Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P3280
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
MEIO INSIDIOSO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: SJ200310160032805
Data do Acordão: 10/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J FIGUEIRÓ VINHOS
Processo no Tribunal Recurso: 42/02
Data: 07/15/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - Tratando-se de procedimento por crime público em que, sem excepções, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, o caso é de clara, ampla e irrestrita titularidade da acção penal pelo Ministério Público, cumprindo-lhe a prossecução penal que se efectiva através do exercício da acção e da representação da acusação no processo em juízo.
II - Se é o Ministério Público o titular - neste caso, titular exclusivo - da acção penal, se lhe compete também, em exclusivo, representar a acusação e se, em contraponto, os assistentes são in casu meros colaboradores subordinados, não se veria bem onde ancorar a pretensão de, por único alvedrio destes, e porventura em muitos casos contra o entendimento do titular da causa, e necessariamente movidos, por motivações que, por válidas e compreensíveis que pudessem ser, não prescindirão da contemplação do processo penal à lupa de interesses pessoais, sejam eles ou não de cariz puramente material, mas, em qualquer caso, distintos do interesse público que subjaz à causa penal, emancipá-los do seu estatuto subordinado, para, em suma, lhes permitir a assunção, a partir de certo momento - que seria o da conformação definitiva do MP com a decisão proferida - de titulares efectivas da causa penal, invertendo claramente os papéis de cada um deles.
III - Nesta perspectiva, naturalmente de afastar, não poderá deixar de ter-se o assistente como não afectado pela decisão que qualifique os factos e fixe o quantum da pena contra o seu entendimento, ou, por outra via, de entender-se que tal decisão não é contra ele proferida, pese embora, como em relação qualquer outro cidadão, indirectamente, a sentença o possa ter também atingido, pois, tendo em conta os interesses públicos subjacentes à dinâmica da causa penal, mormente desencadeada por crimes públicos, o interesse relevante para aferição da legitimidade para recorrer é - só pode ser - o do titular dela, numa palavra, do Ministério Público.
IV - Se o Ministério Público, assumindo a titularidade da causa, converge com os mesmos assistentes na crítica da sentença do tribunal de júri no tocante à qualificação jurídica dos factos e à medida da pena aplicada, aos assistentes não só falece legitimidade para atacar esse aspecto essencial da causa, cuja defesa está afecta àquele titular, como lhes falece, mesmo, interesse em agir, já que, não sendo sua a titularidade respectiva, repousa sobre os ombros do quem tem a responsabilidade de a levar até ao fim, nomeadamente quanto ao acerto da incriminação, a responsabilidade da condução do processo (de que o assistente está exonerado nessa exacta medida, e, assim, para garantia da legalidade não precisa aquele de tomar qualquer iniciativa processual, movendo o recurso e lançar mão da respectiva demanda, pois o MP tem o dever funcional de o fazer).
V - Num caso como este, com efeito, estivesse apenas em causa, imediatamente, o rigor da incriminação e nada mais, dificilmente se poderia afirmar por banda dos assistentes um «concreto e próprio» interesse [em agir] no recurso, acaso, mesmo aqui, fosse entendido ser de aplicar também a doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/99, deste Supremo Tribunal, tirado para situação processual próxima da aqui discutida.
VI - A possibilidade de recurso autónomo por banda do assistente em acção por crime público - art.º 69.º, n.º 2, c), do CPP - refere-se, tão-só, às situações processuais em que aquele é directamente afectado, a decisão directamente o desfavorece, enfim, atinge algum «concreto próprio interesse» seu, digno de protecção e é, nessa medida, contra si proferida, o que, sem estar inteiramente arredado na acção penal por crime público, naturalmente com mais frequência, terá oportunidade de acontecer quando o procedimento criminal é instaurado nos termos dos artigos 49.º e (ou) 50.º, do CPP, citados.
VII - A doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/99 do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.10.97, DR, I Série de 10/8/99, ao exigir «um concreto e próprio interesse em agir» ao assistente para recorrer não parece, na lógica das coisas, servir de argumento válido aos recorrentes, nem contrariar este ponto de vista, a final restritivo, do direito ao recurso do assistente em processo penal.
VIII - O escopo essencial da intervenção dos assistentes em processo penal, prende-se com a mais valia que podem aportar em sede probatória.
IX - Daí a possibilidade de invocação - independentemente do MP - de vícios da matéria de facto, onde, as provas, naturalmente, são elemento decisivo para superá-los, caso existam, assistindo-lhes a reclamada legitimidade para o recurso, e, mesmo, o interesse em agir, já que, não tendo o MP impugnado esse aspecto da decisão, só por via do recurso que interpuseram os assistentes lograriam vê-lo apreciado.
X - Para efeitos de qualificação do homicídio, por meio insidioso, é de ter se tiver aquele cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto - que, por sê-lo, não poderia deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.
XI - A circunstância de, no caso, a arma do crime ter sido uma espingarda de caça, reforça a ideia de total desajustamento ao conceito de «meio insidioso», pois uma arma desse tipo, quando comparada com uma pistola ou um revólver, pela sua maior dimensão - para mais usada nos confins necessariamente acanhados de uma casa de habitação, no caso, de um quarto de dormir - torna-se, notoriamente, num instrumento de muito mais difícil manuseamento, e ainda de mais difícil dissimulação.
XII - Por mais abrupta que seja ou tivesse sido a intervenção do agressor, jamais se pode equiparar, para efeitos de capacidade de dissimulação do meio e correspondente inconsciência de necessidade de defesa da vítima, essa utilização com a de um outro que, pelo seu carácter dissimulado, oculto, subreptício, enganador, assuma características análogas às do veneno, a ponto de, como regra, a vítima nem sequer suspeitar que está já a ser atingida.
XIII - Age com compreensível emoção violenta o sogro que mata o genro com um tiro de caçadeira na cabeça, no seguinte quadro de facto, por si conhecido e vivido de perto, depois de, em vão, durante mais de seis anos, ter tentado solucionar pela palavra os múltiplos diferendos entre a vítima, por um lado e a filha e netos, por outro :
Ao regressar a casa, nas circunstâncias de tempo e no estado referidos (...), repetidas e frequentes vezes, acordava a sua esposa e os demais membros do seu agregado familiar , em especial a sua esposa e os dois filhos mais velhos do casal, com o exclusivo propósito de gratuitamente os manter acordados durante várias horas e de com eles discutir sem qualquer tipo de justificação para o efeito;»
... a pretexto de que a sua filha mais velha tinha cortado o cabelo sem a sua autorização, a vítima desferiu- lhe um soco, em consequência do que a sua filha perdeu os sentidos e caiu ao chão; »
... Noutra ocasião, (...) a vítima apertou o pescoço a sua esposa; »
...Noutra ocasião, (...) estando ele embriagado e no interior de um veículo automóvel, estando a sua esposa no seu exterior, a vítima puxou pelos cabelos de sua esposa, de tal modo e com tal violência que a mesma entrou para o interior do mencionado veículo pela janela do mesmo;»
...Noutra ocasião, (...) estando ele embriagado, com utilização de uma faca de cozinha, na presença dos dois filhos mais velhos do casal, a vítima ameaçou a sua esposa de morte, tendo sido a filha mais velha do casal quem, depois do agressor adormecer, lhe retirou e escondeu tal faca; »
...Ainda noutra ocasião, (...) estando ele embriagado e por causa de ter procurado agredir sua esposa, a vítima cortou-se numa mão, razão pela qual começou a deitar sangue, sendo que nessa ocasião obrigou a sua esposa e a filha mais velha do casal a recolher esse sangue numa frigideira, com a argumentação de que esse sangue deveria ser frito e por eles consumido; »
...Repetidas vezes, a vítima obrigava a sua esposa, contra a vontade desta, a relacionar-se sexualmente consigo; »
... Repetidas vezes, a vitima chamava "gorda", "feia" e "burra" à sua filha mais velha; »
...Em consequência dos comportamentos que, em relação a eles, a vítima vinha assumindo, a sua esposa e os filhos do casal viviam, nos últimos seis anos de vida daquela, num clima de medo quase constante; »
...Por causa dos comportamentos agressivos que a vítima vinha assumindo em relação à sua esposa e aos filhos do casal, bem assim como por causa do clima de medo referido (...), a esposa e os filhos do casal estiveram refugiados numa instituição luxemburguesa de protecção de esposas e filhos vítimas de violência doméstica, desde 12/12/1997 a 19/1/1998; »
...Porém, uma vez que era constantemente perseguida pela vítima e foi por ele ameaçada, com uso de arma de fogo, de que a mataria se não regressasse à casa de morada de família, a esposa e os filhos do casal regressaram a essa casa de morada de família, sem que aquela tivesse modificado, fosse de que modo fosse, os padrões de comportamento que até então caracterizavam a sua actuação social e familiar que, assim, se manteve intacta; »
...Uma vez que estava determinado a manter com a vítima uma conversa sobre o seu comportamento,, o arguido dirigiu-se para a porta desse quarto e ali chamou pelo PJHR;»
...Como este não lhe respondeu, o arguido abeirou-se da cama onde o PJHR estava a dormir e, para o acordar, ao mesmo tempo que chamava por ele abanou-o; »
...Acto contínuo, o PJHR sentou-se na cama onde estava deitado, empurrou o arguido contra um móvel que estava nesse quarto e disse: "Você está em sua casa, mas desapareça daqui, senão eu mato-o, eu desfaço-o! Velho do caralho!" ; ».
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. O Ministério Público junto do Tribunal de Júri de Figueiró dos Vinhos, acusou AA, devidamente identificado, imputando-lhe a comissão de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.° e 132°/1/2/g/i, ambos do CP, por ter protagonizado os factos descritos na acusação de fls. 291 a 294, dada por reproduzida.
ARJ e MHLR, também identificados, foram admitidos a intervir nos autos como assistentes.

Efectuado o julgamento com intervenção daquele tribunal de júri, veio a ser proferido acórdão em que, além do mais, foi decidido:
1. absolver o arguido do crime de homicídio qualificado que lhe fora imputado;
2. condenar o arguido como autor de um crime de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133° do CP, na pena de quatro anos de prisão;

Inconformados, recorrem ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público e os assistentes, corporizando os pontos da respectiva discordância neste acervo conclusivo, respectivamente:

A) O Ministério Público:

1 - Ao arguido vinha imputada a autoria de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelo art.º 132.º n.ºs 1 e 2 al.s g) e i) do CP., todavia o Tribunal recorrido entendeu não se demonstrar como verificada qualquer daquelas circunstâncias qualificativas, ou outra, das constantes do citado preceito legal.
2 - Antes dando como provado que o arguido praticou os factos, todavia actuou em situação de compreensível emoção violenta, pelo que o condenou pela autoria do crime de homicídio privilegiado.
3 - Todavia, dos elementos resultantes dos factos considerados como provados, verificadas se encontram circunstâncias que qualificam o crime, contrariamente ao que se consigna no douto acórdão.
4 - Desde logo porque, mesmo perfilhando as teses mais exigentes relativamente ao que deixa o legislador consignado no conceito de meio particularmente perigoso, neste conceito é de incluir uma arma de caça.
5 - Na verdade, mesmo que se incluam em tal conceito apenas os meios que revelem uma perigosidade muito superior ao normal nos meios usados para matar, bem como, que da natureza do meio utilizado resulte já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, as características específicas das armas de caça, quer pela finalidade da sua concepção, quer pela perigosidade instrumental do seu disparo, dever-se-ão inserir no âmbito desta previsão.
6 - Aferindo-se a maior ou menor perigosidade de um meio, não por normas-padrão, antes pela finalidade para a qual é utilizado ser, em termos de tutela legal, muito superior àquela para a qual é especificamente concebido.
7 - Bem como, na aferição da particular perigosidade do meio, se deverá levar em consideração o ponto de vista instrumental, ou seja, a perigosidade no sentido da potencialidade do dano que pode ser provocado por um disparo com tal arma a curta distância, que se revela muito superior ao disparo de um revólver ou pistola.
8 - Pelo que a arma de caça, quando usada para cometer um crime de homicídio e face às suas características específicas, deverá considerar-se como meio particularmente perigoso.
9 - Resultando a especial censurabilidade da especial natureza do meio utilizado.
10 - Ainda que assim se não entenda, sempre verificada se encontra a circunstância prevista na al.ª h) - meio insidioso.
11 - Neste conceito se integrando, além daqueles meios que pelas suas características específicas se deparam como dissimulados nas suas influências maléficas, a traição, entendendo-se verificada esta quando se demonstra verificado o ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso.
12- E provado ficou que o arguido, após ter saído do quarto no qual se encontrava a vítima, foi ao seu quarto buscar a arma de caça, que carregou e com a mesma se dirigiu rapidamente ao quarto da vítima, aproximou-se da cama na qual aquela já se deitara e numa posição de costas voltadas para o arguido, lhe encostou os canos da arma à cabeça e lhe desferiu um tiro sem que a vítima se apercebesse do gesto criminoso.
13 - Pelo quem tal comportamento não poderá deixar de consubstanciar a circunstância qualificativa consignada na al.ª h) do citado n.º 2 do art.º 132.º do CP.
14 - Circunstância esta que o Tribunal não poderia deixar de apreciar, ainda que no uso do poder-dever legalmente consignado no art.º 358.º do CPP.
15 - Depois, porque contrariamente ao que decidiu o Tribunal recorrido, não nos encontramos perante uma situação passível de ser qualificada como homicídio privilegiado.
16 - Não se verificando a compreensível emoção violenta e o desespero referidos no acórdão.
17 - Mesmo considerando-se que o que está em causa não é uma adequada relação de proporcional idade entre o facto que a desencadeia e o facto provocado, mas antes que a reacção do agente se encontre numa relação de causalidade adequada com o seu estado emocional.
18 - Já que não resulta, dos factos dados como provados, que tenha havido uma diminuição, por forma sensível, da exigibilidade de o agente poder agir de outra forma, face ao comportamento da vítima.
19 - Tanto mais que tal comportamento, que precedeu a acção criminosa, foi provocado pelo arguido na sequência de uma resolução que voluntariamente tomou, todavia sem que fosse imperativa naquele preciso momento - muito menos aconselhável face à hora e ao estado em que a vítima se deitara.
20 - E ainda que relevância se dê aos factos relativos aos provados maus tratos que a vítima infringia à sua esposa e filhos e que contra tal se insurgisse o arguido e que com tal situação andasse preocupado e até abalado, certo é que, momentos antes da comissão do crime, o arguido não se demonstrava dominado por qualquer estado de espírito que, de forma sensível o afectasse e o colocasse numa situação de menor exigibilidade de comportamento diferente.
21 - Pelo que deveria o Tribunal recorrido, como tal, ter imputado ao arguido a autoria do crime de homicídio qualificado, p.p. pelo art.º 132.º, n.ºs 1 e 2 al.s g) e h) do Código Penal.
22 - Condenando-se o arguido, face aos critérios norteadores da escolha da medida da pena legalmente consignados no art.º 71.º do CP., e considerando que o circunstancialismo que rodeou a acção do arguido deverá ser relevante como atenuante geral, na pena de 14 anos de prisão.
23- Termos em que deverá dar-se provimento ao recurso e, em conformidade à posição assumida, revogar-se o douto acórdão recorrido.
Todavia em alto critério, V.ex Ex.as irão ponderar.
Justiça.

