Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3322/22.6T8LRA-A.C1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
RESIDÊNCIA HABITUAL
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
LEGALIDADE
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A natureza do processo especial tutelar cível de Regulação das Responsabilidades Parentais, autoriza, que o tribunal divirja dos critérios de legalidade estrita, dispondo da necessária flexibilidade na sua condução e investigação dos factos, na salvaguarda da solução concreta mais adequada ao superior interesse do menor, e não o interesse dos pais, que apenas terá de ser considerado na justa medida em que se mostre conforme àquele outro.

II. Daí que, sem embargo do objecto decisório do acórdão se centrar na apreciação da excepção da incompetência internacional, legitimam e aconselham a indicação das providências subsequentes a executar pela primeira instância, associadas ao cumprimento efetivo da decisão.

III. O artigo 62º do CPC estabelece quais os factores a atender para a competência internacional dos tribunais judiciais, salvaguardado o estabelecido nos regulamentos europeus e demais instrumentos internacionais que vinculem o Estado Português – artigo 59º do CPC.

IV. Em particular, importa o disposto no artigo 7º do Regulamento Bruxelas II ter- norma de competência geral, em matéria de responsabilidade parental, que atribui em primeiro lugar, a jurisdição ao tribunal da residência habitual da criança, e não contém indicador que confine a sua aplicação às relações jurídicas que atravessem Estados Membros, justificando-se, por conseguinte, a sua aplicação no caso dos autos, que envolve um país externo à União.

V. O conceito autónomo de “residência habitual ou permanente “que envolve elementos objectivos e subjectivos, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde o menor tem organizada a vida familiar, social e escolar, com carácter de estabilidade e duração, demonstrativas da integração na sociedade local, e também a intenção dos titulares das responsabilidades parentais de se fixarem com a criança em certo estado, com carácter de permanência.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. BB intentou acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais contra, AA, pedindo que o filho de ambos, o menor CC, seja entregue à sua guarda e cuidados e fixada a residência no Dubai, Emirados Árabes Unidos.

Alegou, em suma que, o menor e a requerida se mudaram em 2019 para os Emirados Árabes Unidos, onde o requerente se encontrava a trabalhar e ali fixaram residência.

Após a separação do casal, em 2021, acordaram que o filho passaria uma semana com cada progenitor, o que se verificou desde Abril de 2021, e o exercício conjunto das responsabilidades parentais.

Em Julho de 2022, a requerida viajou para Portugal com o menor para passar as férias escolares, mas decidiu unilateralmente não regressar ao Dubai.

Frustrado o acordo na conferência de pais, também não foi então fixado regime provisório. 1

Em 16/10/2022, o requerente veio aos autos arguir a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da acção, uma vez que os progenitores e o menor tinham residência nos Emirados Árabes Unidos, aqui frequentava a escola, não podendo verificar-se alteração de competência pela circunstância ocorrida, de retenção em Portugal, à sua revelia ou ordem judicial; subsidiariamente, declarou desistir da instância, pedindo a sua homologação.

A requerida, em contrário, sustentou que aquando da entrada da acção, o filho residia consigo em ... e, desde Julho de 2022 frequenta o Colégio..., nunca tendo existido guarda partilhada.

Mais alegou que, o progenitor aproveitando uma ocasião em que lhe foi permitido estar com o menor, no dia 16 /10/2022, não o entregou nesse dia conforme fora combinado, saiu do país, levando-o para os Emirados Árabes Unidos, sem sua autorização.

O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão do requerente, seguindo-se a solicitação de informação ao ISS sobre o resultado da audição técnica especializada.

Foi proferida decisão que julgou internacionalmente competente o tribunal português e indeferiu o pedido de desistência da instância pelo requerente.


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2. Da Apelação

Inconformado, o requerente interpôs recurso de apelação, pugnando pela procedência da excepção da incompetência, atentas as razões anteriormente expendidas.

A requerida, na resposta, defendeu a competência do tribunal português.

O Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedente o recurso, concluindo também pela competência absoluta do tribunal português para julgar na causa, consignando ainda no dispositivo “(…) impõe-se ao tribunal recorrido que diligencie pelo cumprimento desta decisão e pelo regresso do menor, utilizando os meios coercivos ao seu dispor com vista a este desiderato ou que, diligencie pela aplicação das sanções devidas ao progenitor que raptou o menor. Dos autos resulta ainda que a atitude processual do recorrente, acima explanada, constitui violação grave dos deveres de boa-fé previstos nos artºs 8 e 9 do C.P.C., pelo que entende este tribunal ser de notificar o progenitor para se pronunciar querendo (cfr. artº 3, nº3 do C.P.C.), sobre a sua intenção de sancionar esta conduta nos termos previstos no artº 542 do C.P.C.”.


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3. A Revista

De novo inconformado, o requerente interpôs recurso de revista, extraindo no final das alegações as conclusões que seguem:

«1. A douta decisão ora em crise é passível de recurso para este Supremo Tribunal por resultar da conjugação dos arts. 629.º, n.º 2, al. a) e 671.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC, que é sempre admissível recurso com fundamento na violação das regras de competência internacional,

2. Cabendo igualmente recurso de revista excecional, por estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e por estarem em causa interesses de particular relevância social, nos termos das als. a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC.

