Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3730/15.9T9STB.S3
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: ÚNICA INSTÂNCIA
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
RECURSO PENAL
COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL
DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A HONRA.
Doutrina:
-António Henriques Gaspar, A influência da CEDH no Diálogo Interjurisdicional, Julgar, n.º 7, p. 39 ; A liberdade de expressão: o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, p. 688 e 691;
-Augusto Silva Dias, Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e Injúrias, AAFDL, 1989, p. 35 e 36;
-Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p. 83, 181 e 182;
-Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 82, 607, 612, 696 e 697;
-Iolanda Rodrigues de Brito, Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, Coimbra Editora, p. 17.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 418.º, N.º 1 E 419.º, N.º 1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 180.º.
LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGOS 11.º, 13.º, N.Sº 4, ALÍNEA B), 5 E 7, 53.º E 55.º, ALÍNEA H).
CÓDIGO CIVIL/ 1867: - ARTIGO 360.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 10.º.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGOS 12.º E 19.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-04-2008, PROCESSO N.º 07P4817, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-06-2009, PROCESSO N.º 09P0617, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-02-2010, PROCESSO N.º 1016/06.9TVLSB.S1;
- DE 22-01-2015, PROCESSO N.º 168/12.TRPRT.S1;
- DE 31-01-2017, PROCESSO N.º 1454/09.5TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - O assistente, ora recorrente dirigiu o seu recurso ao «Pleno das Secções do Supremo Tribunal de Justiça». Decorre, porém, dos arts. 11.º, n.º 7 CPP e 55.º, al. h) da LOSJ que se a competência couber em primeira instância ao STJ a instância de recurso das decisões do juiz das secções criminais que exercer essas funções é a secção criminal do STJ como resulta a contrario do art. 11.º, n.º 4, al. b) que determina competir às secções criminais do STJ julgar os recursos que não sejam da competência do pleno das secções e do art. 53.º LOSJ que fixa a competência do pleno das secções e de onde resulta ainda que essa competência, em matéria de recursos ordinários, é somente para julgar os recursos de decisões proferidas em primeira instância pelas secções. II - Havendo intervenção de um juiz singular do STJ nas funções de juiz de instrução a competência para o recurso das suas decisões cabe à secção criminal que funciona com 3 juízes, de acordo com o citado art. 11.º, n.º 5, julgando em conferência, sendo o colectivo que integra essa conferência composto pelo presidente da secção criminal, o relator e um adjunto (419.º, n.º 1 e 418.º, n.º 1 CPP).

III - O tipo ilícito da difamação previsto no art. 180.º CP exige o dolo, por força, naturalmente, do art. 13.º do diploma citado mas o preenchimento do tipo subjectivo desse ilícito é o saber que se está a atribuir um facto ou a formular um juízo cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias se conhece e pretender fazê-lo. Basta a susceptibilidade dessas expressões para ofender Por conseguinte, está afastada a exigência do dolo específico que se traduziria no designado animus injuriandi.

IV - De acordo com o ensinamento da doutrina o cerne da determinação dos elementos objectivos do crime se tem de fazer sempre com recurso a um horizonte de contextualização em que fica inelutavelmente implicado um direito fundamental como é o da liberdade de expressão na vertente de liberdade de opinião admitindo-se que a compreensão da honra tem uma óbvia variabilidade «em função das representações colectivas dominantes e historicamente contingentes” e que essa mesma honra tem igualmente “a sua extensão e consistência dependentes da conduta do portador».

V - A criminalização da ofensa do direito à honra vem sendo alvo de expressiva oposição por poder contender com esse outro direito fundamental que é o da liberdade de expressão quando se ensina na doutrina que a «vida comunitária – e não há vida pessoal sem vida comunitária – é fundamentalmente comunicação» propondo que em caso de dúvida sobre a prevalência entre a honra e a liberdade de expressão «nada seguramente mais prudente (e mais consentâneo com os ditames constitucionais) do que a redução da mancha do punível – in dubio pro libertate» com interpretação tanto quanto possível compressiva dos sentidos da incriminação.

VI - A par disto há na jurisprudência nacional uma clara influência da jurisprudência do TEDH o qual, na interpretação que faz do art. 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem «tem desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão quando o visado pelas imputações ou pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral».

VII - Aquela orientação de protecção reforçada está sujeita à ponderação de «um painel densificado de ideias e princípios: o princípio democrático; o princípio da responsabilidade; o princípio da subsidiariedade; o princípio da proporcionalidade».

VIII - Na jurisprudência do TEDH a liberdade de expressão vem sendo tida como «super liberdade», corolário dessa «protecção forte, com limitação máxima, ou mesmo anulação total da margem de apreciação nacional nas restrições ao exercício da liberdade de expressão» quando é invocada a liberdade de expressão em contraponto à protecção fraca noutras matérias como as do comércio ou de ingerência por via de protecção moral ou de respeito por sentimentos religiosos. Neste sentido se tem também orientado a jurisprudência do STJ.

IX - Tem-se como aceite que na doutrina dominante se procura estender também à consideração a tutela jurídico-penal da honra, perfilhando um conceito fáctico-normativo dessa mesma honra que assim é considerada um bem jurídico complexo através do qual se protege «a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade».