B) Os assistentes

1.ª O depoimento do arguido, pela sua inconsistência, pela sua contradição e pela sua não comprovação por outro ou idêntico meio de prova, não deve servir de fundamento á factualidade apurada.
2.ª Existe pois contradição insanável entre a factualidade apurada, descrita nos pontos 49° a 63° e 66.º a 73° dos Factos Provados e a análise dos meios de prova, designadamente do depoimento do arguido, que serviram para formar a convicção do Tribunal.
3.ª Do texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, é de concluir que a fundamentação não justifica a decisão, ou pelo menos a torna manifestamente insuficiente.
4.ª Assim conclui-se que a decisão recorrida enferma do vício constante da alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do C.P.Penal.
5.ª Em consequência, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 426° do mesmo C.P.Penal, devem os presentes autos ser reenviados para novo Julgamento, sobre a matéria constante dos pontos 1 a 10 da douta acusação pública e pontos 49) a 63) e 66) a 73) da douta sentença recorrida.
OU,
6.ª Para que haja "compreensível emoção violenta", deve existir proporcionalidade entre os factos geradores de tal estado emocional e o facto ilícito perpetrado, por ele provocado, o que se não se verifica no caso em apreço.
7.ª Mesmo que se entenda não dever existir tal proporcionalidade, sempre se concluirá que não é compreensível o comportamento do arguido, em termos de não censurável, não se mostrando sensivelmente diminuída a sua culpa.
8.ª Pelo que não pode a conduta do arguido integrar a previsão do art.º 133.° do C.Penal.
9.ª Utilizar "meio particularmente perigoso", é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vitima.
10.ª Face à factualidade apurada em julgamento, conclui-se que o arguido dificultou significativamente a defesa da vítima, ao ponto de a tornar praticamente impossível, pois disparou á traição, com a arma encostada à sua cabeça e quando ela se encontrava deitada na cama.
11.ª Praticou pois o arguido o crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art.º 132°, n.º 2, g) do C.Penal.
12.ª Para que se verifique e possa funcionar a circunstância atenuante constante da parte final, da alínea h) do n.º 2 do art.º 72° do C.Penal, necessário se torna que a conduta do agente seja determinada por "provocação injusta ou ofensa imerecida da vítima".
13.ª Para além disso o uso de tal faculdade só pode ter lugar, quando do concorram outros factores que diminuam de forma acentuada o efeito atenuativo.
14.ª Face à enorme desproporcionalidade entre o acto provocador e a reacção do provocado e o uso perverso e insidioso da arma de caça do arguido, conclui-se que a pena a aplicar não pode ser especialmente atenuada.
15.ª Face à moldura penal aplicável e tendo em conta todas as circunstâncias que militam a favor do arguido e aquelas que contra si devem ser ponderadas, revela-se justa e equilibrada uma pena de prisão não inferior a 14 anos.
16.ª Ao absolver o arguido do crime de homicídio qualificado e ao considerar que a conduta do arguido integrou a prática do crime de homicídio privilegiado, condenando-o na pena de 4 anos de prisão, o acórdão recorrido violou e fez errada interpretação do disposto nos artigos 132.º -1 e 2-g) e 133.° do C.Penal.
17.ª Deve pois ser revogada e substituída por outra que condene o arguido como autor material do crime de homicídio qualificado, em pena não inferior a 14 anos de prisão. Assim se fazendo Justiça!

C) Em suma, concluiu o arguido, em resposta:
I - Os assistentes não são, formalmente, "parte" e não lhes assiste um legítimo e legal interesse processual, porquanto nenhuma decisão foi contra eles proferida, contudo deixa-se aos Venerandos Juízes Conselheiros a decisão sobre tal questão pelas razões apontadas supra no n° 3.
II - Discordam do decidido no douto acórdão recorrido imputando-lhe contradição insanável entre a factualidade apurada e os meios de prova, designadamente entre aquela e o depoimento do arguido.
III - O STJ tem entendido necessário à verificação de um tal vicio (de contradição insanável) a existência de facto que não permite a conclusão retirada do mesmo pelo Tribunal recorrido, ou seja, sempre se tem exigido a este e aos demais mencionados nas alíneas a) a c), do n° 2, do art. 410°, do CPP, que tais vícios resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum, expressados num clamoroso e inequívoco erro, analisado segundo as regras dessa experiência comum.
IV - Os assistentes suscitam duvidas, põem em causa meios de prova, discutem a essência da matéria de facto provada numa tentativa vã de encontrarem algures a dita contradição insanável.
V- Impunha-se, tal como legalmente exigido, que os assistentes demonstrassem no texto da decisão recorrida quais os factos que determinavam decisão diversa, quais os factos provados conjugados com as regras da experiência comum que impunham a decisão nos termos da acusação isto é a qualificação jurídico penal da conduta do arguido e a correspondente condenação por crime de homicídio qualificado p. e p., pelo art.º 132°, n.º 2, alínea g) do Código Penal.
VI - Discutem mas não demonstram a cláusula primeira da norma constante do art.º 133° do Código Penal (emoção violenta), nem tão pouco o erro interpretativo que apontam nesta concreta matéria à decisão recorrida.
VII - Assim como põem em causa a aplicação do principio in dubio pro reo sem que na subjacente factualidade o demonstrem.
VIII - O Ministério Público discorda da qualificação jurídico-penal da conduta do arguido pretendendo-a integrada na punição do ilícito típico, mas não demonstra a ratio da interpretação que faz da norma aplicada no acórdão recorrido, pois que como é sabido esta (a do art. 133° do CP) descreve uma situação de menor culpa em que o agente se encontra, por identificação de um estado emotivo que não lhe permite um normal controlo ou domínio sobre os seus actos. O que sendo compreensível ou assentando em motivos moral ou socialmente desvaliosos conduz à aplicação do art.º 133.º
IX - Conclui pela não verificação da compreensível emoção violenta e o desespero referidos no acórdão, numa tentativa de demonstração da alegada falta dos elementos do tipo pelo qual o arguido foi condenado, afirmando que da factualidade provada não resulta que tenha havido uma diminuição, por forma sensível, da exigibilidade de o agente poder agir de outra forma, face ao comportamento da vítima.
X - Conclui mais, que o comportamento da vítima foi provocado pelo arguido na sequência de uma resolução que voluntariamente tomou e que aquele, momentos antes da comissão do crime, não se demonstrava dominado por qualquer estado de espírito que, de forma sensível, o afectasse e o colocasse numa situação de menor exigibilidade de comportamento diferente.
XI - Esqueceu, por certo, a matéria de facto provada que transcreveu, designadamente os n.ºs 559.º a 63.º, 68.º a 74.º, bem como aqueles que predeterminaram a cláusula legal da citada norma e constantes dos n.ºs 1 a 38.º e 40.º a 47.º
XII - Assim contrariando as conclusões do acórdão recorrido, nomeadamente aquela referente à diminuição sensível da culpa do agente em razão da compreensível emoção violenta.
XIII - Numa luta sem tréguas por punição exemplar o Ministério Público apela ao conceito de meio particularmente perigoso, e, veladamente, nas conclusões 5 a 9, utiliza a tese mais exigente daquele conceito para demonstrar a especial censurabilidade em razão da especial natureza do meio empregue, indo tão longe quanto possível na identificação da danosidade do meio, afirmando um dano superior ao daquele produzido pela pistola ou revolver, referindo, en passant, e para o mesmo fim, a arma de caça de canos cerrados.
XIV - A utilização de cada um daqueles meios citados pelo Ministério Público tem atrás de si finalidades distintas, mas resolvidas esquecer para o efeito.
XV - E quanto meio insidioso, as regras da experiência comum diriam aos mais cautelosos e intransigentes defensores daquele que a trajectória do tiro (de trás para, a frente, ligeiramente de baixo para cima -74°, in fine, dos factos provados) não configura uma situação de ataque traiçoeiro e sorrateiro.
XVI - Se o arguido actuou sob o domínio de emoção violenta não pre-ordenada, em estado de excitação, revela a especial censurabilidade ou perversidade exigida pela lei para a sua qualificação - identifica-se a conduta do arguido com aquela outra do assaltante que dispara friamente contra o caixa que pressionou o botão de alarme?
XVII - A Jurisprudência tem entendido (Ac. STJ de 9 de Maio de 1990, BMJ 397, p. 156 e RPCC. Ano 11, 2°, p. 199) a aplicação da norma constante do art. 133.° do CP, nos mesmos termos que o fez o Tribunal Recorrido. No aresto citado o tribunal de primeira instância e no seu seguimento o STJ aplicaram o art. 133° à conduta do filho mais velho que se apossou de uma arma e disparou com ela sobre o pai numa ocasião em que este se preparava para de novo desancar a família com um pau de sobreiro.
XVIII - O acórdão recorrido deu como verificado, a par da emoção violenta, o desespero.
XIX - A emoção violenta devidamente fundamentada no doc. de fls. 122 a 127 não deveria merecer qualquer reparo pela clareza da sua constatação.
XX - Retira-se, da doutrina e jurisprudência supra citadas, que na interpretação da norma constante do art. 133.° do CP o que se valora não é o facto, mas sim o estado emotivo do agente «... o legislador, nos casos de atenuação especial do homicídio, como o homicídio privilegiado, deslocou literalmente para o estado emocional do agente (a compreensível emoção violenta) ou para a sua motivação, o fundamento da atenuação, como também pelo facto de a filosofia «humanista» que, em certa medida, inspira o Código, implicar que, na concretização dos critérios de atenuação especial, se tenham em conta os limites da livre determinação e da capacidade de inibição dos instintos das pessoas, como a psicologia nos revela»
XXI - Figueiredo Dias, Homicídio Qualificado, Parecer, p.54 «... O legislador deslocou, de facto, o fundamento da atenuação para o estado emocional do agente (a compreensível emoção violenta) ou para a sua motivação, causa do seu comportamento (o desespero ou outro motivo de relevante valor social, que diminua sensivelmente a sua culpa)".
XXII - Jurisprudência e Doutrina concordam quanto ao afastamento dos tipos previstos nos artigos 131° e 132° do Código Penal como decorrência do principio in dubio pro reo a existência de indícios de verificação de uma das situações descritas no art. 133° do Código Penal.
XXIII- O art. 133° do Código Penal é uma norma fundamental no contexto dos crimes de homicídio, não só pela sua importância prática, como também pelas relações dogmáticas que se podem estabelecer entre este preceito e as demais agressões típicas à vida. Nele se consagra, através de um conjunto de clausulas diferentes, uma atenuação especial da pena do agente que pratica o facto numa das circunstancias descritas.
Encontra-se estruturado com base em clausulas autónomas de menor culpabilidade do agente e uma cláusula de natureza mista, igualmente autónoma, que assenta numa menor ilicitude do facto e menor culpabilidade do agente. A primeira cláusula (e que in casu interessa) é a da "emoção violenta compreensível". Corresponde a, situações de facto em que o agente se encontra numa situação de descontrolo emocional (emoção violenta), que lhe inibe o normal controlo sobre os seus actos. A exigência de «compreensibilidade» da emoção é um filtro normativo que apenas se aplica à emoção violenta.
XXIV - Entender o crime do art. 133°, do ponto de vista material, como um conjunto de regras especiais de atenuação da culpa, mas também como um tipo autónomo, implica no plano processual que, uma vez verificados indícios de algumas das clausulas do art. 133°, esses indícios devem beneficiar da força que lhes confere o principio in dubio pro reo. O que será suficiente para impedir a aplicação quer do art. 131°, quer do art. 132° do Código Penal.
A doutrina portuguesa, delimitando a incidência de aplicação do principio, aceita que o in dubio pro reo quando aplicado a normas favoráveis faz com que as dúvidas sobre a sua verificação conduzam a que as respectivas clausulas favoráveis produzam o seu efeito como se tivesse logrado produzir sobre elas prova completa.
(...) os mecanismos de prova em processo penal assentam em dois pilares: convicção e duvida do tribunal. O que permite dizer que uma duvida sobre as circunstancias do art. 133°, assente em indícios materiais, é incompatível com a convicção necessária para aplicar os arts. 131° e 132° (obra citada).
XXV - João Curado Neves, in RPCC, Ano 11, 2°, págs. 175 e ss, em comentário a várias decisões do STJ refere que em muitas das interpretações e aplicações da norma constante do art. 133° do CP, se ignora o verdadeiro fundamento do privilegiamento, que não tem a ver com qualquer pre-responsabilização da vítima pelo facto homicida, sendo que o problema fulcral está no significado do facto, que só pode ser compreendido através da analise da motivação do agente.
XXVI - Refere, quanto à relação entre motivação e culpa, que a afirmação de que a diminuição da culpa é aferida em função da motivação do agente não significa que o juízo de culpa seja entendido como uma valoração da atitude interna do agente, nomeadamente da atitude de fidelidade ao direito que lhe seja subjacente. A motivação é antes entendida como chave para a compreensão do significado do facto, do mesmo modo como, por exemplo, é a motivação que permite saber se um acto de subtracção constitui um furto ou um tomar de empréstimo com presunção de consentimento do proprietário.
XXVII - Cumpre ao arguido um registo final em identidade com as suas alegações orais, citando António Castanheira Neves - Para além da responsabilidade pode considerar-se a solidariedade, distinguindo bem responsabilidade (jurídica) e solidariedade (humana). E nesse caso não terá sequer de convocar-se uma responsabilidade que seja compreendida a exorcizar o absurdo da dor humana na assunção de uma culpa originária que nos solidarize, simplesmente aí - e uma vez mais naquele não já jurídico, mas transjurídico principio responsabilidade radical que é o Anspruch des Seins no homem e para o homem -, humanidade, responsabilidade e solidariedade identificam-se. De novo e como sempre o amor está para além da justiça e consuma-a - só o dom acaba por dar sentido e admite a reivindicação do outro. E então como o Pai, mataremos o vitelo gordo em honra do filho que talvez o não merecesse, segundo os nossos limitados e tão cegos juízos, mas que todo o homem-pessoa só por o ser, nessa outra filiação que era também ou era sobretudo a do assaltado e ferido no caminho de Jericó, sempre justifica.
XXVIII - O doutíssimo acórdão recorrido não merece qualquer reparo, porquanto se mostra conforme aos ditames legais, não tendo violado quaisquer das normas referidas pelos recorrentes nas suas doutas alegações.
Termos em que devem os recursos interpostos ser julgados improcedentes com as legais consequências, confirmando-se o douto acórdão proferido.
Assim fazendo Vossas Excelências Venerandos Juízes Conselheiros a costumada Justiça.

