Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1051/18.4R8CHV.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
Data do Acordão: 05/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A não ser nos casos legalmente previstos, a autoridade do caso julgado, que se pode estender a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, pressupõe a identidade dos sujeitos;

II. Por inexistência de identidade de sujeitos, não se verifica a autoridade do caso julgado na presente acção proposta pelas autoras contra o réu condomínio, se a sentença que se pretende impor foi proferida noutra acção proposta por alguns condóminos, que ali intervieram como proprietários das suas fracções, contra uma das aqui autoras.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em julgamento, na Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça

*



  AA e BB, residentes em …., instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO C……., sito na Alameda ..........., blocos 6, 7 e 8, em .........., representado pela respectiva administração de condomínio, CONDOFLÁVIA – Limpezas Gerais e Administração de Condomínios, Lda.

  Pedem a condenação do réu a realizar obras na caleira das águas pluviais do Bloco 6, junto à empena da fachada do lote nº …, bem como nos tubos condutores de tais águas desde o telhado até ao solo, incluindo as que forem necessárias no terraço da fracção “..” da 1ª autora AA, para o eficaz escoamento das águas pluviais do terraço até ao solo, de modo a evitar a entrada de águas na fracção “..”. Pretendem, ainda, que o réu seja condenado, após a realização das obras no telhado e terraço, a reparar as fracções das autoras, realizando e suportando todos os trabalhos identificados nos artigos 56.º e 57.º da Petição Inicial ou, subsidiariamente, que seja condenado no pagamento à autora AA da quantia de 14.145,00 euros e à autora BB da quantia de 3.075,00 euros, acrescidas de juros de mora, para que estas procedam às obras que forem necessárias nas respectivas fracções.

  Alegam, em síntese, a deficiência do sistema de drenagem das águas pluviais do prédio que não resiste e entra água na fracção da 1ª autora e que se acaba por infiltrar para fracções como a … que pertence à 2ª autora.

O réu apresentou contestação, invocando a prescrição do direito invocado pelas autoras, por ter decorrido o prazo de três anos previsto na lei e uma vez que lhes é imputável a absolvição da instância ocorrida no âmbito do processo n.º 305/11.......... Alega, ainda, em seu favor, que falta um pressuposto processual essencial à demanda do condomínio, porquanto este não poderia ter realizado as obras sem que isso fosse deliberado pela assembleia de condóminos. Invoca também o réu que se impõe, no presente processo, o caso julgado formado pelas sentenças proferidas nos processos n.º 305/11......... e n.º 981/11..........

 Defendendo-se por impugnação, alega o réu que a origem das infiltrações que servem de base aos pedidos formulados pelas autoras se situa exclusivamente no terraço que pertence à autora AA, por se acumular lixo nos locais por onde devia efectuar-se o escoamento das águas da chuva. O réu conclui, assim, referindo que não tem qualquer justificação o pedido que as autoras formularam quanto a reparações nas partes comuns do edifício.

Realizou-se audiência prévia, com o objectivo de conhecer imediatamente do mérito da causa.

  Nessa sequência, o Tribunal começou por julgar procedente a excepção de caso julgado, na modalidade de autoridade de caso julgado, com fundamento em que, “perante a autoridade de caso julgado formada no processo n.º 981/11........., que correu termos neste Tribunal e Juízo, Juiz .., se encontra desde já não provado que o terraço da fracção .. constitui parte comum do prédio urbano em causa nos autos”.

 E de seguida foi proferida sentença que julgou verificada a excepção peremptória de prescrição dos direitos invocados pelas AA. AA e BB e, em consequência absolveu o Réu CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO C de todos os pedidos formulados.

Inconformadas com esta decisão, as autoras dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação.

