Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:994/22.5BELRA-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:03/15/2024
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INCIDENTE DE SUSPEIÇÃO
FUNDAMENTOS
Sumário:I. Litiga de má quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar (art.º 542º, n.º 2, alínea a), do CPC).
II. A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga, atuação que merece censura e condenação.

III. O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça.

IV. A multa por litigância de má fé deve ser fixada tendo em conta os critérios legais constantes do n.º 4 do art.º 27º do Regulamento das Custas Judiciais, nomeadamente, a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património.

V. Como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva e, simultaneamente, preventiva, que apenas lograrão ser alcançadas se se garantir que a mesma tenha verdadeiro efeito sancionatório punitivo, para além de preventivo.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Decisão

1. O Município ……………., enquanto réu na acção administrativa que corre seus termos no TAF de Leiria, sob o nº 994/22.5 BELRA veio, invocando os artigos 120.º, nº1 e 122.º, nº1, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, requerer que seja decretada a recusa da Senhora Juíza de Direito, Dra. ………………….., juíza titular daquele processo.

Para fundamentar a suspeição, o recusante expende a seguinte argumentação, de que se transcrevem os trechos mais significativos: “


O Juiz titular do processo, melhor referenciado supra, proferiu um despacho com data de 2023/12/06, tendo o mesmo sido observado na aplicação SITAF, não tendo sido notificado ao Município. Despacho que se junta em anexo, como documento número um, e, se dá por reproduzido.
Assim como, o Juiz titular, no mesmo processo, proferiu outro despacho sucessivo com data de 2023/12/07, tendo o mesmo sido notificado ao Município.
O despacho proferido com data de 2023/12/06, deixou de ser observável na aplicação SITAF mandatários, por ocultação ou remoção, não estando disponível a folha/página número 569.
O despacho com data de 2023/12/07:
1.Não faz qualquer menção à existência do despacho proferido a 2023/12/06;
2.Não modificou ou revogou o despacho proferido a 2023/12/06;
3.Tem um conteúdo diferente do despacho de 2023/12/06.
Consideramos admissível que o Tribunal, em despacho sucessivo:
1.Corrija um lapso de escrita;
2.Corrija um lapso de percepção;
3.Corrija um lapso de expressão.
No entanto, o Juiz titular do processo, não pode, nem lhe é admissível, modificar, ocultar ou remover, qualquer ato seu, sem que dessa actuação, fique registo no processo, sob pena de serem desacatados, os mais elementares princípios da integridade e disponibilidade do processo judicial desmaterializado, do processo equitativo e da boa fé processual.
O Juiz titular do processo, ao ocultar ou remover, por si ou por interposta pessoa, do processo, um ato seu, sem que dessa actuação, fique registo, desacatou os mais elementares princípios da integridade e disponibilidade do processo judicial desmaterializado, do processo equitativo e da boa fé processual, lesa a verdade material, que o processo expressa.
O acontecido e relatado supra, foi detetado de modo fortuito.
No entanto, não sabemos se já aconteceu, ou, se vai repetir-se.
O que aconteceu, e, o que, poderá repetir-se, constituem motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança, sobre a sua imparcialidade externa, artigo 120°, n.º1, do CPC.
O ato de ocultar ou remover, um despacho judicial, sem que dessa actuação, fique registo, violou os mais elementares princípios da integridade e disponibilidade do processo judicial desmaterializado.
10°
A República Portuguesa, os órgãos de soberania, os cidadãos, as instituições, os intervenientes processuais, apenas podem acreditar na verdade enunciada pelo processo judicial desmaterializado, se e quando, existir a garantia absoluta, da sua integridade e disponibilidade.
11°
Os factos descritos supra, colocam em crise, a garantia absoluta, da integridade e disponibilidade, do processo judicial desmaterializado, no que a este caso diz respeito;
Como também, colocam em crise o princípio do processo equitativo;
Assim como, colocam em crise a boa-fé processual do Tribunal.
12°
Importa esclarecer, quem realizou, ordenou ou permitiu, a ocultação ou remoção, do despacho com data de 2023/12/06. Estes factos foram objeto de comunicação ao CSTAF.
13°
Requer-se, para esclarecimento do ocorrido, que seja solicitada informação técnica, à entidade que gere a aplicação SITAF, que, com referência a este processo, 944/22.5BELRA, 1ª UO, do TAF de Leiria, informe quem realizou e ou ordenou, na aplicação, a ocultação ou remoção, do despacho do Tribunal com data de 2023/12/06.
14°
Os factos relatados, constituem motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança, sobre a imparcialidade externa, do Juiz titular do processo, artigo 120°, n.° 1, do CPC.
15º
Como refere António A. S. Geraldes, Paulo Pimenta, Luis F. P. de Sousa, "4. Segundo o TEDH, a imparcialidade pode ser apreciada numa perspectiva subjetiva ou objetiva. (...) No que tange à imparcialidade objectiva ou funcional, a mesma deve ser combinada com a teoria da aparência: "justice rnust not only be donc, it must also be secn to be donc".”, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2a ed., Coimbra 2020, p. 156.
16°
Como refere José L. De Freitas, Isabel Alexandre, " 2. (...) Admite-se ainda que tenham relevância para o efeito outras situações surgidas “no contexto, judiciário e até especificamente, na relação processual". “1. (...) Foi assim transformada em exemplificativa uma enunciação que era taxativa, sendo o conceito de suspeição agora definido por uma cláusula geral: qualquer motivo sério e grave que possa levar a desconfiar da imparcialidade do juiz pode fundar a suspeição." Código de Processo Civil Anotado, Volume lü, 4a ed. Coimbra 2021, p. 266 e 267. (…)”