Subidos os autos, não viu o MP qualquer questão prévia a que devesse dar resposta, pelo que se ficou pela aposição de visto.

As questões essenciais a decidir incidem:
1. Previamente, sobre a legitimidade dos assistentes para o recurso aqui trazido.
2. Ultrapassada esta questão, a de saber se se verificam os vícios da matéria de facto - contradição insanável e insuficiência - que são imputados pelos assistentes ao acórdão do tribunal de júri ora recorrido.
3. Enfim - e atingindo o fundo da causa - indagar da bondade da qualificação dos factos na previsão e punição do crime de homicídio privilegiado do artigo 133.º do Código Penal, levada cabo pelo tribunal recorrido, com o desacordo ora patenteado pelos recorrentes, que insistem na tese da acusação segundo a qual o crime cometido foi, antes, o de homicídio qualificado, da previsão dos artigos 131.º e 132.º, 1 e 2, g), do Código Penal.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Vejamos, antes de mais, os factos provados.

1.º O arguido é pai de AMPAAR;
2.º AMR casou com PJHR no dia 25/10/85;
3.º Do casamento nasceram três filhos, a saber: SM, nascida a 24/4/1987, JL, nascido a 17/12/1992 e MJ, nascida a 25/12/1995;
4.º Há mais de doze anos que a AM e o PJ se encontravam emigrados no Luxemburgo, onde residiam habitualmente, com eles habitando, também, os sucessivos filhos do casal;
5.º O arguido sempre manteve laços de intensa vinculação afectiva com a sua filha AMPAAR e com os filhos desta, seus netos;
6.º Ao longo dos anos, o relacionamento conjugal entre a AM e o PJ, bem assim como o relacionamento do PJ com os filhos do casal foi-se deteriorando, deterioração essa que foi particularmente intensa nos últimos seis anos de vida do PJHR;
7.º Nos últimos seis anos da sua vida, pelo menos, o PJ encontrava - se reformado por incapacidade para o trabalho pelos serviços de segurança social do Luxemburgo, auferindo, a título de pensão de reforma, uma quantia exacta que não foi possível determinar;
8.º Apesar disso, o PJ ainda desenvolveu uma actividade, comercialização de mármores e granitos, auferindo, por causa disso, quantia exacta que não foi possível determinar;
9.º Apesar do referido nos pontos 7°) e 8°) dos factos provados, durante esses últimos seis anos, o PJHR pouco ou nada contribuía para as despesas do agregado familiar formado por ele, pela sua esposa e filhos do casal;
10.º Com efeito, particularmente nesses últimos seis anos, o PJ despendeu significativas somas em dinheiro, de montantes exactos que não foi possível determinar, na aquisição de veículos automóveis que depois sinistrava em acidentes de viação, e, para lá disso, passou a frequentar, com uma regularidade praticamente diária, bares, boites e outros estabelecimentos de diversão nocturna, locais onde despendia significativas quantias em dinheiro, de montantes exactos que não foi possível determinar , daí resultando que, por essa via, o PJ esgotava a quase totalidade dos rendimentos que auferia por causa do referido nos pontos 7°) e 8°) dos factos provados;
11.º Em consequência do referido nos pontos 9°) e 10°) dos factos provados, era a AM quem tinha de trabalhar para angariar os meios económicos que permitissem suportar a maior parte daquelas despesas, sendo que nem sempre conseguia meios económicos suficientes para o efeito;
12.º Pelo menos em duas vezes, as dificuldades económicas do agregado onde a AM estava integrada eram de tal ordem que não existiam meios económicos disponíveis para suportar as despesas de alimentação desse agregado, razão pela qual, por duas vezes, o arguido deslocou-se propositadamente ao Luxemburgo para dar à sua filha, netos e genro, géneros alimentícios que permitissem aligeirar tais dificuldades económicas;
13.º Para lá do acabado de referir quanto a aspectos estritamente patrimoniais - também do ponto de vista pessoal houve uma degradação, particularmente intensa nos últimos seis anos da vida do PJHR, no relacionamento entre ele, a esposa e os filhos do casal;
14.º Com efeito, particularmente nos últimos seis anos da sua via, com uma regularidade quase diária, o PJ embriagava-se;
15.º Além disso, nesse mesmo período e com essa mesma regularidade, o PJ regressava à casa de morada de família dele, da sua esposa e filhos depois da meia - noite, às vezes já de madrugada, quase sempre embriagado;
16.º Ao regressar a casa, nas circunstâncias de tempo e no estado referidos no ponto 15°) dos factos provados, repetidas e frequentes vezes, o PJ acordava a sua esposa e os demais membros do seu agregado familiar , em especial a sua esposa e os dois filhos mais velhos do casal, com o exclusivo propósito de gratuitamente os manter acordados durante várias horas e de com eles discutir sem qualquer tipo de justificação para o efeito;
17.º No decurso dessas discussões, repetidas e frequentes vezes, o PJ gritava com os familiares que tinha acordado e, várias vezes, de modo perfeitamente gratuito e injustificado, partiu peças de mobiliário existentes na casa de morada de família;
18.º Em momento exacto que não foi possível determinar, a pretexto de que a sua filha mais velha tinha cortado o cabelo sem a sua autorização, o PJ desferiu-lhe um soco, em consequência do que a sua filha perdeu os sentidos e caiu ao chão;
19.º Noutra ocasião, em momento exacto que não foi possível determinar, o PJ apertou o pescoço a sua esposa;
20.º Noutra ocasião, em momento exacto que não foi possível determinar, estando ele embriagado e no interior de um veículo automóvel, estando a sua esposa no seu exterior, o PJ puxou pelos cabelos de sua esposa, de tal modo e com tal violência que a mesma entrou para o interior do mencionado veículo pela janela do mesmo;
21.º Noutra ocasião, em momento exacto que não foi possível determinar, estando ele embriagado, com utilização de uma faca de cozinha, na presença dos dois filhos mais velhos do casal, o PJ ameaçou a sua esposa de morte, tendo sido a filha mais velha do casal quem, depois do PJ adormecer, lhe retirou e escondeu tal faca;
22.º Ainda noutra ocasião, em momento exacto que não foi possível determinar, estando ele embriagado e por causa de ter procurado agredir sua esposa, o PJ cortou-se numa mão, razão pela qual começou a deitar sangue, sendo que nessa ocasião obrigou a sua esposa e a filha mais velha do casal a recolher esse sangue numa frigideira, com a argumentação de que esse sangue deveria ser frito e por eles consumido;
23.º Frequentes vezes, o PJ gritava com a sua esposa;
24.º Frequentes vezes, o PJ gritava com os filhos do casal;
25.º Repetidas vezes, o PJ obrigava a sua esposa, contra a vontade desta, a relacionar-se sexualmente consigo;
26.º Repetidas vezes, o PJ chamava "gorda", "feia" e "burra" à sua filha mais velha;
27.º Em consequência dos comportamentos que, em relação a eles, o PJ vinha assumindo, a sua esposa e os filhos do casal viviam, nos últimos seis anos de vida do PJ, num clima de medo quase constante;
28.º Por causa dos comportamentos agressivos que o PJ vinha assumindo em relação à sua esposa e aos filhos do casal, bem assim como por causa do clima de medo referido no ponto 27°) dos factos provados, a esposa e os filhos do casal estiveram refugiados numa instituição luxemburguesa de protecção de esposas e filhos vítimas de violência doméstica, desde 12/12/1997 a 19/1/1998;
29.º Porém, uma vez que era constantemente perseguida pelo PJ e foi por ele ameaçada, com uso de arma de fogo, de que a mataria se não regressasse à casa de morada de família, a esposa do PJ e os filhos do casal regressaram a essa casa de morada de família, sem que o PJ tivesse modificado, fosse de que modo fosse, os padrões de comportamento que até então caracterizavam a sua actuação social e familiar que, assim, se manteve intacta;
30.º A AM chegou, mesmo, a intentar uma acção de divórcio contra o seu marido, da qual desistiu, porém, por causa de ameaças de teor concreto não apurado que o PJ lhe dirigiu;
31.º O consumo exagerado de bebidas alcoólicas a que o PJ quase diariamente se dedicava tornavam-no pessoa agressiva e violenta, agressividade e violência que concretizava em relação aos membros do seu agregado familiar nos termos já expostos;
32.º Para lá disso, por causa dessa mesma agressividade e violência, o PJ assumia, frequentes vezes, em locais públicos, comportamentos agressivos e violentos em relação a terceiros, chegando, mesmo, a ser condenado por tal circunstância, nos termos melhor documentados a fls. 480 a 487 dos autos, dados reproduzidas;
33.º Apesar de consumir excessivamente bebidas alcoólicas, o PJ não se abstinha de conduzir veículos motorizados na via pública, com uma taxa superior à permitida no Luxemburgo, acabando, por causa disso, por ser condenado nos termos melhor documentados a fls. 488 a 493 e 509 a 512 dos autos, dadas reproduzidas;
34.º Durante todo o tempo em que esteve casado com a AM, especialmente nos últimos seis anos da sua vida, o PJ manteve, com diversas senhoras, relações extra - conjugais, incluindo sexuais;
35.º Anualmente, o PJ, a sua esposa e os filhos do casal passavam um mês de férias em Portugal, no período do Verão, sendo que, para o efeito, os mesmos ficavam alojados, em parte desse período, em casa do arguido;
36.º Nos períodos em que o PJ e o seu agregado familiar ficavam alojados em casa do arguido, com particular incidência nos últimos seis anos de vida do PJ, frequentes vezes, o PJ saía à noite e regressava a casa de madrugada e embriagado;
37.º O arguido foi tomando conhecimento do ambiente familiar em que viviam o PJ, a AM e os filhos do casal, do comportamento familiar do PJ para com a AM e os filhos do casal, bem assim como dos efeitos de tudo isso resultantes para a AM e os filhos dela e do PJ;
38.º A circunstância referida no ponto 37°) dos factos provados gerou no arguido sentimentos de angústia e de inquietação, bem assim como a inerente tensão psicológica, receando o arguido que alguma coisa de grave pudesse acontecer a sua filha e netos por causa do ambiente familiar em que viviam e do tratamento que lhes era dispensado pelo PJ;
39.º Várias vezes, junto de pessoas das suas relações pessoais, o arguido lamentou essa situação da sua filha e netos, chegando mesmo a chorar;
40.º Apesar do referido nos pontos 38°) e 39°) dos factos provados, o arguido sempre manteve, até Maio de 2002, a esperança de que com o decorrer do tempo o PJ mudasse o seu comportamento e que, assim, normalizasse o ambiente familiar em que viviam a filha e netos do arguido;
41.º Aliás, por diversas vezes, o arguido recomendou a sua filha que tivesse paciência com o PJ, que se mantivesse a viver com os filhos do casal na casa de morada de família e que não se divorciasse do PJ, pois que, provavelmente e com o andar do tempo, este acabaria por mudar o seu comportamento e acabaria por normalizar o seu relacionamento com a sua esposa e o filhos do casal;
42.º O arguido sempre procurou dispensar ao PJ um tratamento que fosse do agrado e satisfação deste, visando, com isso, cativar o seu genro por forma a que este mudasse o tratamento que vinha dispensando à esposa e filhos do casal;
43.º Para lá disso, por diversas vezes, o arguido manteve conversas com o PJ, procurando o arguido fazer-lhe sentir a incorrecção e gravidade do seu comportamento para com a filha e netos do arguido.
44.º No decurso dessas mesmas conversas, o arguido dava ao PJ conselhos que o arguido tinha por úteis com vista a que o PJ modificasse o seu comportamento e, assim, contribuísse para a normalização do ambiente familiar Vem que ele, a sua esposa e filhos do casal viviam;
45.º Até Maio de 2002, por mais de uma vez, o PJ reconheceu perante o arguido a incorrecção e gravidade do tratamento familiar que dispensava a sua esposa e filhos, do mesmo modo que, por mais de uma vez, prometeu ao arguido que iria mudar de atitude e comportamento, por forma a que aquele tratamento retomasse a normalidade;
46.º O certo é que, apesar do referido no ponto 45°) dos factos provados, nunca o PJ modificou, fosse de que modo fosse, os padrões de comportamento que até então caracterizavam a sua actuação social e familiar que, assim, se manteve intacta;
47.º À medida que os anos iam passando e o arguido se apercebia de que o PJ não modificava os seus padrões de comportamento social e familiar, razão pela qual se mantinha o tratamento familiar que o mesmo dispensava à esposa e filhos do casal e o ambiente familiar daí decorrente, foram aumentando progressivamente os sentimentos de angústia, a inquietação, a tensão psicológica e o receio referidos no ponto 38°) dos factos provados, aumento esse para que igualmente contribuiu a consciência que o arguido tinha de que se encontrava a milhares de quilómetros da sua filha e netos e de que, por isso, estava praticamente impossibilitado de lhes dar maior apoio e protecção;
48.º Em Maio de 2002, a pretexto de que vinha tratar de assuntos relacionados com uma casa que juntamente com a sua esposa tinham em construção em Portugal, o PJ deslocou-se a este país, tendo antecipadamente comunicado a seus sogros a sua intenção de vir a Portugal, bem assim como a sua intenção de ficar alojado na casa destes enquanto estivesse em Portugal, pretensão a que o arguido e a sua esposa acederam;
49.º Assim, no dia 4 de Maio de 2002, o PJHR chegou a Portugal e depositou em casa dos seus sogros a roupa e demais bens pessoais que consigo transportava;
50.º Porém, apesar de ter feito menção de que permaneceria alojado em casa de seus sogros, o certo é que até à noite de 13 para 14 de Maio de 2002, nunca o PJ dormiu em casa de seus sogros, limitando-se praticamente o PJ a deslocar-se a essa casa para ali tomar banho e mudar de roupa;
51.º A circunstância referida no ponto 50°) dos factos provados causava desagrado e irritação ao arguido, desagrado e irritação que se agravaram quando o arguido apurou, junto dos pais do PJ, que este também não pernoitava em casa destes;
52.º Entretanto, o arguido recebeu uma chamada anónima, dando-lhe conta de que o PJ se fazia acompanhar de uma cidadã de nacionalidade brasileira, com a qual pernoitava num hotel e na companhia da qual despendia avultadas quantias em dinheiro, circunstância que mais agravou o desagrado e irritação referidos no ponto 51°) dos factos provados, bem assim como a tensão psicológica referida no ponto 38°) dos factos provados, de tal maneira que os mecanismos de auto-controlo do arguido ficaram perturbados e diminuídos;
53.º Na sequência do referido no ponto 52°) dos factos provados, no Sábado, dia 11/5/2002, o arguido manteve uma acesa discussão com o PJ, tendo-o repreendido por causa do tipo de vida que estava a levar em Portugal, discussão essa em que o arguido também chamou à atenção do PJ para a gravidade da situação patrimonial que, com o seu comportamento, o PJ vinha gerando para ele, sua esposa e filhos do casal;
54.º A discussão acabada de referir contribuiu para que se avolumasse a tensão psicológica referida nos pontos 38°) e 52°) dos factos provados, bem assim como contribuiu para uma maior perturbação e diminuição dos mecanismos de auto - controlo do arguido;
55.º Na noite de 13/5/02 para 14/5/2002, o PJ chegou a casa de seus sogros cerca das 2.30 horas, entrou nela, dirigiu-se à cozinha, acendeu a luz desta e ali permaneceu alguns instantes a fumar;
56.º Nessa altura, tendo dado conta de que o PJ tinha entrado em casa e permanecia na cozinha, o arguido levantou-se, saiu do seu quarto e dirigiu - se para a cozinha, com intenção de, mais uma vez, chamar à atenção do PJ para o comportamento que vinha mantendo em Portugal;
57.º Chegado à cozinha, o arguido dirigiu-se ao PJ e disse-lhe: "PJ, você tem que pensar na vida perdida em que anda!";
58.º Imediatamente, dando sinais de se encontrar embriagado, o PJ retorquiu-lhe que "Ninguém tem nada que se meter na minha via", ao que o arguido lhe respondeu que não valia a pena discutirem e que no dia seguinte falariam;
59.º Entretanto, o PJ foi para o quarto que lhe estava destinado na casa dos seus sogros, sendo que no interior desse quarto e com utilização de um telemóvel ligou para a sua esposa que se encontrava no Luxemburgo;
60.º No decurso da conversa que manteve com a sua esposa, o PJ disse-lhe, entre outras coisas, que "Já falta pouco para ir para cima! Quando aí chegar faço-te a folha, dou-te três tiros nos cornos e acaba-se esta porcaria toda"'
61.º O arguido ouviu o referido no ponto 60°) dos factos provados e entendeu que o PJ dirigia as palavras aí descritas à AMR, sua filha;
62.º Dado o referido nos pontos 60°) e 61°) dos factos provados, o arguido ficou gravemente perturbado e inquieto, o que contribuiu para um aumento da tensão psicológica referida nos pontos 38°) e 52°) dos factos provados, bem assim como para uma nova redução dos seus mecanismos de auto-controlo, pois que conhecendo carácter agressivo e violento do seu genro, bem assim como o tratamento familiar que o mesmo dispensava à esposa e filhos do casal, receou o arguido que o PJ pudesse vir a atentar, uma vez regressado ao Luxemburgo, contra a vida da esposa;
63.º A perturbação, a inquietação, o aumento da tensão psicológica e a redução dos mecanismos de auto-controlo referidos no ponto 62°) dos factos provados mantiveram-se durante toda a parte restante noite, durante a qual o arguido pouco ou nada dormiu, e até à manhã do dia 14/5/2002;
64.º Nessa manhã, o arguido foi com a sua esposa ao lugar de Casal Novo, à casa de uma filha, pois que esta e sua mãe tinham combinado ir às compras;
65.º Antes da esposa e da filha do arguido se dirigirem para o local onde essas compras deveriam ser feitas, o arguido conduziu a viatura em que todos se faziam transportar até à sua casa, saiu da viatura e disse à sua filha que fosse ela a conduzir tal viatura até ao local onde tais compras se iriam realizar, pois ele ficaria em casa, facto absolutamente normal tendo em conta que, por regra, o arguido não acompanhava a sua esposa nessas compras;
66.º Instantes depois da esposa e filha do arguido terem partido, o arguido decidiu dirigir-se para sua casa, para aí ter uma nova conversa com o PJ sobre o modo de vida que este vinha adoptando;
67.º Chegado ao interior dessa casa, apercebeu-se o arguido de que o PJ ainda estava a dormir no quarto onde na noite anterior se deitara;
68.º Uma vez que estava determinado a manter com o PJ a conversa referida no ponto 66°) dos factos provados, o arguido dirigiu-se para a porta desse quarto e ali chamou pelo PJ;
69.º Como este não lhe respondeu, o arguido abeirou-se da cama onde o PJ estava a dormir e, para o acordar, ao mesmo tempo que chamava por ele abanou-o;
70.º Acto contínuo, o PJ sentou-se na cama onde estava deitado, empurrou o arguido contra um móvel que estava nesse quarto e disse: "Você está em sua casa, mas desapareça daqui, senão eu mato-o, eu desfaço-o! Velho do caralho!" ;
71.º Nessa altura, dado o avolumar crescente da tensão psicológica acima mencionado, ao ser agredido, injuriado e ameaçado no interior da sua própria residência, o arguido ficou revoltado, exaltado e emocionalmente descontrolado, perdeu o seu auto-controlo e passou a actuar dominado por aquele estado de revolta, de exaltação e de descontrolo emocional, razão pela qual, nesse momento, decidiu tirar a vida a seu genro;
72.º Para o efeito, actuando, sempre, em situação de perda de auto-controlo e dominado por aquele estado de revolta, de exaltação e de descontrolo emocional, o arguido dirigiu-se ao seu quarto, que ficava ao fundo do corredor da casa, pegou na arma de caça, marca "DRAHTHAAR ", calibre 12 mm, de dois canos sobrepostos, com o n.º 229460, de fabrico italiano, de sua propriedade, que se encontrava junto ao guarda-fatos, e carregou-a com dois cartuchos de 12 mm, um de marca "Melior" , com os dizeres "caça super veloz n.º 5" e outro com os dizeres "polvichumbo n.º 4", os quais se encontravam no interior da mesinha de cabeceira do quarto;
73.º De seguida, dirigiu-se ao quarto do genro, sendo que este já se tinha novamente deitado;
74.º O arguido entrou nesse quarto, aproximou-se rapidamente da cama onde o seu genro se encontrava deitado e, ao mesmo tempo que lhe encostou os canos da arma à região occipital, disparou um tiro que veio a atingir a região occipital da cabeça do PJ, assim lhe provocando ferida perfurante occipital, laceração dos tecidos da cabeça, nas regiões occipital e parietal esquerda, fracturas múltiplas dos ossos do crânio, laceração meningo-encefálica, com perda de substância encefálica, sendo certo que o disparo foi efectuado à queima roupa, com os canos da arma encostados à cabeça e teve um trajecto de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima;
75.º Como consequência directa, necessária e adequada destas lesões, o PJ faleceu, tendo o óbito ocorrido cerca das 10.30 horas;
76.º Ao aperceber-se de que tinha morto o seu genro, o arguido abandonou a supra referida arma no corredor da habitação, ainda com um cartucho por detonar introduzido na câmara;
77.º Em seguida escreveu, pelo seu próprio punho, um papel, que deixou em cima da mesa da cozinha, com os seguintes dizeres: "SM o PJ está morto na cama fui-me entregar à guarda em Figueiró" .
78.º Depois disso, abandonou a residência e foi-se entregar ao posto da G.N.R. de Figueiró dos Vinhos;
79.º O arguido agiu, bem sabendo que a arma que utilizou, pelas suas características que bem conhecia, a forma como a usou, a distância a que disparou e a região do corpo que procurou, era idónea para causar a morte de PJ;
80.º Não obstante, não se coibiu de disparar com aquela arma um tiro sobre o seu genro, o que fez com o propósito, concretizado, de tirar a vida a PJHR;
81.º O arguido agiu livre e deliberadamente, consciente de que iria provocar a morte do genro, querendo intencionalmente produzi-la, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida;
82.º A supra referida arma encontra-se registada em nome do arguido;
83.º O arguido é titular de licença de uso e porte de arma de caça, sob o nº. 107/01, desde Fevereiro de 2001, válida até 2003;
84.º O arguido mostra-se sinceramente arrependido de ter morto o seu genro e manifesta convictos sentimentos de culpa em relação à sua actuação;
85.º É e sempre foi pessoa dedicada à família;
86.º É pessoa trabalhadora;
87. É pessoa pacífica;
88.º É pessoa respeitadora e respeitada no local onde vivia antes de se encontrar preso;
89.º É primário;
90.º Tem exemplar comportamento anterior e posterior à data da prática dos factos;
91.º Goza de apoio familiar, designadamente por parte dos seus familiares mais directos (esposa, filhas, genro e netos);
92.º Colaborou, de modo relevante, seja no decurso do inquérito, seja no decurso do julgamento, para o apuramento das circunstâncias de tempo, de modo e de lugar em que praticou os factos de que resultou a morte de seu genro;
93.º Tem a 4.ª classe como habilitações literárias e é de média condição social;
94.º Vivia em casa própria, na companhia de sua esposa;
95.º Está reformado e, antes de ter sido detido, negociava em feiras;
96.º A perturbação, diminuição e perda dos mecanismos de auto-controlo, bem assim como o descontrolo emocional do arguido que estão referidas nos pontos 52°), 54°), 62°), 63°), 71°) e 72°) dos factos provados não resultaram de qualquer doença mental ou transtorno de personalidade que afectasse o arguido;
97.º O arguido tem uma personalidade sensitiva, rígida, pensativa, com dificuldades em confiar em terceiros, tímida, realista, equilibrada, responsável, sociável e bem adaptada às normas e regras sociais.

