Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
55/07.7TTLMG.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : 1. Apurando-se, apenas, que o acidente se verificou «quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina» e que esta máquina «não estava dotada de um elemento protector do disco de corte», desconhece-se o processo naturalístico que, em concreto, lhe deu origem, pelo que não é possível afirmar a existência de nexo de causalidade entre a violação, por parte da empregadora, das normas de segurança no trabalho que lhe impunham dotar a ferramenta de corte da máquina dos adequados protectores e a eclosão do acidente.
2. Não se extraindo da matéria de facto provada que o acidente tenha resultado da inobservância, pela ré empregadora, de regras sobre segurança no trabalho, não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilização da empregadora, cuja previsão consta do n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em 16 de Outubro de 2007, no Tribunal do Trabalho de Lamego, Secção Única, AA instaurou a presente acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra COMPANHIA DE SEGUROS BB, S. A., e CC, L.da, pedindo que as rés fossem condenadas a pagarem-lhe (i) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.543, a partir de 9 de Maio de 2007, (ii) € 1.661, a título de indemnização pelas incapacidades temporárias sofridas, (iii) despesas de transportes, no valor de € 28, (iv) juros de mora desde o respectivo vencimento até integral pagamento.

Mais pediu, para o caso de se verificar culpa, por parte da ré empregadora, na produção do evento, que a pensão anual e as indemnizações fossem calculadas nos termos dos artigos 18.º e 37.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.

Alegou, em resumo, ter sido vítima de um acidente quando exercia funções, sob a autoridade e direcção da segunda ré, mediante a retribuição de € 450 x 14, de que resultaram lesões que lhe determinaram uma ITA de 53 dias, uma ITP a 70%, de 118 dias, e uma IPP de 35%, a partir de 9 de Maio de 2007, e que a responsabilidade infortunística da ré empregadora estava validamente transferida para ré seguradora, pelo aludido montante salarial, sendo que a seguradora recusou o acordo proposto na fase conciliatória dos autos por entender que houve violação de regras de segurança por parte da ré empregadora.

A seguradora contestou, invocando que o acidente ocorreu por negligência grosseira do sinistrado e por violação de regras de segurança no trabalho, por parte da ré empregadora.

A empregadora também contestou, alegando não ter existido a violação de regras de segurança no trabalho e que a sua eventual responsabilidade infortunística se achava totalmente transferida para a ré seguradora.

Findos os articulados, foi proferido o despacho saneador, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, sendo determinado o desdobramento do processo para fixação da incapacidade para o trabalho.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré seguradora a pagar ao autor: (a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.036,35, a partir de 9 de Maio de 2007; (b) a quantia global de € 1.862, a título de indemnização por incapacidades temporárias; (c) € 28, respeitantes a despesas de deslocação obrigatórias; e (d) juros de mora, à taxa legal, desde a data do respectivo vencimento da pensão e da indemnização e desde a data da citação no que respeita à verba aludida na alínea c).

A ré empregadora foi absolvida da totalidade do pedido.

2. Inconformada, a ré seguradora interpôs recurso de apelação, sendo que o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida, por considerar que, «no caso em apreço, os factos provados não tornam possível afirmar o nexo de causalidade exigido pelo art. 18.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13.09, em ordem à responsabilização da Ré empregadora».

É contra esta decisão que a ré seguradora se insurge, mediante recurso de revista, em que alinha as conclusões seguintes:

