Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26764/18.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE EMPREITADA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
CONTRATO MISTO
COMPRA E VENDA COMERCIAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CADUCIDADE DA AÇÃO
DENÚNCIA
DEFEITOS
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
VÍCIOS DA COISA
RECONVENÇÃO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
LIBERDADE CONTRATUAL
DEVER ACESSÓRIO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A distinção entre a compra e venda e a empreitada terá sempre uma dimensão casuística, que depende da configuração da situação concreta, sendo a vontade dos contraentes o elemento fundamental a considerar para a destrinça entre os contratos em causa.

II - Sendo o teor da proposta contratual lacunoso em relação a um suposto dever de realização da obra, a cargo da ré, que não ficou provado nos autos, não é possível, por falta de elementos relevantes, imputar à declaração negocial da ré qualquer vontade hipotética de construção do silo, no sentido de que esta se tivesse comprometido a edificar, através de mão de obra ou trabalho, o bem a fornecer.

III - Os deveres de montagem, de transporte e de formação dos funcionários a cargo da fornecedora do bem, a ré, constituem um conjunto de deveres acessórios, acoplados a um contrato de compra e venda comercial, formando, em conjunto com este, um contrato misto de compra e venda comercial (artigo 471.º do Código Comercial) e prestação de serviço (artigo 1154.º e seguintes do Código Civil), admitido pelo princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º, n.º 2, do Código Civil, norma que prevê expressamente que as partes celebrem contratos mistos, em que reúnem no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.

IV - O n.º 6 do artigo 266.º do CPC determina a autonomia da reconvenção em relação à ação, pelo que o seu destino anda desligado do desta, quer termine pela absolvição do pedido, quer termine pela absolvição da instância. Só não será assim, se houver dependência do pedido reconvencional em relação ao da ação, o que não sucedeu no caso concreto conforme resulta da análise do pedido reconvencional.

V –  Atendendo a que, apesar de não se ter provado a deficiência de fabrico do silo, também não se provou que o abaulamento se devesse a uma causa exterior, e que a recorrida, no contrato de compra e venda comercial, assumiu uma garantia de dois anos pelo funcionamento do bem, entende-se que a autora não tem de pagar o preço do silo recondicionado, de 12.000,00 euros, constituindo esta prestação da ré um dever acessório de cooperação com a compradora e utente do bem vendido, decorrente da cláusula de garantia.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. A Padaria Portuguesa CQ - Actividades Hoteleiras, LDA, intentou ação declarativa sob a forma comum contra Silobaião, Unipessoal, Lda, pedindo que seja julgada válida e eficaz a resolução do contrato de empreitada celebrado com a Ré e que esta seja condenada a pagar-lhe o valor de € 64.814,50 acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, muito sinteticamente ter contratado com a Ré a conceção, construção e fornecimento de um silo exterior destinado ao armazenamento de farinha. O silo foi concluído e entregue em agosto de 2017, tendo a A. pago o respetivo preço.

Em 28 de novembro de 2017 durante o transporte de farinha no silo a estrutura do mesmo cedeu e rebentou, tendo a A., após análise ao silo realizada pela fornecedora da farinha, concluído que o equipamento padecia de anomalia de fabrico na sua estrutura inferior e no sistema de segurança, tendo comunicado à Ré quer a ocorrência do sinistro, quer a existência do defeito no dia 1 de dezembro de 2017.

A Ré não assumiu nunca a responsabilidade pelo evento danoso e recusou reparar os prejuízos sofridos pela A. com a rutura do silo, tendo apenas, a pedido desta, instalado um silo recondicionado que possuía nas instalações.

A A. resolveu o contrato celebrado com a Ré e pede a condenação desta a indemnizá-la no valor dos prejuízos sofridos.

2. Em sede de contestação a Ré alegou que a pedido da A. forneceu-lhe e esta adquiriu um silo exterior para armazenamento de farinha entregue em agosto de 2017 e em funcionamento desde essa data. Mais alegou que no dia anterior ao evento descrito na petição a Ré fez deslocar um técnico às instalações da A. para que procedesse a uma pequena reparação tendo este verificado que o silo se encontrava em plenas condições de funcionamento, quer do ponto de vista elétrico, quer mecânico.

Alegou ainda a Ré que a deformação apresentada no silo só pode ter sido causada por pressão pneumática de fonte exterior ao silo, não padecendo este de qualquer vício, defeito ou deficiência estrutural de conceção ou desempenho. Conclui ter cumprido pontual e integralmente a obrigação contratual devendo a ação ser julgada improcedente.

A Ré excecionou a caducidade do direito da A. e deduziu pedido reconvencional pretendendo ser paga pelas despesas em que incorreu com a montagem do silo de substituição, transporte e armazenamento nas suas instalações do silo danificado.

3. Replicando, a A. impugnou a versão dos factos apresentada pela Ré para sustentar o pedido reconvencional e afastou a verificação da exceção de caducidade.

4. Realizou-se Audiência Prévia, tendo-se fixado como objeto do litígio:

- Da validade e eficácia da resolução do contrato celebrado entre A. e Ré;

- Do direito da A. a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos em consequência da conduta da Ré;

- Da caducidade do direito da A.;

- Do pedido reconvencional.

5. Procedeu-se à realização de Audiência de Julgamento tendo sido proferida a seguinte decisão:

“- julgar a ação parcialmente procedente por provada, julgando inválida e ineficaz a resolução do contrato celebrado entre autora e ré, e condenando a ré a pagar à autora a quantia que vier a apurar-se em sede de liquidação, nos termos preditos supra, a titulo de indemnização pelos prejuízos sofridos pela autora, acrescida de juros de mora, a contar da citação até efectivo pagamento.

- julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolver a autora do pedido contra si dirigido”.

6. Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso de Apelação, em que impugnou a matéria de facto e sustentou a improcedência da ação e a procedência da reconvenção.

7. A Autora contra-alegou, sustentando a manutenção da decisão proferida ou, caso assim se não entenda, e a título subsidiário, pediu a ampliação do objeto do recurso, nos termos do disposto no artigo 636.º, n.º 2, do CPC, pugnando para que se considere como provados os factos que ali indica devendo, em consequência, ser alterada a decisão no sentido de tornar-se líquida.

8. O Tribunal da Relação, com uma declaração de voto, decidiu o seguinte:

«Face ao exposto, julga-se procedente a Apelação e, nessa conformidade, revoga-se a decisão proferida pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, declarando-se a caducidade do direito da A. e condenando-se a mesma a pagar à Ré a quantia de € 12.000,00 + IVA.

Custas por A. e Ré, nos termos dos respetivos decaimentos».

9. A Autora, Padaria portuguesa, inconformada interpôs recurso de revista, terminando a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:

 

«1.O contrato dos autos é um contrato de empreitada, com todos os seus elementos típicos, o que resulta quer da matéria de facto dada como provada (vide alíneas C), D), E), F), G) e FF)), quer dos documentos juntos aos autos (vide documentos n.ºs 2 e 3 juntos à Petição Inicial), quer da interpretação da vontade das partes.

2. Desde logo, de acordo com o artigo 6.º da Petição Inicial, cujos factos foram aceites pela Ré no artigo 10.º da Contestação, “o valor total proposto pela Ré englobava, além da conceção, construção e fornecimento, o transporte, a montagem mecânica e elétrica do silo (bem como os respetivos materiais necessários para tal efeito) e a formação dos funcionários da Autora relativamente à utilização do mesmo.”.

3. Quer isto dizer que, para além da obrigação de entrega do silo à Recorrente, resulta ainda que a Recorrida foi contratada para construir o silo e estava obrigada a proceder à montagem do silo nas instalações da Recorrente, nomeadamente dos seus diversos componentes acessórios, ao seu transporte, bem como a realizar o treinamento do pessoal da Recorrente para que estes pudessem corretamente manuseá-lo, sendo todas estas obrigações principais do contrato celebrado entre as partes, conforme resulta dos factos provados da Sentença.

4. Não se está nos presentes autos perante uma situação em que o negócio/contrato se teria por concluído com a simples entrega do silo à Recorrente, como de um contrato de compra e venda se tratasse.

5. Resulta ainda da matéria de facto dada como provada que o silo encomendado pela Recorrente deveria observar determinadas características nomeadamente no que respeitava à sua dimensão e software, tendo em conta o espaço físico de que dispunha a Recorrente, na sua fábrica de Marvila e a sua necessidade de armazenamento.

