) que o prédio em causa incluía nas suas partes comuns uma casa destinada a habitação poderia permitir a anulação dos contratos, a verificarem-se os requisitos do erro ou do dolo (artigos 247º a 254º do Código Civil), ou o pagamento de uma indemnização pela culpa in contrahendo (artigos 227º e 483º do mesmo diploma).
4ª - As normas do RGEU têm em vista assegurar as condições de segurança, estética e salubridade das edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das Câmaras Municipais.
5ª - Não resultando dos autos ter havido qualquer imposição legal no sentido de, no prédio, haver uma casa de porteira a fazer parte integrante das áreas comuns, e tendo a então única proprietária do prédio optado por incluir o espaço que, no projecto aprovado, estava reservado para esse efeito como fracção autónoma, também com destino a habitação, não pode ter aplicação o disposto no artigo 294º do Código Civil, que sanciona com a nulidade os negócios jurídicos celebrados com disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, o Condomínio do prédio sito na ..., em Oeiras, em acção com processo ordinário intentada contra "A, Lda.", pediu que, com a procedência da acção:
a) Se declare a nulidade parcial da escritura pública de constituição de propriedade horizontal, lavrada a 26 de Setembro de 1990 no 24º Cartório Notarial de Lisboa, na parte em que individualiza a casa de porteira como fracção autónoma, identificada pela letra "F";
b) Se condene a R. a ver reconhecida a nulidade peticionada na alínea a);
c) Se declare que a casa de porteira constitui parte comum do prédio.
Para fundamentar a sua pretensão, o Autor invoca a desconformidade entre o projecto aprovado pela Câmara Municipal de Oeiras e o constante do título de constituição da propriedade horizontal, pois que, naquele projecto, ficou estabelecido que, no rés-do-chão, uma divisão era a casa de porteira e no título ficou consignado que era uma divisão autónoma designada pela letra F para habitação.
Contestou a Ré, pugnando pela improcedência da acção.
Houve réplica.
A final, foi proferida sentença, segundo a qual a acção foi julgada procedente e, consequentemente, se declarou a nulidade parcial da escritura constitutiva da propriedade horizontal do prédio em questão, declarando-se que a fracção designada pela letra F não é fracção autónoma, mas sim parte comum destinada a casa de porteira, e se condenou Ré a restituir ao Condomínio essa fracção, restituição decorrente da nulidade declarada, devendo ser feitas na respectiva Conservatória as rectificações de harmonia com o decidido.
Após recurso da Ré, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão a confirmar tal decisão.
Ainda inconformada, veio a Ré interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