A Relação decide julgar procedente o recurso, e, em consequência:

 a) julga improcedente a excepção da autoridade do caso julgado;

 b) julga improcedente a questão suscitada pela recorrida em sede de ampliação do âmbito do recurso.

c) julga improcedente a excepção peremptória de prescrição arguida pela ré.

 d) Em consequência, revoga a sentença recorrida, e determina, após baixa dos autos, o retomar da instância.

 Deste acórdão interpôs o Condomínio recurso de revista, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:

“A - A fim de afastarem a prescrição da pretensão indemnizatória aqui reclamada, fazem as A.A. apelo ao estatuído no art. 279º C.Pr.Civil, para assim se aproveitarem dos efeitos civis derivados da proposição de uma 1ª acção, acção essa que correu termos por este Tribunal sob o nº 305/11......... com o mesmo objecto desta.

B - Só que nessa acção, por acórdão do Tribunal da Relação...... proferido na sequência de recurso interposto, decidiu-se que a ré Condoflávia carecia de legitimidade passiva e, como tal, foi absolvida da instância, tendo este acórdão sido proferido a 9/12/2017.

C - Deste acórdão interpuseram as aí autoras/recorridas recurso de revista excepcional, posteriormente distribuído como recurso de revista normal, revista esta que veio a ser negada, tendo as recorrentes restringido o fundamento do recurso de revista interposto a uma (pretensa) violação do caso julgado, deixando incólume o teor desse acórdão, ou seja, a ilegitimidade da aí ré.

D - Assim sendo, a decisão de ilegitimidade da ré, com a sua consequente absolvição da instância, ocorreu definitivamente com a prolação daquele acórdão da Relação de Guimarães, sendo, aliás, essa decisão irrecorrível, pelo que a decisão de ilegitimidade se tornou firme e definitiva, tendo esse acórdão transitado em julgado dez dias após a sua notificação às partes, ou seja, a 23 de Novembro de 2017.

E - Pelo que, para se poderem aproveitar dos efeitos civis derivados da proposição da 1ª acção, teriam as A.A. que intentar esta nova acção impreterivelmente até 3 de Fevereiro de 2017, pelo que já havia decorrido o prazo prescricional quando ela foi intentada em 6 de Junho de 2018.

F - Para além disso, o prazo prescricional também já havia sempre decorrido porquanto, segundo o disposto no nº 2 do art. 327º C.Civil terminando por decisão de absolvição da instância a acção através da qual se pretende exercer um direito, o prazo de prescrição não se renova, sendo antes contabilizado a partir da data da sua interrupção em tal acção, tal como decorre do estatuído no art. 323º, nº 2 C.Civil, data essa situada aqui a 1 de Abril de 2011.

G - Em recurso subordinado interposto pelo recorrente, questão que o acórdão recorrido tratou e apreciou como ampliação de âmbito do recurso interposto pelas Autoras, defendia o Réu/recorrente que a autoridade do caso julgado também impunha que se desse como adquirido nesta acção o já decidido na acção nº 981/11......... – J.. concretamente o modo como a água penetrou no interior da fracção da A. AA e daí passou para os andares inferiores.

H - Porém, no douto acórdão recorrido decidiu-se que a eficácia do caso julgado não abarcava essa questão por duas ordens de razão devido por um lado à inexistência de identidade de partes, ou, como se sentencia no acórdão, basta a inexistência de identidade de partes nas duas acções para não ser possível importar estes dois parágrafos para o âmbito dos presentes autos e, por outro, que só a decisão sobre a relação controvertida se projecta para além do processo, ou, na afirmação vertida no acórdão, é a decisão sobre a relação material controvertida que tem força obrigatória dentro e fora do processo, não os factos dados como provados.

I - Naquela acção 981/11......... – J.., com sentença já transitada, em que era ré a aqui autora AA e em que se discutia a origem de danos causados nas fracções inferiores à da AA por infiltrações de águas, a condenação da ré AA decorreu do facto das intensas chuvadas que ocorreram em .......... nos dias 5 e 6 de Dezembro de 2010, aliadas ao facto de na varanda da fracção da A. AA existirem algumas folhas, folhagens e uma espécie de “penugem” provindas da zona ajardinada que existe defronte do edifício “.......”, fizeram com que a água se acumulasse no referido espaço, entrasse pela fracção da ré, e daí escorresse para as fracções que se encontram num plano inferior.