X - No fundo, como já por outras palavras se dizia no art. 360.º do velho CC de 1867: “O direito à existência não só compreende a vida e a integridade pessoal do homem mas também o seu bom nome e reputação, em que consiste a sua dignidade moral”. Sem perder de vista, determinantemente, o horizonte de contextualização.

XI - Estará, assim, em causa na protecção da honra, seja na sua vertente externa correspondente à dignidade social de que cada um goza, seja na sua vertente interna de dignidade pessoal apenas um conjunto de valores éticos essenciais de que é costume salientar o carácter, a probidade, a rectidão e a lealdade. Somente a imputação de factos ou a formulação de juízos que infirmem estes valores essenciais do visado é que pode ser tida como difamatória e já não qualquer outro facto «que envergonha, humilha ou perturba».

XII - As expressões atribuídas ao arguido – de o assistente ser «quezilento e um pouco estranho» – não se pode dizer com plena evidência, aquela que se exige para a intervenção da protecção penal, que atinjam valores espirituais e morais proeminentes do assistente mesmo se ainda se conclamar, no âmbito da vertente externa da honra, a chamada “honra profissional” decorrente da sua condição de jornalista. Com elas nenhuma qualidade moral nem nenhum valor espiritual essenciais do assistente são postos em causa, de forma a que este pudesse ser alvo de uma consistente reprovação ética por parte da comunidade.

XIII - Operando um critério de concordância prática e fazendo uso dos adequados controles e equilíbrios (ou freios e contrapesos) entre a liberdade de expressão do arguido e o direito à honra do assistente a conclusão a extrair é a de que a apreciação do comportamento do assistente feita pelo arguido não é, evidentemente, elogiosa mas é uma crítica perfeitamente tolerável numa sociedade democrática e plural, feita no uso do valor essencial da liberdade de expressão, porventura a coberto daquilo a que já se chamou o «direito a dizer coisas mal ditas».

Decisão Texto Integral:

1. – Na sequência de queixa apresentada pelo assistente AA, findo o inquérito, veio este a deduzir acusação imputando ao arguido BB, juiz ..., a prática de um crime de difamação do art. 180º, nº 1 do Código Penal com base nos seguintes factos (transcrição com exclusão dos que respeitam ao pedido de indemnização também deduzido):

1º - O assistente é Diretor de Informação do órgão de comunicação social "...", registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o número ....

2º - O arguido é presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

3º - No passado dia 01 de Março de 2015, pelas 11.30H, CC, amiga pessoal e afilhada do assistente, tendo tido conhecimento de que este havia sido detido no dia 26 de Fevereiro de 2015 e que lhe teria sido aplicada uma medida de coacção que o impedia de aceder à internet, deslocou-se à casa do mesmo no sentido de lhe dar conhecimento do conteúdo de um artigo publicado pelo Jornal ..., no site http://www...., aos dias 26.022015, pelas 12.24H, ou seja, logo após a sua detenção.

4º - De acordo com o referido artigo, o arguido terá transmitido ao Jornal ... que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, não vê com bons olhos a equiparação do tipo de blogs, vulgo "..." a órgãos de comunicação social e que a mesma tinha suspendido há algum tempo a certificação profissional a AA.

5° - Ainda de acordo com o teor do referido artigo, mais terá o arguido acrescentado que: "A Entidade Reguladora para a Comunicação Social entendeu rotular o "..." como órgão de comunicação social, o que nos criou muitas reservas", e que: "Na sequência disso tivemos de lhe entregar uma carteira profissional equiparada a jornalista. Mas não foi caso único, há imensas situações idênticas. E isto não pode continuar, não se pode continuar a decidir com tanta ligeireza".

6° - Mais se acrescenta no artigo que o arguido não revelou por que razão havia suspendido a carteira a AA, mas se referiu ao seu comportamento como sendo quezilento e um pouco estranho, tendo inclusivamente afirmado que a sua detenção por ligações à pirataria informática não o teria surpreendido, porque inclusivamente na véspera de o site da comissão ser atacado por hackers, no início daquele mês, o fundador do "..." tinha telefonado para aquele organismo a perguntar se tinham problemas no sistema informático (vide doc. 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

7º - Os factos imputados ao assistente, pelo arguido, mormente no que respeita à referida suspensão da sua carteira profissional, ao seu comportamento ou até mesmo quanto ao suposto telefonema, não correspondem à verdade,

8º - não existe nenhum fundamento sério para que, em boa fé, o arguido os reputasse como verdadeiros;

9º - nem tão pouco este proferiu as afirmações em causa, por forma a realizar qualquer tipo de interesse legítimo.

10º - Tais afirmações atentam gravemente contra a honra e consideração do assistente,

11º - e foram feitas perante jornalistas, com vista à sua publicação num jornal, de forma a que o publico em geral, e bem assim os amigos, os familiares, os colegas ou qualquer outra pessoa que aceda ao referido site com o intuito de ler a notícia, as pudesse ler, tal como aconteceu.

12º - O arguido proferiu as referidas afirmações e imputações e permitiu a sua publicação, deliberada e conscientemente, com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração.