Factos não provados:
Nenhuns outros e, em especial:
- enquanto permaneceu na casa dos sogros, PJ regressava a casa de madrugada;
- no dia 14/5/02 o arguido tenha aberto a porta ao PJ;
- para lá do referido nos pontos 57°) e 58°) dos factos provados, tenha havido, na noite de 13 para 14 de Maio de 2002 qualquer outra troca de palavras entre o arguido e o PJ;
- na noite de 13 para 14 de Maio de 2002 o arguido e o PJ tenham discutido por causa de um contrato promessa de compra e venda de um apartamento, discussão essa que terminou com ambos a irem-se deitar;
- o arguido se tivesse dirigido ao seu quarto, imediatamente depois de ter entrado na sua residência, antes de ter ocorrido o descrito nos pontos 68°) a 71°) dos factos provados;
- o PJ estivesse a dormir quando o arguido lhe encostou a arma à cabeça e disparou.

Convicção do tribunal
O tribunal recorrido apresenta uma densa e convincente base de apoio da sua convicção.
Importa, porém, para efeito de apreciação do recurso, dar nota, apenas, da parcela que se segue respeitante ao depoimento do arguido:
«(...) A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, com base na prova globalmente produzida em julgamento e, em particular, com base na conjugação dos elementos de prova que a seguir se enunciam:
O relatório de autópsia de fls. 37 a 43, complementado pelos esclarecimentos orais prestados em audiência por um dos subscritores desse relatório (Dr. FAG), de tudo resultando que o disparo que vitimou o PJ foi efectuado com os canos da arma encostados à cabeça da vítima, de tal modo que o orifício de entrada desse disparo se materializava numa ferida perfurante, circular, na região occipital esquerda, com quatro centímetros de diâmetro.
O relatório de exame de fls. 171 a 181, relativamente à autoria do escrito que consta de fls. 178.
O relatório pericial que consta de fls. 284 a 289, relativamente às características da arma e cartuchos de que o arguido se muniu para matar o PJ.
Os documentos juntos aos autos, particularmente os de fls. 7 a 9, 26, 46, 61, 178, 450 a 462, 480 a 512.
O depoimento do arguido, que descreveu as circunstâncias de tempo, de modo e de lugar em que praticou os factos de que resultou a morte do seu genro, além de ter descrito as razões próximas e longínquas que o levaram à prática desses factos.
A propósito deste depoimento cumpre esclarecer que, salvo na parte em que o arguido descreveu o concreto local de onde disparou contra o seu genro e a distância que entre ambos intercedia no momento desse disparo, tal depoimento revelou-se credível e circunstanciado.
Com efeito, na parte em que o arguido se pronunciou sobre o relacionamento entre o PJ, a esposa deste e os filhos do casal, sobre o ambiente familiar em que todos viviam e as consequências daí resultantes para a filha e netos do arguido, sobre os padrões que caracterizavam o modo de vida do PJ, em especial nos últimos seis anos da sua vida, sobre o relacionamento existente entre o arguido e o PJ até Maio de 2002, sobre as várias tentativas feitas pelo arguido no sentido de sensibilizar o PJ a modificar o seu comportamento familiar, numa palavra, sobre os factos que a esse propósito e globalmente foram descritos nos pontos 5°) a 46°) dos factos provados, o depoimento do arguido não só se revelou circunstanciado e credível como, para lá disso, foi secundado por outros meios de prova produzidos em julgamento, designadamente pelos depoimentos da filha e neta mais velha do arguido, pelos depoimentos de AA, LC, JN, SL e AO, bem assim como pelos documentos de fls. 450 a 462,480 a 512. (1)
Na parte em que o arguido se pronunciou sobre os factos dados como provados nos pontos 49°) a 63°), 66°) a 73°), a versão do arguido apresentada em audiência de julgamento não foi contraditada por nenhum, mas rigorosamente nenhum, outro meio de prova que se tivesse produzido em julgamento, para lá de que nenhuma contradição ou hesitação foi detectada no arguido quando apresentou a referida versão, sendo que, por isso, porque estão em causa factos favoráveis à defesa do arguido e porque o arguido beneficia do in dubio pro reo (!), interpretado no sentido de que a persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova tem de conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido (F. DIAS, Direito Processual Penal, I, pág. 215, CRISTINA MONTEIRO, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, pág. 53, FERNANDO GONÇALVES, Lei e Crime, pág. 134, COSTA PIMENTA, Introdução ao Processo Penal, pág. 216), foram dados como provados os factos a este respeito relatados pelo ..arguido, única pessoa que sobre os mesmos se pronunciou em julgamento.
É tempo de referir, neste momento, que a acusação apontou ao arguido uma contradição entre o depoimento dele prestado em audiência e o depoimento prestado pelo mesmo arguido por ocasião do seu primeiro interrogatório judicial, designadamente quando se conjuga esse interrogatório com os factos descritos no auto v de notícia de fls. 3 e que o arguido confirmou naquele interrogatório .
Deve dizer-se que, a nosso ver, para estes efeitos e no que toca ao concreto modo como o arguido matou o seu genro, o primeiro interrogatório do arguido é absolutamente inaproveitável, pois que o mesmo é contraditório nos seus próprios termos.
Na verdade, nesse auto o arguido começou por dizer que confirmava os factos descritos no auto de notícia de fls. 3 e 4, onde, por exemplo, se escreveu que o PJ foi morto quando se encontrava a dormir, sendo que no próprio interrogatório o arguido apresenta um relato em que a vítima foi acordada pelo arguido, sentou-se na cama e foi morta pelo arguido quando acabava de se deitar novamente.
Essa evidente contradição entre o relato constante do auto de notícia e o relato constante do interrogatório judicial não foi esclarecida, nem nesse interrogatório, nem posteriormente, o que, como acima de deixou escrito, torna aquele interrogatório inaproveitável para efeitos de se determinar em que circunstâncias se encontrava a vítima quando foi morta pelo arguido .
Por outro lado, confrontada a versão do arguido que consta do primeiro interrogatório judicial, amputada da parte em que confirmou os factos descritos no auto de notícia, e aquela que o arguido apresentou em audiência de julgamento, não se vê qualquer contradição entre essas versões que permitisse sustentar uma descredibilização global do depoimento do arguido. O que ocorre é que aversão de facto que foi apresentada no decurso do primeiro interrogatório foi complementada em audiência de julgamento, sem que nisso se encontre qualquer elemento que fundamente uma descredibilização global do depoimento prestado pelo arguido em julgamento, tanto mais que não se sabe em que circunstâncias psicológicas se encontrava o arguido quando foi sujeito a esse interrogatório, na própria tarde do dia em que tinha morto o seu genro, do mesmo modo que se desconhece o modo como esse interrogatório foi conduzido, designadamente no que toca à pormenorização da versão dos factos que o arguido relatou.
Finalmente, o facto do arguido ter negado ter disparado com a arma encostada à cabeça da vítima não é só por si suficiente para descredibilizar todo o seu depoimento, tanto mais quanto é certo que, como se disse, em partes significativas desse depoimento o mesmo foi secundado por outros elementos de prova e, noutras partes, não foi contraditado por nenhum meio de prova produzido em julgamento, beneficiando o arguido do in dubio pro reo. Aliás, bem visto o depoimento do arguido, logo se verifica que o mesmo nunca assumiu explicitamente ter tido a intenção de matar o seu genro, embora nunca tenha negado essa intenção e tenha confessado a materialidade de todos os factos de onde essa intenção se retira com toda a evidência, o que pode ser perfeitamente explicado por uma espécie de repulsa psicológica do arguido em aceitar ter tido a intenção de tirar a vida de outrem que era pai de seus netos, intenção essa cuja assunção é perfeitamente incompatível, em termos de normalidade, com o tipo de personalidade do arguido referida nos factos provados e com o seu trajecto e modo de vida.
Ora, não assumindo explicitamente o arguido a sua intenção de matar o seu genro, logo se compreende porquê que o mesmo também não assume ter disparado com a arma encostada à cabeça da vítima, pois assumir este último facto implicaria reconhecer aquela intenção.
Por outro lado, a negação do arguido em reconhecer que disparou com a arma encostada à cabeça da vítima pode ser perfeitamente explicada por mecanismos psicológicos relacionados com os sentimentos de culpa e de arrependimento que o arguido manifesta pela circunstância de ter morto o seu genro, mecanismos esses que o inibem de reconhecer que matou o seu genro com um disparo dado com a arma encostada à cabeça da vítima, acto que, isoladamente considerado, revela uma certa frieza e uma crueldade que são incompatíveis com a personalidade e com o trajecto de vida do arguido.
Daí que essa negação, só por si e desacompanhada de qualquer outra circunstância, não seja suficiente para descredibilizar globalmente a versão dos acontecimentos que o arguido apresentou para justificar o seu comportamento v' homicida, mesmo quando essa versão não é acompanhada de qualquer outro elemento de prova, designadamente quando o arguido relatou os factos a que se alude nos pontos 500) a 63°), 66°) a 73°) dos factos provados.
(...) ».

