Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27/16.0GEMMN.E1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA ALMEIDA
Descritores: ESCUSA
ADVOGADO
IMPARCIALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A imparcialidade do tribunal constitui um dos elementos densificadores da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental.

II - O princípio do juiz natural, por sua vez, encontra-se inscrito no n.º 9 do art. 32.º da CRP, relativo às garantias do processo criminal, “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

III - Na ponderação entre o juiz natural, garantia da independência do juiz e dos direitos de defesa do arguido, e a garantia de imparcialidade, direito humano, na previsão do § 1 do art. 6.º da CEDH, encontrou no CPP a proporcionalidade adequada, por via da exigência, para a recusa ou escusa, de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

IV - Ao EMJ foi aditado pela Lei n.º 67/2019, de 27-08, disposição (art. 6.º-C) que faz figurar o dever de imparcialidade como primeiro dever do juiz, configurando-o como o dever agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir.

V - No processo penal, mostra-se estabelecido, no art. 43.º do CPP, um regime próprio sobre recusa e escusa do juiz que visa afastar as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade, por motivo, sério e grave e adequado a gerar tal desconfiança.

VI - A construção de instrumentos coerentes e objetivos de avaliação relativa à imparcialidade do juiz teve um contributo decisivo da jurisprudência do TEDH, na interpretação do segmento inicial do §1 do art. 6.º da CEDH; desde o acórdão Piersack v. Bélgica, de 1982, o TEDH tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um teste subjetivo, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito ou bias face a determinado caso, e a um teste objetivo que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade.

VII - O requerimento de escusa funda-se na relação de amizade entre o relator do recurso e o mandatário do arguido, sendo acentuada a intensidade e publicidade do convívio entre ambos, no círculo de amigos comuns.

VIII - As relações de amizade entre magistrados judiciais, do MP e advogados, são frequentes, recuando, muitas vezes, aos tempos de vida académica. São, em regra, proporcionadas por circunstâncias como a formação comum, a vida judiciária, atividades de formação ou o convívio organizado pelas associações profissionais, a nível local.

IX - A ligação de Desembargador relator e de advogado com o processo é profissional e orientada, num e noutro caso, por regras legais e normas deontológicas e éticas rigorosas.

X - Em causa está, exclusivamente, a perceção exterior de imparcialidade; saber se, numa compreensão de razoabilidade dos limites das aparências, esta amizade pode suscitar, no público conhecedor da situação relacional exposta, e especialmente nos destinatários da decisão a proferir, apreensão quanto à imparcialidade.

XI - Mas não uma apreensão qualquer; terá de, razoavelmente, ter motivo “sério e grave”, de modo a cumprir a exigência legal e afastar o princípio do juiz natural.

XII - A mera desconfiança sem fundamento sério ou motivação grave, suscetível de ser entendida como tal pelo cidadão médio, não integra razão para escusa de juiz.

Decisão Texto Integral:
O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, acorda:



I - Relatório:


AA, Juíza Desembargadora colocada no Tribunal da Relação ..., vem, ao abrigo do disposto no artigo 43.°, n.°s 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, solicitar escusa no processo n.° 27/16...., alegando: (transcrição)

1.  A requerente é amiga do Exm° Sr. Dr. BB, Mandatário do arguido no processo acima identificado.

2.  Decorrente da referida amizade a requerente é visita de casa do Exm° Sr. Dr. BB, integra o mesmo círculo de amizades e convivem, por esse motivo, de forma frequente, em acontecimentos de natureza social, designadamente em jantares, bem como em outros eventos de cariz público, nos quais também tomam parte outras pessoas do círculo de amigos da Requerente e do Exm° Sr. Dr. BB, que assim ficaram a par das relações de convivência existentes entre a Requerente e o Exm° Sr. Dr. BB.

3.  A imparcialidade do juiz, imanente ao acto de julgar e pressuposto de uma decisão justa, é essencial à confiança pública na administração da justiça e é "um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais, um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental" (artigo 6.°, §1, da CEDH e artigo 14.°, n.° 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).

4.   Nos termos do disposto nos n.°s 1, 2 e 4 do artigo 43.° do CPP, "[o] juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir" quando "correr o risco de [a sua intervenção]ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade ".

5.  Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 6 de Julho de 2005 (CJ, Acs. STJ, XIII, II, 236) «os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, "sérios" e "graves". (...) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (...) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.».

6.  Os factos acima relatados, não afectando embora a capacidade da signatária de apreciar e decidir as questões colocadas no indicado recurso de uma forma imparcial, podem constituir, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a proferir e, nessa mesma medida, desconfiança no sistema da justiça, globalmente considerado.

Termos em que, vem pedir a V. Excelências que lhe seja concedida escusa de intervir no indicado processo.


Colhidos os vistos legais e presentes os autos à conferência, cumpre conhecer e decidir.

E conhecendo.