13° - Os factos atrás descritos preenchem os requisitos do crime de difamação p. e p. pelo artigo 1802 do Código Penal

14° - Com a conduta descrita, pretendeu o arguido, praticar os actos supra referidos e legalmente tipificados, agindo livre e conscientemente.

A magistrada do Ministério Público acompanhou a acusação particular nos seguintes termos (transcrição):

O arguido BB como Presidente da Comissão da Carteira Profissional prestou declarações à jornalista do jornal ... que os publicou on line no dia 26.02.2015 sobre o agora assistente AA, informando designadamente que ao mesmo havia sido suspensa a carteira profissional, de equiparado a jornalista, que era quezilento e um pouco estranho e que no início do mês de Fevereiro havia sido recebido um telefonema dele no organismo (Comissão) para receber uma informação.

Nesse mesmo dia 26.02 o AA, como fundador do ..., havia sido detido pela PJ, para ser apresentado pelo MP no TIC para ser interrogado e até 6 de Abril deste mesmo ano de 2015 manteve-se titular do cartão de identificação de equiparado a jornalista, não tendo sido o mesmo renovado apenas nesta data por estar judicialmente impedido de aceder à internet.

Os factos e a formulação de juízos ofenderam na sua honra e consideração de AA, por não corresponder à verdade, o que constitui o crime p. e p. pelo art. 180° do CP.

    O arguido requereu a abertura de instrução finda a qual foi proferida decisão instrutória que dirimiu questões de natureza processual que haviam sido colocadas e que, quanto à «apreciação de mérito», decidiu não pronunciar o arguido nos termos seguintes (transcrição da parte respectiva):

«5.5. APRECIAÇÃO DE MÉRITO

5.5.1. Nos termos do artigo 308.°, n.° 1, do CPP, «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».

Nos termos do n.° 2 do artigo 283.° do CPP – para o qual o n.° 2 do artigo 308.° remete –, «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

5.5.2. O artigo, em causa, tem o título «Criador do ... detido por ataque informático à Procuradoria de Lisboa» e nele dá-se conta que a PJ deteve, nessa manhã, além de outros, o criador/fundador do site ..., AA, no âmbito de uma investigação a vários ataques informáticos, e que uma das buscas – das 24 realizadas – decorreu precisamente em casa de AA, na área da grande Lisboa, que serve também de sede daquele site.

Refere o artigo que: «Devido à criação deste portal AA é detentor de um cartão que o equipara a jornalista. A polícia suspeita, porém, que desenvolva também actividades relacionadas com a pirataria informática. Em alguns casos terá agido como instigador dos ataques e noutros terá mesmo colaborado.»

Na parte final do artigo diz-se:

«A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que não vê com bons olhos a equiparação deste tipo de blogs a órgãos de comunicação social, tinha suspendido há algum tempo a certificação profissional a AA. "A Entidade Reguladora para a Comunicação Social entendeu rotular o ... como órgão de comunicação social, o que nos criou muitas reservas", observa o presidente da comissão, o juiz BB. "Na sequência disso tivemos de lhe entregar uma carteira profissional equiparada a jornalista. Mas não foi caso único, há imensas situações idênticas. E isto não pode continuar, não se pode continuar a decidir com tanta ligeireza". BB não revela por que razão havia suspendido a carteira a AA, mas refere-se ao seu comportamento como sendo quezilento e um pouco estranho. A sua detenção por ligações à pirataria informática não o surpreendeu: o juiz conta que na véspera de o site da comissão ser atacado por hackers, no início deste mês, o fundador do ... tinha telefonado para este organismo a perguntar se tinham problemas no sistema informático.»

5.5.3. Segundo o depoimento da testemunha DD, a transcrita «parte final da notícia on-line é da sua exclusiva autoria, lembrando-se perfeitamente de ter obtido as informações do Juiz BB.

«Toda a explicação que se encontra entre aspas é efectivamente da autoria do Juiz BB, quer sobre a Entidade Reguladora quer sobre a Carteira Profissional.

«Como é referido nesta informação teria sido suspensa a carteira a AA, mas neste momento não se consegue recordar como e onde obteve essa informação, no entanto eventualmente terá nos seus apontamentos a sua fonte que poderá fornecer.

«Quando o Presidente da Comissão considerou o comportamento de AA como quezilento, a testemunha interpreta-o como tendo havido discussões e divergências entre a Comissão e o AA.

«Quanto a ser um pouco estranho, entendeu que se queria referir ao telefonema alegadamente recebido no princípio do mês de Fevereiro.

«Quando escreveu que o fundador da ... tinha telefonado para a Comissão foi porque lhe foi dado esse tipo de informação.

«Se tivesse dito que a informação tinha chegado por e-mail não teria escrito por telefone.

«De qualquer modo irá consultar os seus apontamentos sobre a origem da informação sobre a suspensão da Carteira Profissional e se o Presidente da Comissão da Carteira Profissional se referiu a um telefonema ou a um e-mail.»