3. Além do presente recurso ter por fundamento a violação de regras de competência internacional, em especial os arts. 2.º, n.º 2, 11), al. b), 7.º, n.º 1, 9.º e 10.º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, fundamenta-se ainda nas nulidades previstas nos arts. 615.º e 666.º do CPC, cf. art. 674.º, n.º 1, do mesmo Código.

4. Enfermando a decisão revidenda de nulidade, por omissão de pronúncia; 5. Assim, o tribunal a quo não analisou os argumentos de direito deduzidos pelo Recorrente, nomeadamente no que tange à ilegitimidade da Recorrida para, unilateralmente, deslocar a residência da criança do Dubai para Portugal, 6. Ou os argumentos do Recorrente no sentido de não se poder retirar, sem mais, da instauração do processo vontade unívoca de atribuir competência internacional aos tribunais portugueses.

7. A isto acresce, que o Acórdão enferma de nulidade por excesso de pronúncia,8. Conhecendo de factos sem relevo para a decisão da questão sub judice e inclusivamente decidindo contrariamente ao regime provisório atualmente fixado (!)9. Dando ordens diretas ao tribunal de 1.ª instância, ordens essas sem qualquer relação com a decisão revidenda, como se este se encontrasse numa relação de dependência hierárquica relativamente ao Tribunal da Relação. 10. Na verdade, no âmbito de um despacho que se limita a decidir serem os tribunais portugueses absolutamente competentes para conhecer do pleito, não cabe ao Tribunal da Relação instruir o tribunal a quo para tratar de diligenciar pelo regresso do menor quando tal regresso jamais foi judicialmente ordenado…

11. Além das referidas nulidades, que se arguem para todos os legais efeitos, enferma ainda o acórdão recorrido em erro de julgamento quanto à matéria de direito.

12. Fazendo uma interpretação incorreta do conceito de residência habitual, e, por essa via, do art. 7.º, n.º 1, do Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019,13. Decidindo que a criança tinha a sua residência habitual em Portugal, apesar desta se encontrar, ao tempo da propositura da ação, apenas há um mês e meio neste país.

14. Esta deslocação a Portugal era inicialmente ocasional, em férias, prevendo-se o regresso da criança aos Emirados Árabes Unidos, país onde já residia há dois anos e meio,15. Primeiro no contexto da relação afetiva dos progenitores e, posteriormente, cerca de um ano e meio após a sua separação.

16. Em face destas circunstâncias, sempre haverá de se afirmar que a criança, por acordo de ambos os progenitores, tinha no Dubai o país da sua residência habitual, sendo aí que a sua vida se encontrava organizada em condições de estabilidade,

17. Não podendo nenhum dos progenitores, unilateralmente, deslocar a residência habitual da criança para outro país, constituindo esta questão de particular importância nos termos e para os efeitos do art. 1901.º, n.ºs 1 e 2, do CC, aqui aplicável ex vi do disposto no art. 1912.º, n.º 2, do mesmo Código,18. Sendo a lei portuguesa a aplicável, nos termos do art. 57.º, n.º 1, 1ª parte, ex vi art. 31.º, n.º 1, ambos do CC.

19. Não operando a deslocação do país da residência da criança por vontade unilateral da Recorrida, a mesma também não se poderia afirmar à luz da factualidade existente.

20. Desde logo por a curtíssima duração da estadia neste território ao tempo da propositura da ação (excluindo o tempo que a criança aqui passaria de férias, constata-se que o menino apenas se encontrava neste território há pouco mais de 10 dias, entre 23 de agosto e 3 de setembro p.p.) ser incompatível com a afirmação de que a vida da criança passou a estar organizada, em condições de estabilidade, em ....

21. Aliás, o tribunal a quo apenas chega a conclusão diversa porque valoriza elementos de facto não dados como provados e ulteriores ao do momento da interposição da ação;

22. Mais confundindo critérios de fixação do regime de responsabilidades parentais com critérios de interpretação do conceito de residência habitual, como figura de principal referência e disponibilidade dos progenitores para a criança.

23. À luz do exposto, deveria o Tribunal a quo ter considerado que, ao tempo da propositura da ação, o menino tinha a sua residência habitual nos Emirados Árabes Unidos.

24. Tendo procedido a uma incorreta interpretação deste conceito e assim infringido o art. 7.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2019/1111, e, bem assim, do art. 9.º, n.º 1 do RGPTC, aplicável por força do art. 62.º, al. a), do CPC.

25. Na fundamentação da sua decisão, refere o Tribunal a quo que, de qualquer modo, a competência internacional dos tribunais portugueses sempre decorreria da aplicação do art. 10.º, n.º 1, als. a) a c) do Regulamento (UE) n.º 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019,26. Considerando que, pela circunstância de a ação ter sido instaurada pelo Recorrente, este sempre teria atribuído a competência aos tribunais portugueses, nos termos do referido preceito.

27. Porém, in casu, o Recorrente não tinha como objetivo atribuir tal competência, pretendendo apenas obter decisão de regresso do seu filho aos Emirados Árabes Unidos e tendo assim agido por acreditar que esta era a forma mais expedita de o fazer.

28. Crendo-se a interpretação do tribunal a quo, no sentido de que a instauração da ação implica presunção inilidível dessa atribuição da competência, manifestamente afastada do espírito da lei, que baseia a atribuição da competência numa escolha livre e esclarecida das partes.