«I. Com o devido respeito por diferente opinião, entende a Recorrente que o Acórdão recorrido fez incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos em discussão nos presentes autos relativamente à questão essencial suscitada na apelação, a saber, a violação das regras de segurança pela entidade empregadora.
II. Conexa com esta, mas não menos relevante, é a questão da falta de prova quanto ao nexo causal entre a violação das regras de segurança impostas por lei à entidade empregadora e a ocorrência do acidente e ao respectivo ónus de prova.
III. Atentos os factos provados, designadamente nas alíneas A), B), D), E) e F), citados no corpo da presente alegação, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos, é inquestionável que a entidade empregadora violou regras de segurança indispensáveis à execução dos trabalhos em questão nos autos.
IV. Não pode honestamente pôr-se em dúvida que se tivesse sido instalado na máquina “alinhadeira” um elemento protector do disco de corte destinado a impedir o contacto da lâmina com as mãos do trabalhador, o acidente não teria ocorrido.
V. O Acórdão recorrido começa por enumerar de forma exaustiva, fls. 377 a fls. 381, as regras de segurança no trabalho, designadamente as aplicáveis na utilização, de equipamentos pelos trabalhadores na execução de trabalhos com máquinas de corte.
VI. Uma das regras de segurança enumeradas, o art. 15.º do DL n.º 50/2005, de 25.02., com a epígrafe “Riscos de contacto mecânico” (diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 89/655/CEE do Conselho, de 30.11, alterada pela Directiva n.º 95/63/CEE do Conselho, de 05.11, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamento de trabalho e reproduz o que já dispunha o art. 18.º do DL 82/99, de 16.03, nesta matéria) prevê, no seu n.º 1, que: “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas” […].
VII. Por seu turno, outra das normas de segurança enumeradas, a saber, o art. 56.º-A, n.º 1, da Portaria n.º 53/71, de 03.02 (com a redacção introduzida pela Portaria n.º 702/80, de 22.09, que aprovou o Regime Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais) estabelece o dever de “as máquinas de trabalhar madeira ou produtos similares” terem “a ferramenta de corte protegida de modo a impedir que as mãos do trabalhador contactem com ela”.
VIII. Por fim, o art. 3.º, als. c) e d), da citada Portaria n.º 53/71 e o art. 3.º, als. a), b), d) e e) do citado DL n.º 50/2005, impõem à entidade empregadora o dever e a obrigação de:
– Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;
– Atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos, resultantes da sua utilização;
– Quando os procedimentos previstos nas alíneas anteriores não permitam assegurar eficazmente a segurança, e saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho, tomar as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes;
– Assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos arts. 10.º a 29.º e não provoquem riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores.
IX. No caso em análise, as supra citadas prescrições foram clara e inequivocamente violadas pela entidade empregadora, a co-Ré “CC, Lda.”, da qual o Autor/sinistrado é sócio-gerente.
X. Como ficou demonstrado pela resposta ao quesito 2.º (Alínea E) da fundamentação de facto), a máquina não estava dotada de um elemento protector do disco de corte, ou seja, da própria lâmina, de forma a impedir o acesso à mesma, em clara violação com os citados arts. 16.º do DL n.º 50/2005 e 56.º-A, n.º 1, da Portaria n.º 53/71.
XI. A responsabilidade pela implementação, observância e fiscalização do cumprimento das regras de segurança está adstrita à entidade empregadora, face ao que dispõe o art. 8.º, n.os 1, 2 e 3 do DL n.º 441/91, de 14.11, o qual consagra a obrigação de o empregador assegurar, por um lado, aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho e, por outro, a aplicação dos meios necessários à concretização dos princípios de prevenção e segurança no trabalho.
XII. Estas obrigações são igualmente reforçadas pelo disposto no art. 4.º, n.os 1 e 2, do DL n.º 50/2005, que impõem à entidade empregadora o dever e a obrigação de tomar as medidas adequadas para minimizar e prevenir os riscos que possam afectar a vida e a segurança dos trabalhadores.
XIII. Note-se que é sobre a entidade empregadora que recaem os deveres e obrigações de cumprimento das regras de segurança, com vista a acautelar a saúde, a integridade e a higiene dos seus trabalhadores; é a entidade empregadora que deve planificar de forma adequada os riscos profissionais e implementar todas as medidas necessárias a evitá-los e é a entidade empregadora que está presente — ou deveria estar, por si ou através de um representante habilitado para tal — no decurso da realização dos trabalhos, de forma a poder cumprir o dever de fiscalização das regras de segurança.
XIV. A entidade empregadora do A. — que, em boa verdade, é ele próprio, sócio-gerente — forneceu e permitiu a utilização de um equipamento de trabalho que não respeita as prescrições mínimas de segurança previstas na lei.
XV. São dois os requisitos cumulativos previstos pelo art. 18.º da Lei n.º 100/97, de 13.09, necessários à responsabilização da entidade empregadora: o dever da entidade empregadora observar determinadas regras de segurança, cuja observância, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação do acidente e que não as tenha cumprido, não tomando por esse motivo a diligência exigível a um empregador normal e que entre esse comportamento inadimplente e o acidente exista um nexo de causalidade adequada.
XVI. E, contrariamente ao decidido, no caso dos presentes autos, verificam-se os dois requisitos cumulativos supra citados.
XVII. O próprio Acórdão recorrido reconhece expressamente a fls. 383 que a Ré entidade empregadora violou regras sobre segurança no trabalho, nomeadamente as estabelecidas nos arts. 56.º-A da Portaria n.º 53/71, 16.º, n.º 1, do DL n.º 50/2005 e 273.º, n.os 1 e 2, al. a), do Código do Trabalho de 2003, pelo que o primeiro dos requisitos acima referidos encontra-se preenchido.
