Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:973/23.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:JOANA MATOS LOPES COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

B…, residente no Brasil, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Instituto dos Registos e Notariado, I.P.. Pede a intimação da entidade demandada a ordenar o processamento do seu registo de nascimento no prazo máximo de 10 dias, assim como a fixação de “cláusula penal de um mínimo de 1.000,00 € por cada dia de desrespeito do prazo que for fixado”. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) É descendente de judeus sefarditas portugueses e, em Outubro de 2021, apresentou, no Arquivo Distrital do Porto, requerimento de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização, com fundamento no disposto no artigo 6.º, n.º 7, da Lei da Nacionalidade Portuguesa; (ii) O processo deveria ter sido concluído no prazo de 90 dias (30 dias para apreciar o pedido de aquisição de nacionalidade e 60 dias para processar o registo de nascimento), por força do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 41.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, e, tendo em conta esse prazo, o autor matriculou-se na Universidade do Porto, na Licenciatura em Inteligência Artificial e Ciência de Dados, ao abrigo do regime do estudante internacional, previsto no Regulamento n.º 664/2018 de 16.10.2018, tendo sido admitido por matrícula de 14.07.2022, com a condição de ter residência legal em Portugal; (iii) Em Março de 2023, foi notificado de que o pedido de aquisição da nacionalidade fora deferido, mas que que ainda não havia sido processado o registo de nascimento; (iv) O autor pretende fixar residência em Portugal ou em outro país da União Europeia, não desejando fazê-lo como imigrante, mas no exercício pleno dos seus direitos civis e políticos; (v) A omissão dos serviços da entidade demandada no que se refere ao processamento do registo de nascimento é ofensiva dos seus direitos à nacionalidade portuguesa e à identidade pessoal, impedindo o seu exercício, nomeadamente para matrícula em universidade portuguesa, pois a prova da aquisição da nacionalidade por naturalização faz-se pelo assento de nascimento, nos termos do disposto no artigo 22.º da Lei da Nacionalidade Portuguesa; (vi) O pedido formulado nesta acção tem natureza urgente, pois que o autor precisa de provar a qualidade de nacional português até início do mês de Maio, sem o que perderá mais um ano de estudos; (vii) Não há qualquer providência cautelar que permita evitar a ofensa do direito do autor, pelo que a presente intimação é o único meio processual apto para o efeito.
Admitida liminarmente a petição, a entidade demandada apresentou resposta, por excepção e por impugnação. Invocou a impropriedade do meio processual, sustentando que, não sendo o autor apátrida – pois que tem nacionalidade brasileira – nem sendo ainda cidadão português, não está a ser violado qualquer direito previsto no artigo 26.º da Constituição, não tendo o autor demonstrado carecer de uma decisão de mérito urgente, nem sequer que no país da sua nacionalidade (Brasil) inexistem universidades que leccionem a licenciatura em causa, o que indicia que o autor, ao pretender estudar na Universidade do Porto, visa ultrapassar outros que, como ele, querem residir na União Europeia, tendo apresentado pedido de aquisição de nacionalidade antes do autor, além de que o mesmo pode beneficiar do disposto no artigo 87.º da Lei n.º 23/2007 de 04 de Julho, requerendo “autorização de residência para cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” - visto ser o Brasil membro da referida comunidade – devendo, para o efeito, apresentar manifestação de interesse, o que não prova ter feito. No mais, pugnou pela improcedência da acção. Contrapondo, para tanto e em síntese, que os prazos dos artigos 27.º e 41.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa são meramente ordenadores ou indicativos e a eles não se aplicam as normas do Código do Procedimento Administrativo e consequente incumprimento do dever de decisão definitiva, e que o princípio da separação de poderes não permite ao Tribunal contrariar a classificação de urgência determinada pela entidade demandada, ao abrigo da reserva da função administrativa.
Pronunciando-se sobre a matéria de excepção, veio o autor defender a respectiva improcedência, alegando que os prazos previstos no artigo 41.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa são peremptórios e que, tendo o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa sido deferido em 19.10.2022, o registo de nascimento deveria ter sido processado até 19.12.2022, ou seja, 60 dias após o deferimento, sendo o autor titular do direito à identidade pessoal, por ser cidadão português.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a absolver o réu da instância por não se encontrarem verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“I. A douta sentença recorrida ofende, de forma direta e frontal o disposto no artº 20º, 5 da Constituição da República, que é de aplicação direta.