29. Neste sentido, o art. 10.º, n.º 1, al. b), ii), em articulação com o art. 10.º, n.º 3, todos do referido Regulamento Europeu, refere expressamente que a não oposição à competência apenas vale como aceitação implícita da competência depois das partes terem sido devidamente informadas do seu direito de não a aceitar.

30. Sendo a interpretação de que tal dever de informação só vale relativamente à Recorrida violador da igualdade das partes, por ser mais exigente para com a parte que intenta a ação do que com aquela que na mesma intervém.

31. Não tendo o Recorrente sido informado do seu direito de não aceitar a competência, e permitindo a lei nacional arguir a exceção de incompetência absoluta mesmo à parte que intenta a ação, crê-se não se poder retirar, das regras internacionais ou de direito nacional, a solução perfilhada pelo tribunal a quo.

32. Devendo negar-se a atribuição da competência internacional ao tribunal, por aplicação do art. 10.º, n.º 1, al. b) do Regulamento (UE) n.º 2019/1111.

33. Assim não se entendendo, sempre se dirá que o referido art. 10.º parece fazer depender a atribuição desta competência do preenchimento cumulativo das alíneas do seu n.º 1, 34. Conclusão que se retira quer da epígrafe daquele preceito legal («Escolha do Tribunal»), quer da utilização do copulativo “e” antes da enunciação da última condição cumulativa, prevista na al. c).

35. Não se podendo aceitar, num caso como o dos autos, que a atribuição da competência internacional aos tribunais do Estado onde a criança se encontra ilicitamente retida seja conforme ao seu superior interesse.

36. Com efeito, tal solução abriria as portas ao forum shopping e ao recurso ao rapto internacional, em prejuízo dos objetivos e finalidades do Regulamento n.º 2019/111, que reafirma e reforça os compromissos assumidos no âmbito da Convenção de Haia de 1980, sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional.

37. Por possibilitar a obtenção de decisão de regulação das responsabilidades parentais que obste ao regresso da criança, e prejudicar a possibilidade de a criança ver as suas responsabilidades parentais reguladas pelo tribunal junto à sua residência, em respeito ao critério da proximidade.

38. Sendo o “superior interesse da criança” o princípio coordenador de todo o processo tutelar cível, estas considerações deverão ainda ser atendidas no momento da interpretação do art. 62.º do CPC.

39. Não se podendo relevar a circunstância de ter sido praticado em território português facto que serve de causa de pedir da ação, ou de algum dos factos que a integram, à luz da reduzida conexão de tais fatores face ao critério de proximidade geográfica expresso pelo conceito de residência habitual.

40. Pelo exposto, procedeu o Ilustre Tribunal a quo a uma errada interpretação dos arts. 10.º e 14.º do Regulamento n.º 2019/1111, e, bem assim, do art. 62.º do CPC, antes se impondo declarar a incompetência internacional do tribunal português.

41. Quanto ao pedido subsidiário do Recorrente, de desistência da instância, sempre se dirá que nenhum obstáculo impossibilita a sua homologação,42. Pois que, em primeiro lugar, tal desistência não dependeria da aceitação da Recorrida, que não ofereceu qualquer contestação ao pedido do Requerente (cf. art. 286.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do art. 33.º, n.º 1, do RGPTC).

43. E, em segundo lugar, o superior interesse da criança não se opor à desistência da instância, antes aconselhando o fim da tramitação dos presentes autos, valendo a este propósito os argumentos atrás aduzidos. 44. Tendo, por conseguinte, o Ilustre Tribunal a quo agido em violação do art. 286.º, n.º 1, do CPC e, bem assim, dos arts. 4.º, n.º 2 e 33.º, n.º 1, do RGPTC. Pelo. Que, nestes termos e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao recurso, anulando-se o acórdão recorrido e concluindo-se como nas alegações da Apelação, declarando-se a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, pois, só assim, se fará JUSTIÇA.»


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O Magistrado do Ministério Público contra-alegou, acompanhando o sentido do acórdão recorrido na defesa do superior interesse do menor, para o que concluiu:

«1.ª - Atento o disposto no art.7º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019, no que respeita à responsabilidade parental, a pedra de toque para a determinação da competência internacional situar-se-á na circunstância de a criança residir habitualmente num determinado Estado Membro (no momento em que a acção é proposta).

2.ª - A determinação da competência deve ter como objectivo a protecção do superior interesse da criança e ser fundada no princípio da proximidade – tem em vista a maior proximidade relativamente ao ambiente familiar social e cultural do dia a dia da criança, ligação que deve ser tida em consideração, ainda que haja uma permanência num outro Estado, se desta última resultar que não se constituiu uma ligação pelo menos tão estreita como aquela outra.

3.ª - Neste contexto, por forma aferir qual a residência habitual de uma criança, cumpre salientar que a sua mera presença física em determinado local não releva por si só. Deverá antes verificar-se uma certa duração e estabilidade que se não se confunda como uma mera e breve presença física, da qual resulte uma intenção de se estabelecer nesse Estado. Assim, deverá levar-se a cabo uma ponderação de determinadas circunstâncias do caso concreto, como a duração da estadia da família no Estado-Membro; a nacionalidade da criança; o lugar e condições de escolarização da criança, os seus conhecimentos linguísticos, as relações familiares e sociais.