A recorrente apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª - A fracção autónoma em discussão encontra-se inscrita a favor de B, por aquisição que teve como causa o acto de compra, registado pela apresentação nº. 7, do dia 24.04.1998.
2ª - Portanto, já não se encontra na esfera jurídica da Recorrente.
3ª - Por essa razão, não pode a Recorrente entregar ao Recorrido uma fracção que já não é sua propriedade.
4ª - Pela própria natureza da relação jurídica, não pode a mesma produzir efeitos, atendendo ao facto de que a Recorrente é parte ilegítima.
5ª - O Tribunal, por conterem os autos todos os elementos necessários à apreciação desta questão, deveria ter-se pronunciado sobre a mesma, absolvendo a Recorrente da Instância.
6ª - O título constitutivo da propriedade horizontal, perfeitamente válido de acordo com os preceitos então aplicáveis, fixou que a fracção "F" se destinava a fracção habitacional geral e não a habitação de qualquer porteira.
7ª - O destino da fracção é o de habitação, não competindo à entidade aprovadora do projecto de construção impor a existência de uma divisão de porteira.
8ª - Essa existência é uma faculdade do construtor, que poderia perfeitamente revogar essa decisão até à constituição da propriedade horizontal, o que aconteceu nos presentes autos.
9ª - A fracção em causa tem todas as condições legalmente exigidas para ser constituída uma fracção autónoma, com saída independente para uma parte comum, e é composta por uma divisão assoalhada, cozinha, casa de banho, corredor e despensa, com a permilagem de 16/10000 e com o valor de 125.000$00.
10ª - À data da constituição da propriedade horizontal a que se referem os autos, não se exigia licença de utilização em vigor, mas sim os documentos que foram exibidos, que se reproduzem.
11ª - A constituição da propriedade horizontal foi feita por escritura pública, com todos os elementos necessários e, portanto, é um acto perfeitamente válido.
12ª - Posteriormente, em 5 de Junho de 1991, surge a licença de utilização que refere que um fogo terá de ser de porteira.
13ª - Baseia-se, pois, na vontade do proprietário, ora Recorrente, a criação dessa casa de porteira.
14ª - Como o proprietário desistiu dessa ideia inicial, e celebrou as escrituras de compra e venda de acordo com a escritura de constituição de propriedade horizontal, sem ter alterado a mesma, competirá agora ao condomínio, ora Recorrido, promover essa alteração, se assim o entender, respeitando, como é evidente, as exigências legais para tal.
15ª - Mas é um processo a que a recorrente é totalmente alheia.
16ª - Os vários compradores das fracções, quando compraram as propriedades respectivas, deviam saber, face ao título, que o prédio não tinha casa de porteira e, portanto, emitiram uma declaração tácita nos termos do artº. 217º do Cód. Civil, segundo a qual davam o seu assentimento à modificação do título.
17ª - Se o título pode ser modificado, conforme dispõe o artº. 1419º do Cód. Civil, e se os condóminos aceitaram outorgar as escrituras sem a casa de porteira, não têm agora legitimidade para vir pedir a anulação parcial de um título, cuja alteração aceitaram. É um abuso de direito.
18ª - Mas, mesmo que se entendesse que teriam essa legitimidade, o que se admite por hipótese académica, sempre terão que pagar a diferença de valor entre uma fracção de um prédio com casa de porteira para uma fracção de um prédio sem casa de porteira.
19ª - A existência de casa de porteira é um espaço que beneficia o condomínio e que tem sido arrendado pelos condóminos e até vendido.
20ª - Se a casa de porteira ficasse assim considerada no título constitutivo da propriedade horizontal, então o condomínio teria que pagar à Recorrente o valor, em dinheiro, dessa fracção.
21ª - Por outro lado, essa fracção de casa da porteira já foi vendida por duas vezes a dois titulares diferentes, que nem sequer foram ouvidos na presente acção.
22ª - E sem dúvida nenhuma que será a actual proprietária desta fracção a única que sairia prejudicada de todo este assunto.