XVIII. No entanto, fundamenta a sua decisão de improcedência da tese defendida pela ora Recorrente no facto de não resultar da matéria factual dada como provada “(…) qualquer vinculação causal entre a inobservância das citadas normas e a produção do acidente do autor”, na medida em que “(...) dos factos apurados apenas se extrai que o acidente ocorreu quando o autor cortava umas tábuas com a máquina”, nada se apurando sobre a dinâmica do acidente.
XIX. Com todo o respeito que nos merece o Tribunal a quo tal conclusão reconduz-se à já “estafada” questão da alegada falta de demonstração da dinâmica do acidente.
XX. A inexistência do elemento protector da lâmina da máquina que o sinistrado utilizava (logo, em movimento) foi CAUSA ADEQUADA do acidente e dos danos resultantes do mesmo, precisamente porque “(...) quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina — desprovida de qualquer elemento protector do disco de corte —, cortou quatro dedos da mão direita” (cfr. alíneas A) e E) dos Factos Provados).
XXI. É esta a dinâmica do acidente: O Autor executava trabalhos de corte de madeira com a dita máquina “alinhadeira”, cuja ferramenta de corte/lâmina não estava protegida, como devia, de modo a impedir que as mãos do Autor contactassem com ela, facto que originou o corte dos seus quatro dedos da mão direita.
XXII. Que outro fenómeno ou processo causa poderia ter “causado” o acidente, ou mais precisamente, o corte dos dedos, do Autor, que não uma lâmina em funcionamento sem qualquer protecção? Já é tempo de o Direito regular e resolver as situações reais e concretas do quotidiano laboral, designadamente as que respeitam, aos acidentes de trabalho, e deixar de equacionar apenas hipóteses teóricas, sem decidir a questão essencial do nexo causal, “adequando-o” à realidade desse mesmo quotidiano.
XXIII. “(…) apenas não existirá causalidade adequada se o facto, de todo em todo, nada tiver a ver com o dano, dentro de juízos de previsibilidade e segundo critérios da experiência comum” (Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 1970, pág. 659) […].
XXIV. Deve, pois, apelar-se às realidades do quotidiano, a juízos de probabilidade, às regras da experiência, para se concluir pela adequação, ou não, de um determinado facto para a produção do dano.
XXV. Ora, no caso dos autos, as realidades do quotidiano, as regras da experiência comum e os juízos de previsibilidade demonstram que a inexistência da protecção do elemento de corte da máquina (facto) tem tudo a ver com o dano!
XXVI. A mais elementar prudência impunha que a execução do trabalho executado pelo A./sinistrado — ainda que simples e de mera rotina — fosse efectuado com a protecção da lâmina.
XXVII. Há um aspecto que é essencial no conjunto das circunstâncias em que o acidente se verifica: o risco é enorme, pois trata-se da movimentação de uma lâmina a grande velocidade, sem qualquer protecção. Ou seja, a consequência de um acidente será precisamente o corte da mão que estiver mais próxima.
XXVIII. Assim, a entidade empregadora do sinistrado, ao permitir que o sinistrado executasse os trabalhos de corte nas condições apuradas nos autos, sem qualquer protecção da lâmina, desconsiderou e descuidou riscos e perigos previsíveis, violando, assim, normas legais de segurança no trabalho.
XXIX. O nexo de causalidade entre essa violação e acidente em discussão nos autos existe e está demonstrado.
XXX. A este propósito e na esteira do ora defendido pela Recorrente, cita-se o recente Acórdão do STJ de 23.09.2009, proferido no processo n.º 23/04.0TTVCT.S1, que analisa também a questão da “causalidade adequada” ora suscitada (embora num caso de queda em altura):
“ A implementação das medidas de protecção previstas nos normativos legais referidos visa prevenir o simples risco de queda em altura, mesmo o decorrente dos meros descuidos, de momentânea distracção ou de outra situação imprevista. E, no caso em apreço, aquele risco existia efectivamente, apesar do telhado ser composto maioritariamente por chapas metálicas.
O sinistrado estava, pois, obrigado a cumprir o disposto nos normativos legais em causa. Não o tendo feito, violou as normas de segurança previstas na lei e, face ao circunstancialismo em que a queda ocorreu (uma das chapas translúcidas cedeu quando foi, pisada pelo autor), tal violação mostra-se causa do acidente, por ter integrado o processo naturalístico que conduziu à queda e por não ter sido indiferente para a produção desta” […].
XXXI. Como resulta da decisão supra citada, o STJ decidiu em sentido oposto ao Acórdão recorrido, na medida em que considerou que a violação das normas de segurança “integrou o processo naturalístico que conduziu” ao corte dos dedos do A. e não foi indiferente para a ocorrência do acidente.
XXXII. Pelo que, nas circunstâncias concretas dos autos, o acidente resultou da falta de observância de normas e regras de segurança, por parte da entidade empregadora, aplicando-se a previsão do art. 18.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
XXXIII. Face ao acima exposto, a decisão sub judice fez errada interpretação dos factos dados como provados e, consequentemente, uma incorrecta aplicação do direito aos mesmos, designadamente, do art. 18.º, n.º l, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, em conjugação com o art. [8.º], n.os 1, 2 e 3 do DL n.º 441/91, de 14.11 (com a alteração do DL n.º 133/99, de 21.04, e da Lei 118/99, de 11.08), com os arts. 3.º, als. a), b), d) e e), 4.º, n.os 1 e 2, e 16.º do DL n.º 50/2005, de 25.02 e ainda com os arts. 3.º, als. c) e d), e 56.º-A, n.º 1, da Portaria n.º 53/71, de 03.02, com a redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 702/80, de 22.09, devendo, assim, ser revogada e substituída por outra que condene a entidade empregadora como responsável principal.»