4.ª - Deve entender-se, como no caso em análise, que a residência habitual do menor se situa em território nacional, quando este, de nacionalidade portuguesa nasceu neste país e aqui residiu até aos 5 anos, fala a língua portuguesa, regressou a este país com a progenitora que não tem meios de subsistência no Dubai, a sua família alargada materna e paterna reside neste país, aqui está perfeitamente integrado em equipamento escolar, não tendo nos Emirados Árabes Unidos, para além do seu progenitor, qualquer outro familiar e não tendo qualquer ligação afetiva, linguística ou cultural com aquele país.

5.ª Termos em que, a nosso ver e no respeito por opinião diversa, serão de improceder as conclusões do douto recurso de Revista Normal/Excecional.»


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A requerida pronunciou-se pela rejeição da revista excecional, não tendo a recorrente explicitado as razões da “relevância social da questão”; e, pela improcedência da revista, conforme sustenta, em síntese, nas suas conclusões:

«(…)14. Neste ensejo, refere o considerando nº 12 do Regulamento que As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

15. Extrai-se do exposto que a aferição da residência habitual da criança reporta-se ao momento da propositura da ação, ou seja, no caso a 03.09.2022, e na sua fixação deve atender-se ao critério do superior interesse da criança e ao critério da proximidade.

16. Ora, no caso vertente, extrai-se do quadro factual apurado que, à data da entrada da ação, a criança encontrava-se a residir em Portugal há quase 2 meses, sendo certo que esta nascera em Portugal, tem nacionalidade portuguesa e aqui viveu a maior parte da sua vida, regressando a Portugal, passados cerca de 2 anos e meio de vivência no Dubai.

17. Tal regresso, com o conhecimento do aqui recorrente, deveu-se à circunstância da requerida, aos cuidados de quem sempre esteve entregue de facto, desde que nasceu, ter decidido regressar ao seu país, dada a separação dos progenitores e a inexistência de qualquer familiar ou trabalho no Dubai, sendo que ambos os progenitores têm nacionalidade portuguesa, encontrando-se em Portugal os membros da família alargada da criança, tanto da família materna, como da família paterna.

18. De salientar que, o menor está matriculado numa escola em Portugal, tendo já iniciado a frequência do ano letivo em curso.

19. De acordo com o descrito, ponderando o superior interesse da criança e o critério da proximidade, impõe-se concluir que, na data da entrada da ação, a criança tinha em Portugal o centro da sua vida, situando-se aqui a sua residência habitual, donde se constata a competência internacional dos tribunais portugueses.

20. Mas mais: a criança deslocou-se para Portugal com a anuência do progenitor e, tendo em consideração a factualidade apurada e os critérios que devem presidir à interpretação do conceito de residência habitual da criança, impõe-se fixar em Portugal a sua residência.

21. É ainda de salientar, a propósito da extensão da competência prevista no artigo 12º, nº 3 do citado Regulamento que “ Os tribunais de um Estado-Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.º 1, quando: a) A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e b) A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.”

22. Tal significa que, à luz deste normativo e tendo presente a factualidade demonstrada, a competência dos tribunais portugueses para a presente ação sempre defluiria da evidente ligação particular da criança com Portugal.

23. Desde logo pela residência da progenitora e a própria nacionalidade da criança, e ainda em face da aceitação explícita e inequívoca da competência deste Tribunal por todas as partes no processo – mormente pelo progenitor que aqui instaurou a presente ação, sempre tendo em consideração o superior interesse da criança. (….)24. Acresce dizer que, ainda que se entendesse não ser aplicável ao caso dos autos o citado Regulamento, restando a aplicação das regras internas que regem quanto à competência internacional, a decisão da presente questão sempre seria no mesmo sentido.

25. Na verdade, estabelece o artigo 62º do CPC, com acuidade no caso vertente, que: Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

26. Neste conspecto, é aplicável o artigo 9º do RGPTC que prevê, no seu nº 1, que: Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado, sendo, aliás, irrelevantes as modificações de facto que ocorram após a instauração do processo (nº 9 do citado normativo e no mesmo sentido artigo 38º, nº 1 da LOSJ). (…) Termos em que, e no D. suprimento de VV. Exªs não deverá o presente recurso ser admitido. Sem conceder, deve o recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se o D. Acórdão proferido no Tribunal da Relação.»


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O Tribunal da Relação, em conferência, pronunciou-se quanto às nulidades invocadas, concluindo não se verificarem, e condenou o recorrente por litigância de má-fé na multa fixada em 15 U.C.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Apreciação do Recurso e Fundamentos

A. Amissibilidade da revista e delimitação do objecto

O recorrente imputa ao acórdão recorrido a violação das regras da competência internacional, tendo as instâncias convergido, no seu entender, erradamente na afirmação da competência do tribunal português para julgar os autos de regulação das relações parentais do filho menor.

Tal fundamento - a competência absoluta do tribunal - constitui fundamento próprio de recorribilidade e, no caso, da revista, ao abrigo da norma especial de admissibilidade do artigo 671º, nº2, al a), com remissão para o artigo 629º, nº2, al) a), ambos do CPC; resta, por consequência, prejudicada a eventual admissão como revista (excecional) sob o invocado artigo 672º, nº1, al) a) do CPC.

A par do fundamento core do recurso - incompetência internacional do tribunal – o recorrente aponta ao acórdão recorrido as nulidades de omissão e excesso de pronúncia.