6. Daqui resultando que não era um qualquer silo constante de um catálogo da Recorrida que poderia ser implementado nas instalações da Recorrente, mas sim um silo que especificamente construído para aquele espaço que obrigatoriamente obedecesse a determinadas características e que especificamente fosse realizado pela Recorrida para se adaptar às instalações da Recorrente.

7. A este respeito, atente-se na própria designação da proposta contratual feita pela Recorrida à Recorrente – “Projeto SB/044-F/15” (destaque e sublinhado nossos) -, notoriamente uma designação típica de um contrato de empreitada e não de uma compra e venda (vide documento n.º 3 junto à Petição Inicial).

8. E compulsado o documento n.º 2 junto à Petição Inicial, que corresponde à ficha técnica da Recorrida, apercebemo-nos logo que a própria Recorrida propõe construir os seus silos à medida das necessidades da fábrica dos seus Clientes – o que, por si só, indicia de que prevalece na sua prestação a denominada “obrigação de facere”

(como melhor veremos abaixo) e, evidentemente, o bem produzido terá modificações.

9. O elemento de domínio no negócio celebrado com a Recorrida é indubitavelmente a conceção e construção de um silo, que se adaptasse à realidade da fábrica da Recorrente, atendendo ao seu específico know how, ou seja, a realização de uma obra, que se sobrepõe à mera compra e venda de um bem ou à prestação de um serviço.

10. Esta questão não é colocada em causa pelo facto de não se terem dado como provados os dois primeiros factos dados como não provados, pois, como é evidente, o Tribunal a quo não poderia única e exclusivamente ter tido em conta estes segmentos da matéria de facto dada como não provada, ignorando toda a matéria de facto que ficou provada a respeito desta questão.

11. Têm sido identificados pela nossa jurisprudência os seguintes traços que distinguem o contrato de compra e venda do contrato de empreitada:

• no contrato de compra e venda permanece a obrigação de dare, no contrato de empreitada permanece a obrigação de facere;

• no contrato de empreitada, contrariamente ao que ocorre no contrato de compra e venda, a disponibilização dos materiais por parte do empreiteiro constitui um simples meio para a produção da obra;

• no contrato de empreitada verifica-se a introdução de modificações no que diz respeito à forma, medidas e qualidades do objeto, representando, portanto, a obra, um quid novi relativamente à produção originária do empreiteiro.

12. No contrato celebrado entre as partes, permanecia, sem qualquer margem para dúvidas, uma obrigação de facere, em detrimento de uma obrigação de dare, porque a Ré encontrava-se contratualmente obrigada a conceber, transportar e a implementar nas instalações da Recorrente um silo que obedecesse a determinadas características no que dizia respeito à sua dimensão e software, tendo em conta as específicas necessidades da Autora - espaço físico de que dispunha a Recorrente e a sua necessidade de armazenamento.

13. Destas prestações resulta claramente que, nos termos do contrato celebrado pelas partes, a prestação dos materiais por parte da Recorrida constituía um simples meio para a produção da obra, sendo o trabalho desenvolvido pela Recorrida desde a conceção à montagem o escopo essencial do negócio.

14. Do mesmo modo, também o objeto que iria ser realizado pela Recorrida, isto é, o silo, representava um quid novi relativamente a uma produção originária, na medida em que a realização do silo de que a Recorrente necessitava implicava a introdução neste de dimensões e software próprios, tendo em conta o espaço físico de que dispunha a Recorrente e a sua necessidade de armazenamento.

15. Assim sendo, o silo foi concebido e montado, atendendo a necessidades e características específicas, sendo que, evidentemente, o mesmo não se encontrava já na esfera jurídica da Recorrida, aquando da celebração do contrato com a Recorrente.

16. Acresce que não obstante a Recorrente ter aceitado a proposta de realização do silo apresentada pela Recorrida no dia 06.01.2016, só passado mais de um ano, isto é, no mês de agosto de 2017, é que a Recorrida entregou e implementou o mesmo nas instalações da Recorrente, o que também claramente é demonstrativo do facto do silo não se encontrar concebido aquando da celebração do contrato entre as partes (vide factos provados D) e M) da sentença).

17. Diga-se também que só efetivamente se poderia retirar qualquer tipo de utilidade do silo encomendado pela Autora depois de este se encontrar devidamente montado e implementado nas suas instalações e depois de a Autora ter sido treinada para o seu manuseamento e utilização plena.

18. Dúvidas não restam que o contrato celebrado entre as partes efetivamente trata-se de um contrato de empreitada e não de um contrato de compra e venda ou outro.

19. Tal como se encontra explanado no facto dado como provado correspondente à alínea LL), a Autora comunicou o defeito à Ré primeiramente por telefone e depois por e-mail no dia 05.12.2017.

20. A data da propositura da presente ação é de 30.11.2018, como resulta da alínea HHH) dos factos dados como provados.

21. Assim sendo, aquando da propositura da presente ação, encontrava-se ainda a Autora dentro do prazo de um ano estabelecido no artigo 1224.º do CC, motivo pelo qual o direito da mesma em interpor a presente ação judicial não se encontra caducado.

22. Relativamente ao pedido reconvencional, o Tribunal a quo não podia ter sequer procedido à sua apreciação, uma vez que, contrariamente ao decidido, o pedido reconvencional deduzido pela Ré, encontra-se dependente do pedido formulado pela Autora, conforme resulta da Contestação e do seu petitório final, em que a Ré termina com um pedido principal de improcedência da ação da Autora, ou caso assim não se entenda, ou seja, caso a ação seja procedente pede a procedência do seu pedido reconvencional:

23. Dispõe o n.º 6, do artigo 266.º, do CPC que “a improcedência da ação e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor.”

(sublinhado e negrito nossos).

24. Nos presentes autos encontramo-nos precisamente perante uma situação em que o pedido reconvencional formulado pela Recorrida se encontra totalmente dependente do pedido formulado pela Autora, ora Recorrente, pois o que a Recorrida pretendia era que, caso o Tribunal viesse dar razão à Recorrente, e considerasse a ação constante dos presentes autos procedente, que então também o seu pedido reconvencional fosse apreciado e julgado precedente para poder compensar o valor dos € 12.000 + IVA com o valor em que viesse a ser condenada.

25. Assim sendo, encontra-se preenchida a previsão da última parte do n.º 6, do artigo 266.º, do CPC, motivo pelo qual, com todo o respeito, não poderia o Tribunal a quo ter revogado a decisão de condenação da Silobaião e dessa forma ter considerado improcedente o pedido da Autora e, em simultâneo, ter procedido à apreciação do pedido reconvencional formulado pela Recorrida.

26. Acresce que, tal como decidiu o Tribunal de Primeira Instância, a Recorrida não logrou afastar a sua culpa, nos prejuízos causados à Recorrente e, portanto, esse valor teria de ser descontado no valor a pagar à Recorrente pelos prejuízos que esta teve.

27. Mais: a Recorrida prestou uma garantia de bom funcionamento do silo pelo prazo de 2 anos após a sua entrega à Recorrente – o que foi dado como provado.

28. Como é sabido, ao abrigo de uma garantia voluntária o prestador/vendedor deve substituir, reparar, proceder à redução do preço ou devolver o montante do preço pago.

29. Com efeito, sendo o defeito no silo exclusivamente imputável à Recorrida – que não afastou a sua culpa, reitera-se - e tendo ocorrido dentro do prazo de garantia de bom funcionamento, não pode esta vir a reclamar qualquer valor da Recorrente.

30. Pelo que deve improceder, em qualquer caso, o requerido quanto ao pedido reconvencional.

31. Aqui chegados, deve ser dado provimento ao presente recurso de Revista, revogando- se o Douto Acórdão recorrido e mantendo-se a Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

Termos em que mui respeitosamente se requer a Vossas Excelências, Colendos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça que se dignem conceder provimento ao presente recurso,

Com o que farão a costumada e sã Justiça!»

10. A recorrida apresentou contra-alegações, que aqui se consideram transcritas, que concluiu, peticionando que seja negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.


11. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso as questões a decidir são as seguintes:

I – Qualificação jurídica do contrato dos autos;

II – Obrigação de indemnização a pagar pela ré pelo defeito da coisa

II – Pedido reconvencional


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

A - FACTOS PROVADOS

2.1 - Factos adquiridos por acordo nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do CPC Revisto e provados por documentos (fixados em sede de Audiência Prévia):

A) A A. é uma sociedade comercial que se dedica à exploração de estabelecimentos de restauração e bebidas, designadamente pastelarias, bem como ao fabrico próprio de pastelaria e panificação.

B) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio por grosso de silos e automatismos para a indústria alimentar.

C) Em 05.01.2016, a Ré apresentou à A. uma proposta contratual para fornecimento de silo exterior para armazenar farinha, designado por “Projecto SB/044-F/15”, pelo valor total de 54.000,00 EUR + IVA, como melhor consta do documento junto a fls. 19 verso a 21, cujo teor se dá por reproduzido.

D) A qual foi aceite pela A., em 06.01.2016.

E) A Ré, nos termos da proposta supra referida, forneceu à A. um silo exterior para armazenamento de farinha do tipo NORMSILO em aluminium Almg3, próprio para produtos alimentares, em concreto farinha.

F) Incluía-se no fornecimento do silo exterior para armazenamento de  farinha, a montagem eléctrica e mecânica dos diversos componentes acessórios ao silo propriamente dito, nomeadamente o sistema de fluidificação, o sistema electrónico de pesagem (composto por balança de pesagem em inox), a válvula rotativa, o sistema de transporte (composto por tubos, curvas e abraçadeiras), o computador de pesagem (composto por uma unidade SS-39- 8P) e central eléctrica (composto por uma unidade, incluindo controlo de silo cheio - sensor de nível máximo e sistema sonoro de alerta - válvula).

G) Incluía-se igualmente no fornecimento o transporte do silo para as instalações da A. e o treino do seu pessoal para o correcto manuseamento e funcionamento do silo.

H) Estavam excluídos do fornecimento do silo exterior para armazenamento de farinha, competindo, por isso, à A. a colocação de cabo trifásico com 5 linhas de 4mm2 de secção onde o quadro /central eléctrica ficasse instalado, bem como a instalação de rede de ar comprimido e água com postos de saída e ainda todos os trabalhos de construção civil necessários à instalação do mesmo.

I) A ré prestou garantia do bom funcionamento do silo pelo prazo de 2 anos após a sua entrega.

J) Em 06.01.2016, a Autora procedeu ao pagamento de 33.210,00 EUR, correspondente a metade do valor acordado.

L) Em 08.04.2016, a Autora pagou o valor remanescente de 33.210,00 EUR.

M) O silo foi concluído e entregue pela Ré à Autora em Agosto de 2017, tendo entrado em funcionamento nessa data.

N) O silo foi colocado nas instalações fabris da autora em Marvila.

O) No dia 27 de Novembro de 2017, a Ré fez deslocar às instalações da Autora um técnico que procedeu a uma intervenção na base do silo, tendo verificado que o silo se encontrava em plenas condições de funcionamento, quer do ponto de vista eléctrico quer mecânico.

P) A Ré rejeitou qualquer responsabilidade quanto ao rebentamento do silo, alegando que o mesmo não se devia a qualquer problema de concepção, fabrico ou montagem.

Q) No dia 13.12.2017, realizou-se uma reunião com todos os intervenientes, Autora, Ré, Cerealis e empresa transportadora, tendo a SILOBAIÃO recusado assumir a responsabilidade no sinistro.

R) Nessa reunião, a transportadora informou ainda que ia accionar o seu seguro para fazer uma peritagem ao silo.

S) A pedido da SILOBAIÃO, a Autora entregou-lhe o silo para análise e peritagem, tendo o mesmo ficado ao cuidado da SILOBAIÃO nas respectivas instalações, situadas na Rua Ribeira Grande, 88, 4410-244 Canelas.

T) Onde se encontra até à presente data.

U) No dia 28.12.2017, as partes intervenientes reuniram-se novamente as instalações da Autora.

V) A SILOBAIÃO manteve a sua posição, declinando a sua responsabilidade nos defeitos do silo.

X) Sem prejuízo, ficou combinado entre todos que o perito da empresa transportadora iria fazer uma peritagem ao silo, deslocando-se às instalações da SILOBAIÃO.

Z) Com a data de 28/06/2018 a autora enviou à ré missiva junta a fls. 26/26 verso solicitando a reparação do silo e/ou o fornecimento de todas as informações para se apurar as responsabilidades na causação do sinistro, bem como a facultar os dados da sua seguradora, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 26/26 verso e cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

AA) A Ré respondeu por carta de 13.07.2018 alegando que o silo se encontrava em perfeito estado de funcionamento e apto ao fim a que se destinava quando foi entregue, não assumindo qualquer responsabilidade no sinistro.

BB) No dia 16.07.2018, a Autora remeteu nova missiva à Ré para que esta cooperasse no sentido de ser realizada uma peritagem ao sinistro pelo ISQ, facultando as especificidades técnicas do silo, desenhos, projectos, cálculos de pressão, sistemas de segurança e outros que pudessem ser facultados à empresa de peritagem, com vista a confirmar ou excluir a responsabilidade na concepção e construção do silo e reiterando ainda o teor da carta de 28 de Junho de 2018.

CC) A Autora reuniu-se novamente com a Ré em 15.10.2018, nas instalações da Autora e na presença dos mandatários.

DD) A pedido da Autora, a SILOBAIÃO instalou na fábrica um silo recondicionado que possuía nas suas instalações, cujo valor era de € 12.000,00 + IVA.

EE) A autora não pagou à ré o preço do silo recondicionado.

2.2 - Factos resultantes da prova produzida em audiência de julgamento:

FF) O silo encomendado à ré deveria observar determinadas características no que respeitava à sua dimensão e software.

GG) Em 28 de Novembro de 2017, após uma descarga de farinha no silo, a estrutura do mesmo cedeu e este abaulou.

HH) A carga era composta de 11.980kg de farinha de trigo, tipo 55-E1, a granel;

II) A farinha é fornecida à Autora pela empresa Cerealis, S.A., a qual abastece o silo no seu armazém sito na ... ..., e o entrega na fábrica da Autora em Marvila.

JJ) A Autora tomou conhecimento do sinistro nesse mesmo dia.

LL) A ocorrência do sinistro foi comunicada à ré telefonicamente primeiro, e depois por email de 5 de Dezembro de 2017, junto a fls. 81 verso e cujo teor se dá por reproduzido

MM) No dia 11.12.2017, a Cerealis, acompanhada no dono da empresa transportadora que fez a descarga no dia do sinistro, do respectivo motorista e de um técnico de uma empresa de silos deslocaram-se às instalações da Autora a fim de fazerem uma avaliação mais concreta ao silo.

NN) Constataram que o silo estava abaulado ao nível do 1° painel.

OO) O técnico abriu o óculo do silo e constatou que havia alguns tirantes partidos do lado esquerdo ao nível do 1° painel.

PP) O motorista da transportadora da Cerealis esclareceu que, no dia do sinistro, aquando do abastecimento da farinha, ninguém detectou, nem o equipamento emitiu, qualquer sinal de que havia excesso de carga ou de pressão.

QQ) Não foi emitido qualquer aviso sonoro pelo silo ou dado o alerta para qualquer problema de pressão.

RR) Na reunião havida em 13/12/2017 a ré afirmou que o sinistro se devera a excesso de pressão no silo e/ou excesso de carga no seu interior.

SS) Foi explicado à ré nessa reunião que o sinistro não podia ficar a dever-se a excesso de pressão, porquanto a cisterna tem uma válvula reguladora de pressão na cisterna, com o limite de 0,8 Bar, pelo qual sempre que o sistema de descarga entra em pressão, abre a válvula para a rua.

TT) E que quanto ao aventado excesso de farinha, tal era impossível de ocorrer dada a quantidade de farinha descarregada no silo de 11.900 Kg, que está confirmada na respectiva guia de entrega e factura, bem como a capacidade máxima do silo que é de 14.400 Kg.

UU) Em virtude do sinistro ficou danificado o silo propriamente dito, isto é, a estrutura do tipo NORMSILO em aluminium Almg3.

VV) O silo recondicionado não pôde ser montado em contacto com o ar exterior, pelo que obrigou à Autora a construção de uma estrutura para o envolver, cujo custo foi de montante não concretamente apurado.

