Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
993/22.7T8STS-B.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
CRÉDITO PIGNORATÍCIO
PENHOR
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CONCURSO DE CREDORES
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

Em fase de recurso, no contexto de uma graduação de créditos sobre a insolvência, transitada em julgado a graduação dos créditos salariais, da AT e dos credores comuns (graduados nos 3º a 5º lugares), quando se mantiverem apenas em concurso a Segurança Social e o credor penhoratício, para graduação dos respetivos créditos (1º e 2º lugares), o artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS (Lei n.º 110/2009, de 16-09) não carece de interpretação restritiva, prevalecendo os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora (dotados de privilégio mobiliário geral - artigo 747.º, n.º 1, al. a), do CC), “sobre qualquer penhor ainda que de constituição anterior”.

Decisão Texto Integral:







Processo: 993/22.7T8STS-B.P1.S1


6ª Secção


Recorrente: Banco Comercial Português, SA


Recorrida: Massa Insolvente de Omen PT, Unipessoal Ld.ª


I. Relatório


I.1. Por apenso aos autos de insolvência que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso e onde foi declarada a insolvência de Omen PT, Unipessoal Ld.ª por sentença devidamente transitada em julgado, o Administrador da insolvência juntou aos autos a lista de credores reconhecidos, nos termos do disposto no artigo 128.º do CIRE.


Não foram deduzidas quaisquer impugnações à lista de credores reconhecidos, tendo sido proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, nos termos do n.º3 do art.º 130.º do CIRE, de onde consta: “(…) cumpre homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência nos termos do artigo 130.º, n.º3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, considerando-se reconhecidos os créditos ali mencionados.


(…)


- Do produto da liquidação dos bens apreendidos serão pagas em primeiro lugar as dívidas da massa insolvente, previstas no artigo 51.º do CIRE, designadamente as custas do processo e seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração e despesas do Sr. Administrador da Insolvência (artigos 46.º, n.º 1 e 172.º do CIRE);

A - Relativamente à verba 3.1 - Máquina de fundição # 1 Colosio 1.2 KT e acessórios, a qual foi atribuída o valor de €350.000,00 (cfr. auto de apreensão de bens e ata de assembleia de credores):

1) Em primeiro lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, no montante de €29.188,91;

2) em segundo lugar, será pago o crédito garantido do credor Caixa Económica Montepio Geral, que beneficia de penhor sobre tal verba.

3) Em terceiro lugar, serão pagos os Trabalhadores, procedendo-se a rateio entre eles.

4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

B - Relativamente à verba 3.2 - Célula # 6 de fundição injetada, que inclui máquina Colosio 1.6 KT, robot e outros equipamentos, a que fora atribuído o valor de €500.000,00 (cfr. auto de apreensão de bens e ata de assembleia de credores):

1) Em primeiro lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, no montante de €29.188,91;

2) em segundo lugar, será pago o crédito garantido do credor Banco Comercial Português, SA, que beneficia de penhor sobre tal verba.

3) Em terceiro lugar, serão pagos os Trabalhadores, procedendo-se a rateio entre eles.

4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

C - Relativamente à verba 4 (ações representativas do capital social da Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, SA):

1) Em primeiro lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, no montante de €29.188,91;

2) em segundo lugar, será pago o crédito garantido do credor Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, SA, que beneficia de penhor sobre tal verba.

3) Em terceiro lugar, serão pagos os Trabalhadores, procedendo-se a rateio entre eles.

4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

B - Relativamente aos demais bens móveis apreendidos à Massa Insolvente:

1) em primeiro lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores;

2) Em segundo lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária, e o crédito privilegiado do ISS, graduando-os a par, e procedendo a rateio entre eles, se necessário for;

3) Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

4) Por fim, e depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados (referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência), em conformidade com o disposto no artigo 177.º do CIRE.

Valor da causa: o do ativo (artigo 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Custas pela massa insolvente, nos termos do artigo 303.º e 304.º do CIRE. Registe e notifique”.