Na situação a revista é admitida ao abrigo da norma especial- artigo 671º, nº2, al) a ex vi artigo 629º, nº2, al a), do CPC (o acórdão da Relação apenas conhece da matéria desta excepção, não pôs termo à causa e verifica-se dupla conforme).

As nulidades decisórias elencadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 615.º ex vi artigo 666º do CPC, (não constituindo fundamento autónomo de revista normal), integrarão o objeto do recurso (artigo 674º, nº1, al) c) e serão conhecidas, caso a revista interposta vier a ser admitida a título especial ou de revista excecional. 2

Posto isto, delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), à parte das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), cabe decidir:

• se o acórdão da Relação enferma dos apontados vícios de omissão e também excesso de pronúncia;

• se incorreu em erro de direito ao declarar internacionalmente competente o tribunal português para julgar a presenta acção de regulação das responsabilidades parentais;

• ou, subsidiariamente, admitir-se a desistência da instância.

B. Fundamentação

Os Factos

Foi considerada demonstrada a seguinte factualidade:3

1. CC nasceu em ........2014, no ..., Lisboa e encontra-se registado como sendo filho de BB e AA.

2. A criança residiu em Portugal com a progenitora desde que nasceu e até dezembro de 2019, altura em que ambas alteraram a sua residência para junto do progenitor, no Dubai.

3. Os progenitores separaram-se no Dubai, vivendo em casas diferentes pelo menos a

partir de abril de 2021, continuando a criança a residir nos Emirados Árabes Unidos com a progenitora.

3-A. Após a separação do casal, em 2021, a mãe e a criança deslocaram-se a Portugal, para passar as férias escolares, regressando em setembro aos Emirados Árabes Unidos.4

4. Em 14.07.2022, a criança viajou para Portugal com a mãe e autorização do pai para passar as férias escolares.

5.A mãe e a criança passaram a residir na casa dos pais daquela e não regressaram ao Dubai.

6.A mãe decidiu não regressar ao Dubai por estar separada do requente e pai da criança e de ali não ter trabalho, nem família.

7. A criança está matriculada no Colégio ..., sito na ..., onde frequenta o 3.º ano escolar.

7-A. A essa data, o menor encontrava-se matriculado num colégio no Dubai.5

8. A família alargada da criança, designadamente os seus avós maternos e paternos, residem em Portugal.

9. Ambos os progenitores têm nacionalidade portuguesa.

10. A ação deu entrada em 03.09.2022 e foi proposta pelo requerente e pai do menor.

O Direito

1. As nulidades processuais

1.1. Omissão de pronúncia

Neste capítulo, sustenta o recorrente que o acórdão enferma da nulidade por omissão de pronúncia, alegando que o tribunal a quo “(…) não analisou os argumentos de direito deduzidos pelo Recorrente, nomeadamente no que tange à ilegitimidade da Recorrida para, unilateralmente, deslocar a residência da criança do Dubai para Portugal,6. Ou os argumentos do Recorrente no sentido de não se poder retirar, sem mais, da instauração do processo vontade unívoca de atribuir competência internacional aos tribunais portugueses.”

Conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal, as nulidades da sentença-acórdão encontram-se previstas no artigo 615.º do CPC e dizem representam deficiências estruturais da própria decisão, que se afastam dos erros de julgamento, de facto ou de direito, com os quais são por vezes confundidos.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC, “é nula a sentença quando: (…) d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar;(.)”.

Tal como o Supremo Tribunal de Justiça vem sublinhado em jurisprudência constante, deve distinguir-se as autênticas questões e os meros argumentos ou motivos invocados pelas partes, para concluir que só a omissão de pronúncia sobre as autênticas questões dá lugar à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

Em ilustração, diz-se no aresto do STJ de 16.11.2021, que a nulidade da decisão por omissão de pronúncia “apenas se verificará nos casos em que ocorra omissão absoluta de conhecimentos relativamente a cada questão e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes6.

Nos autos, a questão sobre a qual o tribunal a quo tinha de se pronunciar consistia, tout court, na apreciação da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a acção.

Analisado o acórdão recorrido, evidencia-se que o Tribunal da Relação conheceu do objecto da apelação, alicerçado em fundamentação de facto e de direito ajustada à situação e ao comando do n.º 2 do artigo 608º do CPC, “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…).”

Note-se que o acórdão recorrido circunscreve a decisão ao pressuposto processual da competência internacional do tribunal português para julgar a intentada acção de RRP, na dependência da realidade existente à data da sua instauração, e não já sobre o regime de guarda ou visitas de cada um dos progenitores, que se prendem com o mérito da acção.

Acresce que, também aqui e agora, não se cuida de apreciar a deslocação ou regresso de uma criança alegada e ilicitamente retida pela requerida em Portugal. 7

De resto, o sobredito argumento ou consideração do recorrente, não ter a recorrida “legitimidade” para deslocar o filho, caso não fosse apreciada, enquanto matéria objecto da decisão recorrida, configuraria, outrossim, erro de julgamento e não mero vício de procedimento, mas, como se disse, não integra o tema decidendum.

Improcede em consequência a arguida nulidade.