J - E procedendo ao enquadramento jurídico dos factos apurados concluiu-se que cabia à A. AA zelar para que, tendo em conta o estado do tempo e a envolvência ajardinada do edifício, não ocorresse a obstrução das saídas de escoamento da água, ou seja, além da limpeza normal era-lhe exigível um cuidado acrescido tendo em conta as concretas circunstâncias, para de seguida e consequentemente se concluir que os danos causados nas fracções inferiores são-lhe imputáveis a título de nexo de causalidade.

L - Decidido o modo como as águas pluviais penetraram na fracção da A. AA e daí escorreram para os andares inferiores, onde se situa o da co-A. BB, esta questão tem-se por julgada em termos definitivos, impõe a sua eficácia na presente acção por força da autoridade do caso julgado, que tem o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito, de impor a força vinculativa da decisão antes proferida, e transitada em julgado, a quem se apresenta essa decisão anterior como questão prejudicial ou prévia da relação controvertida na acção posterior.

M - Eficácia essa que se estende à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado, que abrange, nos expressivos dizeres vertidos no ac RE, in proc. nº 2164/16.2T8FAR.E1, a resolução das questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares que forem antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, podendo tal eficácia, do ponto de vista subjectivo, projectar, conforme o caso, na esfera jurídica de terceiros.

N - E é entendimento pacífico a nível jurisprudencial que, e contrariamente ao decidido no douto acórdão recorrido, a inexistência de identidade de partes não afasta a eficácia da autoridade do caso julgado, assim como esta eficácia abrange as questões fáctico-jurídicas que constituam antecedente lógico e indispensável à prolação da parte dispositiva do sentenciado.

O - E é esta também a orientação que é adoptada no douto acórdão do STJ, processo nº 1375/06.3TBSTR.E1.S1, proferido a 30/03/2017, acórdão fundamento, onde expressamente se decidiu que:

- a exceção de caso julgado requer a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos, a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir. já a autoridade de caso julgado, segundo doutrina e jurisprudência hoje dominantes, não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

- a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

P - Daí que, segundo estes princípios, tenha de se considerar nesta acção já como definitivamente decidido que os danos invocados pelas Autoras, à excepção dos eventualmente causados nas paredes da suite da fracção da AA, provieram da entrada de água desde o terraço, através das soleiras das portas que abrem para esse mesmo terraço, para o interior da fracção da AA, infiltrando-se no soalho para a placa que lhe serve de pavimento e desta fracção foi escorrendo através da placa e ao longo das paredes para as fracções inferiores; e que devido à quantidade de água que caiu e folhas e “pós” das árvores existentes no Jardim ....... que se encontravam depositados na varanda/terraço, a água da chuva não se escoou devidamente pelas aberturas existentes na varanda/terraço da fracção da AA, originando a sua acumulação nesse local, e isto porque tal realidade se apresenta como premissa necessárias das determinações contidas no segmento decisório.

Q - E ainda que, como a fracção da A. BB se situa por baixo da fracção da co-autora AA, também os eventuais danos nela causados e aqui invocados sempre resultaram da infiltração da água naquelas condições.”

Conclui que “deve ser declarado prescrito o direito de indemnização reclamado sob as als. D) e E) do pedido; ou subsidiariamente,  b- por força da autoridade do caso julgado, decorrente do decidido na sentença proferida na acção nº 981/11........., ter-se por assente definitivamente que a água entrou na fracção da autora AA proveniente do terraço que serve exclusivamente essa fracção, devido às aberturas de escoamento das águas estarem entupidas com folhas e outra sujidade e desta fracção escorreu para as fracções inferiores, e que à autora AA incumbia manter as aberturas de escoamento das águas do terraço desobstruídas e limpas e que foi essa omissão negligente que levou às infiltrações, causa dos danos invocados.”