Inconformados com tal decisão, dela vieram apelar os credores penhoratícios Banco Comercial Português, SA, Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, SA e Caixa Económica Montepio Geral, pedindo a revogação e substituição por outra que gradue os seus créditos, garantidos por penhor, sobre as respetivas verbas, em 1.º lugar, ou seja, prevalecendo sobre o crédito da Segurança Social.


Foi proferido Acórdão pela Relação do Porto, no qual se conclui pela confirmação da decisão recorrida.


O BCP recorreu, formulando as seguintes conclusões:

1. Mal andou o Tribunal quando decidiu graduar o crédito do Instituto da Segurança Social em 1.º lugar, imediatamente antes do Crédito da aqui Recorrente CEMG garantido por penhor.

2. Na lista definitiva de credores elaborada pelo Administrador da Insolvência, e homologada e bem na Sentença em apreço, foram reconhecidos vários créditos, entre eles:

a) Crédito da CEMG garantido por penhor sobre a verba 3.1;

b) Créditos privilegiados dos trabalhadores identificados na Lista do art. 129.º CIRE, os quais beneficiam do privilégio mobiliário geral identificado no art. 333.º CT;

c) Crédito privilegiado do ISS, no montante de € 29.188,91;

d) Crédito privilegiado da AT, decorrente de IRS, no montante de €7.796,58.

3. Nos presentes autos foram apreendidos vários bens a favor da M.I., nomeadamente, apreendida Máquina de fundição # 1 Colosio 1.2 KT e acessórios sobre a qual recai penhor mercantil da aqui Recorrente Caixa Económica Montepio Geral, e à qual foi atribuída o valor de € 350.000,00 - identificada no auto de apreensão como verba 3.1.4. Igualmente, foi reconhecido à Recorrente CEMG o seu crédito como garantido por penhor sobre tal verba 3.1.

5. Contudo, e aquando da graduação do mesmo, entendeu o Tribunal a quo, que o penhor cede perante o crédito do ISS, e assim, decidiu que quanto aos bens sobre os quais incide penhor (verbas 3.1, 3.2 e 4), será pago em primeiro lugar o crédito do ISS, por gozar de privilégio mobiliário geral, e nos termos do art. 204.º, n.º 2, do CRCSPSS prevalece sobre o penhor.

6. Assim, e no que à verba 3.1, diz respeito, graduou o Tribunal a quo da seguinte forma:

“1) Em primeiro lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, no montante de € 29.188,91;

2) em segundo lugar, será pago o crédito garantido do credor Caixa Económica Montepio Geral, que beneficia de penhor sobre tal verba.

3) Em terceiro lugar, serão pagos os Trabalhadores, procedendo-se a rateio entre eles.

4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.”

7. Ora, não se pode concordar com este entendimento defendido pelo Tribunal a quo, além de que existe quanto a esta matéria divergência jurisprudencial.

8. Assim, e salvo melhor opinião não deve ser este o entendimento aplicável ao caso em apreço.

9. Com efeito, e quando esteja em causa a graduação de créditos pignoratícios, crédito privilegiado da Segurança Social e créditos laborais, e existindo impossibilidade de conciliação de todas as normas envolvidas, tem-se entendido maioritariamente que a prevalência do crédito pignoratício sai reforçado, devendo-se interpretar de forma restritiva o disposto no artigo 204.º, n.º 2 do CRCSPSS.

10. E assim deve suceder pois o penhor constitui uma garantia de natureza real, pelo que, deve ter preferência sobre os privilégios mobiliários gerais.

11. Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos:

A) Acórdão proferido em 9 de Novembro de 2021 pelo Tribunal da Relação de Lisboa – 1.ª Secção, no processo 211/11.3TYLSB-C.L1,

B) Acórdão proferido em 22 de setembro de 2021 pelo Supremo Tribunal de Justiça, no processo 775/15.2T8STS-C.P1.S1., e

C) Acórdão proferido em 24 de janeiro de 2023 pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo 671/13.8TYLSB-I.L1-1.