1.2. Excesso de pronúncia

O recorrente alega ainda que o tribunal a quo também extravasou a sua competência decisória, “Conhecendo de factos sem relevo para a decisão da questão sub judice e inclusivamente decidindo contrariamente ao regime provisório atualmente fixado (!)9. Dando ordens diretas ao tribunal de 1.ª instância, ordens essas sem qualquer relação com a decisão revidenda, como se este se encontrasse numa relação de dependência hierárquica relativamente ao Tribunal da Relação. 10. Na verdade, no âmbito de um despacho que se limita a decidir serem os tribunais portugueses absolutamente competentes para conhecer do pleito, não cabe ao Tribunal da Relação instruir o tribunal a quo para tratar de diligenciar pelo regresso do menor quando tal regresso jamais foi judicialmente ordenado…”

Nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) (2ªparte), ex vi do art. 666º, n.º 1, do CPC, será nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia resulta da violação do dever consagrado no n.º 2 do art. 608.º do CPC, que para o que ora respeita, estabelece que o tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso.

No acórdão recorrido, após julgar improcedente a excepção da incompetência absoluta, consignou-se - “Por último, impõe-se ao tribunal recorrido que diligencie pelo cumprimento desta decisão e pelo regresso do menor, utilizando os meios coercivos ao seu dispor com vista a este desiderato ou que, diligencie pela aplicação das sanções devidas ao progenitor que raptou o menor. “

Não se vislumbra que o tribunal a quo ultrapasse o centro decisório da questão que lhe foi submetida e que não seja do conhecimento oficioso- a competência internacional do tribunal português- para a acção de RRP, a correr termos no juízo de Leira, intentada pelo próprio recorrente.

O tribunal não pode, ainda assim, ignorar a factualidade alegada pelas partes ao longo do processo que possam comprometer o interesse do menor.

Não cremos tratar-se de circunstância despicienda, o requerente, após a instauração da acção em Portugal, decidir levar o menor para o Dubai, sem o consentimento da requerida ou autorização do tribunal, “acomodando “a deslocação à arguição da incompetência internacional do tribunal nacional. 8

A natureza do processo especial tutelar cível de Regulação das Responsabilidades Parentais, autoriza, como sabemos, que o tribunal divirja dos critérios de legalidade estrita, dispondo da necessária flexibilidade na sua condução e investigação dos factos, na salvaguarda da solução concreta mais adequada ao superior interesse do menor, e não o interesse dos pais, que apenas terá de ser considerado na justa medida em que se mostre conforme ao interesse superior da criança.9

Daí que, sem embargo do objecto decisório do acórdão se centrar na apreciação daquela excepção dilatória, fundamento do recurso, admitido com efeito meramente devolutivo, legitimam e aconselham a indicação das providências subsequentes a serem tomadas pela primeira instância e associadas ao cumprimento efetivo da decisão.10

Para concluir que o recorrente não tem razão ao apontar ao acórdão recorrido a nulidade de excesso de pronúncia, que improcede.

2. A competência internacional do Estado Português em matéria da regulação e cumprimento da responsabilidade parental; instrumentos normativos

2.1. Olhando aos factos assentes, a relação jurídica subjacente contém, na verdade, elementos transnacionais ou plurilocalizados em dois Estados soberanos, em Portugal e no Dubai, Emirados Árabes.11

O artigo 62º do CPC estabelece quais os factores a atender para a competência internacional dos tribunais judiciais, salvaguardado o estabelecido nos regulamentos europeus e demais instrumentos internacionais que vinculem o Estado Português – artigo 59º do CPC.12

Neste segmento normativo e quanto às questões cíveis que envolvam a responsabilidade parental, a “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996, e à qual Portugal aderiu como Estado contratante, estabelece no seu artigo 5º, nº1- “As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança”.

No domínio do direito europeu, a regulamentação efectiva da matéria na União Europeia concretizou-se inicialmente com o Regulamento 2201/2003, de 27.11 “Bruxelas II bis”.13

Avaliada a sua aplicação e a necessidade de reformulação do regime, o Parlamento Europeu viria a aprovar o novo Regulamento 2019/1111, de 25.6. 2019, Bruxelas II ter”, o qual, nos termos do artigo 1, nº1, al) b, se aplica agora às questões cíveis emergentes das responsabilidades parentais e vincula o Estado Português.14

No que se prende com a delimitação espacial da aplicação do Regulamento, não se mostra necessário que a relação jurídica se estabeleça no interior das fronteiras de países que integram por definição a União, sendo suficiente que os factores de competência nele estabelecidos atribuam a jurisdição ao tribunal de um Estado Membro.

Em particular, importa para o caso em apreciação - o artigo 7º do Regulamento Bruxelas II ter- norma de competência geral, em matéria de responsabilidade parental, que atribui em primeiro lugar, a jurisdição ao tribunal da residência habitual da criança, e não contém indicador que confine a sua aplicação às relações jurídicas que atravessem Estados Membros, justificando-se, por conseguinte, a sua aplicação no caso dos autos, que envolve um país externo à União, o Dubai.

Por último, o Regulamento Bruxelas II ter no -artigo 94º, nº1- estipula a sua prevalência em relação às Convenções anteriores, embora não relevante para a situação de atribuição da competência jurisdicional na regulação das responsabilidades parentais, uma vez que, também, a Convenção de Haia, como se indicou, alinha com o elemento de conexão da residência habitual do menor.