Aqui chegados, cumpre, preliminarmente, indagar da legitimidade dos assistentes para o recurso.
Não tem sido uniforme a jurisprudência acerca da legitimidade do assistente para efeitos de recurso seja acerca da espécie e (ou) medida da pena imposta na sentença, seja de outros aspectos da decisão.
Designadamente neste Supremo Tribunal, tal como se documenta com a prolação do acórdão uniformizador n.º 8/99, de 30.10.97, DR, I Série de 10/8/99, tirado para responder à questão, porventura sem o ter conseguido inteiramente.
Qual a posição a adoptar in casu?
O relator já teve oportunidade de se manifestar sobre o assunto, mormente no acórdão da Relação do Porto de 14/10/92, proferido no recurso n.º 9240412, por si relatado, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo 4, págs. 272 e seguintes e que, com mais fidelidade ao texto original, por conter menos gralhas, se encontra informatizado, em texto integral, na base de dados jurisprudenciais do ITIJ/MJ (www.dgsi.pt), concernente à Relação do Porto.
Posição que o Supremo Tribunal de Justiça veio a subscrever, ainda pela pena do mesmo relator, ora no acórdão de 22/11/01, proferido no recurso n.º 1798/01-5, cuja fundamentação, por isso, vai seguir-se de perto.
É hoje geralmente admitido sem reservas que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de eminente interesse público e, por isso, pela Constituição, o exercício da acção penal é entregue a um órgão do Estado - o Ministério Público (Constituição da República Portuguesa - artigo 219.º, n.º 1; Código de Processo Penal - artigos 48.º a 50.º ).
Como se colhe em Luís Osório, (2) esta constatação do actual estado das coisas situa-se no topo de uma evolução regressiva quanto à intervenção dos particulares no exercício da acção penal: tal exercício parece ter pertencido, primitivamente, apenas àqueles, mas tal evolução tem-se dado no sentido de restringir esses poderes.
Comentando o artigo 11.º do Código de 1929 o Autor citado dá nota que a regra da admissão do particular a exercer conjuntamente com o Ministério Público a acção penal encontra o seu fundamento, principalmente, se não exclusivamente, na história.
Ao dar-se competência ao Ministério Público para acusar todos os crimes públicos, teve-se receio de tirar ao ofendido o direito de acusar e, por isso, se lhe deixou, como correlativo, contra a possível falta de interesse do Ministério Público.
Fora essa razão histórica, que no entendimento do citado Autor, pouco válida já se mostrava - pois o Ministério Público "tem-se desempenhado bem da sua função" - só havia o motivo de "reforçar a acusação" que, segundo o mesmo entendimento, não era suficiente para manter uma disposição com a latitude daquele artigo 11.º
Porém - advertia - "o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para encarnar o interesse geral da repressão do crime" sendo certo no entanto que "os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro, baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtue a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do Juiz".
Faz ainda notar o insigne processualista (3) que "a útil colaboração do ofendido está nas informações que ele pode trazer ao processo".
Aquela utilidade de intervenção dos particulares no processo penal é sufragada pelos nossos mais ilustres processualistas e penalistas actuais, com destaque para os Professores Figueiredo Dias (4) e Castanheira Neves (5) acentuando este último: "para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio "social" em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido (6) da decisão final".
O Professor Germano Marques da Silva (7) considera mesmo aquela intervenção como uma "excelente e democrática instituição" partindo da consideração de que, se o crime ofende primordialmente interesses da comunidade, não pode fazer-se olvidar que, em grande número de crimes, quem primeiro lhe sofre o mal é o particular e, por isso, a sua participação activa no processo, "além do interesse da sua colaboração com o Ministério Público, particularmente no domínio probatório, (8) representa uma forma de participação na actividade processual, permitindo ao ofendido o convencimento da efectivação da justiça no caso".
Adverte porém este mesmo Autor (9) que "a intervenção do particular no processo pode ser factor perturbador, pois não é de esperar dele a objectividade e imparcialidade que devem dominar o processo penal e também por isso importa acautelar os termos da sua intervenção...".
É na sequência destas ideias que o actual Código vem consagrar um estatuto de equilíbrio em que são ponderadas as virtudes e os inconvenientes apontados.
Tal estatuto encontra a sua demarcação essencial no artigo 69.º daquele diploma que, na parte que ora interessa dispõe que "compete em especial aos assistentes... interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito n.º 2 alínea c). Desta disposição há que aproximar a de carácter geral, relativa aos recursos e referida no artigo 401.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, respectivamente: "Têm legitimidade para recorrer... o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidos". "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir".
Da simples leitura destas disposições, resultam de imediato, algumas ilações importantes:
Em primeiro lugar, a nítida distinção de campos de actuação, neste domínio, entre o Ministério Público e os assistentes: enquanto o primeiro sujeito processual apontado pode recorrer de "quaisquer decisões" (artigo 401.º, n.º 1, alínea a), o segundo está limitado às decisões "contra ele proferidas".
Limitação comum: a existência de interesse em agir.
Cabe, pois, aqui, uma rápida precisão de conceitos, por vezes confundidos, acerca de distinção entre os pressupostos processuais da legitimidade e do interesse em agir.
De notar, neste campo, e antes de mais, que o citado artigo 401.º só a um leitor desatento oferece confusão de tais pressupostos. Com efeito, no n.º 1, alíneas a) e d), o legislador elenca os casos de legitimidade para o recurso. Todos eles, porém, limitados pela exigência do n.º 2 do mesmo preceito: existência de interesse em agir.
Daqui pode inferir-se que, não obstante a verificação do pressuposto da legitimidade, o direito de recorrer não está automaticamente preenchido. Basta que nas hipóteses - em qualquer das hipóteses - previstas no n.º 1, se verifique a circunstância limitativa do n.º 2.
E a inversa também é verdadeira: pode qualquer sujeito processual gozar de legitimidade para recorrer - designadamente, o assistente em relação a um decisão contra si proferida e que o afecte directamente - que, nem por isso, está automaticamente garantido o direito ao recurso: Basta que a situação concreta não deva subir ou não necessite da intervenção correctiva do tribunal superior. (10)
E na verdade, as duas figuras são doutrinalmente inconfundíveis.
Na definição de Antunes Varela (11) o interesse em agir (também conhecido por interesse processual) consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. "O autor tem interesse processual, quando a situação de carência em que se encontra, necessita da intervenção dos tribunais".
Mas, o autor pode ser titular da relação material litigada e ser consequentemente a pessoa que, em princípio, tem interesse na apreciação jurisdicional dessa relação, e não ter, todavia, em face das circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção.
"Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base de legitimidade das partes; outra substancialmente distinta, a necessidade de lançar não da demanda, em que consiste o interesse em agir" (12).
Transpondo estes conceitos (que por abrangentes se aplicam, devidamente adaptados, em processo penal) e considerando as particularidades do nosso caso, temos como líquido que aos assistentes não falha o "interesse em agir".
Com efeito, para fazerem valer o seu invocado ponto de vista, outra via lhes não restava que não fosse a utilização do meio processual de que lançaram mão: o recurso. Não havia outra possibilidade, face ao disposto no artigo 666.º do Código de Processo Civil, "ex vi" do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
O problema está, sim, e em consequência do exposto, em saber se os mesmos assistentes têm legitimidade para o efeito. O que, no fundo, implica também que se indague se, tendo em conta o objecto do recurso, a decisão recorrida "foi contra elas proferida" - artigo 401.º n.º 1, alínea c) - ou se, tendo em conta o respectivo estatuto processual, se pode entender que tal decisão os "afecta" (artigo 69.º, n.º 2, alínea c).
Em termos de processo civil o conceito de legitimidade emanado do artigo 26.º do respectivo Código e aceite doutrinalmente - consagrada que foi quase unanimemente a tese de Barbosa de Magalhães - afere-se pelo interesse em demandar ou contradizer, tendo em conta a relação jurídica tal como é configurada por A. e R. nos articulados.
Em última análise, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito os sujeitos da relação material controvertida.
Em termos estritamente penais o conceito terá de ser devidamente adaptado tendo em conta a titularidade exclusiva da acção penal por parte do Estado e a indisponibilidade do seu objecto.
É que, face a tais princípios, não fará sentido falar em "sujeitos da relação material controvertida" ou no "interesse em demandar" já que aquela relação material está "apropriada" pelo Estado representado pelo Ministério Público e este "interesse" é sempre (mesmo nos casos de autores particulares), um interesse público. (13)
Daí que, que a legitimidade, excepcionando os recursos interpostos pelo Ministério Público, pressupõe por parte do recorrente um interesse directo na impugnação do acto, concebendo-se tal pressuposto processual como "uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através de recurso" (14).
Ou que a legitimidade processual é "uma certa posição das partes, em face da relação material controvertida que lhes permite ocuparem-se em juízo do objecto do processo (15).
Estes conceitos, algo vagos e genéricos, embora possam dar alguma indicação para a questão que nos propusemos, são ainda insuficientes.
Na verdade, ao conteúdo genérico do mencionado pressuposto processual, a lei fez corresponder as expressões já mencionadas "contra si proferidos" ou "decisões que os afectem".
Avançando um pouco no desvendar do sentido destas fórmulas verbais, o Professor Germano Marques da Silva (16) entende como decisões que afectam o assistente aquelas que contrariem as posições processuais por ele assumidos.
O que não dispensa, porém, uma precisão, consistente, em suma, na localização processual do assistente ante a posição do Ministério Público, titular da acção penal, mormente em casos, como o dos autos, em que está em causa, não, um crime semi-público, ou, mesmo, particular, em cujo procedimento o assistente ou ofendido assume, em regra, protagonismo decisivo, como flui, designadamente dos artigos 49.º e 50.º do Código de Processo Penal - já que é sua a iniciativa processual - antes, o procedimento por crime público em que, sem excepções, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo - art.º 69.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Assim, o caso é de clara, ampla e irrestrita titularidade da acção penal pelo Ministério Público, tal como emerge com carácter geral do artigo 48.º do mesmo diploma, que atribui a titularidade da acção penal àquele órgão do Estado.
Como assim, cumpre-lhe a prossecução penal que se efectiva através do exercício da acção penal e da representação da acusação no processo em juízo. (17)
Mas, sendo assim, isto é, se é o Ministério Público o titular - neste caso, titular exclusivo - da acção penal, se lhe compete também em exclusivo, representar a acusação e se, em contraponto, os assistentes são in casu meras colaboradores subordinados, não se veria bem onde ancorar a pretensão de, por único alvedrio destes, porventura em muitos casos contra o entendimento do titular da causa (18), e necessariamente movidas, por motivações que, por válidas e compreensíveis que pudessem ser, não prescindirão da contemplação do processo penal à lupa de interesses pessoais, sejam eles ou não de cariz puramente material, mas, em qualquer caso, distintos do interesse público que subjaz à causa penal, emancipá-los do seu estatuto subordinado, para, em suma, lhes permitir a assunção, a partir de certo momento - que seria o da conformação definitiva do MP com a decisão proferida - de titulares efectivas da causa penal, invertendo claramente os papéis de cada um deles.
O que viria a erigir, a final, nesses casos, o interesse pessoal em motor da acção penal, em detrimento da assumida objectividade do MP, titular efectivo da causa, com todos os perigos e inconvenientes facilmente adivinháveis, como seria, por exemplo, a possibilidade de instrumentalização da causa penal, facilmente posta ao dispor da simples vindicta.
Nesta perspectiva, naturalmente de afastar, não poderá deixar de ter-se o assistente (19) como não afectado pela decisão que qualifique os factos contra o seu entendimento, ou, por outra via, de entender-se que tal decisão não é contra ele proferida, pese embora, como em relação qualquer outro cidadão, indirectamente, a sentença o possa ter também atingido.
Pois, tendo em conta os interesses públicos subjacentes à dinâmica da causa penal, mormente desencadeada por crimes públicos, o interesse relevante para aferição da legitimidade para recorrer é - só pode ser - o do titular dela, numa palavra, do Ministério Público.
Ministério Público que, assumindo in casu a titularidade da causa, converge com os mesmos assistentes na crítica da sentença do tribunal de júri no tocante à qualificação jurídica dos factos e à medida da pena aplicada.
E, se assim, não só falece aos assistentes legitimidade para atacar esse aspecto essencial da causa, cuja defesa está afecta àquele titular, como lhes falece, mesmo, interesse em agir, já que, não sendo sua a titularidade respectiva, repousa sobre os ombros do quem tem a responsabilidade de a levar até ao fim, nomeadamente quanto ao acerto da incriminação, a responsabilidade da condução do processo (de que o assistente está exonerado nessa exacta medida, e, assim, para garantia da legalidade não precisa aquele de tomar qualquer iniciativa processual, movendo o recurso e lançar mão da respectiva demanda, pois o MP tem o dever funcional de o fazer). Num caso como este, com efeito, e como ressalta das transcritas conclusões da motivação, estivesse apenas em causa, imediatamente, o rigor da incriminação e nada mais, dificilmente se poderia afirmar por banda dos assistentes um «concreto e próprio» interesse (em agir) no recurso, acaso, mesmo aqui, fosse entendido ser de aplicar também a doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/99, deste Supremo Tribunal, tirado para situação processual próxima (20) da aqui discutida.
A possibilidade de recurso autónomo por banda do assistente - art.º 69.º, n.º 2, c), do CPP - refere-se, pois, e tão só, às situações processuais em que aquele é directamente afectado, a decisão directamente o desfavorece, enfim, atinge algum «concreto próprio interesse» seu, digno de protecção e é, nessa medida, contra si proferida, o que, sem estar inteiramente arredado na acção penal por crime público, naturalmente com mais frequência, terá oportunidade de acontecer quando o procedimento criminal é instaurado nos termos dos artigos 49.º e (ou) 50.º, do CPP, citados.
Interpretação esta que em nada contende com os direitos constitucionais previstos nos artigo 13.º e 20.º da Lei Fundamental, já que o estatuto processual do assistente não pode, pelas razões supra sumariamente expostas, ser equiparado ao do Ministério Público, sendo certo que como se sabe, o princípio de igualdade - que não é igualitarismo - só proíbe a discriminação arbitrária e infundamentada de situações merecedoras do mesmo regime e tratamento, e não, já, que se apliquem soluções diferentes, a diferentes situações de facto. E não fere, de modo algum, o acesso de quem quer ao direito e aos tribunais, o qual está longe de implicar uma actuação irrestrita e ilimitada do assistente no processo penal.
A doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/99 deste Supremo Tribunal, de 30.10.97, DR, I Série de 10/8/99, ao exigir «um concreto e próprio interesse em agir» ao assistente para recorrer não parece, na lógica das coisas, servir de argumento válido aos recorrentes, nem contrariar este ponto de vista, a final restritivo, do direito ao recurso do assistente em processo penal.
Na verdade, se, como se viu e é sabido, o interesse em agir é um pressuposto processual distinto e autónomo do da legitimidade - de resto como emerge, do citado artigo 401.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal: "1. Têm legitimidade para recorrer..." 2. "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir" - uma de duas: ou tal acórdão uniformizador se limitou, nesse ponto, a consagrar declarativamente o que já está positivado, e, em tal caso, a sua formulação é de reduzida ou nula utilidade, ou, ao invés, veio, concretizar uma configuração específica e mais exigente do aludido pressuposto quanto se trata de conferir ao assistente direito ao recurso para, em caso de condenação, atacar a espécie e medida da pena.
Ora, tendo em conta tudo o que se disse, mormente quanto à necessidade de postergação de qualquer veleidade de instrumentalização do processo penal por interesses privados e ou pessoais de quem quer, só esta última pode ser a teleologia da falada exigência processual do «concreto e próprio interesse em agir», que, bem vistas as coisas, melhor e mais claramente traduzido teria sido com a expressão «concreto e próprio interesse», do que a usada no acórdão «concreto e próprio interesse em agir». (21)
Sob pena, até, de, a ser de outro modo, se ter de haver, sempre - verificado que fosse um interesse em agir concreto e próprio - como legitimada a intervenção do assistente mesmo em decisões que o não afectassem ou contra si não tivessem sido proferidas, confundindo e misturando os dois pressupostos processuais e se fazer tábua rasa, da exigência de legitimidade, e, assim, do estatuído n.º 1 do artigo 401.º, o que, por aberrante e inaceitável, nos teria de levar a ter como afastada tal «doutrina uniformizadora», como claramente é permitido pelo artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
O que tudo vale para concluir que os assistentes recorrentes carecem de legitimidade para o recurso que interpuseram, limitado este à mera discordância sobre a qualificação jurídico-penal operada na decisão e correspondente medida da pena, ao mesmo tempo que lhes falece também interesse em agir, já que o titular da causa penal - o MP - se propõe o mesmo objectivo daqueles e, daí, a desnecessidade de lançarem mão do meio processual em causa.
Porém, como se viu, não está em causa no recurso dos assistentes, apenas, a qualificação jurídica dos factos.
Ao invés do Ministério Público, eles assacam à matéria de facto recolhida no tribunal a quo os vícios de contradição e de insuficiência.
Ora, se o escopo essencial da intervenção dos assistentes em processo penal, se prende, como se viu, com a mais valia que podem aportar em sede probatória, não se vê como afastar do seu alcance a possibilidade de invocação dos apontados vícios da matéria de facto, onde, as provas, naturalmente, são elemento decisivo para superá-los, caso existam. Para mais, quando, num caso como o presente, a intervenção recursiva dos assistentes, porque não isolada, em nada prolonga do desenvolvimento do processo.
Daí que, nesse aspecto da causa, lhes assista a reclamada legitimidade para o recurso, e, mesmo, o interesse em agir, já que, não tendo o MP impugnado esse aspecto da decisão, só por via do recurso que interpuseram os assistentes lograriam vê-lo apreciado.
Improcede deste jeito, apenas em parte, a questão prévia da legitimidade dos assistentes suscitada pelo arguido.