12. Mal andou o Tribunal a quo quando fez uma interpretação e aplicação incorrecta das disposições legais em apreço.

13. Acresce que, a interpretação da legislação aplicada na Sentença aqui em crise introduz riscos sérios e potencialmente graves de aplicação do direito pelos Tribunais em violação de princípios basilares do ordenamento jurídico, como os princípios da certeza e segurança jurídicas.

14. Bem como potenciais geradores da frustração de expectativas, especialmente dos credores pignoratícios criadas no momento da celebração dos negócios garantidos por penhor.

15. Assim colocando em crise igualmente, os princípios da confiança e da estabilidade dos contratos, da boa-fé e do acesso ao direito e tutela efetiva.

16. O Princípio da Segurança Jurídica supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas por forma a que as pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos atos por elas praticados.

17. A violação deste princípio, pode levar a que uma norma possa ser declarada inconstitucional.

18. Na mesma senda, aparece o princípio da proteção da confiança, o qual censura alterações súbitas, arbitrárias e altamente gravosas de normas em cuja continuidade os cidadãos.

19. Ora, tudo isto sucede no caso sub judice.

20. Pois a aplicação arbitrária desta norma (artigo 204º do CRCSPSS, aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16 de Setembro) é geradora da frustração das expectativas dos credores pignoratícios, que até aqui tinham a possibilidade de ver ressarcidos os seus créditos, pela garantia prestada aquando da celebração do negócio.

21. O entendimento não restritivo da norma em apreço (art. 204.º do CRCSPSS) enfraquece as garantias prestadas, e em consequência o ressarcimento dos credores.

22. Reiterando-se que o Tribunal a quo tendo graduado o crédito do Instituto da Segurança Social em 1.º lugar, imediatamente antes do crédito da CEMG, fez uma incorreta interpretação e aplicação das disposições legais, designadamente do artigo 204.º do CRCSPSS.

23. A interpretação não restritiva desta norma atenta contra as expectativas dos credores criadas aquando da celebração do negócio.

24. Face ao exposto, deverá a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos em apreço ser corrigida quanto à graduação, sendo que, no que respeita à aqui Recorrente CEMG deverá ser o seu crédito graduado em 1.º lugar por garantido por penhor sobre a verba 3.1., ou seja, à frente dos restantes créditos privilegiados.

Proferido despacho da relatora que enviou o processo à formação, foi proferido acórdão do qual se colhe nomeadamente que: “A Conselheira Relatora apreciou já a verificação de dupla conforme e o preenchimento dos demais pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista, tendo remetido os autos a esta Formação.


Revista excepcional


II – Da admissibilidade do recurso


Como tem sido entendimento desta Formação, a relevância jurídica ocorre em face de questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes, quando o tema encerre novidade, ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça possa contribuir para a segurança e certeza do direito – acórdão de 23.06.2022, proc. n.º 573/15.3T8FAR.E1.S2.


Discute-se nos autos a questão de saber se, estando em causa um confronto entre créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social, o crédito garantido por penhor deve ser graduado à frente do crédito da Segurança Social.


A matéria em discussão nos autos foi já objeto de tratamento por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido possível localizar, sobre esta matéria concreta, os acórdãos de 22.09.2021, (proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1, Rel. José Raínho, indicado como acórdão fundamento) e de 05.04.2022 (proc. n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1, Rel. Ricardo Costa).


Ora, a amostra pouco expressiva de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria associada às clivagens jurisprudenciais que ainda se fazem notar neste âmbito e de que é exemplo o acórdão recorrido, justifica, em nossa perspetiva, a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de referência no nosso sistema judiciário.


Consideramos que o que ficou dito é suficiente para considerar que a questão em análise nos autos, pela sua complexidade e controvérsia, carece de consolidação jurisprudencial por parte do Supremo Tribunal de Justiça, de forma a garantir uma melhor aplicação do direito, tanto no caso dos autos como em casos futuros similares.