XX) No caso presente a carga/abastecimento do silo em questão foi efectuada por pressão (pneumática) através de camião cisterna.

ZZ) Desta forma, a farinha não sendo fluida, ao ser carregada no silo vai exercer pressões laterais maiores ou menores, conforme as densidades ou pesos respectivos.

AAA) Razão pela qual o silo fornecido pela Ré dispunha de sistema de controlo de silo cheio - sensor de carga máxima -, bem como de um dispositivo que permite avisar através dum sinal sonoro, o operador do camião cisterna de que o volume (cubicagem) interior do silo está prestes a atingir o limite pré-estabelecido.

BBB) Tais dispositivos estão, ainda hoje, instalados e a funcionar no silo recondicionado que a Ré disponibilizou à Autora,

CCC) Assim como todos os outros componentes e acessórios (sistema de fluidificação, sistema de pesagem, balança de pesagem, válvula rotativa, computador de pesagem, central eléctrica) que foram desmontados do silo danificado e (re)montados no silo recondicionado.

DDD) A ré facultou o acesso às suas instalações ao perito nomeado pela seguradora da empresa que procedeu ao carregamento do silo a fim de poder vistoriar o silo danificado.

EEE) E forneceu todos os elementos que o perito solicitou designadamente, o esquema do silo e os valores da reparação e valor do silo em novo.

FFF) O valor de 54.000 € +IVA constante da proposta de fornecimento apresentada pela Ré à A. correspondia à globalidade do fornecimento efectuado pela ré, tendo a estrutura do tipo NORMSILO em aluminium Almg3 um valor não concretamente apurado

GGG) A ré procedeu à desmontagem do silo danificado em 13/12/2017 iniciando em 21/12/2017 a montagem do silo recondicionado.

Com interesse para a resolução da causa encontra-se ainda provado o seguinte facto que foi aditado, pelo Tribunal da Relação, à matéria de facto dada como Provada, com a alínea:

HHH) A presente ação deu entrada em Tribunal no dia 30 de Novembro de 2018.

2.3 - Factos não provados:

- No âmbito da sua actividade comercial, a Autora contratou com a Ré a concepção e construção de um silo exterior destinado ao armazenamento de farinha.

- Este silo foi especialmente construído para a Autora para ser instalado no parque exterior da sua fábrica em Marvila.

- Também nesse mesmo dia, a Cerealis fez uma análise ao silo e constatou o seguinte:

i. O silo encontrava-se abaulado nas laterais e com maior incidência na parte inferior;

ii. O silo não tinha qualquer dano na parte superior onde era feito o abastecimento;

iii. A intervenção referida em O) ocorrera em virtude de uma fuga;

- O equipamento padecia de uma anomalia de fabrico na sua estrutura inferior e no sistema de segurança, uma vez que não possuía qualquer sistema preventivo automático para o caso de o silo estar cheio ou sob pressão.

- O técnico concluiu, após abrir o óculo do silo danificado, que os danos ocorreram em virtude de um problema estrutural no equipamento, uma vez que:

i. Não existia travamento interior adequado - ligação entre vigas;

ii. Não tinha reforço exterior a ligar os pontos de apoios das vigas;

iii. Não tinha os suficientes e necessários metros quadrados de pano filtrante ao escoamento de ar;

iv. Não cumpria as regras atinentes à área de escape de pressão, atentas as suas dimensões;

v. A estrutura cedeu após abastecimento da farinha por ruptura dos apoios das vigas à lateral do silo, onde se localiza o parafuso mais frágil.

- A SILOBAIÃO impediu a peritagem ao não facultar as informações técnicas do silo ao perito, que as solicitou por diversas vezes e que eram essenciais para fazer a peritagem;

- No dia 23.03.2018, o perito encerrou o processo por falta de informação para realizar a peritagem, tendo a seguradora, em consequência, declinado a sua responsabilidade.

- Em resposta à missiva referida em BB) a ré, em 27.07.2018, manteve a sua posição e não forneceu as informações solicitadas, inviabilizando assim qualquer possibilidade de fazer uma peritagem ao silo.

- Em virtude do sinistro, o silo ficou totalmente inutilizado e já não é recuperável, até porque a SILOBAIÃO, na qualidade de construtora do silo, seria a única com know-how para o reparar.

- O prejuízo sofrido com a perda do silo ascende ao valor de aquisição, uma vez que ainda se encontrava no prazo de garantia de 2 anos, ou seja, €54.000,00 + IVA.

- A farinha que ia dentro do silo ficou inutilizada, o que representou um prejuízo de € 3.294,50, correspondente ao valor que a Autora pagou à CEREALIS.

- Adicionalmente, a desmontagem do silo exterior e a montagem do silo recondicionado teve um custo de €2.400,00, pois implicou a alocação de meios humanos da Autora não prevista (6 dias, 8 horas, 4 pessoas, na época do Natal).

- A necessidade de recorrer a um silo recondicionado, como opção de último recurso, limitou também o aumento futuro da capacidade produtiva, pois o espaço ocupado pela infra- estrutura de protecção do silo recondicionado é superior ao necessário, o que impediu a encomenda de mais um silo exterior, o que que estava previsto em projecto e cuja pré-instalação ficou aliás, contemplada.

- Este prejuízo corresponde à expectativa de retorno do investimento num silo equivalente ao longo de 4 anos, que é o prazo da amortização do mesmo e que, tendo por base a experiência operacional da Autora, é o racional para efectuar o investimento.

- A autora sofreu prejuízos correspondentes à redução da capacidade produtiva da Autora, durante a montagem do silo recondicionado, em virtude da inutilização do silo exterior.

- A deformação apresentada no silo em apreço só poderá ter sido causada por excesso de pressão pneumática de fonte exterior ao silo uma vez que silo estava preparado para compensar o volume normal do ar dentro do silo, ajustando a velocidade e pressão exercida pelo deslocamento da farinha em granel no processo de carregamento/enchimento (tratando- se de farinha que como se sabe é um produto de média densidade, sensível ao calor e semi- abrasivo), até um limite pré - estabelecido, através de sistema de pressão positivo e negativo e escape de pressão;

- A Ré despendeu no transporte para o seu armazém do silo danificado o montante de 1.205,40 €;

- A que acresce o custo com mão-de-obra e material na desmontagem do silo danificado, bem como o seu armazenamento nas instalações da Ré, onde o mesmo se encontra até à presente data, que se estima em 4.880 € (um custo mensal de 360,00 euros);

- O custo unitário do silo exterior fornecido à A, aquando do acordo celebrado com aquela, isto é a estrutura do tipo NORMSILO em aluminium Almg3, tinha um custo de 26.100 € a que acresce IVA à taxa legal.

- O silo esteve em funcionamento sem apresentar problemas desde Agosto de 2017 até 28/11/2017.

B – O Direito

1. No presente caso, é decisiva para a solução do caso a qualificação jurídica do contrato celebrado entre a autora e a ré.

A ré forneceu à autora, a troco do pagamento de um preço de 60.000,00 euros, uma máquina de armazenamento de farinhas designada por silo. Esta relação contratual teve início numa proposta negocial previamente apresentada pela ré e aceite pela autora.

O tribunal de 1.ª instância decidiu que se tratava de um contrato de empreitada e que a ré se presume culpada (artigo 799.º do Código Civil) pelo abaulamento do silo e, em consequência, responsável pelo pagamento de uma indemnização pelos danos causados à autora, a calcular em execução de sentença, à qual haveria que abater o valor de 12.000,00 euros do silo de condicionamento que a ré entregou à autora para fazer face ao problema.

O fundamento da decisão foi o seguinte:

«Nestes autos resultou provado que a ré forneceu à autora um silo exterior para armazenamento de farinha, com assento numa proposta contratual previamente apresentada e aceite pela autora.

A ré transportou o silo para a fábrica da autora sita em Marvila, procedeu à montagem do mesmo e, ainda, à montagem eléctrica e mecânica dos diversos componentes acessórios ao silo propriamente dito, nomeadamente o sistema de fluidificação, o sistema electrónico de pesagem (composto por balança de pesagem em inox), a válvula rotativa, o sistema de transporte (composto por tubos, curvas e abraçadeiras), o computador de pesagem (composto por uma unidade SS-39-8P) e central eléctrica (composto por uma unidade, incluindo controlo de silo cheio – sensor de nível máximo e sistema sonoro de alerta – válvula). Deu treino ao pessoal da autora para o correcto manuseamento e funcionamento do silo.