A testemunha remeteu ao processo cópia dos seus apontamentos sobre a conversa com o arguido, precisando ter registado que "telefonou a perguntar se havia problemas no sistema informático"; "tinha um comportamento um pouco quezilento; fazia bastantes quei­xas da comissão [da carteira] à CADA" e ainda "revelava alguma instabilidade"; "ele tinha a carteira válida. Tinha pendente uma avaliação da situação porque tínhamos algumas dúvidas (...). Neste momento [a carteira] estava suspensa".

5.5.4. Do confronto do artigo em questão, com o depoimento da testemunha DD, tanto inicial, como complementar, pode ter-se por fortemente indiciado que o arguido BB transmitiu àquela jornalista, que o fez publicar na notícia em causa:

a) — a sua opinião a respeito de a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não ver com bons olhos a equiparação do tipo de blogs [género ...] a órgãos de comunicação social, suscitando-lhe muitas reservas que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tenha entendido rotular o ... como órgão de comunicação social; e, por isso, tiveram de lhe entregar [ao assistente] uma carteira profissional equiparada a jornalista, a exemplo do que aconteceu com outros pois não foi caso único, havendo imensas situações idênticas; o que, em seu entender, não pode continuar, não se pode continuar a decidir com tanta ligeireza;

b) — a apreciação do comportamento do assistente como quezilento e um pouco estranho;

c) — o episódio do contacto feito pelo assistente, para a comissão, ocorrido na véspera de o sita da comissão ser atacado por hackers, no início do mês de Fevereiro, a perguntar se tinham problemas com o sistema informático.

Quanto ao arguido ter transmitido que a Carteira Profissional do Jornalista tinha suspendido há tempos atrás a certificação profissional a AA, sem revelar a razão por que havia suspendido, verifica-se não só que não é ponto colocado entre aspas (o que não garante, conforme depoimento da testemunha que essa informação fosse da autoria do assistente) como o depoimento da testemunha, especialmente a parte complementar prestada após a consulta dos seus apontamentos, é pouco esclarecedor quanto ao facto de o arguido o ter referido, nos termos que são transmitidos pela notícia.

Na verdade, a depoente, quanto à informação de que teria sido suspensa a carteira a AA, afirmou não se conseguir recordar como e onde obteve essa informação, admitindo que a consulta dos seus apontamentos lhe poderia revelar a fonte dessa informação.

Do esclarecimento prestado após a consulta dos apontamentos da depoente, não só a fonte da informação não é revelada como se verifica que as notas são contraditórias: por um lado, há um apontamento de que "ele [AA] tinha a carteira válida" mas, por outro lado, foi registado o apontamento de que "neste momento [a carteira] estava suspensa".

Neste segmento, não há pois elementos probatórios que permitam concluir que o arguido BB transmitiu à jornalista a parte da notícia a respeito da suspensão passada da certificação profissional ao assistente.

5.5.5. O bem jurídico protegido no crime de difamação, do artigo 180.°, n.° 1, do CP, é a honra, numa dupla concepção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa) mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa (a honra interna).

Assim, a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior; o que se protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de bens espirituais e morais e, para além disso, a sua boa reputação no seio da comunidade (neste ponto, JOSÉ DE FARIA COSTA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, anotação ao artigo 180.°, p. 904 e ss.).

O tipo objectivo de ilícito supõe a imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada não perante o próprio mas veiculada através de terceiros, possibilitando deste modo, a desconsideração externa.

O crime de difamação é um crime doloso o que significa que só estão afastadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes.

5.5.6. Ao transmitir a sua opinião a respeito de a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não ver com bons olhos a equiparação do tipo de blogs [como o ...] a órgãos de comunicação social, suscitando-lhe muitas reservas que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tenha entendido rotular o ... como órgão de comunicação social, o arguido, na sua especial qualidade de Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, exerceu legitimamente a sua liberdade de expressão no âmbito de uma apreciação crítica da actuação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, revelando a sua discordância quanto à equiparação daquele tipo de blogs a órgãos de comunicação social.

Esta apreciação crítica do arguido vai muito além do "caso" do assistente, pois, tal como referiu não foi só a ele que a Comissão teve de entregar uma carteira profissional equiparada a jornalista; "não foi caso único, havendo imensas situações idênticas; o que, em seu entender, não pode continuar, não se pode continuar a decidir com tanta ligeireza."

O facto de o arguido expressar a sua geral discordância, relativamente à equiparação de blogs a órgãos de comunicação social, não comporta qualquer apreciação negativa a respeito do assistente não sendo, como tal, susceptível de ofender a sua honra ou a consi­deração que lhe é devida.

A referência ao episódio do telefonema feito pelo assistente, para a comissão, ocorrido na véspera de o site da comissão ser atacado por hackers, no início do mês de Fevereiro, a perguntar se tinham problemas com o sistema informático não contém, em si, qualquer juízo de valor negativo sobre a honra e consideração do assistente.

O facto de as perguntas feitas pelo assistente terem sido realizadas através de correio electrónico e não por telefone (como se diz na notícia e sem prejuízo da comprovação de quem é responsável pela inexactidão) não tem o condão de transformar um episódio sem dignidade jurídico-penal num facto apto a preencher o tipo objectivo de difamação.

Resta, finalmente, a apreciação do comportamento do assistente como quezilento e um pouco estranho.