II. Ofende, outrossim, o disposto no artº 26º da mesma Lei Fundamental, pois que o direito à identidade pessoal do recorrente passa pela inscrição do seu registo de nascimento no registo civil português, atenta a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização em 19 de outubro de 2022.
III. O pedido de inscrição do registo do nascimento emergente de um despacho de concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização tem natureza urgente.
IV. Ao considerar que o meio processual do artº 109º é inadequado para a defesa do direito que está a ser violado, a douta decisão recorrida ofende não só as disposições constitucionais citadas como o disposto no artº 109º e seguintes do CPPT como as disposições constitucionais citadas.
V. A decisão recorrida branqueia a negação (de facto) do direito à cidadania portuguesa por parte do Instituto dos Registos e do Notariado, em termos que nem no tempo do fascismo eram admitidos, o que é absolutamente intolerável, apesar de a concessão da nacionalidade por naturalização ter sido decidida por uma funcionária do recorrido.
VI. A sentença recorrida ofende, de forma direta e brutal os artºs 4º e 26º,1 da Constituição da República, excluindo o recorrente da comunidade de pessoas em que assenta a República Portuguesa, nos termos do artº 1º da Constituição da República.
VII. Não há, a nosso ver, direito fundamental mais importante que direito à cidadania, reconhecido até aos estrangeiros, por força do disposto no artº 15º,1 da Constituição da República.
VIII. A douta sentença recorrida ofende também, o disposto no 13º,1 e 2 da Constituição da República, que é de aplicação direta e imediata, por força do disposto no artº 18º da mesma Constituição.”
A entidade recorrida respondeu à alegação do recorrente, contendo as suas alegações as seguintes conclusões:
“I – Deve o Requerido, Instituto dos Registos e do Notariado ou IRN IP, ser absolvido da instância por procedente a exceção DILATÓRIA INOMINADA, por impropriedade do meio processual – artigos 89º, nº 1, 2 e 4 “entre outras” do CPTA e artigos 576º e 577º do Código do Processo Civil (CPC), aplicáveis “ex. vi” artigos 1º e 35º do CPTA; ou, não procedendo esta
II – Deve a presente ação ser julgada improcedente por não provada, e em consequência, o Requerido IRN IP, ser absolvido do pedido, uma vez que os prazos dos artigos 27º e 41º do RNP, aprovado pelo Dec. Lei nº 237-A/2006 de 14/12 (com a última redação do Dec. Lei nº 26/2022 de 18/03), são meramente ordenadores ou indicativos e a eles não se aplicam as normas do Código do Procedimento Administrativo e consequente incumprimento do dever de decisão definitiva, e, se sobrepõem os princípios da universalidade e igualdade previstos nos artigos 12º e 13º da CRP; e,
III – Deve também o princípio da separação de poderes, previsto no artigo 111.º da CRP e no nº 1 do artigo 3.º do CPTA, impor-se ao Tribunal se o sentido fixado pela Deliberação do Conselho Diretivo do IRN IP, de 27/10/2022, para classificação de “URGÊNCIA” salvo melhor opinião e com o devido respeito, for violado, naquilo que é área privativa e de reserva da função administrativa, a qual na prossecução do interesse público, se pauta por diversos princípios consignados legalmente, como o da boa administração;
IV– Tudo com as demais e legais consequências; SÓ ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, reiterando a fundamentação da sentença recorrida.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega o recorrente que o exercício do seu direito à cidadania passa pela inscrição do seu registo de nascimento no registo civil português, atenta a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização em 19 de outubro de 2022, inscrição essa que tem natureza urgente porque emerge de um despacho de concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização, e sem a ocorrência de tal registo, é negado ao recorrente aquele direito.
A sentença recorrida absolveu o réu da instância por não se encontrarem verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. Mais precisamente, a sentença recorrida assentou na seguinte fundamentação:
“(…)
Fazendo uma aproximação ao caso concreto, temos que a presente intimação foi intentada na sequência do não processamento do registo de nascimento do Requerente, cujo pedido de naturalização foi deferido.
Ora, cumpre referir que em causa está o exercício de um direito, liberdade e garantia pessoal, inscrito no Capítulo I, do Título II, da Parte I da Constituição, designadamente, o direito à cidadania previsto no artigo 26.º, da CRP.