Estavam excluídos do fornecimento do silo exterior para armazenamento de farinha, competindo, por isso, à A. a colocação de cabo trifásico com 5 linhas de 4mm² de secção onde o quadro /central eléctrica ficasse instalado, bem como a instalação de rede de ar comprimido e água com postos de saída e ainda todos os trabalhos de construção civil necessários à instalação do mesmo.

A ré procedeu à instalação de todo um conjunto, num local pré afectado para o efeito, entregou o conjunto pronto a laborar, assim desempenhando as funções a que se destinava e integrado na unidade fabril da autora.

A autora encomendou o silo em questão com determinadas dimensões, capacidade e sofware de acordo com o espaço físico de que dispunha e sua necessidade de armazenamento e aquele foi fornecido como encomendado, ou seja, considerando as especificações da autora.

Em nosso entender, e considerando as apuradas circunstâncias do acordo, entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada.

A autora não pretendeu apenas adquirir um equipamento, mas um equipamento que se integrasse no seu projecto fabril/industrial e tal foi-lhe fornecido pela ré».

2. O Tribunal da Relação, em sentido diverso, classificou o contrato como um contrato misto, resultante da combinação da compra e venda (artigos 874.º do Código Civil e 2.º do Código Comercial) com a prestação de serviços (artigos 1154.º e seguintes do Código Civil), cujo elemento preponderante foi o correspondente à compra e venda de um bem. Entendeu o acórdão recorrido que, sendo ambas as partes comerciantes e sendo o contrato um ato de comércio, o contrato dos autos se configura como um contrato de compra e venda comercial a que devem ser aplicadas as normas contidas nos artigos 471.º e seguintes do Código Comercial. Em consequência, decidiu que, independentemente da questão de se saber a quem é imputável o defeito do silo, a ação tinha sido proposta fora de prazo, em 30-11-2018, verificando-se, portanto, uma exceção perentória de caducidade, por aplicação dos artigos 916.º, n.º 2 e 917.º do Código Civil, que fixam em seis meses o prazo para instaurar a ação para pedir indemnização pelo defeito da coisa.

O Tribunal da Relação fundamentou a decisão da seguinte forma:

«Assim sendo, importante neste caso, como em todos os outros em que se imponha uma destrinça quanto à preponderância dos contratos celebrados, é apurar-se a vontade manifestada pelas partes no momento da contratação. Como podemos verificar, o que as partes pretenderam foi a compra e venda do silo, sendo a sua colocação e instrução de utilização uma atividade secundária – neste sentido, entre outros, podem consultar-se os Acórdãos do STJ de 24.Janeiro.1991, relatado pelo Senhor Conselheiro Martins da Fonseca e de 26.Fevereiro.1992, relatado pelo Senhor Conselheiro Cura Mariano, disponíveis em www.dgsi.jstj.pt.

Aliás, bastaria termos presente o teor dos dois primeiros factos dados como Não Provados [no âmbito da sua atividade comercial, a Autora contratou com a Ré a conceção e construção de um silo exterior destinado ao armazenamento de farinha; este silo foi especialmente construído para a Autora para ser instalado no parque exterior da sua fábrica em Marvila] – e cujo teor não foi posto em causa, por qualquer das partes nos recursos apresentados, nomeadamente, através de um pedido de reapreciação da prova, -, para termos de concluir que ao caso nunca poderia ser aplicado o regime da empreitada, ausentes que se encontram os seus elementos típicos».

3. Quid iuris?

 Vejamos.

A distinção entre o contrato de empreitada e o contrato de compra e venda apresenta dificuldades. Tem, todavia, efeitos práticos relevantíssimos, designadamente, quanto ao momento da transferência da propriedade ou quanto ao prazo de caducidade para interpor a ação por vícios ou defeitos da coisa, podendo depender dessa qualificação o sucesso ou o insucesso de uma pretensão em tribunal

A doutrina indica vários critérios de distinção, sem deixar de remeter para o casuísmo judiciário em função dos factos de cada caso, dada a variedade de situações que a prática pode apresentar, rejeitando, pois, uma análise unitária (cfr. José Manuel Vila Longa, «Compra e venda e empreitada. Contributo para a distinção entre os dois contratos», ROA, Ano 57, 1997, Vol. I, janeiro, p. 201).

A propósito da questão destes autos, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 22-09-2005 (processo n.º 04B956) estabelece os seguintes critérios:

«I - No caso de compra e venda de coisa defeituosa, o regime de caducidade da acção de anulação por simples erro plasmado no artigo 917.º do Código Civil é aplicável, por interpretação extensiva, à caducidade da presente acção de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência dos vícios da coisa;

II - Embora o elemento típico nuclear do contrato de empreitada consista na realização de uma obra (artigo 1207.º), enquanto o objecto essencial da compra e venda reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza, o acento tónico da distinção entre as duas espécies, maxime nos casos em que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro - os Werklieferugsverträge autonomizados na dogmática alemã -, vem sintetizado pela doutrina e jurisprudência comparada nos tópicos seguintes:

a) prevalência da obrigação de dare, ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada;

b) na empreitada, ao invés da venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio;

c) além disso, na empreitada o bem produzido representa um quid novi relativamente» à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais concernentes à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido;

III - Acima, porém, de qualquer factor objectivo, o elemento preponderante de distinção é sempre constituído pela vontade dos contraentes, havendo a categorização jurídica do negócio de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado em qualquer caso de configurar na sua mente um dos contratos em causa e o seu regime».

No Acórdão de 20-10-2009 (proc. n.º 146/2001.S1), afirmou-se que:

 «1. O contrato de empreitada tem por objecto a criação, construção, modificação, reparação ou, até, a demolição de uma coisa, ou seja, a produção de uma obra em sentido material ou corpóreo não podendo confundir-se com a coisa sobre a qual incide o acto de criação e de que é seu mero suporte.

2. O empreiteiro obriga-se a uma prestação de facto sem prejuízo de que, para a realizar, tenha de fornecer materiais para incorporação na obra.

3. No contrato de compra e venda inexiste uma prestação de facto (realização de obra corpórea) mas uma prestação de coisa, tratando-se de um contrato real “quod effectum”, é transferir a propriedade.

4. As situações limite entre contrato de empreitada e contrato de compra e venda devem ser apreciadas casuisticamente atento o clausulado e a vontade dos contraentes.

5. Não sendo possível apurar a vontade de cada parte vale o sentido de que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, por uma pessoa medianamente preparada para os eventos negociais correntes e com diligência média se colocado na posição do declaratário real face ao comportamento do declarante.

6. A determinação da vontade real constitui matéria de facto reservada às instâncias.

7. Não se tratando de aquisição sem mais de uma máquina – ou suas componentes para refrigerar, antes se tratando de contratar toda uma obra, consistente na instalação de um equipamento em local pré-afectado e na sua entrega pronto a laborar assim desempenhando as funções a que se destinava, perfila-se uma obra material inserível na disciplina do artigo 1207.º do Código Civil».

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 04-06-2019 (proc. n.º 4301/16.8T8VIS.C1.S1), descreveram-se as principais posições da doutrina do seguinte modo:

«Essencial para que haja empreitada é que o contrato tenha por objeto a realização de uma obra. Subjacente ao contrato de empreitada tem que estar um resultado material, consistente na realização de certa obra. Dizem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, II, anotação ao artigo 874.º) que “Tendo por objecto essencial a transmissão de um direito (seja de propriedade, seja de outra natureza), que, para ser transferido, necessita de existir previamente como tal, na titularidade do vendedor, a compra e venda não se confunde com o contrato de empreitada, que tem por objecto essencial a realização de uma obra (…). Mesmo que os materiais da obra sejam fornecidos, no todo ou na sua maior parte, pelo empreiteiro (…), a nota essencial da empreitada é sempre dada pela realização de uma obra, que sendo um acto in fieri se não confunde nunca com um direito implantado ou a inserir na esfera jurídica do alienante.”

                (…)

Vejamos algumas perspetivas doutrinárias (entre várias outras, algumas das quais indicadas por José Manuel Vilalonga, ob. cit., pp. 198 a 200) sobre tal destrinça.