Deve, assim, o presente recurso ser admitido com fundamento na relevância jurídica da matéria em análise, ficando prejudicada a apreciação da também invocada contradição de julgados”.


Decidiu-se pela “admissão do recurso de revista excecional interposto pelo Banco Comercial Português, S.A.”.


I.2. Questões a decidir


Tendo o processo sido remetido à formação para determinação da admissibilidade do recurso, a questão equacionada converge com aquela que foi equacionada pelo recorrente e reiterada pela relatora na análise perfuntória do processo e que consiste em saber se: “estando em causa um confronto entre créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social, o crédito garantido por penhor deve ser graduado à frente do crédito da Segurança Social”.


Todavia, vencida a fase de análise vestibular que é a da admissibilidade do recurso, numa análise mais detalhada, verifica-se, como se verá, que os contornos do litígio se evidenciam algo diferentes da configuração apresentada pelo recorrente.


II. Fundamentação


II.1. As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:


- Foram apreendidos à massa insolvente:


- diversos bens móveis (Saldos bancários, equipamentos, ferramentas, materiais, etc.), Importando discriminar os seguintes bens apreendidos para efeitos de graduação de créditos, uma vez que sobre estes bens incide penhor:


- verba 3.1: Máquina de fundição # 1 Colosio 1.2 KT e acessórios sobre a qual recai penhor mercantil da Caixa Económica Montepio Geral, à qual foi atribuída o valor de €350.000,00 (cfr. auto de apreensão de bens e ata de assembleia de credores);


- verba 3.2 Célula # 6 de fundição injetada, que inclui máquina Colosio 1.6 KT, robot e outros equipamentos, sobre o que recai penhor mercantil do BCP, a que fora atribuído o valor de €500.000,00 (cfr. auto de apreensão de bens e ata de assembleia de credores);


- verba 4 – 22910 Ações Norgarante.


- Foram reconhecidos créditos privilegiados aos trabalhadores identificados na Lista do art.º 129.º CIRE, os quais beneficiam do privilégio mobiliário geral identificado no art.º 333.º CT;


- Na Lista do art.º 129.º CIRE fora reconhecido ao ISS um crédito privilegiado, no montante de €29.188,91;


- Fora reconhecido à CEMG crédito garantido por penhor sobre a verba 3.1;


- Fora reconhecido ao BCP crédito garantido por penhor sobre a verba 3.2;


- Fora reconhecido à Norgarante crédito garantido por penhor sobre as ações apreendidas (verba 4);


- Fora reconhecido à AT um crédito privilegiado, decorrente de IRS, no montante de €7.796,58. Em suma, e com relevância para o presente recurso, está provado que:


- O crédito de Caixa Económica Montepio Geral goza de garantia de penhor sobre a verba 3.1, ascendendo o crédito garantido ao montante de €1.494.770,70.


- O crédito do Banco Comercial Português SA goza de garantia de penhor sobre a verba 3.2, ascendendo o crédito garantido ao montante de €1.025.619,77.


- O crédito de Norgarante Sociedade Garantia Mútua SA goza de garantia de penhor sobre as ações representativas do capital social da Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. apreendidas (verba n.º 4), ascendendo o crédito garantido ao montante de €1.206.006,19.


II.2. Apreciando


Uma vez que apenas o BCP recorreu, está aqui em causa apenas o ponto B do acórdão recorrido, o qual, por comodidade de leitura, aqui se transcreve:

B - Relativamente à verba 3.2 - Célula # 6 de fundição injetada, que inclui máquina Colosio 1.6 KT, robot e outros equipamentos, a que fora atribuído o valor de €500.000,00 (cfr. auto de apreensão de bens e ata de assembleia de credores):

1) Em primeiro lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, no montante de €29.188,91;

2) em segundo lugar, será pago o crédito garantido do credor Banco Comercial Português, SA, que beneficia de penhor sobre tal verba.