A ré empregadora contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se no sentido de que a revista devia ser negada, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da recorrente para dele discordar.

3. No caso vertente, a questão posta reconduz-se a saber se existe nexo de causalidade entre a inobservância das regras sobre segurança no trabalho por parte da empregadora e a produção do acidente.

É certo que a recorrente, na alegação do recurso de revista, equaciona ainda a questão de saber se ocorreu a violação das regras sobre segurança no trabalho, por parte da entidade empregadora; porém, o acórdão recorrido, tal como a recorrente reconhece [conclusão XVII)], decidiu que «a ré seguradora logrou demonstrar que a empregadora violou regras sobre segurança no trabalho, nomeadamente as estabelecidas nos artigos 56.º-A, da Portaria n.º 53/71, 16.º, n.º 1, do DL n.º 50/2005, e 273.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código do Trabalho de 2003», segmento decisório que deve ter-se por assente, visto que, nesta parte, a recorrente não ficou vencida, o que obsta à sua reapreciação por este Supremo Tribunal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 680.º do Código de Processo Civil.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

II

1. O tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) Em 18.11.2006, pelas 18,00 horas, em Tabuaço, quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina, cortou quatro dedos da mão direita;
B) Nessas circunstâncias, o Autor prestava o seu serviço de sócio-gerente à 2.ª Ré CC, Lda., auferindo a retribuição de € 450,00 x 14;
C) A 2.ª Ré tinha a sua responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a 1.ª Ré, pela totalidade do salário auferido pelo Autor;
D) A máquina em que o Autor se cortou, nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em A), era uma «alinhadeira» (resposta ao quesito 1.º);
E) A dita máquina não estava dotada de um elemento protector do disco de corte (resposta ao quesito 2.º);
F) A retirada de desperdícios de madeira da máquina em questão não deverá ser efectuada com a lâmina de corte em movimento (resposta ao quesito 5.º);
G) Em despesas obrigatórias, o Autor despendeu € 28 (assente por confissão das RR);
H) O Autor nasceu a 3 de Outubro de 1978 (cf. assento de nascimento de fls. 75).