As recorridas contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir:

A Relação considerou provados os seguintes factos:

“1) As AA. intentaram, em 26.03.2011, uma acção contra «CONDOFLAVIA – Limpezas Gerais e Administração de Condomínios, Lda.», a qual correu os seus termos neste Tribunal, no Juízo Local Cível, J.., sob o processo n.º 305/11........., alegando os factos e formulando os pedidos constantes da correspondente Petição Inicial junta aos autos a fls. 162v e ss. que ora se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.

2) A R. foi citada para aquela acção em 31 de Março de 2011.

3) Na acção referida em 1), a ali R. «CONDOFLAVIA – Limpezas Gerais e Administração de Condomínios, Lda.» foi declarada parte ilegítima e, em consequência, absolvida da instância, por sentença transitada em julgado em 21 de Maio de 2018.

4) A presente acção foi instaurada pelas AA. em 06 de Junho de 2018, alegando estas os factos e deduzindo os pedidos constantes da correspondente Petição Inicial junta aos autos a fls. 3 verso e seguintes, que ora se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.

5) O ora R. foi citado para a presente acção em 08 de Junho de 2018. “

  Dos autos resulta, provado, ainda o seguinte:

“6) Correu termos uma acção julgada no processo nº 981/11........., em que eram autores CC, DD, EE, FF, GG e HH, condóminos da autora, e ré a ora autora AA.

7) Nessa acção, os autores peticionavam que a ré lhes pagasse as quantias necessárias à reparação das correspondentes fracções autónomas, as quais teriam sofrido danos em virtude do comportamento omissivo da ré, que não vigiou e cuidou devidamente da sua fracção, assim permitindo que a água penetrasse nas fracções dos autores através da sua.  

8) Essa acção veio a ser julgada parcialmente procedente, tendo a ali ré sido condenada a pagar ao autor EE e aos habilitados de DD a quantia de € 6.800 a título de indemnização pelos danos de natureza patrimonial sofridos na fracção .. e ao autor II a quantia de € 5.289 a título de indemnização pelos danos de natureza patrimonial sofridos na fracção .., acrescidas de juros;

9) Interposto recurso, tal decisão foi confirmada, tendo transitado em julgado em 11 de Julho de 2016.

10) Da fundamentação de direito da sentença consta o seguinte:

“… Não pode tal terraço/ varanda ser considerado parte comum, mas sim parte integrante da fracção da ré. Deste modo, apenas ao proprietário cabe a responsabilidade pela manutenção e reparação de tal espaço”.

E mais adiante:

“Ora, os autores demonstraram que sofreram danos nas suas fracções (nas paredes…, etc- factos 18 e 22 da matéria de facto dada como provada) e lograram demonstrar o nexo de causalidade exigido, ou seja,             que os mesmos provieram do terraço dos réus, por causa que lhe é imputável. Apurou-se que as intensas chuvadas que ocorreram em .......... nos dias 5 e 6 de Dezembro de 2010, aliadas ao facto de na varanda da fracção da ré existirem algumas folhas, folhagens e uma espécie de “penugem” provindas da zona ajardinada que existe defronte do edifício “.......”, fizeram com que a água se acumulasse no referido espaço, entrasse pela fracção da ré, e daí escorresse para as fracções dos autores que se encontram num plano inferior. Cabia à Ré zelar para que, tendo em conta, o estado de tempo e a envolvência ajardinada do edifício, não ocorresse a obstrução das saídas de escoamento da água, ou seja, além da limpeza normal era-lhe exigível um cuidado acrescido tendo em conta as concretas circunstâncias. Deste modo, os danos causados nas fracções .. e .. são-lhe imputáveis a título de nexo de causalidade (…)”.