Esta apreciação do comportamento do assistente não é, evidentemente, elogiosa mas é uma crítica perfeitamente tolerável numa sociedade democrática e plural.

A imputação de o assistente ser quezilento contém uma apreciação desfavorável so­bre a personalidade do assistente, ressaltando uma característica que o define como pessoa importuna, propensa a quezílias, não sendo estas, como qualquer dicionário da língua por­tuguesa informa, mais do que embirrações, antipatias, importunações, aborrecimentos, in­cómodos.

A imputação de ser um "pouco estranho", surgindo na sequência daquela, não ga­nha uma relevância autónoma e a singularidade liga-se, naturalmente, ao facto de o assis­tente ser, na opinião do arguido, pessoa dada a quezílias.

Não sendo expressões que comportem um juízo de valor desonroso do assistente, nem sequer se mostram excessivas ou gratuitas no contexto em que foram produzidas.

E disso mesmo dá conta a testemunha autora da notícia, associando-as "às discus­sões e divergências entre a Comissão e o AA", e à indagação por ele feita à Comissão no princípio de Fevereiro.

5.5.7. Por tudo o exposto, conclui-se pela inexistência de indícios suficientes de o ar­guido BB, devidamente identificado nos autos, ter praticado o cri-me de difamação, p. e p. pelo artigo 180.° do CP, que lhe foi imputado na acusação particu­lar e na acusação deduzida pelo Ministério Público, parcialmente acompanhando aquela.

Razão por que se profere o presente despacho de não pronúncia.»

2. – O assistente interpôs recurso que dirigiu ao «Pleno das  Secções do Supremo Tribunal de Justiça» formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. Nos presentes autos, requerida a abertura de instrução pelo arguido, a Meritíssima Juiz Conselheira Relatora, após apreciação de mérito, concluiu pela inexistência de indícios suficientes de o arguido ter praticado o crime de difamação, p. e p. pelo artigo 1802 do C. Penal, que lhe foi imputado na acusação particular e na acusação deduzida pelo Ministério Público, parcialmente acompanhando a primeira, e proferiu despacho de não pronúncia.

2. Ao contrário do entendimento do assistente e, bem assim do Ministério Público que consideram as expressões e juízos formulados pelo arguido, ofensivas da honra e consideração do arguido e bastantes para integrarem a prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal, a Meritíssima Juiz conselheira "a quo" entendeu que o arguido se limitou a emitir opiniões, no exercício do seu direito de "liberdade de expressão" no âmbito de uma apreciação crÍtica, e que estas não comportam qualquer apreciação negativa a respeito do assistente ou tão pouco são susceptíveis de ofender a sua honra ou a consideração que é devida ao assistente.

3. Mais entendeu que apesar do arguido ter utilizado a expressão "um pouco estranho e quezilento" referindo-se ao assistente, se limitou a apreciar o seu comportamento, sendo  certo que apreciação apesar de não ser elogiosa, é uma crítica perfeitamente tolerável, até porque a imputação do assistente ser quezilento contem apenas uma apreciação desfavorável sobre a sua personalidade, ressaltando uma característica que o define como uma pessoa importuna e propensa a quezílias (não sendo estas mais que embirrações, antipatias, importunações, aborrecimentos e incómodos), e a imputação de ser um pouco estranho surge apenas na sequência do arguido considerar o assistente como uma pessoa dada a quezílias.

4. Sucede porém que, pese embora a "liberdade de expressão seja uma manifestação essencial das sociedades democráticas e pluralistas, nas quais a crítica e a opinião livres contribuem para a igualdade e aperfeiçoamento dos cidadãos e instituições", existe um direito fundamental idêntico que protege a integridade moral do cidadão, nomeadamente o seu nome e reputação e que o direito à crítica, não se pode confundir com a ofensa pessoal.

5. Para exercer a sua liberdade de expressão e emitir a sua opinião sobre os factos ocorridos no dia 26/02/2015, à indagação feita pelo mesmo à comissão no princípio de Fevereiro ou às divergências supostamente existentes entre este e a Comissão da Carteira Profissional Equiparada à de Jornalista, o arguido não tinha qualquer necessidade de recorrer à "crítica pessoal", como não se coibiu de o fazer, de forma deliberada e consciente, com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração.

6. Para além do que, é hoje entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência de que o crime previsto no artigo 180º do Código Penal é um crime de perigo, não sendo já exigido um dano efectivo do sentimento de honra e consideração, para a existência do crime basta o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Não sendo obrigatória a existência de um "animus difamandi" enquanto forma específica e necessária do dolo, sendo bastante a consciência, por parte do arguido, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa a honra e consideração de alguém e o dolo verifica-se em qualquer uma das suas modalidades.

7. Se o arguido afirma perante um órgão de comunicação social, que a Entidade Reguladora da mesma, entendeu rotular o "..." como órgão de comunicação social, o que lhe causava muitas reservas e que na sequência desse facto tiveram que entregar a Carteira de Equiparado a Jornalista ao assistente, teve plena consciência de que a sua afirmação, iria afectar a dignidade pessoal deste último.