Mais se consignou no aresto recorrido que, por decisão proferida no apenso de fixação de incapacidade, «o Autor ficou afectado de uma IPP de 23,5%, a partir de 09.05.2007» e que «como resultado do acidente, o Autor esteve em situação de ITA desde 19.11.2006 até 31.03.2007 e em ITP de 50% de 01.04.2007 até 08.05.2007».

Eis o acervo factual a considerar para resolver a questão posta no recurso.

2. A ré seguradora sustenta que os factos materiais dados como provados permitem afirmar a existência de vinculação causal entre a inobservância por parte da ré empregadora das sobreditas normas sobre segurança no trabalho e a eclosão do sinistro, uma vez que a inexistência do elemento protector da máquina que o sinistrado utilizava (logo em movimento) foi causa adequada do acidente e dos danos resultantes do mesmo, precisamente porque «[…] quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina — desprovida de qualquer elemento protector do disco de corte — cortou quatro dedos da mão direita», sendo que a dinâmica do acidente é esta: o autor executava trabalhos de corte de madeira com a dita máquina alinhadeira, cuja ferramenta de corte/lâmina não estava protegida, como devia, por forma a impedir que as mãos do autor contactassem com ela, facto que originou o corte de quatro dedos da mão direita.

Mais aduz que já é tempo de o Direito regular e resolver as situações reais e concretas do quotidiano laboral, designadamente as que respeitam aos acidentes de trabalho e deixar de equacionar apenas hipóteses teóricas sem decidir a questão essencial do nexo causal, adequando-o à realidade desse mesmo quotidiano, sendo que, no caso dos autos, as realidades do quotidiano, as regras da experiência comum e os juízos de previsibilidade demonstram que a inexistência da protecção do elemento de corte da máquina (facto) tem tudo a ver com o dano.

Como já se referiu, o aresto recorrido considerou que tinha havido violação das regras sobre segurança no trabalho por parte da empregadora, mas concluiu não se ter provado o nexo de causalidade entre essa violação e a produção do acidente.

2.1. O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.

O acidente dos autos ocorreu em 18 de Novembro de 2006, donde, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.

Note-se que, embora o acidente dos autos se tenha verificado após a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o que se verificou em 1 de Dezembro de 2003 (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003), não se aplica o correspondente regime jurídico, cuja aplicação carecia de regulamentação (artigos 3.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 99/2003).

O n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 100/97, sob a epígrafe «Casos especiais de reparação», estabelece que «[q]uando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes: (a) nos casos de incapacidade absoluta, permanente ou temporária, e de morte, serão iguais à retribuição; (b) nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, terão por base a redução de capacidade resultante do acidente.»

Por seu lado, o n.º 2 do artigo 37.º da mesma Lei dispõe que «[v]erificando--se alguma das situações referidas no artigo 18.º, n.º 1, a responsabilidade nela prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei».

Assim, no domínio daquele regime jurídico, a responsabilidade agravada do empregador tem dois fundamentos autónomos: (i) um comportamento culposo da sua parte; (ii) a não observação pelo empregador das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

A única diferença entre aqueles fundamentos reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo (neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 18 de Abril de 2007, Processo n.º 4473/06 – 4.ª Secção).

Tal como se pondera, sobre a apontada temática, no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Dezembro de 2008 (Processo n.º 2271/2008 da 4.ª Secção):