II. É formulado um pedido de escusa de intervenção em processo judicial, na fase de recurso.

Nos termos do disposto no art. 45º nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de escusa do juiz, é apresentado, juntamente com elementos que o fundamentam, ao tribunal imediatamente superior, devendo o pedido ser formulado, conforme se estabelece no art. 44.º do CPP, até ao início da audiência.

A requerente apresentou o seu pedido em tempo, e este tribunal é o competente.


II.1. A independência do Tribunal e o dever de imparcialidade do juiz

O princípio da independência dos tribunais, consagrado no artigo 203.º da Constituição, implica uma exigência de imparcialidade que justifica uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz.

Ao Estatuto dos Magistrados Judiciais foi aditado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, disposição (artigo 6.º-C) que faz figurar o dever de imparcialidade como primeiro dever do juiz, configurando-o como o dever agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir.

Bem como foram reforçadas as garantias de imparcialidade, através das alterações introduzidas ao art. 7.º.

No processo penal, mostra-se estabelecido, no artigo 43º do Código de Processo Penal, um regime próprio sobre recusa e escusa do juiz que visa afastar as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz:

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.

A construção de instrumentos coerentes e objetivos de avaliação relativa à imparcialidade do juiz teve um contributo decisivo da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”.

Com efeito, a jurisprudência constante do TEDH, desde o acórdão Piersack v. Bélgica, de 1982. tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um teste subjetivo, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito ou bias face a determinado caso, e a um teste objetivo que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade.

Constituem referências fundamentais e testemunho da evolução jurisprudencial do TEDH, os acórdãos Piersack v. Bélgica, (8692/79), de 1.10/82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557), Cubber v. Bélgica, de 26.10.84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465),  Borgers v. Bélgica, de 30.10.91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e no Micallef v. Malte, de 15/10/2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031).

O teste objetivo respeita aos riscos de afetação da confiança que o tribunal deve inspirar no público, num Estado Democrático, num quadro de aparências cuja ponderação é fundamental.

Porque “justice must not only be done, it must also be seen to be done”[1], os tribunais devem acautelar-se contra a aparência de parcialidade, no respeito pela confiança pública e pela integridade do sistema judicial.[i]


II.2. A imparcialidade do juiz e o princípio do juiz natural

A imparcialidade do tribunal constitui, pois, um dos elementos densificadores da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental.

O princípio do juiz natural, por sua vez, encontra-se inscrito no n.º 9, do art. 32.º da Constituição, relativo às garantias do processo criminal, "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Consagra-se, assim, entre nós “o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior”. No ensinamento de J. Figueiredo Dias “a tanto vincula a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à administração da justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração”[2]

Na ponderação entre o juiz natural, ou legal, garantia da independência do juiz e dos direitos de defesa do arguido, e a garantia de imparcialidade, direito humano, na previsão do § 1 do art. 6.º da CEDH, encontrou o Código de Processo Penal a proporcionalidade adequada, por via da exigência, para a recusa ou escusa, de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

A jurisprudência deste Tribunal tem acompanhado a jurisprudência do TEDH e seguido, na aplicação da fórmula legal, um critério de particular exigência:

— (1) – As meras “relações de grande cordialidade”, mesmo que alongadas no tempo, não se perfilam, objectiva e realmente, como graves, idóneas e adequadas a perturbar um qualquer juiz quanto à decisão a tomar num quadro de imparcialidade, ou a gerar desconfiança sobre essa imparcialidade. (2) – Não justifica, pois, um pedido de escusa a circunstância de o assistente ter sido condiscípulo da esposa do magistrado julgador na ..., e de ser colega daquela na carreira de ... tendo-se por tal motivo gerado relações de grande cordialidade que perduram há largos anos. (AcSTJ de 24/9/2003, Proc. nº 2156/03-3)

— (1) – O princípio do juiz natural ou legal, constante do n.º 9 do art. 32.º da CRP, está inserido num preceito onde se consagram as garantias de defesa em processo criminal. (2) – Por isso, verifica-se que o princípio do juiz natural não foi estabelecido em função do poder de punir, mas apenas para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido. (3) – Com a regra do juiz natural ou legal procura-se sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente. (4) – Só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. (5) – Para que possa ser deferida a escusa de juiz, é necessário que: (i) – a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita; (ii) – por se verificar motivo, sério e grave; (iii) – adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (6) –Naturalmente, a imparcialidade presume-se. E não bastará alegar a falta de garantias de imparcialidade, já que essa mesma falta sempre terá de ser objectivamente demonstrada. (AcSTJ de 19/2/2004, Proc. nº 496/04-5)