8. E quando afirma que o assistente é "quezilento e um pouco estranho", profere um juízo que nos conduz necessariamente à conclusão de que o assistente é uma pessoa que importuna, propensa a quezílias (como a própria Juiz Conselheira a quo admite); que é uma pessoa com um comportamento anormal (no sentido de diferente do comum dos cidadãos), sendo por isso imprevisível e misteriosa no seu trato social, o que pode levar o público em geral a pensar que se justifica actuar com uma cautela acrescida quando se tenha de relacionar com o mesmo.

9. Sendo certo que ninguém gosta de ser qualificado desta forma, que o arguido tinha consciência de que a sua conduta era de molde a produzir a ofensa à honra e consideração do assistente e que, ainda assim, o fez de forma deliberada e consciente, bem sabendo que as afirmações proferidas não correspondiam à verdade e que não o fazia para defesa de qualquer interesse legítimo, encontram-se preenchidos todos os elementos típicos do imputado crime de difamação, p.p. nos termos do artigo 180º, n.° 1 do Código Penal.

10. Destarte, e porque se encontram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido, em sede de julgamento, o despacho da Meritíssima Juíza Conselheira Relatora, não poderia ter sido outro que não o de pronuncia do arguido, devendo o despacho de não pronúncia ser revogado, e em consequência substituído pelo de pronuncia do arguido.

A Sra. Procuradora-Geral Adjunta respondeu começando por colocar a questão prévia respeitante à competência para a apreciação do recurso considerando que ela cabe às secções criminais do STJ.

No mais, quanto ao mérito, defendeu a sua improcedência.

Também o arguido apresentou resposta pugnando igualmente pela improcedência.

                                                                 *

3. -  Um primeiro e breve ponto a considerar diz respeito à circunstância de o recorrente dirigir o recurso ao «Pleno das  Secções do Supremo Tribunal de Justiça».

Como esclarece a Sra. Procuradora-Geral Adjunta decorre dos arts. 11º, nº 7 CPP e 55º, al. h) da LOSJ que se a competência couber em primeira instância ao STJ designadamente no que se refere ao desempenho das funções de juiz de instrução cabe a cada juiz das secções criminais que age como juiz singular, desempenhar essas funções. Mas, a instância de recurso das decisões do juiz singular é a secção criminal do STJ como resulta a contrario do art. 11º, nº 4, al. b) que determina competir às secções criminais do STJ julgar os recursos que não sejam da competência do pleno das secções e do art. 53º LOSJ que fixa a competência do pleno das secções e de onde resulta ainda que essa competência, em matéria de recursos ordinários, é somente para julgar os recursos de decisões proferidas em primeira instância pelas secções.

Por conseguinte, havendo intervenção de um juiz singular do STJ nas funções de juiz de instrução a competência para o recurso das suas decisões cabe à secção criminal que funciona com 3 juízes, de acordo com o citado art. 11º, nº 5, julgando em conferência, sendo o colectivo que integra essa conferência composto pelo presidente da secção criminal, o relator e um adjunto (419º, nº 1 e 418º, nº 1 CPP, diploma a que pertencem as normas adiante indicadas sem menção de origem).

É, pois, nestes termos e de acordo com as disposições citadas que é julgado o presente recurso não relevando o erro processual como determina o art. 193º, nº 3 CPC ex vi art. 4º CPP.

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4. – Tal como o recurso está sintetizado nas conclusões o que o recorrente questiona é que se tenha considerado como não puníveis as afirmações do arguido proferidas perante um órgão de comunicação social (i) que a classificação da publicação “...” de que o assistente era director como órgão de comunicação social pela Entidade Reguladora respectiva lhe suscitava muitas reservas e que (ii) o assistente era “quezilento e um pouco estranho”.

         4.1 - Socorramo-nos, para caracterizar o crime de difamação que o recorrente pretende ver imputado ao arguido, da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça.

        O sumário do Acórdão de 2009.06.03[1] é exemplarmente esclarecedor para o objectivo referido e pertinente para as considerações ulteriores:

I - O crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria – a honra e consideração –, distingue-se desta por a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria, a imputação ou juízo ofensivos da honra são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do CP).

II - Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.

III - Se as expressões utilizadas pelo demandado no seu escrito constituem um ataque directo à pessoa do demandante, nada têm a ver com uma crítica da sua actuação, pois esta, por muito contundente que seja, exige sempre uma relação com o objecto criticado, e uma relação lógica, racionalmente fundada, o que não exclui a ironia, o humor, mesmo corrosivo, e o tom sarcástico.

IV - Criticar é tomar o objecto da crítica e julgá-lo, pois a crítica tem uma vertente judicativa. Não se exigindo que a actividade judicatória seja necessariamente sisuda e circunspecta, sendo compatível com uma multiplicidade de registos, desde o sério ao cómico, o que é certo é que ela tem de manter uma relação lógica com o objecto criticado e não descambar para o ataque pessoal, sobretudo quando tal ataque entre no domínio da ofensa à honra e consideração das pessoas. Se é verdade que o exercício da liberdade de expressão e de comunicação exigem, muitas vezes, um recuo da tutela da honra, esse recuo há-de ser justificado como meio necessário, adequado e proporcional para o exercício eficaz daquele direito.