Aqui chegados, cumpre avançar no conhecimento dos recursos.
Logicamente cumprirá indagar da existência dos apontados vícios da matéria de facto.
Começam os assistentes por afirmar que «o depoimento do arguido, pela sua inconsistência, pela sua contradição e pela sua não comprovação por outro ou idêntico meio de prova, não deve servir de fundamento á factualidade apurada».
Acontece que tratando-se aqui de um tribunal de revista, obviamente que a questão da apreciação do concreto valor das provas prestadas em audiência cai fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal, até porque a elas não teve acesso.
E, mais do que isso, do relato feito logo se apreende que a afirmação conclusiva em causa, não tem qualquer razão de ser.
Com efeito, o tribunal de júri, num acórdão exemplarmente relatado, foi extremamente cuidadoso na explicitação da fundamentação de facto e de direito - mormente naquela - sobretudo no que à valoração do depoimento do arguido diz respeito: Se é que dessa valoração se pode, mesmo, falar em separado da avaliação global e conjugada das demais provas produzidas e valoradas em audiência, pois, como explicitamente se escreveu na parte já transcrita desse acórdão, «a convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, com base na prova globalmente produzida em julgamento e, em particular, com base na conjugação dos elementos de prova (22) que a seguir se enunciam (...)».
Para além de que, ao contrário do que afirmam os assistentes, tal depoimento esteve longe de ser inconsistente: «salvo na parte em que o arguido descreveu o concreto local de onde disparou contra o seu genro e a distância que entre ambos intercedia no momento desse disparo, tal depoimento revelou-se credível e circunstanciado».
E, mais do que isso, «foi secundado por outros meios de prova produzidos em julgamento, designadamente pelos depoimentos da filha e neta mais velha do arguido, pelos depoimentos de AA, LC, JN, SL e AO, bem assim como pelos documentos de fls. 450 a 462,480 a 512. »
Não tem, assim, qualquer apoio nos autos e fica sem demonstração a primeira conclusão dos assistentes, ao pretenderem retirar valor probatório ao depoimento do arguido em audiência.
Prosseguem, entretanto, os mesmos assistentes assacando vícios à matéria de facto, hesitando entre o de contradição e a insuficiência, para, finalmente, se fixarem no primeiro, já que, como flui da conclusão 4.ª «Assim conclui-se que a decisão recorrida enferma do vício constante da alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do C.P.Penal.», é àquele que acabem por referenciar a norma tida como violada.
Assentaria tal vício, se bem se entende o teor das respectivas conclusões, na alegada «contradição insanável entre a factualidade apurada, descrita nos pontos 49° a 63° e 66.º a 73° dos factos provados e a análise dos meios de prova, designadamente do depoimento do arguido, que serviram para formar a convicção do Tribunal.»
Não, portanto, na contradição entre os factos mencionados em tais pontos, individual ou colectivamente considerados, antes, entre esses factos e a respectiva motivação.
Não explicam os recorrentes, porém, pela forma necessariamente incisiva, como o deviam fazer, afinal em que consiste essa alegada contradição. Preferem deixar a alegação a pairar sobre a indefinição das coisas. Daí o sujeitarem-se a que não sejam bem entendidos. Terá sido um risco calculado. Daí que venham a ter de arcar com as porventura nefastas consequências desta sua insuficiência de alegação.
Mas não andará, todavia, longe da verdade a conclusão de que com tal alegação pretendem atingir o seu objectivo assentando em suma na circunstância de o depoimento do arguido ter sido contraditório numa pequena parcela do seu conjunto probatório. Daí que, na lógica do alegado, não pudesse servir para formar a convicção do tribunal.
Não têm, seguramente, razão no que afirmam.
Em primeiro lugar, porque, como ficou já explicado, a convicção do tribunal de júri ora recorrido - de resto, repete-se, com fundamentação cuja densidade e cuidado vão muito para além do que é usual ver-se por aí e, constituindo mesmo um caso paradigmático de como se julga o facto - está a milhas de assentar apenas num depoimento, seja ele o do arguido ou doutro sujeito processual qualquer, antes, declaradamente, na avaliação conjugada e reflectida de todos os meios de prova devidamente identificados, um a um, no acórdão recorrido.
Depois, porque, como a própria sentença escrupulosamente fez questão de assumir, essa contradição no depoimento do arguido foi detectada em devido tempo. Detectada e objecto do devido tratamento.
É ver o que a propósito se afirma no trecho aliás já transcrito do referido acórdão: «É tempo de referir, neste momento, que a acusação apontou ao arguido uma contradição entre o depoimento dele prestado em audiência e o depoimento prestado pelo mesmo arguido por ocasião do seu primeiro interrogatório judicial, designadamente quando se conjuga esse interrogatório com os factos descritos no auto v de notícia de fls. 3 e que o arguido confirmou naquele interrogatório .
Deve dizer-se que, a nosso ver, para estes efeitos e no que toca ao concreto modo como o arguido matou o seu genro, o primeiro interrogatório do arguido é absolutamente inaproveitável, pois que o mesmo é contraditório nos seus próprios termos.
Na verdade, nesse auto o arguido começou por dizer que confirmava os factos descritos no auto de notícia de fls. 3 e 4, onde, por exemplo, se escreveu que o PJ foi morto quando se encontrava a dormir, sendo que no próprio interrogatório o arguido apresenta um relato em que a vítima foi acordada pelo arguido, sentou- se na cama e foi morta pelo arguido quando acabava de se deitar novamente.
Essa evidente contradição entre o relato constante do auto de notícia e o relato constante do interrogatório judicial não foi esclarecida, nem nesse interrogatório, nem posteriormente, o que, como acima de deixou escrito, torna aquele interrogatório inaproveitável para efeitos de se determinar em que circunstâncias se encontrava a vítima quando foi morta pelo arguido .
Por outro lado, confrontada a versão do arguido que consta do primeiro interrogatório judicial, amputada da parte em que confirmou os factos descritos no auto de notícia, e aquela que o arguido apresentou em audiência de julgamento, não se vê qualquer contradição entre essas versões que permitisse sustentar uma descredibilização global do depoimento do arguido. O que ocorre é que aversão de facto que foi apresentada no decurso do primeiro interrogatório foi complementada em audiência de julgamento, sem que nisso se encontre qualquer elemento que fundamente uma descredibilização global do depoimento prestado pelo arguido em julgamento, tanto mais que não se sabe em que circunstâncias psicológicas se encontrava o arguido quando foi sujeito a esse interrogatório, na própria tarde do dia em que tinha morto o seu genro, do mesmo modo que se desconhece o modo como esse interrogatório foi conduzido, designadamente no que toca à pormenorização da versão dos factos que o arguido relatou.
Finalmente, o facto do arguido ter negado ter disparado com a arma encostada à cabeça da vítima não é só por si suficiente para descredibilizar todo o seu depoimento, tanto mais quanto é certo que, como se disse, em partes significativas desse depoimento o mesmo foi secundado por outros elementos de prova e, noutras partes, não foi contraditado por nenhum meio de prova produzido em julgamento, beneficiando o arguido do in dubio pro reo. Aliás, bem visto o depoimento do arguido, logo se verifica que o mesmo nunca assumiu explicitamente ter tido a intenção de matar o seu genro, embora nunca tenha negado essa intenção e tenha confessado a materialidade de todos os factos de onde essa intenção se retira com toda a evidência, o que pode ser perfeitamente explicado por uma espécie de repulsa psicológica do arguido em aceitar ter tido a intenção de tirar a vida de outrem que era pai de seus netos, intenção essa cuja assunção é perfeitamente incompatível, em termos de normalidade, com o tipo de personalidade do arguido referida nos factos provados e com o seu trajecto e modo de vida.
Ora, não assumindo explicitamente o arguido a sua intenção de matar o seu genro, logo se compreende porquê que o mesmo também não assume ter disparado com a arma encostada à cabeça da vítima, pois assumir este último facto implicaria reconhecer aquela intenção.
Por outro lado, a negação do arguido em reconhecer que disparou com a arma encostada à cabeça da vítima pode ser perfeitamente explicada por mecanismos psicológicos relacionados com os sentimentos de culpa e de arrependimento que o arguido manifesta pela circunstância de ter morto o seu genro, mecanismos esses que o inibem de reconhecer que matou o seu genro com um disparo dado com a arma encostada à cabeça da vítima, acto que, isoladamente considerado, revela uma certa frieza e uma crueldade que são incompatíveis com a personalidade e com o trajecto de vida do arguido.
Daí que essa negação, só por si e desacompanhada de qualquer outra circunstância, não seja suficiente para descredibilizar globalmente a versão dos acontecimentos que o arguido apresentou para justificar o seu comportamento v' homicida, mesmo quando essa versão não é acompanhada de qualquer outro elemento de prova, designadamente quando o arguido relatou os factos a que se alude nos pontos 500) a 63°), 66°) a 73°) dos factos provados. »
Portanto, se é certo que a alegada contradição existe, ela está explicada e, mais do que isso, argutamente exposta a razão, porque, apesar dela, o depoimento tem validade probatória não desprezível.
Explicada, assim, de forma tão cristalina a razão de ser das coisas, o mínimo que se impunha aos recorrentes era subirem ao mesmo patamar de escrúpulo e, desmontando as razões adiantadas pelo tribunal recorrido, demonstrarem que estava errado o seu juízo.
Mas não.
Ficando-se pela invocação algo difusa da pretensa contradição - bem ultrapassada pelo tribunal recorrido - e por uma ainda mais vaga e, até, confusa alegação de «insuficiência» (23) - que não seria da matéria de facto, como seria mister, e, sim, da fundamentação respectiva - ficam longe de, por aí conseguirem qualquer ínfimo meio de levarem a água ao seu moinho.
Em suma: Não se configura qualquer dos apontados vícios da matéria de facto apontados pelos recorrentes à decisão recorrida.
E porque outros nela não vislumbra o Supremo Tribunal, tem-se tal matéria de facto como definitivamente assente.