Pede, assim, que seja revogado o acórdão sob recurso e substituído por outro que absolva a Recorrente do pedido ou da instância, conforme for entendido.
Foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - 1. Nas instâncias, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
a) "A, Lda.", efectuou a construção do prédio urbano situado na ..., nºs. ... (anterior lote ...), em Oeiras, descrito na 1ª secção da Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob a ficha nº. 24325.
b) De acordo com o projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal de Oeiras, o referido prédio é composto de 26 fogos, sendo um fogo destinado a porteira, o qual, à luz do referido projecto, se encontra localizado ao nível do r/c.
c) No dia 11.09.1990, a Ré fez dar entrada na 1ª Repartição de Finanças de Oeiras requerimento modelo 129, para inscrição do citado prédio na matriz.
d) Posteriormente, no dia 11.09.1990, o referido requerimento (modelo 129) foi anulado, sendo substituído por outro com data de entrada na mesma Repartição de 11.09.1990.
e) No dia 26.09.1990, foi lavrada a escritura notarial de constituição da propriedade horizontal do citado prédio, outorgando a sociedade Ré, representada por C, na qualidade de procurador.
f) Da citada escritura resulta que, no r/c do prédio em questão, estão localizadas 5 lojas destinadas a comércio, com saída directa para a via pública, com uma arrecadação na cave, e uma habitação com saída para uma parte comum do prédio.
g) Na referida escritura de constituição da propriedade horizontal, a habitação citada na parte final da alínea anterior surge localizada no r/c, tendo sido identificada como sendo a fracção F, à qual foi atribuída a permilagem de 16 para 10.000 e o valor de 125.000$00.
h) A fracção em causa tem saída independente para uma parte comum e é composta por uma divisão assoalhada, cozinha, casa de banho, corredor e despensa.
i) A constituição da propriedade horizontal do prédio em questão foi devidamente registada na Conservatória do Registo Predial de Oeiras em 11.10.1990.
j) De acordo com o teor da certidão de narrativa emitida pelo Departamento de Planeamento de Gestão Urbanística da CMOeiras, com data de 14.05.1997, foi emitida em 05.07.1991 a licença de utilização nº. 123/91, mediante a qual foi licenciado o prédio construído de acordo com o processo nº 1156 - PB/71, aqui em causa, composto por 26 fogos, sendo um fogo de porteira e de 5 lojas com respectivas arrecadações na cave.
k) De acordo com o projecto aprovado, e respectiva licença de utilização, o processo de telas finais 5652/PU/90, deferido em 03.05.1991, referente ao prédio situado na Rua ..., em Oeiras, tem aprovado um fogo destinado a porteira ... o qual é parte comum do condomínio.
l) A alegada casa de porteira esteve sempre fechada, e vedada a sua utilização aos condóminos.
m) Aquando da sua comercialização para venda, e celebração dos contratos-promessa de compra e venda das fracções autónomas do prédio situado na Rua ..., nºs ... (anterior lote ...), em Oeiras, foi dito por D, sócio e representante da Ré, aos promitentes compradores (e posteriores proprietários) que o prédio em causa incluía nas suas partes comuns uma casa destinada a porteira.
n) Pese embora o referido na alínea anterior, e conforme verificaram mais tarde os promitentes compradores (e posteriores proprietários), nas partes comuns do prédio em causa não está incluída a casa de porteira.
o) Os condóminos averiguaram junto da CMOeiras sobre a existência ou não da referida casa de porteira.
p) Na porta de entrada do prédio em causa, vem identificada uma das campainhas como pertencendo à da casa de porteira.
q) O Autor interpelou, por diversas vezes, a Ré, no sentido de ser rectificada a escritura de propriedade horizontal, para que o fogo destinado a casa de porteira fosse restituído ao condomínio.
r) Os actuais proprietários adquiriram as suas fracções para habitação, convencidos que no prédio existia um fogo destinado ao uso e habitação de porteira, que seria parte comum do mesmo.
s) Quando a Ré comprou a propriedade, onde efectuou a construção do prédio em causa, já se encontrava aprovado um prédio para habitação.
t) Cerca do ano de 1987, a Ré propôs-se fazer a construção do prédio em causa sem casa de porteira.
u) Em 1997, a administração do condomínio levantou o problema da casa de porteira, tendo a Ré sempre mantido desde então que o título constitutivo da propriedade horizontal tinha sido feito em data anterior à licença de utilização, com base na vontade manifestada por si, como sua proprietária única, exibindo os documentos à data necessários para essa constituição, e que nesse título constitutivo, devidamente registado, a fracção autónoma pretendida como casa de porteira é destinada a habitação.

2. Resulta ainda dos autos a seguinte factualidade:
v) Através da Ap. 30 de 12.01.1998, foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Oeiras a aquisição da fracção "F" a favor de E, por compra efectuada à aqui Ré.
x) Através da Ap. 7 de 24.04.1998, foi inscrita na mesma Conservatória a aquisição da mesma fracção a favor de B, por compra efectuada ao anterior proprietário.
z) A presente acção foi proposta em 25.06.1998.