« A anterior lei dos acidentes de trabalho (a Lei n.º 2.127, de 3.8.65) previa, na sua Base XVII, os chamados “casos especiais de reparação”. Aí se previa o agravamento das indemnizações e pensões previstas na Base anterior, quando o acidente tivesse sido dolosamente provocado pela entidade patronal ou seu representante (n.º 1) ou quando o acidente tivesse resultado de culpa da entidade patronal ou do seu representante (n.º 2).
E, relacionado com o disposto no n.º 2 da Base XVII, o art. 54.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, que veio regulamentar a Lei n.º 2127, estabelecia que “[p]ara efeitos do disposto no n.º 2 da Base XVII, considera-se ter resultado de culpa da entidade patronal ou de seu representante o acidente devido à inobservância de preceitos legais e regulamentares, assim como de directivas das entidades competentes, que se refiram à higiene e segurança no trabalho”.
Como resulta do teor do citado art. 54.º, conjugado com o n.º 2 da Base XVII da Lei n.º 2127, aquele artigo limitou-se a estabelecer uma presunção de culpa por parte do empregador, quando se provasse que o acidente tinha resultado da violação das normas referentes à higiene e segurança no trabalho. Ou seja, o legislador considerava que a violação das normas de segurança constituía, em si mesma, e em princípio, uma conduta culposa.
A actual LAT (a Lei n.º 100/97, de 13/9) não contém disposição idêntica à do art. 54.º do Decreto n.º 360/71, o mesmo acontecendo com o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4 que a veio regulamentar.
Todavia, isso não significa que o regime da actual LAT, no que toca à culpa da entidade empregadora na produção do acidente, quando este resulte da violação das normas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, seja mais restritivo do que o regime anterior.
Com efeito, importa atentar que a Lei n.º 100/97 veio regular de forma diferente os “casos especiais de reparação”, ao estabelecer, no n.º 1 do seu art. 18.º, o agravamento das prestações “[q]uando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho”.
Ora, como decorre do confronto do normativo referido com o disposto na Base XVII, n.os 1 e 2, da Lei n.º 2127, a Lei n.º 100/97 deixou de distinguir o dolo da negligência, passando a responsabilidade agravada do empregador a existir em qualquer hipótese de culpa (a palavra provocado abrange o dolo e a mera culpa) e a falta de observância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho passou a constituir um fundamento autónomo do agravamento das prestações, o que não acontecia na Lei n.º 2127, pois aí não passava de uma mera presunção de culpa na produção do acidente.
Por outras palavras, na Lei n.º 100/97, a violação por parte da entidade empregadora ou do seu representante das mencionadas regras passou a constituir um caso de culpa efectiva e não um caso de culpa meramente presumida, como sucedia no regime anterior.
E compreende-se que assim seja, uma vez que a culpa, na sua forma de mera culpa ou negligência, se traduz na omissão da diligência, dos deveres de cuidado que um bom pai de família teria observado, em face das circunstâncias do caso, a fim de evitar o facto antijurídico que provocou o dano (art. 487.º, n.º 2, do C.C).»

Assim, para efeitos de aplicação dos artigos 18.º, n.º 1, e 37.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, cabe aos beneficiários do direito à reparação por acidente de trabalho, bem como às seguradoras que pretendam ver desonerada a sua responsabilidade infortunística, o ónus de alegar e provar os factos que revelem que o acidente ocorreu por culpa do empregador ou que o mesmo resultou da inobservância por parte daquele de regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

Todavia, não basta que se verifique um comportamento culposo da entidade empregadora ou a inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por banda da mesma entidade, para responsabilizar esta, de forma agravada, pelas consequências do acidente, tornando-se, ainda, necessária a prova do nexo de causalidade entre essa conduta ou inobservância e a produção do acidente.

Na verdade, como é jurisprudência pacífica, o ónus de alegar e provar os factos que agravam a responsabilidade do empregador compete a quem dela tirar proveito, no caso, à ré seguradora, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

2.2. No caso vertente, provou-se que, «[e]m 18.11.2006, pelas 18,00 horas, em Tabuaço, quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina, cortou quatro dedos da mão direita», que, «[n]essas circunstâncias, o Autor prestava o seu serviço de sócio-gerente à 2.ª Ré CC, Lda., […]» e que «[a] 2.ª Ré tinha a sua responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a 1.ª Ré, pela totalidade do salário auferido pelo Autor» [factos provados A) a C)].

E mais se demonstrou que «[a] máquina em que o Autor se cortou, nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em A), era uma «alinhadeira», que «[a] dita máquina não estava dotada de um elemento protector do disco de corte» e que «[a] retirada de desperdícios de madeira da máquina em questão não deverá ser efectuada com a lâmina de corte em movimento» [factos provados D) a F)].