11) No art. 22º da petição, as autores alegaram: “ A natureza comum deste terraço de cobertura, justifica-se atendendo ao interesse em garantir a segurança e protecção do edifício, interesse que depende da apurada conservação de todo o condomínio, uma vez dada a imperatividade do artº 1421 do C.C.”; no art. 28ª: “ Depois, como as águas vêm do telhado já  com velocidade devido à queda e com o tubo cheio, as águas paradas do terraço da A. AA, não conseguem entrar para o dito tubo pois não têm pressão suficiente”; no art. 42ª: A administradora do condomínio também nada ligou à carta que o ora mandatário lhe endereçou em 5.11.2011,  por ela recebida a 11/01/2011, onde, na sequência das anteriores cartas do representante da fracção “..”, alertava para o problema da infiltração da água no telhado, como pela entrada de água na fracção pelo terraço, devido ao deficiente escoamento pelos condutores existentes, como acontecera no dia 6 de Dezembro de 2010”; no art. 44º: “Com efeito, no dia 6 de Dezembro de 2010, após uma noite de forte temporal e de chuva intensa, a água entrou pelo terraço da A. AA, inundando a sala de jantar, corredor de entrada do Bloco .. e quarto da empregada, levantando os respectivos soalhos e penetrando nas fracções inferiores”; no art. 47º: “…não subsistem dúvidas de que as obras no telhado e as que forem necessárias no terraço da fracção ... que, mesmo estando afecta a esta fracção, são partes comuns do prédio (…), caberá ao condomínio pagar as devidas reparações (…) bem como os danos provocados nas fracções”; 61º: “Sendo necessárias e urgentes já que, na situação actual, sempre que vem uma chuvada mais violenta, o sistema de drenagem de águas pluviais não resiste e entra água na fracção .. da 1ª A. AA e que acaba por se infiltrar para fracções inferiores, R da A. BB e outras, pese embora a vigilância da limpeza que a A. AA tem permanente no referido terraço”

A Relação considerou não escrito, por conclusivo, o facto nº 6) da decisão da 1ª instância, que era o seguinte: “O terraço da fracção .., pertencente à A. AA, não constitui parte comum do Edifício ......, melhor identificado nos autos, sito na Alameda ......., Blocos .. e .., em ........”.

Da admissibilidade do recurso:

Em causa está uma acção intentada por duas condóminas de um prédio constituído em propriedade horizontal, sito em ....., em que se pede a condenação do réu Condomínio na realização de obras na caleira e respectivos tubos condutores, bem como no terraço de uma das fracções, tendo em vista o eficaz escoamento das águas pluviais, bem como nas reparações dos estragos causados nas fracções das autoras, uma vez que se tratarão de partes comuns do prédio e que a origem das infiltrações será da responsabilidade do condomínio no seguimento de obras realizadas por este.

A 1.ª instância, em sede de despacho saneador-sentença, julgou procedente a excepção de caso julgado na modalidade de autoridade de caso julgado e procedente a excepção peremptória de prescrição dos direitos invocados pelas autoras, absolvendo o réu de todos os pedidos contra si formulados.

Porém a Relação, sem qualquer voto de vencido, no recurso de apelação interposto pelas autoras, julgando improcedentes a excepção da autoridade do caso julgado, a questão suscitada em sede de ampliação do âmbito do recurso e a excepção peremptória de prescrição, revogou a sentença recorrida e ordenou a baixa dos autos para ser retomada a instância.

Vem agora o réu, ora recorrente, interpor recurso de revista para o STJ, ao abrigo do disposto no art. 671º, n.º 2, al. a), com referência ao art. 629º, n.º 2, al. a), do CPC, invocando ainda a oposição de julgados do decidido com o acórdão do STJ de 30.3.2017, tendo em vista a eventual admissibilidade do recurso ao abrigo do art. 671º, n.º 2, al. b), do CPC.