Em suma, à luz dos normativos internos e internacionais citados que vinculam o Estado Português, a competência internacional dos tribunais portugueses, no âmbito das matérias relativas ao exercício das responsabilidades parentais, elege como elemento de conexão, o critério da residência habitual da criança.

Regras de atribuição de competência internacional que assumidamente são ditadas pelo princípio do superior interesse da criança, assente na eficiência da proximidade geográfica do respetivo tribunal, que por natureza se encontra mais apto a adotar as decisões necessárias.15

2.2. O conceito operativo da residência habitual do menor

O recorrente embora aceite a bondade da aplicação do Regulamento Bruxelas II ter, aponta erro de julgamento na interpretação prosseguida do conceito de “residência habitual do menor”, extraindo a conclusão da competência internacional do tribunal nacional para os termos da causa.

Em abono da sua tese, sustenta que intentou a acção no tribunal de ... em data anterior à retenção ilícita do filho pela requerida em Portugal, que o trouxe apenas para gozo de férias, e a residência habitual do menor no Dubai, falhando a verificação no caso os critérios cumulativos previstos do artigo 10º daquele Regulamento.

Apreciemos.

O conceito autónomo de “residência habitual” ou permanente – deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde o menor tem organizada a vida familiar, social e escolar, com carácter de estabilidade e duração, demonstrativas da integração na sociedade local.

O Tribunal de Justiça da União Europeia vem reiteradamente considerando que a determinação do conceito de residência habitual, há-de ser feita à luz das disposições do citado Regulamento, dele resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

Na densificação do referido conceito e com reporte à jurisprudência daquele tribunal, Anabela Susana de Sousa Gonçalves faz notar - “A noção referida envolve elementos objectivos que traduzem a integração social e familiar da criança, mas também elementos subjectivos que se corporizam na intenção dos titulares das responsabilidades parentais se fixarem com a criança em certo estado com carácter de permanência. (…) Os indícios que, no caso concreto, podem ser valorizados para preencher os elementos objectivos e subjectivos que integram o conceito de residência habitual podem ter em consideração, por exemplo: a duração, regularidade, e as condições e os motivos de permanência da criança e da família no território de um estado membro; ou da mudança para o outro estado membro; a nacionalidade da criança; o local e as condições da escola; os conhecimentos de línguas; os laços familiares e sociais nesse estado; a intenção do detentor do direito de guarda de se estabelecer com a criança em outro estado membro a expressa por certas medida externas (..).16

De acordo com o artigo 7º do Regulamento Bruxelas ter, a competência é determinada no momento em que o processo é instaurado, replicando o princípio da estabilidade da instância- perpetuatio fori (também vigente na ordem jurídica interna), garantindo a jurisdição do tribunal da residência habitual da criança até existir uma decisão definitiva.17

2.3. O caso em juízo

Importará, pois, à luz do exposto e da factualidade apurada, avaliar da competência jurisdicional para os termos da causa.

Avulta do apurado, que o menor CC nasceu em Portugal em 2014 e aqui viveu com a mãe até Dezembro de 2019; data em que com a requerida foram para junto do pai, no Dubai; em Abril de 20021, o casal separou-se, passando a viver ali em casas separadas, ficando o menor com a mãe.

No verão seguinte, a requerida deslocou-se a Portugal com o filho em férias, com autorização do pai, regressando em Setembro ao Dubai; no verão de 2022, a requerida veio para Portugal com o filho, acabando por aqui ficar a viver, em casa dos avós maternos, uma vez que naquele país não tem emprego ou estrutura de apoio; os progenitores são portugueses e a criança estava a residir em Portugal com a mãe, a frequentar a escola internacional, até que o pai o levou para o Dubai; a acção deu entrada em juízo 3.09.2022 .

Posto este quadro fáctico, observamos que desde o nascimento do menor, agora com 9 anos de idade, a progenitora representa a sua figura parental ininterruptamente presente e cuidadora, com exclusão do período de cerca de um ano, em que coabitaram em unidade familiar com o progenitor, no Dubai.

As suas referências familiares preponderantes, próximas e estáveis, a inserção social e cultural da criança assume durabilidade em Portugal, onde nasceu e morou até aos seis ou sete anos de idade, junto da família alargada, reveladoras da sua integração familiar e social preponderante e estável.

De outro lado, a requerida vive em Portugal, não ficando no Dubai após a separação por não ter ali trabalho ou apoio; o menor acompanhou-a então com autorização do requerente; sendo o pai que o levou, entretanto, de volta para o Dubai, sem autorização da mãe ou do tribunal.18

O Dubai surge como uma vivência da criança meramente episódica, quebrada com a separação dos progenitores, não sobressaindo quaisquer vínculos com aquele país.

Perante os factos indiciados, não hesitamos em concluir que, o menor CC tem maior conexão com Portugal, aqui se situando o núcleo definido e estabilizado de vida, preenchendo o critério operativo da residência habitual, viabilizando o conhecimento rigoroso das suas condições de inserção familiar e social, coincidente com a garantia de prossecução do seu interesse superior.

A terminar, sobre a pretensão (subsidiária) de desistência da instância do recorrente.

A desistência só pode incidir sobre direitos que se encontram na disponibilidade das partes, conforme exclusão legal estabelecida no n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, e a desistência de instância, depende da aceitação da parte contrária.