V - O mesmo se diga em relação ao direito de emitir opinião num artigo opinativo. Sendo a opinião de tónica subjectiva, a verdade é que ela tem de partir de um substrato objectivo e manter com ele uma ligação lógica. Podendo expender-se uma opinião, tanto sobre um facto, um acontecimento, como sobre uma pessoa, esta última é sempre mais difícil de aceitar, sobretudo quando se traduz numa opinião desfavorável, porque aí é mais fácil o resvalamento para o domínio do ilícito.

VI - Uma tradição longamente firmada no seio das democracias admite com largueza a crítica e a opinião em certos domínios sociais e sobretudo políticos, aqui envolvendo mesmo os protagonistas. Todavia, a crítica e a opinião não podem ter como único sustentáculo, mesmo aí, o ataque pessoal, sobretudo quando esse ataque é imotivado, cego, ditado pela paixão ideológica ou por um espírito de vindicta ou de ajuste de contas.

Nesta posição assim expressa resulta evidenciado que o tipo ilícito da difamação previsto no art. 180º C. Penal exige o dolo, por força, naturalmente, do art. 13º do diploma citado. Porém, o preenchimento do tipo subjectivo do ilícito é o saber que se está a atribuir um facto ou a formular um juízo cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias se conhece e pretender fazê-lo[2]. Por conseguinte, está afastada a exigência do dolo específico que se traduziria no designado animus injuriandi como o esclarece também  Faria Costa[3]. E como o reafirma dum modo simples e claro o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2008.04.30[4]:

       O elemento subjectivo vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas são idóneas a ofender a honra e consideração alheias e que tal acto é proibido por lei. Este é o chamado tipo subjectivo do ilícito. Doutrinária e jurisprudencialmente, defende-se hoje que o elemento subjectivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a ‘sã opinião da generalidade das pessoas de bem’.

Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.

Dito isto, deve ainda também ter-se presente o ensinamento de Faria Costa quando[5] assinala que o cerne da determinação dos elementos objectivos do crime se tem de fazer sempre com recurso a um horizonte de contextualização em que fica inelutavelmente implicado um direito fundamental como é o da liberdade de expressão na vertente de liberdade de opinião.
4.2 - Por isso é que a criminalização da ofensa do direito à honra vem sendo alvo de expressiva oposição por poder contender com esse outro direito fundamental que é o da liberdade de expressão.
Parece ser neste sentido, por exemplo, o ensinamento de Costa Andrade[6] quando recorda que a «vida comunitária – e não há vida pessoal sem vida comunitária – é fundamentalmente comunicação» propondo que em caso de dúvida sobre a prevalência entre a honra e a liberdade de expressão «nada seguramente mais prudente (e mais consentâneo com os ditames constitucionais) do que a redução da mancha do punível – in dubio pro libertate» com interpretação tanto quanto possível compressiva  dos sentidos da incriminação.
     Reconhecendo-se embora que a liberdade de expressão e a honra têm o mesmo valor jurídico – cfr art. 26º CRP e arts. 12º e 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem – sendo inviável qualquer princípio de hierarquização é hoje, porém, incontornável que há uma clara influência na jurisprudência nacional da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que como refere Iolanda Rodrigues de Brito[7] na interpretação do art. 10º da Convenção Europeia dos direitos Humanos «tem desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão quando o visado pelas imputações ou pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral».
      Essa influência impõe-se, naturalmente, porque «o TEDH tem como função “clarificar, garantir e desenvolver” as normas da CEDH contribuindo para assegurar o respeito pelos Estados dos compromissos que assumem pela vinculação convencional» sendo que «a interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerada como integrando a própria CEDH».
Assim, por intervenção do princípio da vinculação os juízes nacionais estão «vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8º da Constituição) a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve ser interpretada e aplicada primando, nos termos constitucionais sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais (ou juízes convencionais de primeira linha) devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH enquanto instância própria de regulação convencional[8]».
Aquela orientação de protecção reforçada está sujeita à ponderação de «um painel densificado de ideias e princípios: o princípio democrático; o princípio da responsabilidade; o princípio da subsidiariedade; o princípio da proporcionalidade»[9] ainda que,  no final, na jurisprudência do TEDH a liberdade de expressão venha sendo tida como «super liberdade» como corolário dessa «protecção forte, com limitação máxima, ou mesmo anulação total da margem de apreciação nacional nas restrições ao exercício da liberdade de expressão»[10] quando é invocada a liberdade de expressão em contraponto à protecção fraca noutras matérias como as do comércio ou de ingerência por via de protecção moral ou de respeito por sentimentos religiosos.
Neste sentido se tem também orientado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[11].
4.3 - Abundantemente a jurisprudência refere – e isso mesmo é sublinhado na decisão recorrida  –  ter-se como aceite que a doutrina dominante, procurando estender também à consideração a tutela jurídico-penal da honra, perfilha um conceito fáctico-normativo dessa mesma honra que assim é considerada um bem jurídico complexo através do qual se protege “a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade”[12].

Bem como se admite e aceita que a compreensão da honra tem uma óbvia variabilidade “em função das representações colectivas dominantes e historicamente contingentes” e que essa mesma honra tem igualmente “a sua extensão e consistência dependentes da conduta do portador[13] .