III - 1. Para fundamentar a procedência da acção, escreveu-se na sentença proferida na 1ª instância, a qual, embora com um voto de vencido, foi confirmada pela Relação:
"A única entidade competente para gerir a Urbanização é a Câmara Municipal e é essa a entidade pública a que se refere o artº. 1415º do Cód. civil.
Com efeito, a única entidade competente para definir a composição de um edifício, o destino de cada fracção ou parte comum é a Câmara Municipal e isso tem de ser fixado no projecto de construção aprovado e depois vistoriado.
Quando no projecto se diz que uma divisão se destina a casa de porteira, essa divisão é parte comum do prédio pela simples razão de que uma casa de porteira fica adstrita ao Condomínio e, portanto, a todos os condóminos.
Um edifício em regime de propriedade horizontal pode ser dispensado de ter casa de porteira, mas se, dadas as condições do edifício, como número de fogos, de andares, condições de segurança, a Câmara exigir no projecto a existência de divisão para porteira, essa imposição é vinculativa.
Para se dispensar a casa de porteira terá de se requerer a alteração e a devida autorização à Câmara.
Quando, no artº. 1421º, nº. 2, do Cód. civil, se diz que se presumem comuns as dependências destinadas ao uso e habitação de porteira, e as garagens e outros locais de estacionamento, isso significa que para ser ilidida essa presunção há que fazer a prova de que no projecto aprovado nada se diz a esse respeito, ou então há que ser requerida à Câmara alteração no sentido de se abolir esse destino e de se atribuir à respectiva divisão a natureza de fracção autónoma.
Não foi feita essa prova, não foi autorizada essa alteração, e, constando do projecto aprovado que a questionada divisão se destina a casa de porteira, a presunção não pode ser ilidida por outros meios.
Enquanto essa alteração não for deferida, impõe-se o estabelecido no projecto camarário aprovado.
(...).
Segundo o disposto no artº. 1418, nº. 3, do Cód. Civil, a não coincidência entre o fim a que se destina cada fracção ou parte comum constante do título de constituição da propriedade horizontal, e o fim fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente (a Câmara Municipal), implica nulidade do título constitutivo.
No caso concreto, a casa destinada a porteira, e que é parte comum, encontra-se ocupada pela soc. ré.
A soc. ré encontra-se, portanto, numa situação de ilegalidade que implica nulidade do título constitutivo, pelo que fica obrigada a restituir ao Condomínio essa parte comum".

2. A primeira questão suscitada no presente recurso prende-se com o facto de a fracção aqui em causa se encontrar, desde data anterior à propositura da acção, inscrita a favor de B, não se encontrando, portanto, na esfera jurídica da recorrente, pelo que, por essa razão, não poderá esta entregar ao recorrido uma fracção que já não é sua propriedade, não podendo, assim, a decisão, pela própria natureza da relação jurídica, produzir efeitos.
Se bem que a ora recorrente não tenha alegado tal situação na fase dos articulados - como lhe competia -, a verdade é que, perante a inclusão nos autos de uma certidão de registo predial, apresentada pelo Autor com a petição inicial, que se encontrava desactualizada, a Ré, na fase do julgamento, juntou a certidão de fls. 225 e seguintes, da qual se depreende já não ser proprietária da mesma fracção aquando da instauração da acção e que a mesma, após ter sido por ela vendida a E, estava já inscrita a favor de B, sua nova proprietária.
No entanto, o Senhor Juiz que proferiu a sentença desvalorizou por completo esta realidade, omitindo qualquer alusão à mesma, não tendo em conta o disposto no nº. 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil (CPC).
O mesmo não sucedeu com o acórdão ora impugnado, o qual, mediante o pedido de reconhecimento da ilegitimidade da Ré, por esta deduzido nas suas alegações da apelação, entendeu que, não tendo havido recurso da decisão proferida no despacho saneador no sentido de que as partes são legítimas, se estava perante uma situação de caso julgado, face ao disposto no artigo 510º, nº. 3, do Código de Processo Civil (CPC).

3. No seu voto de vencido - e quanto a este ponto -, diz o Exmo. Desembargador Dr. Américo Marcelino:
"Está documentado no processo que a fracção em causa foi adquirida por um terceiro (B) em 24-4-98 (fls. 150), A p.i. é de 25-6-98. Como é, então, possível que nas costas do legítimo proprietário e à sua total revelia se profira uma decisão tão gravosa sobre a sua propriedade? Vamos, amanhã, despejá-lo da fracção, sem que alguma vez fosse ouvido no processo?"
Na verdade, a decisão de procedência da acção aqui em apreciação não pode produzir efeitos relativamente a quem, sendo, aquando da propositura da acção, proprietária da fracção em causa, não foi ouvida nem achada na acção.
"Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida" - artigo 3º, nº. 2, do CPC.
Tendo a Ré - que já não é proprietária dessa fracção (nem de qualquer outra do prédio) - sido condenada a restituir esse espaço para ingresso no condomínio, como vai o Autor executar tal decisão?
A acção foi - erradamente - intentada contra a ora recorrente.
Logo, isto bastará para se concluir que a acção teria de improceder, independentemente de, no despacho saneador, se terem declarado as partes como legítimas.