Visa com o presente recurso o reconhecimento da prescrição do direito de indemnização reclamado pelas autoras e, subsidiariamente, por força da autoridade do caso julgado que se tenha por definitivamente assente matéria que identifica na parte final do seu recurso (conclusões).

O valor atribuído à acção pelas autoras (e definitivamente fixado em sede de despacho saneador, sem que tenha ulteriormente sido modificado), foi o de € 17.220,00.

Como assim, o recurso apenas deverá ser admitido no que respeita à invocada ofensa do caso julgado, nos termos do art. 629º, n.º 2, al. a), parte final, do CPC. 

Em tudo o mais – designadamente, quanto à questão da prescrição e aos restantes fundamentos invocados para admissibilidade da revista com base na alegada oposição de julgados – uma vez que o valor fixado à causa não permite o acesso ao Supremo, deverá o recurso ser rejeitado por não se verificar, desde logo, o pressuposto de admissibilidade, nos termos do art. 629º, n.º 1, do CPC.  Apenas em relação à invocada ofensa do caso julgado, pode ser ultrapassado o requisito do valor da causa, pelo que a essa matéria se deverá circunscrever o objecto do recurso (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pág. 51).

Do mérito do recurso (e da causa):

Sustenta o recorrente que se deve respeitar aqui a autoridade de caso julgado formado pela sentença proferida no processo nº 981/11........., devendo ter-se por assente definitivamente que a água entrou na fracção da autora AA proveniente do terraço que serve exclusivamente a fracção .., devido ao facto de as aberturas de escoamento das águas estarem entupidas com folhas e outra sujidade, que dessa fracção a água escorreu para as fracções inferiores, e, ainda, que à autora AA incumbia manter as aberturas de escoamento das águas do terraço desobstruídas e limpas, tendo sido essa omissão negligente que levou às infiltrações, causa dos danos invocados.

Mas afigura-se-nos que não tem razão.

Senão vejamos:

É sabido que o instituto do caso julgado pode ser analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. “A excepção do caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 2º, pág. 325).

Por outro lado, tem-se entendido que o caso julgado (incluindo na vertente positiva da autoridade) se pode estender a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, págs 578-579; cfr. Ac. STJ de 8.11.2018, proc. n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, Ac. STJ de 30.3.2017, proc. nº 1375/06.3TBSTR.E1.S1, Ac. STJ de 17.11.2015, proc. nº 34/12.2TBLMG.C1.S1, todos em www.dgsi.pt; Ac. STJ, de 23.10.86, BMJ 360º, pág. 609).

Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que a condenação da autora no processo nº 981/11......... tem como fundamento lógico o facto de o terraço da ali ré, ora autora, ser considerada não parte comum mas parte integrante da fracção da ré e, ainda, a circunstância de esta não ter zelado para que, tendo em conta o estado do tempo e a envolvência ajardinada do edifício, não ocorresse a obstrução das saídas de escoamento, que se verificou devido ao facto de terem ocorrido fortes chuvadas nos dias 5 e 6 de Dezembro de 2010 e ao facto de na varanda da fracção da ré (ora autora) existirem algumas folhas, folhagens e uma espécie de “penugem” provindas da zona ajardinada que existe defronte do edifício, que fizeram com que a água se acumulasse no referido espaço, entrasse pela fracção da ré e daí escorresse para as fracções  dos autores que se encontram num plano inferior (ponto 10 da matéria de facto provada). Como assim, e se acaso se entender que tais questões estavam cobertas pela autoridade do caso julgado, será incompatível considerar agora que, afinal, o terraço seria parte comum e que a responsabilidade pelos danos no dia 6 de Dezembro provocados pela entrada da água no terraço era exclusivamente do condomínio, que não tinha cuidado de reparar ou substituir os tubos de escoamento do terraço.

Sucede, no entanto, que a autoridade do caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos.