Prevê o n.º 1 deste artigo 26.º, da CRP que a todos é reconhecido o direito à cidadania, estabelecendo o n.º 4 a garantia de que a privação da cidadania só pode efetuarse nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
Temos, portanto, que se apresenta como indiscutível estarmos perante um direito fundamental, cuja proteção é enquadrável no regime processual previsto no artigo 109.º, do CPTA, isto é, no presente meio processual de intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias.
Posto isto, quanto à apreciação do primeiro daqueles pressupostos, desde já, deixa claro que, no caso vertente, o busílis da questão não se encontra na qualificação do direito invocado, porquanto dúvidas não há de que consubstancia um direito fundamental, mas sim na existência de uma situação de urgência qualificada.
Porém, da leitura da petição inicial, embora se possa inferir a existência de uma situação jurídica suscetível de colidir com um DLG, o que é certo é que não se denota uma concretização no que respeita à situação de grave ameaça ou violação de tal direito, que carecesse de ser reparada através do processo urgente de intimação.
Na verdade, temos para nós que nada foi alegado que permita sustentar uma especial urgência na tomada de decisão judicial, não dando satisfação ao ónus alegatório que estava cometido ao Requerente.
Explicando.
O que se extrai da alegação do Requerente é que veio a juízo através da presente intimação porque pretende a inscrição do seu nascimento no registo civil português, a fim de poder provar a sua nacionalidade portuguesa e, através de tal circunstância, viajar para Portugal e aqui fixar residência ou noutro país da União Europeia, na qualidade de nacional português e não de emigrante brasileiro e, bem assim, estudar numa universidade portuguesa, “sem perder mais anos”.
Ora, desta factualidade alegada pelo Requerente, não resulta minimamente demonstrada a necessidade de uma decisão de mérito para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito com a natureza de direito, liberdade ou garantia, não resultando sequer concretizada qualquer situação de urgência que inviabilize o recurso às vias normais de tutela contenciosa.
Desde logo, a frequência numa universidade portuguesa sempre poderá ser assegurada, ainda que de modo temporário, tal como sustenta a Entidade Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 87.º-A, da Lei 23/2007 de 4.7, que tem como epígrafe “Autorização de residência para cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, pois que, o Brasil é membro da referida comunidade.
A outro passo, a alegação de fixar residência neste ou noutro país da União Europeia é meramente genérica e conclusiva.
Anote-se que, não invocou o Requerente ser apátrida, nem qualquer outro facto que permita concluir pela verificação de uma situação de premente necessidade de realizar a intenção de residir na União Europeia enquanto cidadão nacional português e europeu e não enquanto emigrante, alegando de modo manifestamente conclusivo que está impedido de exercer os seus direitos como cidadão da União Europeia, com prejuízo dele próprio, sem a mínima descrição desses prejuízos e das circunstâncias do caso concreto.
Em suma, a alegação do Requerente é abstrata e conclusiva, desprovida de quaisquer factos reportados ao seu caso que permitam ao Tribunal concluir que carece da tutela urgente que peticiona, inexistindo no requerimento inicial qualquer elemento que permita concluir que a alegada delonga na decisão do pedido e na inscrição do nascimento do Requerente no registo civil português está a causar-lhe danos ou está prestes a causarlhe danos, que não possam ser removidos ou evitados pelo recurso à ação administrativa.
Ou seja, nada vem alegado que permita concluir que ocorreria uma perda irreversível de faculdades de exercício dos direitos invocados pelo Requerente caso não fosse concedida uma tutela urgente.
(…)
Em face da inobservância do ónus alegatório que sobre si impendia, não pode senão concluir-se que o Requerente não alega, nem demonstra, factos que concretizem a necessidade de uma tutela (de mérito) urgente, não indicando qualquer situação específica em que o exercício do direito fundamental à cidadania, manifestado nos direitos dele derivados, se encontre na iminência de ser recusado ou colocado em causa, por forma a consubstanciar uma preterição ou ofensa ao direito fundamental em questão, não concretizando, de igual modo, de que forma a não tomada de uma decisão urgente compromete esse exercício.
Pelo que, cremos que o Requerente não concretiza na petição, nem demonstra, os pressupostos da urgência, indispensabilidade e subsidiariedade, específicos da intimação para proteção de DLG, não permitindo as causas de pedir invocadas concluir pela verificação de uma situação de especial urgência que imponha a célere emissão de uma decisão de fundo e que, por isso, justifique o recurso ao presente meio processual.