3) Em terceiro lugar, serão pagos os Trabalhadores, procedendo-se a rateio entre eles.

4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

E mesmo no âmbito do ponto B. os credores graduados nos 3º, 4º e 5º lugares (trabalhadores, Autoridade Tributária e credores comuns) não manifestaram qualquer discordância.


Isso significa que apenas estão em confronto os créditos graduados em 1º e 2º lugares (créditos da Segurança Social e crédito penhoratício).


Em suma, em tudo o mais o acórdão recorrido transitou em julgado, não apenas quanto aos pontos A e C, mas também, no contexto do ponto B, no que refere aos credores graduados em 3º a 5º lugares.


Está em causa a graduação do crédito reconhecido ao BCP (que ascende a €1.025.619,77) garantido por penhor sobre a verba 3.2., cumpre, neste âmbito, esclarecer se prevalece sobre o crédito da Segurança Social garantido por privilégio mobiliário geral.


No contexto do quadro normativo aplicável ao presente caso, importa cotejar o art.º 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-091, e as normas aplicáveis do Código Civil.


O referenciado artigo 204º, neste contexto, com particular relevo do n.º 2, tem a seguinte redação:


1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.


2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.


Do Código Civil, desde logo, colhem-se os seguintes incisos:

Artigo 604.º - (Concurso de credores)

1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.


2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.


Artigo 749.º (Privilégio geral e direitos de terceiro)


1 - O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.


2 - As leis de processo estabelecem os limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa falida, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração da falência.


Do quadro normativo pertinente, cumpre assinalar ainda que, neste âmbito, “o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro” (artigo 666.º n.o 1 do Código Civil).


Traduz-se numa garantia real completa, “incidente ab initio sobre uma coisa ou direito em concreto, oponível erga omnes”2 3.


Por seu turno, o “Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” (artigo 733.º do Código Civil).


Por sua vez, “Os privilégios mobiliários são gerais se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente” (n.o 2 do artigo 735.º do Código Civil).


Nos termos do n.o 1 do art.º 749.º do Código Civil, “O privilégio creditório geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”.


Ou seja, “não vale contra direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, bem como sobre os direitos reais de garantia que o devedor haja, entretanto, constituído. A existência do privilégio geral não impede que o devedor aliene ou onere bens do seu património. Essas alienações são oponíveis ao credor, ao qual caberá, se for o caso, o direito de usar da impugnação pauliana4.


Como tem sido dito, e é referido nomeadamente por Salvador da Costa, os privilégios mobiliários (à semelhança dos imobiliários) “gerais, uma vez que, em razão da sua indeterminabilidade, não são envolvidos na sequela, a qualificação que melhor lhes quadra é a de mera preferência de pagamento”.


Dito de outro modo, “eles assumem-se como meros direitos de prioridade que apenas têm algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais na medida em que prevalecem contra os credores comuns na execução do património do devedor5.


Consequentemente, ao contrário do que sucede com os privilégios especiais, os quais, nos termos do art.º 750.º do CC são suscetíveis de prevalecer sobre o direito de terceiro garantido por uma causa de preferência, os privilégios gerais não são, ex vi do art.º 749.º C.Civ., oponíveis a outros direitos reais, como é o caso do penhor6.


Feita esta breve alusão ao quadro normativo, a título prévio, dir-se-á que sobre esta matéria a Assembleia da República legislou ao abrigo do artigo 161º/1/c) da CRP (Lei 110/2009, entrada em vigor em 01.01.2010 -artigo 6º) e, antes dela, o Governo havia emitido o DL 103/80, de 09.05 (entrado em vigor 90 dias após a sua publicação – artigo 34º).


Dir-se-á, ainda, que, apesar de a Lei n.º 109/2010 afastar determinadas regras do Código Civil, a verdade é que não se coloca uma questão de violação da CRP ou de Lei com valor reforçado.