— 1 - Para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 43.º do CPP - a existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, relevam fundamentalmente as aparências. Não é a exigida capacidade de imparcialidade do julgador que importa aqui acautelar, mas antes assegurar para o exterior, para os destinatários da justiça, a comunidade, essa imagem de imparcialidade. (2) – A seriedade e gravidade do motivo, exigidas por lei, não são valoradas exclusivamente na perspectiva do requerente mas, fundamentalmente, pela impressão que concretamente possam causar na imagem de imparcialidade própria do homem médio suposto pela ordem jurídica. (3) – As relações pessoais e de amizade entre o Senhor Juiz Desembargador e um dos arguidos, longas de mais de 20 anos, são não só susceptíveis de afectar a justiça da decisão, pela acrescida preocupação de, no caso, o primeiro mostrar a sua imparcialidade, como de criar dúvidas sérias, no espírito da comunidade, sobre a exigida equidistância entre o Juiz e os arguidos, especialmente estando em causa, como aqui estão, crimes de natureza fiscal, ditos de colarinho branco, cujo desvalor ético-jurídico continua a não ser devidamente interiorizado, pelo que é de conceder a solicitada escusa. (AcSTJ de 22/6/2005, Proc. nº 1929/05-3);

— (1) – A imparcialidade subjectiva tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. (2) – A perspectiva subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário. (3) – Neste aspecto a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva. (4) – Mas a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Revela, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva. Nesta abordagem, em que são relevantes as aparências, intervêm por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v.g. a não cumulabilidade de funções em fases distintas do processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. (5) – A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o «ser» e o «parecer». (6) – Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na «tirania das aparências» ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser. (7) – As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e «grave») para impor a prevenção. (8) – O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do art. 40.º do CPP - art. 43 .º, n.ºs 1, 2 e 4, do mesmo diploma. (9) – A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança entre os interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. (AcSTJ de 6/7/2005, Proc. nº 2540/05-3)

— (1) – No incidente de escusa, a questão essencial a decidir consiste em saber se, no caso, o posicionamento circunstancial do juiz escusante, perante um ou alguns dos arguidos no processo, constitui "motivo sério e grave", adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (2) – Os actos geradores de desconfiança hão-de ter repercussão na generalidade da opinião pública de modo que esta sinta - fundadamente - que o juiz em causa, em função deles, está ou pode estar tomado de preconceito relativamente à decisão final. (3) – A gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei, hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da Justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer, o leve a não confiar na actuação concreta do magistrado. (AcSTJ de 6/10/2005, Proc. nº 3195/05-5)

— (1) – No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição - art. 32.º, n.º 9 -, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º 1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita. (AcSTJ de 14/6/2006, Proc. nº 1286/06-5).

Em suma, nestes e noutros requerimentos de escusa submetidos à apreciação deste Tribunal, consideraram-se aptas a afetar a confiança externa na administração concreta da Justiça, no essencial, situações de proximidade relacional com sujeitos processuais e interesses pessoais do julgador conexos com o objeto do processo.

Sempre, numa perspetiva de exigência de avaliação que harmonize os princípios e direitos em colisão, face às circunstâncias concretas desveladas.


II.3. A escusa no caso

A Ex.ma Senhora Desembargadora indica, como situação pessoal subsumível ao conceito de motivo sério e grave, adequado a gerar suspeita sobre a sua imparcialidade, a relação de amizade que mantém com o Mandatário do arguido no processo n.° 27/16...., pendente no Tribunal da Relação ....

Acentua a intensidade e publicidade do convívio entre ambos, no círculo de amigos comuns.

As relações de amizade entre magistrados judiciais, do Ministério Público e advogados, são frequentes, recuando, muitas vezes, aos tempos de vida académica. São, em regra, proporcionadas por circunstâncias como a formação comum, a vida judiciária, atividades de formação ou o convívio organizado pelas associações profissionais, a nível local.

Na ótica da eficiência dos tribunais, a procedência de escusa com este fundamento, revelar-se-ia de difícil acomodação

O Senhor Advogado não é parte no processo, não tem uma relação pessoal com os factos.

A ligação da Senhora Juiz Desembargadora e do Ilustre Advogado com o processo é profissional e orientada, num e noutro caso, por regras legais e normas deontológicas e éticas rigorosas.

Note-se que não está em causa a imparcialidade subjetiva do julgador que, aliás, se presume até prova em contrário.

Em causa está, exclusivamente, a perceção exterior de imparcialidade; saber se, numa compreensão de razoabilidade dos limites das aparências, esta amizade pode externamente suscitar, no público conhecedor da situação relacional exposta, e especialmente nos destinatários da decisão a proferir, apreensões quanto à imparcialidade.

Mas não uma apreensão qualquer; terá de, razoavelmente, ter motivo “sério e grave”, de modo a cumprir a exigência legal e afastar o princípio do juiz natural.

A mera desconfiança sem fundamento sério ou motivação grave, suscetível de ser entendida como tal pelo cidadão médio, não integra razão para escusa de juiz.


Assim, não colhendo os motivos e fundamentos invocados, conclui-se pela improcedência do vertente pedido de escusa.


III. DECISÃO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª secção criminal, decide, indeferindo o pedido da Requerente Juíza Desembargadora AA, recusar o pedido de escusa formulado.


Sem custas.


Lisboa

Teresa de Almeida (Relatora)

Lopes da Mota (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Arvind Datar, Rex v. Sussex Justices, [1924]
[2] Direito Processual Penal , 1º vol. pag 322.