Com efeito, se é verdade que se vem considerando que a autoridade de caso julgado dispensa a exigência da tríplice identidade (de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir) estabelecida no artigo 581º do CPC (cfr. Ac. STJ de 28.3.2019, proc. nº 6659/08.3TBCSC.L1.S1, Ac. STJ de 30.3.2017, proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, Ac. STJ de 04.06.2015, proc. nº 177/04.6TBRMZ.E1.S1,, todos em www.dgsi.pt), também se vem entendendo que esta dispensa tem de ser entendida com limitações, designadamente aquela que resulta da inexistência de identidade de sujeitos, pois, se se entendesse de outro modo, estaria a desvirtuar-se a figura do caso julgado e a fazer repercutir numa acção que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos, o que representaria uma violação do princípio do contraditório (v. Ac. STJ de 18.06.2014, proc. nº 209/09.1TBPTL.G1.S1, em www.dgsi.pt): o efeito de caso julgado só vinculará quem tenha sido parte na respetiva acção ou quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos ( assim, o citado ac. STJ  28.3.2019).

 Assim, sem prejuízo dos casos em que possa ocorrer a extensão do caso julgado, o efeito de autoridade do caso julgado só se produzirá se se verificar a identidade de sujeitos entre as acções.

Ora, no caso concreto, verifica-se que a acção nº 981/11......... foi proposta por alguns condóminos contra a agora autora AA. E que a presente acção é proposta pelas autoras AA e BB contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO C. Não existe, portanto, identidade de sujeitos, uma vez que as partes não são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581º, nº 2 do CPC).

E  não se diga que existe identidade parcial de sujeitos, uma vez que, consistindo o condomínio num conjunto dos condóminos, os condóminos que intervieram na acção nº 981/11......... também são partes na causa debaixo da ‘capa’ do condomínio e que o caso julgado da sentença proferida na presente acção também os atinge e vincula (Miguel Mesquita, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Set. 2011, p. 48 a 51; cfr., v.g., Ac R.P. de 7.7.2016, Ac. R.E. de 30.11.2016, Ac. R. Lx. de 20.6.2013 e Ac. R.C. de 15.10.2013, todos em www.dgsi.pt).  É que para averiguar o preenchimento do requisito da identidade de sujeitos, deve atender-se a um ponto de vista substancial, ou seja, ao interesse jurídico [com] que a parte concretamente actuou e actua no processo” (Ac. STJ de 24.2.2015, proc. nº 915/09.0TBCBR.C1.S1, em www.dgsi.pt, que cita Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 1981, pp. 10). Ora, os condóminos que intervêm agora na presente acção através do condomínio, que é parte relativamente às partes comuns (Ac. STJ de 4.10.2007, proc. nº 07B1875, em www.dgsi.pt) intervieram na acção nº 981/11........., em nome próprio, na qualidade de proprietários das fracções autónomas - que sofreram prejuízos em virtude das inundações do terraço da autora AA (que ali foi considerada parte integrante da fracção).

 Não existe, pois, qualquer autoridade do caso julgado, formado pelas questões que constituíram o antecedente lógico indispensável da sentença proferida na acção 981/11........., susceptível de se impor na presente acção como pressuposto da decisão de mérito que aqui vier a ser proferida.

   Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. A não ser nos casos legalmente previstos, a autoridade do caso julgado, que se pode estender a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, pressupõe a identidade dos sujeitos;

 2. Por inexistência de identidade de sujeitos, não se verifica a autoridade do caso julgado na presente acção proposta pelas autoras contra o réu condomínio, se a sentença que se pretende impor foi proferida noutra acção proposta por alguns condóminos, que ali intervieram como proprietários das suas fracções, contra uma das aqui autoras.

 Pelo exposto, acorda-se em:

a) em não tomar conhecimento do objecto do recurso na questão da prescrição;

b) em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


*

Lisboa, 04 de Maio de 2021

O relator António Magalhães

(Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor que não assinaram, por não o poderem fazer).