Há agora que avançar entrando decisivamente no tratamento das questões de direito postas pelo Ministério Público e que, em suma, se resumem à qualificação jurídica dos factos.
Como se viu, aquele Magistrado defende que os factos preenchem, não a moldura privilegiada do artigo 133.º do Código Penal, como entendeu o tribunal de júri, antes, a do homicídio qualificado, dos artigos 131.º e 132.º, 1 e 2, alíneas g) e h), ainda que, para esta última houvesse de lançar mão do mecanismo processual do artigo 358.º do Código respectivo, uma vez que, como resulta do relato feito, não era isso, exactamente, que constava da acusação.

Vejamos.

O acórdão recorrido, discorrendo sobre as qualificativas tidas por verificadas pela acusação, e seguindo de perto, essencialmente, o que a propósito explana o Prof. Figueiredo Dias (24) discorreu assim:
«(...)Na alínea g) refere-se, além do mais, a utilização de um meio particularmente perigoso.
A este respeito cumpre aqui referir que está em consideração aquele tipo de situações em que o agente se serve, para matar, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que, não envolvendo a prática de um crime de perigo comum, crie ou seja susceptível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.
Ora, como é sabido, a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos.
Porém, o que alei refere não são meios perigosos, mas sim particularmente perigosos.
Assim sendo, é necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade superior à normal os meios usados para matar, não cabendo no exemplo-padrão, por exemplo, os revólveres, as pistolas, as facas ou outros vulgares instrumentos corto - contundentes.
Assim, afigura-se que a arma utilizada pelo arguido não pode ser qualificada, para os efeitos em análise, como meio particularmente perigoso.
Significa isso que, no nosso entender, a utilização da referida arma é insusceptível de integrar o exemplo - padrão agora sob apreciação .
Porém, nesse mesmo exemplo, faz-se referência à utilização de um meio perigoso ou traduza a prática de um crime de perigo comum.
Embora a lei o não refira expressamente, os crimes de perigo comum nela referidos são aqueles que como tal são qualificados pelo CP, designadamente os previstos nos respectivos arts. 272° a 286°.
Tendo em consideração que o arguido utilizou uma espingarda que se encontrava devidamente legalizada e atendendo a que o arguido dispunha de licença de utilização dessa arma (pontos 82° e 83° dos factos provados), não se vislumbra que tipo de crime de perigo comum terá sido cometido pelo arguido pelo facto de ter utilizado aquela espingarda como arma letal de agressão.
De tudo se conclui, pois, que não pode ter-se por verificada a circunstância qualificativa do homicídio que está sob consideração .
Também se imputa ao arguido o preenchimento da circunstância qualificativa enunciada na alínea i) do n° 2 do art. 132°.
Não resulta provado que o arguido tenha persistido na intenção de matar por mal de 24 horas.
Portanto, a conduta do arguido não pode subsumir-se ao disposto na parte final do art. 132°/2/i.
Actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução. Os factos provados não permitem ter por preenchida esta circunstância agravante, uma vez que resulta claramente desses factos que o arguido decidiu tirar a vida a seu genro instantes antes de concretizar essa decisão, depois de por ele ter sido agredido, injuriado e ameaçado, estando o arguido dominado, quando tomou tal decisão, por um sentimento de revolta e por uma situação de descontrolo emocional.
Por reflexão sobre os meios empregados deve entender-se a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso.
Assim, para o preenchimento deste exemplo-padrão é necessário que o agente tenha procedido a uma escolha de entre os meios disponíveis ou possíveis dos mais idóneos e dos susceptíveis de revelar maior capacidade de êxito, com a consequente ampliação da eficácia da acção e diminuição das possibilidades de defesa da vítima.
Nada disso resultou provado, no caso em apreço, relativamente ao arguido e ao instrumento por ele utilizado para matar o seu genro.
Assim, não preencheu o arguido qualquer das circunstâncias agravantes do art. 132°/2 do CP que lhe são imputadas na acusação, nem qualquer das outras que são enunciadas nesse dispositivo lega!, sendo que, por isso, se nos afigura que ao arguido não pode imputar-se o preenchimento do tipo de culpa do art. 132°/1 do CP.
Aliás, face ao que se deixará a seguir escrito em matéria de homicídio privilegiado, ainda que o arguido tivesse preenchido qualquer dessas circunstâncias, sempre teria de concluir-se no sentido de que isso não foi suficiente para se ter por preenchido o tipo de culpa do no 1 do art. 132°, pois, como se verá, é entendimento desde tribunal o de que o arguido actuou em situação de compreensível emoção violenta, estando excluída, assim, por natureza e definição, a possibilidade de se sustentar que o arguido actuou com especial perversidade ou censurabilidade (...)»
O Supremo Tribunal de Justiça, mormente em acórdãos tirados com alguns dos mesmos intervenientes, tem seguido esta doutrina, mormente no que tange ao conceito de «meio particularmente perigoso» (25).
Por isso, seria despiciendo qualquer acrescento às pertinentes considerações do tribunal de júri acabadas de transcrever.
O que tudo vale por dizer que, neste ponto o acórdão recorrido não merece censura e não se tem como boa a pretensão do Ministério Público recorrente ao pretender que os factos preenchem o tipo qualificado de homicídio pelo qual foi deduzida a acusação.
É certo que na motivação do recurso o mesmo recorrente, evoluindo na sua perspectiva inicial, acaba por defender a qualificação, agora também pela alínea h) do citado n.º 2, do artigo 132.º, ou seja, que a utilização da espingarda de caça, nas circunstâncias de facto descritas, constituiu um «meio insidioso».
Mas, salvo o devido respeito, também aqui não tem razão.
Tal como já foi referido, a propósito, no citado acórdão de 28/2/02, proferido no recurso n.º 226/02-5, com o mesmo relator, «se, por meio insidioso, se tiver aquele "cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto", então teremos que o uso da pistola, considerado a se mesmo nas circunstâncias algo abruptas em que o arguido irrompeu em casa da vítima (de resto, não era a primeira vez que o fazia), está longe de revestir esse comportamento dissimulado ou oculto que o silencioso envenenamento acarreta consigo.
Aliás, se o tivemos como afastado da previsão de meio especialmente perigoso, por ser um instrumento mais ou menos comum na consumação do homicídio, dificilmente o poderíamos ver transmudado agora, em meio insidioso, que, por sê-lo, não poderia deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida».
A circunstância de, no caso, em vez de uma pistola, a arma do crime ter sido uma espingarda de caça, ao invés do pretendido pelo recorrente, reforça mesmo a ideia de total desajustamento ao conceito de «meio insidioso».
É que, uma espingarda de caça, quando comparada com uma pistola ou um revólver, pela sua maior dimensão - para mais usada nos confins necessariamente acanhados de uma casa de habitação, no caso, de um quarto de dormir - torna-se, notoriamente, num instrumento de muito mais difícil manuseamento, e ainda de mais difícil dissimulação.
Por mais abrupta que seja ou tivesse sido a intervenção do agressor, jamais se pode equiparar, para efeitos de capacidade de dissimulação do meio e correspondente inconsciência de necessidade de defesa da vítima, essa utilização com a de um outro que, pelo seu carácter dissimulado, oculto, subreptício, enganador, assuma características análogas às do veneno, a ponto de, como regra, a vítima nem sequer suspeitar que está já a ser atingida.
Mediante o uso da arma de caça, nas circunstâncias dos autos, o arguido poderia aspirar, decerto, ao resultado infeliz a que o seu acto conduziu. Mas seria, seguramente, dos meios mais desajeitados de que poderia lançar mão se, decidindo-se por ela, visasse, com a escolha, também, uma actuação «oculta».
Aliás, a circunstância de, após o disparo, o arguido ter abandonado a arma próxima do local do crime, no corredor junto ao quarto onde tudo aconteceu, ainda com um cartuxo por detonar, mostra bem ter estado longe da sua cogitação, esconder ou camuflar o uso de tal arma.
Não se verifica, assim, a circunstância agravativa em causa - alínea h) do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal - pelo que, também aqui, o acórdão recorrido não merece qualquer censura.

Resta, enfim, o último aspecto do inconformismo do Ministério Público, que reside em indagar se, para além do exposto, os factos permitem ter o homicídio como privilegiado, nos termos previstos no artigo 133.º, tal como decidiu o tribunal de júri.
Fundamentando a sua opção dissertou a dado passo o tribunal recorrido (26):

«(...) "Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos"» - art. 133º CP.
Através deste tipo legal, criou-se uma censura mais suave para o homicídio, em função dos motivos que determinaram a sua perpetração, uma vez que os motivos constituem, modernamente, uma das pedras de toque do crime, pois que não há crime gratuito ou sem motivo e é no motivo que reside, em parte importante, a significação da infracção.
Ao lado do perfil psicológico do arguido, do maior ou menor dolo, da quantidade de dano ou de perigo de dano, não pode deixar de ser valorada a qualidade dos motivos que o impeliram à prática daquele crime.
De acordo com os dizeres do art. 133º do CP, para que haja crime atenuado são indispensáveis duas condições:
- que se verifique uma causa privilegiadora (compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral);
- que essa causa acarrete uma diminuição sensível da culpa do agente.
Por outras palavras, é necessário, em primeiro lugar que se mostre sensivelmente diminuída a culpa do agente; depois, que essa diminuição advenha de uma de quatro cláusulas de privilegiamento:
a)compreensível emoção violenta;
b)compaixão;
c)desespero;
d)motivo de relevante valor social ou moral.
De entre as quatro cláusulas de privilegiamento acima mencionadas, as únicas que poderiam ser invocadas por referência ao caso dos autos são as das alíneas a) e c).
No que respeita à da alínea c) importa recordar que "Desespero, é o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia" "- LEAL HENRIQUES / SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, II, pág. 132.
Ou, como regista TERESA SERRA, é a «.." acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso"» - Homicídios em Série, pág. 160.
Para haver desespero com relevância penal é necessário, pois, que a situação em que o arguido se encontra seja extrema - o tal "beco sem saída" de que fala aquela autora -, em que o agente sinta que chegou ao fim do caminho, e que o estado emotivo tenha "... natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual." - TERESA SERRA, idem, pág. 160.
Não foi isso o que se passou na situação em apreço.
Na verdade, dos factos provados resulta que, no seu relacionamento com a vítima, o arguido vinha alimentado a esperança de que o seu genro modificasse e "normalizasse" o seu comportamento familiar.
Ora, não resulta dos factos provados que o arguido tenha perdido essa esperança que o próprio alimentava e que, por causa disso, tenha ficado dominado por um estado de aflição, de desânimo, de desalento, de angústia ou de ânsia, de tal modo que o mesmo se sentiu numa situação incontornável de ter de matar o seu genro.
O que rigorosamente resulta dos factos provados é, ao contrário, que o arguido actuou dominado por um estado de exaltação, de revolta e de descontrolo emocional decorrente, em termos de causa próxima, do facto de ter sido agredido, injuriado e ameaçado pela vítima dentro da sua própria residência.
Quanto à da alínea a) importa dizer, antes de mais, que emoção, ".."é um estado de ânimo ou de consciência caracterizado por uma viva excitação do sentimento. É uma forte e transitória perturbação da afectividade, a que estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares das funções da vida orgânica." .
É, pois, «.."uma descarga nervosa subitânea, que, por sua breve duração, se alheia aos complexos superiores que coordenam a conduta ..." (27) .
Ou, como acentua AMADEU FERREIRA, é "... um estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma"" (28) .
"É o estado afectivo que produz momentânea e violenta perturbação ao psiquismo do agente com alterações somáticas e fenómenos neurovegetativos e motores"» (JÚLIO MIRABETE, Manual de Direito Penal, Parte Especial, 2, pág. 47).
Face aos factos provados, dúvidas não há de que o arguido actuou dominado por um estado de emoção, pois resulta dos factos provados que o arguido ficou exaltado, revoltado e emocionalmente descontrolado por causa de, no interior da sua residência, ter sido agredido, injuriado e ameaçado pelo seu genro (pontos 70º a 72º dos factos provados).
Mas, como resulta daquilo que já se deixou escrito, não basta a emoção para que funcione a cláusula de privilegiamento agora em consideração, sendo necessário, para lá disso, que seja violenta, no sentido de forte (29), de "... séria perturbação da afectividade, de modo a destruir a capacidade de reflexão e os freios inibitórios", sendo por isso "incompatível com o emprego de certos meios, que demonstram planejamento e fria premeditação" (30) .
Finalmente, é indispensável, ainda, que a emoção violenta seja compreensível, isto é, natural, entendível, justificável, não no sentido de proporcional como vem sufragando significativa jurisprudência (31), mas de logicamente explicável (32).
Melhor dito, e recolhendo o discurso de TERESA SERRA, compreender significa " ... entender, perceber, alcançar com inteligência, conhecer a razão de, em suma, penetrar o sentido de alguma coisa. O que impõe o estabelecimento de uma relação entre a emoção violenta e aquilo que a precedeu e lhe deu causa, não com o objectivo de estabelecer uma qualquer relação de proporcionalidade, mas antes para conhecer a razão da emoção violenta: a emoção violenta só é compreensível em face das razões que lhe deram origem e do sujeito particular que as sofreu. O que significa que esta compreensibilidade não pode fugir ao princípio da razão." (33) .
Por outras palavras, a compreensível emoção violenta traduz - se num forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível, sendo que esse conceito poderá ser integrado (34) por aquelas situações em que o agente actuou por causa de uma provocação (35), entendida esta como conduta juridicamente ilícita da vítima de um crime, precedente à prática desse mesmo crime por parte de quem se sentiu afectado na sua pessoa por aquele conduta precedente e que, por causa dela e dentro de certos limites de conexão temporal, praticou o referido crime (36).
Foi o que se passou na situação em apreço.
Na verdade, da factualidade apurada resulta que:
1º) durante anos consecutivos, a vítima foi maltratando, física e psicologicamente, a filha e netos do arguido, razão pela qual o arguido foi sendo invadido por sentimentos de angústia e de inquietação, nele se instalando a inerente tensão psicológica (pontos 1º a 38º dos factos provados);
2º) o arguido foi procurando convencer o seu genro a alterar e "normalizar" o seu comportamento familiar, no que foi sendo sucessivamente insucedido, o que contribuiu para o avolumar daquela tensão psicológica e dos sentimentos que lhe estavam subjacentes (pontos 40º a 47º dos factos provados);
3º) na noite do 13 para 14 de Maio de 2002, em casa do próprio arguido, houve uma troca de palavras entre o arguido e a vítima, a que se sucederam ameaças de morte dirigidas pela vítima à filha do arguido, ameaças que o arguido ouviu, facto que decisivamente contribuiu para que fosse incrementada a tensão psicológica que se instalara no arguido (pontos 59º a 63º dos factos provados);
4º) na manhã do dia 14/5/2002, a vítima ameaçou, injuriou e agrediu o arguido, no interior da casa de habitação deste, de forma perfeitamente injustificada e gratuita, quando o arguido a procurava acordar para com ela conversar sobre o comportamento que vinha adoptando, razão pela qual o arguido perdeu o seu auto - controlo, ficou revoltado, exaltado e psicologicamente descontrolado, passando a actuar dominado por essas exaltação, revolta e descontrolo emocional (pontos 68º a 74º dos factos provados).
De tudo se conclui que:
1º) o arguido foi provocado pela vítima, que o agrediu, injuriou e ameaçou;
2º) o arguido revoltou - se, exaltou - se, perdeu o seu auto - controlo e descontrolou - se emocionalmente;
3º) dominado por esse estado de exaltação, de revolta e de descontrolo emocional, o arguido acabaria por provocar a morte da vítima.
Tanto basta para concluir no sentido de que o arguido agiu dominado por emoção violenta, exclusivamente provocada pela vítima, sendo que, no contexto em que a mesma eclodiu, não pode ela deixar de considerar-se compreensível, traduzida esta compreensibilidade, apenas, no estabelecimento de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e a própria emoção.
Por outro lado, também consideramos que se registou, na situação em apreço, uma diminuição sensível da culpa do agente.
FIGUEIREDO DIAS caracteriza este requisito básico como cláusula de exigibilidade diminuída, que «.."não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente ...", ainda que possa estar ligada a qualquer diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, sendo certo que, para estes efeitos, não poderá deixar de atender-se à motivação do acto que, para poder relevar a este nível, não poderá ser censurada, terá de ser atendível, mesmo desculpável, pois só assim determinará uma diminuição sensível da culpa pelo facto (37).
Isto é: o elemento privilegiador opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade (38), radica numa exigibilidade diminuída de comportamento diferente.
No contexto em que actuou, marcado por anos de maus tratos que a vítima dispensou à filha e netos do arguido, por ameaças de morte que a vítima dirigiu à filha do arguido, a partir da casa deste, na noite anterior à do crime, por injúrias, ameaças de morte e agressão física infligidas pela vítima ao arguido, na casa deste, nos instantes imediatamente anteriores à comissão do crime, não pode deixar de considerar - se que se registava, em relação ao arguido, uma situação de menor exigibilidade de comportamento diferente.
Tudo para concluir, assim, que a conduta do arguido deve ser integrada no tipo de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133º CP, onde se comina uma pena abstracta de 1 a 5 anos de prisão.(...)»