Escreveu Rubino (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Volume II, anotação ao artigo 1207.º) que “não é possível pré-ordenar critérios gerais taxativos; uma boa margem deve ser deixada à prudente apreciação do juiz. Com esta reserva, pode considerar-se como melhor, mas não como exclusivo, o critério segundo o qual há empreitada, se o fornecimento dos materiais é um simples meio para a feitura da obra, e o trabalho constitui o fim do contrato. Pelo contrário, há venda, se o trabalho é simplesmente um meio para obter a transformação da matéria”.

Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, 5ª ed., pp. 504 e 505) escreve, a propósito, que “[de] acordo com a formulação mais comum o contrato será de empreitada quando as partes tiveram fundamentalmente em conta o resultado do trabalho a prestar pelo empreiteiro, sendo de compra e venda sempre que o primeiro plano seja dado antes aos materiais fornecidos, para cuja transmissão o trabalho funciona apenas como um meio. O critério seria assim o da prevalência do trabalho ou dos materiais ou o facto de a prestação de serviço ter ou não carácter instrumental relativamente à produção do bem. Decisivo parece ser, no entanto, a avaliação económica da operação, por forma a averiguar se o preço aparece como o correspectivo da alienação do bem (considerado como produto acabado) ou visa antes o pagamento do serviço de produção do bem.”

João Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 3ª ed., pp. 49 e 50) aduz o seguinte, reportando-se às situações em que simultaneamente se acorda o fornecimento de uma coisa e a sua instalação ou adaptação: “Se os trabalhos de adaptação ou instalação têm uma relevância insignificante, a obrigação de os realizar deve ser encarada como um mero dever acessório da prestação principal, sem dimensão suficiente para afastar a qualificação do contrato como contrato de compra e venda ou a aplicação do regime deste tipo contratual. Mas, se esses trabalhos já assumirem uma dimensão de algum relevo, então o contrato deve ser encarado como um contrato misto, na modalidade de contrato combinado, em que uma das partes se obriga a duas prestações que integram dois tipos contratuais diferentes - o de compra e venda e o de empreitada - contra uma prestação unitária da contraparte - o pagamento do preço. Nestes casos, utilizando a faculdade concedida pela melhor doutrina de que não existem soluções rígidas na definição do regime dos contratos mistos, vigora a regra prevista o art.º 239.º do C.C., para a integração dos negócios jurídicos, em tudo aquilo que não foi expressamente previsto pelas partes. Assim, o regime aplicável deve ser procurado na vontade hipotética das partes, se tivessem previsto o ponto omisso. Essa procura da vontade hipotética deve ser efectuada de modo a que, perante a realidade e os valores dominantes se procure reconstruir a vontade das partes, num juízo de razoabilidade. Na maior parte das situações, este juízo, sem que isto procure ser uma regra infalível, conclui pela aplicação a cada uma das prestações do vendedor/empreiteiro do regime do contrato típico que preenchem (teoria da combinação). E nas zonas contratuais que não pertencem exclusivamente a um dos modelos pressentes, como ocorrerá na prestação unitária do comprador/dono da obra, normalmente aplica-se o regime previsto para o contrato típico onde se insere a prestação que se revele dominante (teoria da absorção). Na hipótese de ambas as prestações assumirem igual importância, deve o julgador, nessas zonas neutras, adoptar a disciplina que concretamente se revele mais razoável, tendo em atenção os interesses plasmados no figurino contratual.”

José Manuel Vilalonga (ob. cit., pp. 206 e seguintes), reportando-se aos contratos de fornecimento com obrigação de montagem (que exemplifica com os casos de fornecimento e instalação de elevadores ou de aparelhos de ar condicionado), é de entendimento que naquelas hipóteses em que um contraente aliena determinada coisa que tem uma utilidade própria, uma função especial ou específica (independente da função própria da coisa na qual vai ser incorporada) e, concomitantemente, se obriga a instalá-la, “as partes terão, em princípio, encarado desde o início a operação como compreendendo dois contratos”, um de compra e venda e outro de empreitada. O autor vê nesta situação uma união de contratos.

Pedro Romano Martinez (Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2ª ed., pp. 336 e 337) expende que se do bem “só se pode retirar utilidade depois de ter sido montado, e se essa montagem carece de uma determinada preparação técnica, não se pode qualificar o contrato como de compra e venda; é o que se passa, designadamente, no exemplo do fornecimento e instalação de elevadores. Sendo a prestação de montagem, apesar de acessória, indispensável para o uso do bem, o contrato, por via de regra, será de empreitada. (…) [O] contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias á sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis.”»

4.  A doutrina e a jurisprudência têm procurado estabelecer critérios que permitam proceder a uma distinção segura entre ambos os contratos. Todavia, a análise terá sempre uma dimensão casuística que depende da configuração da situação concreta e da indagação de qual a vontade das partes. O método a aplicar é o da ponderação de todos os elementos relevantes para determinar a intenção das partes, e não ao recurso a definições apriorísticas ou critérios demasiado rígidos e abstratos. A doutrina é consensual neste aspeto, apontando a vontade dos contraentes como o elemento fundamental a considerar para a destrinça entre os contratos em causa (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit, p. 866; Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 337; João Cura Mariano, ob. cit., pp. 45 e 46; José Manuel Vilalonga, ob. cit., pp. 200-201, 210 -211).

Nos termos da lei, a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artigo 874.º do Código Civil) e a empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra mediante um preço (artigo 1207.º do Código Civil).

Na compra e venda, o fim visado pelo comprador é a aquisição de um direito sobre determinada coisa que, em princípio, já existe na esfera jurídica do vendedor. Na perspetiva do vendedor, a finalidade primordial da celebração do contrato é o recebimento do preço, que consiste no valor da coisa em dinheiro.

Já no contrato de empreitada, enquanto contrato de prestação de serviço, o objeto da obrigação principal que emerge da celebração do contrato para um dos contraentes (empreiteiro) é uma prestação de resultado (a realização de uma obra). O outro contraente (dono da obra) obriga-se a pagar àquele um preço, que mais não é do que a expressão pecuniária do valor da obra realizada. A obra a realizar é o fim primordialmente visado pelo dono da obra. O recebimento do preço é, por seu turno, o fim visado pelo empreiteiro.

Assim, do contrato de empreitada nasce uma obrigação de prestação de facto (obrigação de resultado), que é a obra. Do contrato de compra e venda resulta a transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito.

Apesar das diferenças conceituais e funcionais serem evidentes, tal como decorrem dos conceitos legais de compra e venda e de empreitada e do respetivo regime jurídico, na realidade socio-económica surgem zonas nebulosas. Nestas situações, podemos estar perante um contrato de empreitada ou perante um contrato de compra e venda de bem futuro, se não foi o fornecedor que fabricou o bem, mas um terceiro. Além disto, não será de excluir a possibilidade de concurso de duas figuras num mesmo complexo negocial (união ou adjunção de contratos) ou a presença de um contrato misto.

5. Vejamos o caso dos autos.

Da análise do documento escrito que formalizou a proposta contratual que deu origem ao contrato não resulta qualquer nomen iuris com que a Silobaião tenha qualificado a relação jurídica em causa, auto-designação, que, a existir, também não seria decisiva. O que é relevante para o efeito de aferir a vontade das partes é a interpretação das suas declarações negociais, ao abrigo do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, que fixa o critério da impressão do declaratário.

Em 5 de janeiro de 2016, a Silobaião dirigiu à Padaria Portuguesa uma proposta intitulada Projecto SB/044-F/15 (facto provado C).

Essa proposta intitula-se «Silo Exterior para Armazenar Farinha», e contém uma fotografia do bem, com a descrição do tipo, material, dimensões e matéria prima, bem como indicações sobre o sistema de fluidificação. Contém informações sobre a capacidade de transporte do silo e descrição, acompanhada de foto do sistema de transporte, bem como informações sobre o computador de pesagem, sistema eletrónico de pesagem, central elétrica, e o preço. Na última página sob a epígrafe «Montagem e treino», refere-se o seguinte: «Montagem mecânica e elétrica, incluindo todo o material necessário. Treino do pessoal. Estipula-se uma cláusula de garantia de 2 anos; condições Comerciais: 50% na encomenda; 50% Final da Montagem; Prazo de entrega: A combinar e afirma-se ainda o seguinte: «Nota 1: É da responsabilidade do cliente a colocação de um cabo trifásico com 5 linhas de 4mm2 de secção, no local onde o quadro elétrico dos silos for localizado. É da responsabilidade do cliente a instalação de uma rede de ar comprimido, e água, com postos de saída onde forem indicados pelos nossos técnicos. Estão exluídos do preço quaisquer trabalhos de construção civil que sejam eventualmente necessários à instalação dos silos».