4. Não só por esta razão a Ré terá de ser absolvida.
Segundo o nº. 1 do artigo 1417º do Código Civil, "A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário".
Mostra-se provado que, no dia 26.09.1990, a sociedade Ré, que, então, era a única proprietária do prédio que construíra, outorgou a escritura notarial de constituição da propriedade horizontal, a qual foi devidamente registada na Conservatória do Registo Predial de Oeiras em 11.10.1990, tendo ficado a constar que, no r/c do prédio, estão localizadas 5 lojas destinadas a comércio, com saída directa para a via pública, com uma arrecadação na cave, e uma habitação (fracção "F") com saída para uma parte comum do prédio.
A licença de utilização foi emitida posteriormente, em 05.07.1991, mediante a qual foi licenciado o prédio construído de acordo com o processo nº. 1156 - PB/71, composto por 26 fogos, sendo um fogo de porteira e 5 lojas com respectivas arrecadações na cave.
De acordo com o projecto aprovado, e respectiva licença de utilização, o processo de telas finais 5652/PU/90, deferido em 03.05.1991, tem aprovado um fogo destinado a porteira, o qual é parte comum do condomínio.
Aquando da sua comercialização para venda, e celebração dos respectivos contratos-promessa, das fracções autónomas do prédio, foi dito pelo representante da Ré aos promitentes compradores (e posteriores proprietários) que o prédio incluía nas suas partes comuns uma casa destinada a porteira.
Como vimos, a propriedade horizontal do prédio constituiu-se por negócio jurídico através da competente escritura notarial.
Ora, qualquer comprador medianamente diligente, ao decidir comprar uma fracção desse prédio, consultará, naturalmente, o título da propriedade horizontal.
Se o não fez, a si deve tal omissão, pelo que não poderá depois queixar-se de que foi enganado, pois o título é bem elucidativo no tocante ao que consta ou não consta do imóvel.
Tendo os compradores obrigação de saber que o prédio não tinha casa de porteira, e aceitando comprar nesse pressuposto, deram o seu assentimento a tudo o que constava desse título, independentemente de qualquer desfasamento entre o aí consignado e o resultante do projecto de obra aprovado pela Câmara Municipal.
Logo, vir agora pedir a anulação, mesmo parcial, do título, poderá considerar-se um abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium".
Perguntar-se-á: mas o facto de o representante da Ré lhes ter dito que as partes comuns do prédio incluíam uma casa de porteira não tem qualquer relevância?
É óbvio que tem.
Só que não será para a pretendida declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal.
Desde logo, tal actuação poderia conduzir a uma situação que permitisse a anulação do contrato por erro ou dolo (cfr. artigos 247º a 254º do Código Civil).
Por outro lado, poderia dar lugar ao pagamento de uma indemnização pela culpa in contrahendo (cfr. artigos 227º e 483º do mesmo diploma).