Concluindo-se, portanto, que não se encontra preenchido o primeiro pressuposto do recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 109.º, do CPTA)
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

Antes de mais, àquele que lança mão de uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, cabe alegar factos que traduzam uma situação de indispensabilidade de uma tutela definitiva urgente, o que, naturalmente, se associa à demonstração da insuficiência de tutela através de uma acção administrativa, de natureza não urgente, ainda que associada ao decretamento de uma providência cautelar. Dependendo a utilização de tal meio processual da verificação de pressupostos legalmente definidos, a demonstração dessa verificação cabe a quem do mesmo se pretenda valer, devendo tal revelação assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
Na sua petição, o autor recorrente limita-se a alegar que é descendente de judeus sefarditas portugueses e, tendo requerido, em Outubro de 2021, a aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização, com fundamento no disposto no artigo 6.º, n.º 7, da Lei da Nacionalidade Portuguesa, apesar de já ter sido notificado do deferimento de tal pedido, em Março de 2023, o registo de nascimento correspondente ainda não foi processado, em violação do prazo previsto no artigo 41.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa. Mais alega que a omissão de tal registo impede-o de fixar residência em Portugal ou em outro país da União Europeia - não desejando fazê-lo como imigrante, mas no exercício pleno dos seus direitos civis e políticos -, além de que é ofensiva dos seus direitos à nacionalidade portuguesa e à identidade pessoal, impedindo o seu exercício, nomeadamente para matrícula em universidade portuguesa, pois a prova da aquisição da nacionalidade por naturalização faz-se pelo assento de nascimento, nos termos do disposto no artigo 22.º da Lei da Nacionalidade Portuguesa, precisando o autor de provar a qualidade de nacional português até início do mês de Maio, sem o que perderá mais um ano de estudos, sem que exista qualquer providência cautelar que permita evitar a ofensa dos direitos do autor.
Todavia, o recorrente não concretiza minimamente a ameaça do direito fundamental à cidadania que invoca, previsto no artigo 26.º da Constituição - e cuja protecção a sentença recorrida reconhece como enquadrável no meio processual da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, de modo a aferir-se da necessidade de uma tutela definitiva urgente. Efectivamente, o autor recorrente não descreve uma situação factual de “especial urgência”, de “lesão iminente e irreversível” daquele direito – necessária ao preenchimento do pressuposto da indispensabilidade de uma tutela de mérito urgente -, limitando-se a afirmar uma mera e eventual lesão do direito – decorrente da alegação de que a inscrição do seu nascimento no registo civil é necessária para provar a sua nacionalidade portuguesa e, desse modo, poder fixar residência em Portugal ou em outro país de União Europeia, como cidadão português, e estudar numa universidade portuguesa “sem perder mais anos” -, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer “especial urgência” para o recorrente na prova de aquisição de nacionalidade portuguesa. Com efeito, a mera ultrapassagem do prazo de registo da aquisição de nacionalidade não consubstancia uma lesão iminente e irreversível do direito à cidadania, podendo – como bem se refere na sentença recorrida - a almejada frequência da universidade portuguesa ser assegurada, ainda que temporariamente, nos termos do disposto no artigo 87.º-A da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, norma que permite a um cidadão brasileiro – integrando-se o Brasil na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) - que seja titular de visto de curta duração ou visto de estada temporária ou que tenham entrado legalmente em território nacional requerer em território nacional, junto da AIMA, I. P., a autorização de residência CPLP. Ademais, como também com acerto refere a sentença recorrida, a alegação do autor de fixar residência neste ou noutro país da União Europeia é genérica e conclusiva, não tendo o mesmo alegado factualidade apta a concluir por uma necessidade premente de residir em Portugal ou na União Europeia enquanto cidadão português nem pela ocorrência de danos na demora da concretização do registo de nascimento que pretende, a ponto de justificar uma tutela de mérito urgente.
Assim, o recorrente cinge a sua alegação à invocação genérica de um direito, sem descrever uma situação factual de lesão iminente e irreversível do mesmo.

Ante o exposto, não se revela indispensável a emissão de uma decisão de mérito urgente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito que o autor invoca, não se mostrando, assim, verificado o primeiro dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, pelo que bem andou a sentença recorrida ao absolver o réu da instância.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.


Lisboa, 24 de Abril de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Ricardo Ferreira Leite
Pedro Nuno Figueiredo (em substituição de Marta Cavaleira)