Ora, analisando esta proposta nada indica que a mão de obra ou trabalho de construção do silo esteja a cargo da ré Silobaião, sendo o texto da proposta compatível com a produção do bem por um terceiro, e a comercialização do mesmo junto dos potenciais clientes pela ré Silobaião.

A autora juntou ao processo um outro documento sobre a empresa Silobaião onde se descreve a atividade da empresa.

«A Silobaião nasceu em Abril de 2002. Desde então tem-se afirmado como líder de mercado em Portugal na área de sistemas de automatização de matérias primas para a indústria de panificação. Nestes últimos anos, devido à conjuntura nacional e global, iniciou a internacionalização a nível global, dos seus produtos, desenvolvidos, projetados e também fabricados em Portugal.

Dispondo de sistemas de armazenagem e transporte até às amassadeiras das matérias-primas necessárias à produção de massas, a Silobaião proporciona aos seus clientes, desde pequenas padarias até grandes unidades de fabrico industrial, uma forma prática, higiénica, em quantidades de dosagem automática de proporções corretas e precisas das matérias primas de cada receita.

A Silobaião possibilita a automatização de macro e microingredientes, tais como: Farinhas de qualquer tipo, açúcar, leite, ovos, levedura, massa-mãe, fermento em pó, óleo, água, sal, canela, manteiga, frutos secos, entre muitos outros, seja na área de Padaria como de confeitaria.

Proporcionamos a cada cliente uma solução à sua medida tendo em conta os recursos disponíveis e as necessidades específicas».

 O argumento da autora para defender que se trata de um contrato de empreitada é sobretudo o que decorre da circunstância de a ré proporcionar a cada cliente uma solução à sua medida, o que indiciaria, na perspetiva da autora, que o cliente tem intervenção no processo produtivo do silo e, portanto, que ele seria construído pela Ré Silobaião.

Entende ainda a autora que o tempo que medeia entre a data da celebração do contrato (06-01-2016) e a data da entrega (agosto de 2017) significa que a Silobaião não se limitou a vender o bem, mas que o construiu.

Outro argumento esgrimido pela autora é a circunstância de a ré ter assumido a obrigação contratual de transportar o silo, de o instalar e de dar formação aos funcionários da autora (facto G) da matéria de facto provada)

6. Os factos provados, para o que aqui releva, são os seguintes:

«B) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio por grosso de silos e automatismos para a indústria alimentar.

C) Em 05.01.2016, a Ré apresentou à A. uma proposta contratual para fornecimento de silo exterior para armazenar farinha, designado por “Projecto SB/044-F/15”, pelo valor total de 54.000,00 EUR + IVA, como melhor consta do documento junto a fls. 19 verso a 21, cujo teor se dá por reproduzido.

D) A qual foi aceite pela A., em 06.01.2016.

E) A Ré, nos termos da proposta supra referida, forneceu à A. um silo exterior para armazenamento de farinha do tipo NORMSILO em aluminium Almg3, próprio para produtos alimentares, em concreto farinha.

F) Incluía-se no fornecimento do silo exterior para armazenamento de  farinha, a montagem eléctrica e mecânica dos diversos componentes acessórios ao silo propriamente dito, nomeadamente o sistema de fluidificação, o sistema electrónico de pesagem (composto por balança de pesagem em inox), a válvula rotativa, o sistema de transporte (composto por tubos, curvas e abraçadeiras), o computador de pesagem (composto por uma unidade SS-39- 8P) e central eléctrica (composto por uma unidade, incluindo controlo de silo cheio - sensor de nível máximo e sistema sonoro de alerta - válvula).

G) Incluía-se igualmente no fornecimento o transporte do silo para as instalações da A. e o treino do seu pessoal para o correcto manuseamento e funcionamento do silo.

H) Estavam excluídos do fornecimento do silo exterior para armazenamento de farinha, competindo, por isso, à A. a colocação de cabo trifásico com 5 linhas de 4mm2 de secção onde o quadro /central eléctrica ficasse instalado, bem como a instalação de rede de ar comprimido e água com postos de saída e ainda todos os trabalhos de construção civil necessários à instalação do mesmo.

I) A ré prestou garantia do bom funcionamento do silo pelo prazo de 2 anos após a sua entrega.

J) Em 06.01.2016, a Autora procedeu ao pagamento de 33.210,00 EUR, correspondente a metade do valor acordado.

L) Em 08.04.2016, a Autora pagou o valor remanescente de 33.210,00 EUR.

M) O silo foi concluído e entregue pela Ré à Autora em Agosto de 2017, tendo entrado em funcionamento nessa data.

N) O silo foi colocado nas instalações fabris da autora em Marvila.

(…)

FF) O silo encomendado à ré deveria observar determinadas características no que respeitava à sua dimensão e software».

7. Provou-se, pois, que houve a celebração de um contrato entre a Silobaião e a Padaria Portuguesa (factos C) e D) da matéria de facto provada), e que ambas cumpriram as suas obrigações, respetivamente, de pagamento do preço e de entrega e instalação do Silo (factos J), L), M) e DD) da matéria de facto provada).

Os factos provados reportam-se sempre a um “fornecimento” do silo pela Silobaião à Padaria portuguesa (factos C), E), F e G) da matéria de facto provada), nunca referindo que o contrato abrangia a construção ou a elaboração, pela Silobaião, do bem em causa.

Por outro lado, conforme consta da lista de factos não provados, não se provou que a Autora contratou com a Ré a concepção e a construção de um silo exterior destinado ao armazenamento de farinha, nem que o silo tivesse sido especialmente construído para a Autora para ser instalado no parque exterior da sua fábrica em Marvila.

Acresce que, sendo o teor da proposta contratual lacunoso em relação a um suposto dever de realização da obra, a cargo da ré, não é possível, por falta de elementos relevantes, imputar à declaração negocial da ré qualquer vontade hipotética de construção do silo, no sentido de que a Silobaião se tivesse comprometido a edificar, através de mão de obra ou trabalho, o bem a fornecer.

8. Quanto ao facto provado FF), segundo o qual o silo encomendado à ré devia observar determinadas caraterísticas de dimensão e software, também não demonstra que o contrato dos autos seja um contrato de empreitada, pois tal não significa que seja a ré a construi-lo, assemelhando-se o seu papel, tal como decorre da globalidade dos factos e dos documentos juntos aos autos, ao de uma intermediária entre o produtor ou fabricante e o consumidor, classificação que no documento n.º 2 junto aos autos pela autora consta da ficha técnica da ré que indica que esta é comerciante por grosso.

9. Relativamente à circunstância de a Silobaião ter assumido o dever de transportar e de instalar o silo, bem como de dar formação aos funcionários da autora, que alguns autores acima citados veem como um elemento caraterizador da empreitada (p.ex. a montagem de um elevador ou de um aparelho de ar condicionado), entendemos, no caso vertente, que o confronto deste elemento com os factos provados e não provados não permite retirar, neste caso concreto, a conclusão pretendida pela recorrente.

10. Os deveres de montagem, de transporte e de formação constituem, antes, como bem entendeu o acórdão recorrido, um conjunto de deveres acessórios, acoplados a um contrato de compra e venda comercial, formando, em conjunto com este, um contrato misto de compra e venda comercial (artigo 471.º do Código Comercial) e prestação de serviço (artigo 1154.º e seguintes do Código Civil), celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º do Código Civil. Esta norma permite expressamente no seu n.º 2 que as partes celebrem contratos mistos, em que reúnem no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei. Estamos, pois, perante um contrato misto na modalidade de contrato combinado, pois uma das partes (no caso, a Ré/Recorrida) ficou adstrita a duas prestações principais, respeitantes a diversos tipos de contratos, enquanto a contraparte, a Autora/recorrente se vinculou a uma prestação unitária, o pagamento do preço (vide Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, p. 374)

11. Para determinar qual o regime jurídico aplicável aos contratos mistos, há que individualizar no contrato misto o elemento predominante, devendo aplicar-se a disciplina do contrato típico em que esse elemento decisivo se integra (cfr. Almeida Costa, ob. cit., p. 375).