Assente que a ré empregadora violou regras sobre segurança no trabalho, «nomeadamente as estabelecidas nos artigos 56.º-A, da Portaria n.º 53/71, 16.º, n.º 1, do DL n.º 50/2005, e 273.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código do Trabalho de 2003», o certo é que não resulta dos factos materiais provados qualquer vinculação causal entre a falta de observação das sobreditas normas e a produção do acidente que vitimou o autor, porquanto apenas se apurou que o acidente ocorreu «quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina» e que esta máquina «não estava dotada de um elemento protector do disco de corte», desconhecendo-se o processo naturalístico que concretamente lhe deu origem.

2.3. O artigo 563.º do Código Civil, sob a epígrafe «Nexo de causalidade», ao estatuir que «[a] obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão», alicerçando a solução legislativa na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, evidencia que acolheu a teoria da causalidade adequada, na sua formulação mais generalizada.

Conforme se explicitou no acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Junho de 2007, proferido no Processo n.º 534/2007 da 4.ª Secção:

« No que ao nexo de causalidade concerne, perfilhando uma teoria de formulação negativa, tal como a que foi formulada por Enneccerus-Lehmann, para se usarem os ensinamentos de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Volume I, 748), “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente (…) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercedam no caso concreto”, sendo que, no juízo de prognose, em “condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo de responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele” (cfr., também, Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 3.ª edição, 518, para quem “o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em circunstâncias anómalas ou excepcionais”, e Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 392, que defende que a “orientação hoje dominante é a que considera causa de certo efeito a condição que se mostra, em abstracto, adequada a produzi-lo”, traduzindo-se essa adequação “em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios: se, segundo a experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente x se dá provavelmente o consequente y, haverá relação causal entre eles”).»

Nesta parametrização, e partindo da situação real posterior ao facto, a falta de observação pela ré empregadora das aludidas regras sobre segurança no trabalho, mais concretamente, o facto da ré empregadora não ter dotado a ferramenta de corte da máquina com os adequados dispositivos de protecção, poderá ser, porventura, em abstracto, condição da eclosão do acidente, mas não há entre os dois factos uma ligação que, segundo a regras comuns da vida, permita afirmar que, existindo o primeiro, provavelmente, se daria o segundo.

Isto é, no contexto de um juízo de probabilidade ex post, nada autoriza a pensar que o incumprimento das sobreditas regras sobre segurança no trabalho foi causa adequada daquele concreto acidente, pois este poderia ter ocorrido mesmo que a ré empregadora tivesse cumprido o dever de protecção em causa.

Tal como pondera a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta, «[e]m face da exiguidade da matéria de facto provada, consideramos que mesmo apelando às realidades do quotidiano, às regras da experiência e a juízos de previsibilidade não é possível afirmar a existência de nexo de causalidade entre a violação, por parte da Ré empregadora, das referidas normas de segurança e a eclosão do acidente. Com efeito, não está apurado o circunstancialismo em que o acidente concretamente ocorreu e, por isso, não é possível extrair qualquer vinculação causal entre a falta de instalação de um elemento protector no disco de corte e a produção do acidente. Conforme tem sido afirmado por este Supremo Tribunal, a teoria da causalidade adequada que o nosso Código Civil acolheu (artigo 563.º), pressupõe que o facto cuja causalidade se discute tenha sido uma das condições do dano ou do evento, ou seja, é necessário provar que esse facto integrou o processo causal do acidente (cfr. acórdãos do STJ de 27.11.2007, processo n.º 3661/07 e de 14.05.2008, processo n.º 324/08, 4.ª Secção). Ora, desconhecendo-se o processo naturalístico que concretamente deu origem ao acidente não é possível dar por verificado o nexo causal entre a violação das regras de segurança por parte da Ré empregadora e o acidente […].»

Competia à ré seguradora alegar e provar os factos conducentes a essa conclusão, ónus que não se mostra cumprido (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Não se tendo provado que o acidente tenha resultado da inobservância, pela ré empregadora, de regras sobre segurança no trabalho, não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilização do empregador, previstos no n.º 1 do artigo 18.º citado, termos em que improcedem as atinentes conclusões da alegação do recurso de revista.

III

Pelo exposto, decide-se negar a revista trazida pela seguradora e confirmar o acórdão recorrido.

Custas do recurso de revista a cargo da ré seguradora.

Lisboa, 25 de Novembro de 2010

Pinto Hespanhol (Relator)
Vasques Dinis
Mário Pereira