No fundo, como já por outras palavras se dizia no art. 360º do velho Código Civil de 1867: “O direito à existência não só compreende a vida e a integridade pessoal do homem mas também o seu bom nome e reputação, em que consiste a sua dignidade moral”. Sem perder de vista, determinantemente, o horizonte de contextualização.

Como é comum considerar-se também na jurisprudência estará, assim, em causa na protecção da honra, seja na sua vertente externa correspondente à dignidade social de que cada um goza, seja na sua vertente interna de dignidade pessoal apenas um conjunto de valores éticos essenciais de que é costume salientar o carácter, a probidade, a rectidão e a lealdade. Somente a imputação de factos ou a formulação de juízos que infirmem estes valores essenciais do visado é que pode ser tida como difamatória e já não qualquer outro facto «que envergonha, humilha ou perturba».

Ora, salvo o devido e efectivo respeito por opinião diversa as expressões atribuídas ao arguido não se pode dizer com plena evidência – a evidência que se exige para a intervenção da protecção penal – que atinjam valores espirituais e morais proeminentes do assistente mesmo se ainda se conclamar, no âmbito da vertente externa da honra, a chamada “honra profissional” decorrente da sua condição de jornalista. Com elas nenhuma qualidade moral nem nenhum valor espiritual essenciais do assistente são postos em causa, de forma a que este pudesse ser alvo de uma consistente reprovação ética por parte da comunidade.

Como já vincou a jurisprudência do STJ[14] «é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a ida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social que é a sua função».

Decerto que o próprio perfil pessoal e profissional do assistente será afinal a garantia de que a desconformidade das expressões usadas não pode ter a eficácia ofensiva que putativamente se lhe poderia atribuir[15].

Com tudo isto se quer expressar que operando um critério de concordância prática e fazendo uso dos adequados controles e equilíbrios (ou freios e contrapesos) entre a liberdade de expressão do arguido e o direito à honra do assistente a conclusão a extrair é a de que a opinião do arguido sobre as reservas que lhe suscitava a qualificação do órgão de que o assistente era director como de “comunicação social” não passa disso mesmo de uma opinião que nem sequer visa directamente o assistente mas antes a Entidade Reguladora para a Comu­nicação Social que de modo algum se pode ter como lesiva do núcleo essencial de valores éticos que supra foram mencionados; e que, como com inteira razão se menciona no despacho recorrido, a apreciação do comportamento do assistente feita pelo arguido não é, evidentemente, elogiosa mas é uma crítica perfeitamente tolerável numa sociedade democrática e plural, feita no uso do valor essencial da liberdade de expressão, porventura a coberto daquilo a que já se chamou o «direito a dizer coisas mal ditas».

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5. – Em face do que se decide negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

Pagará o recorrente 5 UC de taxa de justiça.

Feito e revisto pelo 1º signatário

Lisboa, 17 de maio de 2017

Nuno Gomes da Silva (Relator)

Francisco Caetano

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[1] Proc 09P0617 in dgsi.pt
[2] Cfr Augusto Silva Dias, in “Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e Injúrias”, AAFDL, 1989, pags 35-36.
[3] Cfr “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pag. 612
[4] Proc 07P4817 in www.dgsi.pt
[5] Cfr ob e loc cit
[6] Cfr Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, pag. 181-182, onde se recorda que a vida comunitária – e não há vida pessoal sem vida comunitária. é fundamentalmente comunicação e onde se propõe que em caso de dúvida sobre a prevalência entre a honra e a liberdade de expressão «nada seguramente mais prudente (e mais consentâneo com os ditames constitucionais) do que a redução da mancha do punível – in dubio pro libertate.
A ONG “Article 19” propõe, por exemplo, que «todas as leis penais sobre difamação deverão ser abolidas e substituídas onde necessário, por adequadas leis civis sobre difamação» e que nos «Estados que ainda tenham leis penais sobre difamação em vigor, dever-se-ão tomar medidas para implementar progressivamente  tal princípio» e entretanto adequar a legislação de modo a que para ter como preenchido o ilícito penal  se exija que as declarações proferidas o sejam «com específica intenção de causar dano».
[7] Cfr “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, Coimbra Editora, pag 17
[8] Cfr António Henriques Gaspar, “A influência da CEDH no Diálogo Interjurisdicional” in “Julgar”, nº 7, pag. 39.
[9] Cfr António Henriques Gaspar, “A liberdade de expressão: o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias”, pag. 688 e 691.
[10] Aut e ob cit, pag 696-697.
[11] Cfr por exemplo, por mais recente, o Acórdão de 2017.01.31, proc 1454/09.5TVLSB.L1.S1 com vasta recensão da jurisprudência do TEDH.
[12] Cfr Faria Costa, ob cit. pag 607 e Costa Andrade, ob cit. pag. 82
[13] Costa Andrade, ob cit. pag 83
[14] Acórdão de 2015.01.22, proc 168/12.TRPRT.S1
[15] Cfr neste sentido o Acórdão STJ de 2010.02.25, proc 1016/06.9TVLSB.S1