12. O contrato dos autos deve ser qualificado como um contrato misto de compra e venda comercial (ambas as partes são sociedades comerciais e o contrato é um ato objetivamente comercial) com prestação de serviço (artigos 1154.º e seguintes), em que o elemento preponderante é a compra e venda comercial (artigo 471.º do Código Comercial), não merecendo qualquer censura a decisão do acórdão recorrido.

13. Relativamente ao prazo de caducidade, aplicam-se as normas da compra e venda (artigos 874.º e seguintes, em especial os artigos 916.º e 917.º, todos do Código Civil), por remissão do artigo 3.º do Código Comercial. 

O silo foi entregue à Autora em agosto de 2017 (facto M) da matéria de facto provada). A ocorrência do sinistro foi comunicada à ré em 5-12-2017 (facto LL) da matéria de facto provada), sendo a partir deste momento – o momento da denúncia do defeito (artigo 916.º, n.º 2) – que se conta o prazo de caducidade de seis meses para interpor a ação a reclamar a indemnização pelos vícios da coisa (artigo 917.º do Código Civil).

Em consequência, na data em que a ação foi interposta, 30-11-2018, já tinha caducado o exercício do direito, por força do decurso do prazo de seis meses após a denúncia do defeito, tal como resulta da aplicação conjugada dos artigos 916.º, n.º 2 e 917.º do Código Civil.

Improcedem, pois, as conclusões n.ºs 1 a 21 e 31 do recurso de revista.

 

II – Do pedido reconvencional

14. Defende a recorrente que, em qualquer caso, deve improceder o pedido reconvencional, invocando o n.º 6 do artigo 266.º do CPC, nos termos do qual “a improcedência da ação e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor», subsumindo o presente caso na última parte do preceito, entendendo que a recorrida, no pedido reconvencional, apenas visava que, caso o tribunal viesse a dar razão à autora, se procedesse à compensação entre o montante da indemnização a pagar e o valor despendido pela ré no silo recondicionado.


O n.º 6 do artigo 266.º do CPC determina a autonomia da reconvenção em relação à ação, pelo que o seu destino anda desligado do desta, quer termine pela absolvição do pedido quer termine pela absolvição da instância. Só não será assim se houver dependência do pedido reconvencional em relação ao da ação.

Como afirma o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 10-11-2020, proc. n.º 244/ 16.3T8ALB-A.P1.S1, «Resulta deste normativo que em regra o pedido reconvencional será apreciado não obstante a inadmissibilidade ou improcedência da acção, ou seja, em principio o pedido reconvencional o pedido reconvencional não deixará de ser apreciado mesmo que acção venha a ser julgada improcedente ou o réu seja absolvido da instância, só assim não sucedendo no caso do pedido reconvencional estar ou ser dependente do pedido formulado pelo autor».

Um pedido reconvencional é dependente de um pedido formulado pelo autor caso se destine a ser conhecido apenas na hipótese de este último ser julgado procedente. Integram-se nesta segunda parte do n.º 2 do artigo 266.º, de acordo com a jurisprudência (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-05-2006, proc. n.º 895/06 “(…) os casos em que o réu invoca, em reconvenção, uma compensação de créditos, ou, quando, numa ação de despejo, o réu reclama, por via da sua reconvenção, uma indemnização por benfeitorias realizadas no locado, ou, ainda, quando o réu, numa ação reconhecimento de constituição de servidão de passagem, pede, por via reconvencional, a extinção da mesma, por desnecessidade, ou então quando (por vontade do réu) a reconvenção é deduzida cautelarmente, ou seja, de só ser atendida para a hipótese de a ação vir a ser julgada procedente”.


15. Vejamos o caso concreto:

A ré, Silobaião, termina assim a contestação: 

“a) A presente ação ser julgada improcedente, por não provada absolvendo-se a Ré de todos os pedidos formulados pela A., com todas as legais consequências;

ou caso assim, não se entenda,

b) A Exceção Perentória da caducidade alegada ser considerada procedente, absolvendo-se a Ré de todos os pedidos formulados pela A. com as legais consequências;

c) A Reconvenção deduzida ser julgada procedente por provada e em consequência ser a Reconvinda condenada a pagar à Reconvinte o montante de 18.085,40 € (dezoito mil e oitenta e cinco euros e quarenta cêntimos) a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos contados desde a notificação da Reconvenção até integral pagamento.”  

Com efeito, da análise do pedido reconvencional resulta a natureza subsidiária dos pedidos sob b) e sob c) em relação a a). Todavia, não se tendo verificado a al. a), porque se declarou procedente a exceção perentória de caducidade, estamos no domínio do pedido subsidiário, que inclui o pagamento do valor do silo recondicionado.

Assim, aplica-se a regra geral da independência do pedido reconvencional, em relação ao pedido da autora, pelo que este argumento da recorrente não procede.

Improcedem as conclusões 22 a 26 da alegação de recurso da recorrente.

16. Todavia, a recorrida Silobaião assumiu, enquanto vendedora, garantia de dois anos pelo bom funcionamento do bem vendido (facto I) da matéria de facto provada); a construção do silo recondicionado com peças do silo vendido foi uma forma, como afirma a recorrida na contestação (art. 62.º), de atuar com boa fé, correção e lisura, colaborando com a autora, Padaria portuguesa, na resolução do problema.

Atendendo a que, apesar de não se ter provado a deficiência de fabrico do silo, também não se provou que o abaulamento se devesse a uma causa exterior, e que a recorrida, no contrato de compra e venda comercial, assumiu uma garantia de dois anos pelo funcionamento do bem, entende-se que a autora não tem de pagar o preço do silo recondicionado, de 12.000,00 euros, constituindo esta prestação da ré um dever acessório de cooperação com a compradora e utente do bem vendido, decorrente da cláusula de garantia.

Em conclusão, procedem as conclusões n.º 27 a 30, procedendo parcialmente a revista da autora, absolvendo-se a mesma de pagar à ré o valor do silo recondicionado (12.000,00 euros, acrescido de IVA).

 

17. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - A distinção entre a compra e venda e a empreitada terá sempre uma dimensão casuística, que depende da configuração da situação concreta, sendo a vontade dos contraentes o elemento fundamental a considerar para a destrinça entre os contratos em causa.

II - Sendo o teor da proposta contratual lacunoso em relação a um suposto dever de realização da obra, a cargo da ré, que não ficou provado nos autos, não é possível, por falta de elementos relevantes, imputar à declaração negocial da ré qualquer vontade hipotética de construção do silo, no sentido de que esta se tivesse comprometido a edificar, através de mão de obra ou trabalho, o bem a fornecer.

III - Os deveres de montagem, de transporte e de formação dos funcionários a cargo da fornecedora do bem, a ré, constituem um conjunto de deveres acessórios, acoplados a um contrato de compra e venda comercial, formando, em conjunto com este, um contrato misto de compra e venda comercial (artigo 471.º do Código Comercial) e prestação de serviço (artigo 1154.º e seguintes do Código Civil), admitido pelo princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º, n.º 2, do Código Civil, norma que prevê expressamente que as partes celebrem contratos mistos, em que reúnem no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.

IV - O n.º 6 do artigo 266.º do CPC determina a autonomia da reconvenção em relação à ação, pelo que o seu destino anda desligado do desta, quer termine pela absolvição do pedido, quer termine pela absolvição da instância. Só não será assim, se houver dependência do pedido reconvencional em relação ao da ação, o que não sucedeu no caso concreto conforme resulta da análise do pedido reconvencional.

V –  Atendendo a que, apesar de não se ter provado a deficiência de fabrico do silo, também não se provou que o abaulamento se devesse a uma causa exterior, e que a recorrida, no contrato de compra e venda comercial, assumiu uma garantia de dois anos pelo funcionamento do bem, entende-se que a autora não tem de pagar o preço do silo recondicionado, de 12.000,00 euros, constituindo esta prestação da ré um dever acessório de cooperação com a compradora e utente do bem vendido, decorrente da cláusula de garantia.

III – Decisão

Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista, absolvendo-se a autora do pedido reconvencional.

No mais mantém-se o acórdão recorrido.

Custas por ambas as partes na proporção do respetivo decaimento.


Lisboa, 7 de junho de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)