Importa, pois, sublinhar da incompatibilidade de tal efeito com a finalidade específica do processo de RRP, que não visa solucionar um conflito de interesses disponíveis, destinando-se a assegurar que os interesses do menor no regime parental são acautelados.19

Em suma, o acórdão recorrido não merece censura.

III. Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento à revista.

As custas são a cargo do recorrente que decaiu.

Lisboa, 29.02.2024

Isabel Salgado

Emidio Francisco Santos

Fernando Baptista de Oliveira

_______


1. Regime provisório, entretanto, já fixado, como resulta da consulta dos autos principais

2. Ponderado o carácter acessório da arguição- apreciação desses vícios processuais em relação ao objecto do recurso, não parece ajustado no caso o entendimento prevalecente deste Supremo Tribunal, segundo a qual, na revista, cujo fundamento ditou a ampliação de recorribilidade, deve circunscrever a sua intervenção àquele. entre outros arestos, no Acórdão do STJ de 28.01.2021, proferido nesta secção no processo 4129/19, disponível in www.dgsi-pt.

3. O acórdão recorrido procedeu à alteração parcial da matéria de facto fixada pela primeira instância, face às declarações dos progenitores, da audição do menor e dos que resultam de documentos não impugnados.

4. Aditado pelo acórdão recorrido

5. Aditado pelo acórdão recorrido

6. No proc. n.º 5097/05.4TVLSB.L2. S3; e ainda, entre outros, os Acórdãos de 09.02.2021, no proc. n.º 7228/16.0T8GMR.G1. S1, ambos in www.dgsi.pt.

7. Tópico que o acórdão recorrido deixou bem claro “Em primeiro lugar e como questão prévia, há que referir que a decisão sobre a retenção lícita ou ilícita deste menor, na ausência de convenção que regule o rapto internacional de menores que vincule ambos os Estados, dependia da decisão a proferir por este tribunal sobre o local de residência habitual deste menor e sobre os pedidos que tinham sido formulados pelo próprio progenitor a este respeito. (..)”

8. Usando a autotutela para superar divergências com a requerida acerca do exercício das responsabilidades parentais com o filho, ainda não reguladas; comportamento que motivou a sua condenação como litigante de má-fé pelo tribunal recorrido e com a qual se conformou.

9. Cfr. artigos 1877.º a 1920º-C do Código Civil e artigos 292º a 294º e 986º a 988º, todos do CPC.

10. Os tribunais judiciais “(..) encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões.”, conforme dispõe o artigo 42º, nº1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário. A assinalar ainda que o processo de regulação das responsabilidades parentais de menor é de prossecução oficiosa, como bem sinalizou o acórdão recorrido “(..) impõe-se a regulação judicial do poder parental de menores, cujos progenitores, estando separados de facto não tenham chegado a acordo sobre a regulação destas responsabilidades, de acordo com o superior interesse do menor.”;

11. Cfr. Isabel Magalhães Colaço in Direito Internacional Privado, AAFDL, Volume I, pág.16.

12. cfr. também artigo 288, §2, do TFUE e 8, nº4, da Constituição; competência que se fixa aquando da entrada do pleito em juízo -; cfr. ainda os artigos 37º e 38º, nº1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

13. O Regulamento 1347/2000 (Bruxelas II) de 20.5.2000 frustrou-se por falta de aplicação de alguns Estados membro, tendo o actual como objectivo traçado, uma livre circulação das decisões judiciais adrede entro dos Estados Membros da UE, assente nos princípios da confiança mútua e do reconhecimento automático daquelas, e fomentar os resultados de simplicidade de tramitações, diminuição de custos e rapidez nos processos.

14. Aplicável na presente acção, intentada em 3.09.2022- artigo 100º- (aplicável às acções propostas em 1.08.2022, com excepção dos artigos 92,93 e 103º Tendo como objectivo traçado, uma livre circulação das decisões judiciais adrede entro dos Estados Membros da UE, assente nos princípios da confiança mútua e do reconhecimento automático daquelas, e fomentar os resultados de simplicidade de tramitações, diminuição de custos e rapidez nos processos.

15. Cfr. Considerandos 12 e 19 do Regulamento Bruxelas II ter. no que se reporta à competência em matéria de responsabilidade parental, “(..) definida em função do superior interesse da criança Todas as referências ao superior interesse da criança deverão ser interpretadas à luz do artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia («Carta») e da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989 («Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança»), aplicadas ao abrigo do direito e dos procedimentos nacionais)”

16. Cfr. TJUE, Barbara Mercredi contra Richard Chaffe, Apud, autora citada in Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia /O Regulamento EU 2019/1111, pág.9; aresto qual foi também objecto de análise no acórdão recorrido.

17. Sem prejuízo da transferência de jurisdição para outro Estado Membro, caso ocorra alteração lícita de residência do menor para outro Estado – artigo 12º do Regulamento Bruxelas ter.

18. Cfr. 3ºA dos factos, aditados pelo Tribunal da Relação. Observe-se que o recorrente ao decidir levar consigo o filho para o Dubai, violou o dever de informação e participação da requerida, e impediu o tribunal de se pronunciar, face à evidente discordância entre os pais quanto à guarda do filho, ainda não decidida.

19. Cfr. Artigo 1249º do Código Civil, artigo 37º do RGPTC. O poder paternal é exercido por ambos os pais, mas havendo separação, deve o Tribunal regular o exercício do poder paternal.