Com efeito,


Quanto à inconstitucionalidade, o TC já em tempos se pronunciou sobre a matéria, nos Acórdãos com os n.ºs 64/2009, de 10.2.2009, e 108/2009, de 10.3.2009.


Aquele Tribunal concluiu que “(...) o artigo 10º, no 2, do Decreto-Lei no 103/80, de 9 de Maio [de teor idêntico ao atual artigo 204º, nº2], não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respetivos juros de mora - privilégio creditório com justificação constitucional por referência ao artigo 63º da CRP”.


Por seu turno, numa preocupação de sentido inverso, acrescenta-se que nenhuma ofensa se faz a lei reforçada, visto que, como já dito também pelo Tribunal Constitucional, “O Código Civil, ainda que tenha sido adaptado à Constituição e constitua uma lei estruturante do sistema jurídico, não integra a natureza de uma lei com valor reforçado, visto que não preenche qualquer dos pressupostos a que alude o artigo 112º, n.º 3, da Constituição”7.


Por fim, não vá sem se dizer que, consultados os autos, não se deteta que o penhor em causa não esteja já no âmbito de aplicação da Lei 109/2010 (que aliás, decalca o artigo 10/2 do precedente DL 103/80, de 09.05), não sendo, pois, caso, de aplicação retroativa da Lei.


Feitas estas considerações prévias, a Jurisprudência e a Doutrina têm assumido diferentes orientações fundamentais, recortadas no domínio do concurso de credores.


Todavia, no presente caso, como se disse, diferentemente do que se recortava na fase inicial do processo, neste momento, as presentes circunstâncias processuais cingem o litígio à díade credor penhoratício/Segurança Social, o que está associado a um vasto consenso no sentido da prevalência do crédito da Segurança Social, garantido por privilégio mobiliário geral, sobre o penhor8.


Poder-se-á objetar que, não obstante essa circunstância, a aferição das preferências na presente graduação deve ter em conta a realidade de partida (concurso entre a Segurança Social; o BCP; os trabalhadores e a autoridade tributária) e não aquela que foi criada pelas circunstâncias processuais.


Todavia, a realidade do litígio nesta fase é que, por força do caso julgado, apenas subsiste a determinação da prioridade de pagamento relativamente aos créditos da Segurança Social e do credor penhoratício, “como se”, de facto, assim tivesse sido desde o início do próprio litígio ou “como se” dois dos contendores privilegiados tivessem desistido.


Temos, assim, por equivalente o facto de os credores não recorrentes se terem conformado com a graduação efetuada, porque, na realidade o concurso quanto a eles já foi decidido, de modo que não se antolha qualquer colisão com as duas possibilidades que agora se configuram quanto às prioridades de pagamento dos credores ainda em litígio.


Neste enquadramento, na jurisprudência, mesmo a orientação que admite o entendimento de que prevalece o crédito penhoratício quando estão em causa outros credores além da Segurança Social (créditos laborais; créditos da AT), tem entendido que no caso em que se verifica a díade Segurança Social/penhor, não há fundamento para a interpretação restritiva do artigo 204, n.º 2 da Lei 109/2010, sendo de prevalecer o crédito da Segurança Social. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do STJ, de 22-09-20219 e de 05-04-202210, desta mesma secção.


No mesmo sentido, vejam-se ainda, entre muitos outros, os acórdãos do TRL de: 22 Jun. 2021, processo n.º 1720/20.9T8LSB-A-7; 06-07-2021, processo n.º 13018/19.0T8SNT-A.L1; 20.06.23, na apelação n.º 15988/20.7T8SNT-B.L1-1. Por seu turno, o TRC, no acórdão de 21-05-2019, na apelação n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, havia-se pronunciado também no mesmo sentido.


Assim, não parece haver qualquer óbice interpretativo a que, neste caso, deva prevalecer a regra especial imperativa contida no n.º 2 do artigo 204º da lei 109/2010, por se tratar de uma norma especial.