Ante a excelente exposição e cuidada fundamentação que assomam do extracto do acórdão que acaba de transcrever-se, pouco há a acrescentar para fundar o entendimento concordante deste Supremo Tribunal no sentido da inequívoca existência dos pressupostos do homicídio privilegiado ante a existência de compreensível emoção violenta, capaz de diminuir sensivelmente a culpa, como ali fica bem demonstrado.
Tão compreensível quanto o deve ser a emoção emergente a um qualquer normal cidadão cumpridor, perante actuações porfiadas de crueldade, violência, humilhação, e, até, de algum sadismo, activamente protagonizadas pela vítima e a que, pacientemente, o arguido, pai e avô preocupado com o bem-estar dos seus, teve de assistir e lutar em vão por vencer pela persuasão durante anos; quer, como alvo directo, quer como último refúgio e garantia do futuro da filha e netos, ante o por si conhecido e torturante dia-a-dia que o comportamento violento e desbragado da vítima a todos impunha.
Para quem fosse menos sensível ao quadro negro em que a vítima transformava a vivência quotidiana daquela família, respigam-se, sem mais comentários, estes pontos ora tidos por mais significativos da matéria de facto:
«16.º Ao regressar a casa, nas circunstâncias de tempo e no estado referidos (...), repetidas e frequentes vezes, o PJ acordava a sua esposa e os demais membros do seu agregado familiar, em especial a sua esposa e os dois filhos mais velhos do casal, com o exclusivo propósito de gratuitamente os manter acordados durante várias horas e de com eles discutir sem qualquer tipo de justificação para o efeito;»

«18.º (...) a pretexto de que a sua filha mais velha tinha cortado o cabelo sem a sua autorização, o PJ desferiu-lhe um soco, em consequência do que a sua filha perdeu os sentidos e caiu ao chão; »

«19.º Noutra ocasião, (...) o PJ apertou o pescoço a sua esposa; »

«20.º Noutra ocasião, (...) estando ele embriagado e no interior de um veículo automóvel, estando a sua esposa no seu exterior, o PJ puxou pelos cabelos de sua esposa, de tal modo e com tal violência que a mesma entrou para o interior do mencionado veículo pela janela do mesmo;»

«21.º Noutra ocasião, (...) estando ele embriagado, com utilização de uma faca de cozinha, na presença dos dois filhos mais velhos do casal, o PJ ameaçou a sua esposa de morte, tendo sido a filha mais velha do casal quem, depois do PJ adormecer, lhe retirou e escondeu tal faca; »

«22.º Ainda noutra ocasião, (...) estando ele embriagado e por causa de ter procurado agredir sua esposa, o PJ cortou-se numa mão, razão pela qual começou a deitar sangue, sendo que nessa ocasião obrigou a sua esposa e a filha mais velha do casal a recolher esse sangue numa frigideira, com a argumentação de que esse sangue deveria ser frito e por eles consumido; »

«25.º Repetidas vezes, o PJ obrigava a sua esposa, contra a vontade desta, a relacionar-se sexualmente consigo;»

«26.º Repetidas vezes, o PJ chamava "gorda", "feia" e "burra" à sua filha mais velha;»
«27.º Em consequência dos comportamentos que, em relação a eles, o PJ vinha assumindo, a sua esposa e os filhos do casal viviam, nos últimos seis anos de vida do PJ, num clima de medo quase constante;»

«28.º Por causa dos comportamentos agressivos que o PJ vinha assumindo em relação à sua esposa e aos filhos do casal, bem assim como por causa do clima de medo referido (...), a esposa e os filhos do casal estiveram refugiados numa instituição luxemburguesa de protecção de esposas e filhos vítimas de violência doméstica, desde 12/12/1997 a 19/1/1998;»

«29.º Porém, uma vez que era constantemente perseguida pelo PJ e foi por ele ameaçada, com uso de arma de fogo, de que a mataria se não regressasse à casa de morada de família, a esposa do PJ e os filhos do casal regressaram a essa casa de morada de família, sem que o PJ tivesse modificado, fosse de que modo fosse, os padrões de comportamento que até então caracterizavam a sua actuação social e familiar que, assim, se manteve intacta; »

«68.º Uma vez que estava determinado a manter com o PJHR a conversa referida no ponto 66°) dos factos provados, o arguido dirigiu-se para a porta desse quarto e ali chamou pelo PJHR;»

«69.º Como este não lhe respondeu, o arguido abeirou-se da cama onde o PJHR estava a dormir e, para o acordar, ao mesmo tempo que chamava por ele abanou-o; »

«70.º Acto contínuo, o PJHR sentou-se na cama onde estava deitado, empurrou o arguido contra um móvel que estava nesse quarto e disse: "Você está em sua casa, mas desapareça daqui, senão eu mato-o, eu desfaço-o! Velho do caralho!";»

Tudo para concluir, em suma, que não merece qualquer censura a qualificação dos factos à luz do homicídio privilegiado do artigo 133.º do Código Penal,
Assim como não merece censura o doseamento da pena feito pelo tribunal de júri recorrido, que se mostra justa e proporcionada à conduta provada do arguido e dentro das balizas legais, mormente do artigo 71.º do Código Penal.

3. São termos em que:
1. Julgando em parte procedente a questão prévia da ilegitimidade dos assistentes, não conhecem do segmento do recurso em que aqueles pugnam pela alteração da qualificação jurídica dos factos espécie e medida da pena;
2. Negando no mais, provimento aos recursos dos assistentes e também do Ministério Público, confirmam inteiramente a decisão recorrida.
3. Condenam os assistentes pelo decaimento parcial em taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.


Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Outubro de 2003
Pereira Madeira
Costa Mortágua
Santos Carvalho
Simas Santos (vencido quanto à limitação considerada à intervenção do assistente).
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(1) - Em negrito agora.
(2) - Comentário ao Código de Processo Penal Português, 1º volume páginas 192.
(3) - Obra citada, páginas 196.
(4) - Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal in Jornadas de Processo Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 10.
(5) - Sumários de Processo Criminal, páginas 137.
(6) - Em itálico agora.
(7) - Do Processo Penal Preliminar, páginas 425.
(8) - Itálico da responsabilidade do relator.
(9) - Obra e loc. cit.
(10) - Como seria o caso, por exemplo, de se tratar de um mero lapsus calami que o próprio tribunal recorrido pudesse suprimir.
(11) - Manual de Processo Civil, páginas 170.
(12) - Obra citada, páginas 172.
(13) - Cf. neste sentido C. Pimenta, Introdução ao Processo Penal, páginas 143.
(14) - Leal-Henriques e Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2.ª edição, págs. 37
(15) - Gonçalves da Costa Jornadas de Processo Penal, citado páginas 411.
(16) - Obra citada, páginas 427 - 428.
(17) - Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I vol., 2.ª edição, págs. 266, citando Cavaleiro de Ferreira.
(18) - No caso vertente, o entendimento dos assistentes coincide com o do Ministério Público quanto à pretensão de ver arredada a qualificação dos factos do âmbito do homicídio privilegiado.
(19) - Em acção desencadeada por crime público, repete-se.
(20) - Mas, não, igual.
(21) - Mesmo com esta formulação, o acrescento com a exigência de «concreto e próprio interesse» não consegue superar o qualificativo de excrescência de duvidosa utilidade, de resto, conforme foi posto em relevo numa das declarações de voto que acompanham o aresto, já que, como se viu, a legitimidade do assistente para recorrer passa sempre pelo pressuposto de a decisão ter sido «contra si» proferida, ou, por outra via, tem de tratar-se de «decisão que o afecte», expressões que, claramente, contemplam aquela formulação, assim tornada redundante.
(22) - Sublinhado agora
(23) - Insuficiência, pois, que, nada teria a ver com os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e respectivas consequências jurídicas, e, que, como aqui vem sendo reiteradamente decidido, só existe quando o objecto do processo, traçado pela acusação e defesa, não é convenientemente esgotado, enfim, quando o tribunal deixa de averiguar o que tal objecto lhe propõe com vista à decisão de condenar ou absolver, o que, a julgar pelo teor da motivação, está longe, sequer, da cogitação dos recorrentes imputar ao acórdão recorrido.
(24) - Comentário Conimbricense, I, págs. 35 e segs.
(25) - Cfr. por exemplo, o Acórdão de 28/2/02, proferido no recurso n.º 226/02-5, oriundo do tribunal de júri de Rio Maior, sumariado no local adequado no boletim interno do STJ.
(26) - A transcrição que segue envolve as respectivas notas de rodapé, que, portanto, são fruto do trabalho do tribunal recorrido.
(27) - NELSON HUNGRIA, Comentário ao Código Penal Brasileiro, V, págs. 132 a 135.
(28) - Homicídio Privilegiado, pág. 63.
(29) - F. DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 50.
(30) - HELENO FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 11ª ed., I, pág. 36.
(31) - Na verdade, não se ignora o entendimento esmagador que vem sendo reafirmado pelo STJ e de acordo com o qual a emoção só poderá considerar - se compreensível se houver uma relação de proporcionalidade entre o facto que a desencadeia e a reacção provocada do agente (v.g., BMJ 407º, pág. 321 e acórdão de 28/10/98, Proc.º n.º 828/98).
Porém, com o devido respeito, esta é uma das questões em que o STJ vem insistindo numa posição que, ressalvado o devido respeito, não nos parece correcta e que tem merecido uma crítica uniforme por parte dos doutrinadores mais representativos na área do Direito Penal que sobre este tema se tem pronunciado (v.g., FERNANDA PALMA, Direito Penal, parte especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 84, RUI SOUSA BRITO, Direito Penal, II, pág. 42, F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 51, e parecer publicado na CJ 1987, T. 4, págs. 51 a 55, AMADEU FERREIRA, Homicídio Privilegiado, págs. 119 a 124), razão pela qual não se segue aquela corrente jurisprudencial, antes de sufraga a dominante corrente doutrinal.
(32) - Sobre este requisito e no sentido de que o mesmo deve ser aferido em função da probabilidade de uma emoção de idêntica intensidade surgir no homem médio, pode consultar - se, CURADO NEVES, O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência, RPCC, ano 11º, 2º, págs. 179 a 181.
(33) - Homicídios em Série, pág. 160.
(34) - Embora não necessariamente, ao contrário do que tem sido sustentado por largo sector da jurisprudência - CURADO NEVES, O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência, RPCC, ano 11º, 2º, págs. 175, 176, 209, 212, 216, COSTA PINTO, RPCC, ano 8º, 2º, pág. 297.
(35) - Neste sentido, F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 50, LEAL HENRIQUES / SIMAS SANTOS, O Código Penal de 1982, 2º, pág. 41, AMADEU FERREIRA, Homicídio Privilegiado, pág. 103.
(36) - Cfr. TAIPA DE CARVALHO, A Legítima Defesa, págs. 468 a 474.
(37) - CURADO NEVES, O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência, RPCC, ano 11º, 2º, pág. 194.
(38) - F. DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 47, CURADO NEVES, O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência, RPCC, ano 11º, 2º, pág. 193.