5. Vejamos o Assento deste S.T.J. de 10.05.1989, aludido no acórdão recorrido.
De acordo com o mesmo, "Nos termos do artigo 294º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização deferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal".
Sabemos que os assentos não têm hoje poder vinculativo, dado que o preceito que lhes conferia essa "força obrigatória geral" - artigo 2º do Código Civil - foi revogado pelo artigo 4º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, tendo, porém, o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B do CPC (cfr. artigo 17º, nº. 2, do citado DL).
As normas do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) têm em vista assegurar as condições de segurança, estética e salubridade das edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das câmaras municipais.
Não resulta dos autos que houvesse qualquer imposição por parte da Câmara Municipal de Oeiras no sentido de o prédio ter casa de porteira.
Logo, não foi aqui violado qualquer interesse público, o que, a verificar-se, daria ao Ministério Público legitimidade para arguir a nulidade do título após participação da entidade pública a quem cabia a aprovação ou fiscalização da obra (cfr. artigo 1416º, nº. 2, do Código Civil).
Estamos antes perante meros interesses privados na disciplina da propriedade horizontal, o que se integra na disponibilidade das partes.
Daí que não possa ser aqui aplicável o artigo 294º do Código Civil, o qual estabelece que "Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei".
Como pode ler-se no citado Assento, quando se entende estar-se perante situações de facto idênticas, no acórdão de 1982 (de 21.12.1982 - BMJ 322º-333) - acórdão-fundamento -, o projecto camarário destinou a cave do imóvel a estacionamento privativo dos inquilinos e o título afectou-o a armazém; no acórdão recorrido (de 26.01.1984 - BMJ 333º-457), a decisão da câmara destinou todo o prédio a habitação e o título conferiu a uma das fracções (o rés-do-chão) a utilização como "atelier".
Estava, pois, aí em causa o uso diferente - aliás, em consonância com o artigo 6º do RGEU, que obriga a indicar, nos projectos, o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.
Ora, nos presentes autos o que está em causa não é o simples uso, mas a titularidade de certo espaço do prédio, pelo que nos parece ser questionável que a doutrina do Assento se pudesse aplicar aqui.
O espaço aqui em jogo foi sempre destinado a habitação: no projecto e, depois, no licenciamento do prédio, para casa de porteira, a pertencer às áreas comuns do prédio; no título constitutivo da propriedade horizontal, para habitação como fracção autónoma.

6. Infere-se, assim, do exposto, que procedem as conclusões da recorrente, tendentes ao provimento do recurso.

IV - Podem, pois, extrair-se as seguintes conclusões:
1ª - Sendo proposta pelo condomínio uma acção, que visa a declaração de nulidade parcial de um título constitutivo da propriedade horizontal de um prédio, na parte que individualiza a casa de porteira como fracção autónoma, a subsequente condenação da Ré a reconhecer tal nulidade e a declaração de que esse espaço é parte comum do prédio, contra a antiga proprietária deste - entidade que procedeu a essa constituição de propriedade horizontal -, a qual já não era proprietária de qualquer fracção, não pode ser atendida essa pretensão, pois a mesma nunca vincularia o proprietário dessa fracção, o qual não foi ouvido na acção.
2ª - Tendo todas as aquisições sido feitas após a escritura da constituição da propriedade horizontal, não podem os condóminos - que tiveram acesso ao título dessa constituição - pedir a nulidade parcial do título, invocando um desfasamento entre o aí constante e o que constava do projecto da obra, aprovado pela Câmara Municipal, e do licenciamento do prédio por esta feito, sob pena de tal actuação poder ser considerada um abuso de direito, na modalidade do "venire contra factum proprium".
3ª - O facto de, aquando da comercialização para venda, e celebração dos respectivos contratos-promessa, das fracções autónomas do prédio, o sócio e representante da proprietária ter dito aos promitentes-compradores (e posteriores proprietários) que o prédio em causa incluía nas suas partes comuns uma casa destinada a habitação poderia permitir a anulação dos contratos, a verificarem-se os requisitos do erro ou do dolo (artigos 247º a 254º do Código Civil), ou o pagamento de uma indemnização pela culpa in contrahendo (artigos 227º e 483º do mesmo diploma).
4ª - As normas do RGEU têm em vista assegurar as condições de segurança, estética e salubridade das edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das Câmaras Municipais.
5ª - Não resultando dos autos ter havido qualquer imposição legal no sentido de, no prédio, haver uma casa de porteira a fazer parte integrante das áreas comuns, e tendo a então única proprietária do prédio optado por incluir o espaço que, no projecto aprovado, estava reservado para esse efeito como fracção autónoma, também com destino a habitação, não pode ter aplicação o disposto no artigo 294º do Código Civil, que sanciona com a nulidade os negócios jurídicos celebrados com disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.

IV - Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, decide-se julgar improcedente, por não provada, a acção, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
Custas - aqui e nas instâncias - a cargo do recorrido.

Lisboa, 4 de Novembro de 2003
Moreira Camilo
Lopes Pinto
Pinto Monteiro