Nas situações em que estão em concurso mais do que duas categorias de credores que gozam de garantias cobertas por regras de valor normativo equivalente, a Doutrina e a Jurisprudência têm convocado a designada lacuna de colisão. Porém, como vimos, não é este o caso, tratando-se tão só de aplicar uma norma especial.


Ora, como ensina Baptista Machado, "As normas especiais (ou de direito especial) não consagram uma disciplina directamente oposta à do direito comum; consagram, todavia, uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações"11.


E Miguel Teixeira de Sousa sustenta que: "não se pode falar de conflito normativo nem quando uma das regras deva prevalecer sobre a outra e, portanto, quando uma das regras revoga ou invalida a outra, nem quando a harmonização entre elas decorra da qualificação de uma delas como regra geral e da outra como regra especial ou excepcional. Em qualquer destas hipóteses um "conflito aparente" transforma-se num falso conflito"12.


No presente caso, como se afirma, e bem, no Ac. TRL de 08.02.2022, no processo n.º 857/21.1T8VFX-A.L1-1. “considerando que na ordenação bilateral concursal do penhor com o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social não subsiste qualquer conflito normativo”.


Por conseguinte, adere-se ao entendimento de que, em sede de graduação de créditos sobre a insolvência, estando em causa o confronto dual entre créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social, o art. 204.º, n.º 2, do CRCSPSS (Lei n.º 110/2009, de 16-09 – dotados de privilégio mobiliário geral, de acordo com o artigo 747.º, n.º 1, al. a), do CC), os créditos desta última entidade prevalecem sobre qualquer penhor ainda que de constituição anterior.


III. Decisão


Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, nega-se provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 22 de fevereiro de 2024


Maria Amélia Ribeiro (Relatora)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo


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1. Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, entrado em vigor em 01.01.2010 (artigo 6º).↩︎

2. Pires de Lima, António e Antunes Varela, João, Código Civil Anotado, segunda ed Rev. e Atual. nota ao art.º 666.º, Coimbra, Coimbra, p. 609-610 .↩︎

3. Ac. TRL de 9.5.2019, e, em idêntico sentido, o Ac. TRC de 21.05.2019, 4705/17.9T8VIS-B.C1.↩︎

4. Pires de Lima, António e Antunes Varela, João, op. cit., nota ao art.º 749.º do CC.↩︎

5. Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 5ª Ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 129.↩︎

6. Apud Ac. TRL 09.05.2019.↩︎

7. Ac. TC, 15 de Dezembro de 2009, Proc. n.º 818/09, 3ª Secção.↩︎

8. Sugestivamente escreveu-se no sumário de um acórdão tirado num caso idêntico no TRL em 24-11-2020, na apelação n.º 1536/10.0TYLSB-G.L1-1 .

VI – Nesse contexto, jurídico-processual, a discussão suscitada pelo recurso apenas pode cingir-se à ordenação/graduação, entre si, do crédito da Segurança Social e do crédito da recorrente, sem que seja influenciada pela posição dos créditos laborais porque, fixada pela força do caso julgado material, sobre ela não se repercute e, por isso, independentemente do resultado do recurso, manter-se-iam igualmente depois do crédito garantido da recorrente e do crédito privilegiado da Segurança Social.
VII - Não se colocando agora a necessidade de uma interpretação restritiva do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS para tutela da posição legal dos credores laborais, não se justifica uma qualquer correção da graduação do privilégio creditório da Segurança Social e do penhor nos termos pretendidos pela recorrente, com a graduação deste à frente daquele, pois, esta sim, consubstanciaria violação frontal, mas agora injustificada, da letra e sentido de lei expressa.↩︎

9. Revista n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1 .↩︎

10. Revista n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1.↩︎

11. Baptista Machado, João, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 2011, p. 95.↩︎

12. Teixeira de Sousa, Miguel, Introdução ao Direito, Coimbra, Almedina, 2013, p. 263.↩︎