A Senhora Juíza recusada, em vista do disposto no nº2 do artigo 122º do CPC, tomou posição sobre o presente incidente de suspeição, resposta de que se extrai o seguinte, com interesse:
(…) É, na realidade, inusitado tal incidente de suspeição com o fundamento no desentranhamento de um despacho judicial que não consta do sistema, mas que a parte o junta, sendo assim, límpido que o motivo indicado no sistema para tal ter ocorrido, a verificação de “lapso” é de facto verdadeira.
E, tal verdade é ostensiva para a parte média de boa fé, porquanto o despacho desentranhado referia que:
"Notifique-se os Requerentes, para querendo, exercer o seu direito ao contraditório relativamente ao ali alegado, nos termos do artigo 3°, n°. 3 do Código de Processo Civil”
Já o despacho proferido subsequentemente refere o seguinte: 'Requerimento que antecede: Notifique-se a Entidade Requerida, para querendo, exercer o seu direito ao contraditório (artigo 3°, n°. 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos)”.
Ou seja, o motivo indicado no sistema informático “lapso” prende-se com o facto de a titular dos presentes autos ter despachado no sentido de promover o direito ao contraditório relativamente aos Requerentes, quando, o pretendia efetuar em relação à Entidade Requerida.
Sendo que, tal lapso, foi aliás, evidenciado pela U.O deste Tribunal, através de e-mail datado do dia 07 de dezembro de 2023, (…)”

E mais adiante, ainda, afirma que , (…) o princípio que consagra o juiz natural só pode ser afastado quando outros princípios ou regras, de igual ou maior dignidade, o ponham em causa, como sucede quando o juiz não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função, o que, não pode operar no caso em apreço.
Assim sendo, julga a juiz signatária que ofereceu, e, caso seja essa a decisão do Excelentíssimo Senhor Presidente do TCA-Sul, continuará a oferecer garantias de imparcialidade c isenção no exercício da sua função.
Ante o exposto, não estão reunidos os pressupostos para se declarar a suspeição no presente processo, nos termos do artigo 120.° do CPC. (…)”

Recebido o processo neste tribunal foi, por despacho de 24.01.2024, determinada a notificação do I. advogado do recusante para nos termos do artigo 542.º do CPC se pronunciar sobre a sua eventual má fé, para o caso de ser julgada improcedente a suspeição, face ao estabelecido no artigo 130.º, n.º 3, do mesmo diploma, o que fez nos seguintes termos:

(…)

Este advogado, exerce o seu patrocínio forense, com as imunidades necessárias ao exercício do mandato, numa regulação do patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça, artigo 208º da Constituição.
Este advogado, não pode ser impedido, por qualquer autoridade pública ou privada, de praticar atos próprios da advocacia, artigo 69º, do EOA.
Este advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, agindo livre de qualquer pressão, especialmente a que de influências exteriores, artigo 89º, do EOA.
Este advogado, no exercício da profissão, pauta a sua conduta e intervenção no processo, pela cooperação e boa-fé processual, concorrendo para que se obtenha, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, 8º do CPTA.
Este advogado, apenas se recorda, de ter estado presente numa diligência, com a Senhora Juíza de Direito Drª Verónica Bandeira, não existindo qualquer inimizade.
Este advogado, move-se pela defesa do Estado de Direito, da defesa da Integridade e Disponibilidade do processo judicial electrónico, desmaterializado, com componentes diversas, e, de acesso diferenciado, consoante os perfis dos seus utilizadores ou usuários, artigo 24º, n.º 1, do CPTA.
Este advogado, não conhece, e, do que consultou, não se encontra publicado no Diário da República, qualquer ato administrativo ou regulamento, que tenha aprovado o complexo de algoritmos da aplicação informática SITAF, os diversos interfaces para cada tipo de utilizador, e, as permissões de cada perfil, somente detendo experiência de uso como mandatário, e, as permissões detidas por estes, que quanto ao processo, se limitam à consulta do visível no seu interface, à entrega de peças processuais e ao pedido de certidões.
Na consulta do processo, apenas existe a permissão para realizar a descarga de ficheiros em formato PDF, que se encontrem visíveis.
Não é possível como mandatário, observar ou consultar, nada mais.
Remetem-se em anexo, doze documentos em formato PDF, com imagens da interface disponível, no SITAF mandatários, relativas ao processo principal 944/22.5BELRA, de fls 545 a 792, em que se encontra referenciados os dias 23-11-20223 a 25-01-2024, documentos que se dão por integralmente reproduzidos.
Como se referiu, não se conhece a interface da aplicação informática SITAF, disponível para o uso dos Senhores Juízes, nem tão pouco se conhecem as permissões que os mesmos dispõem para, gerir os processos ou gerir as suas interações, com os processos.
10º
A sequência factual, que despoletou o pedido de escusa foi a seguinte, como evidenciam as imagens do interface do SITAF, disponível para os mandatários:
1. No dia 04-12-2023, o Município da ................... e o Presidente da Câmara da ..................., apresentaram um requerimento cada um, requerendo a notificação do Requerente, para suprimir uma deficiência no seu articulado.
2. No dia 05-12-2023, o Requerente apresentou um articulado corrigido, com a junção do documento.
3. No dia 06-12-2023, foi aberta conclusão.
4. No dia 06-12-2023, foi proferido despacho, integrado na aplicação SITAF a fls. 569, o qual posteriormente, ou foi removido, ou deixou de estar visível na interface dos mandatários, sem que disso, exista registo ou menção visível, no SITAF mandatários.
5. No dia 07-12-2023, foi proferido despacho, estando o mesmo visível, a fls. 570.
6. O despacho com data de 06-12-2023, determinava a notificação dos Requerentes para se pronunciarem quanto ao requerido pelo Município da ................... e pelo Presidente da Câmara da ....................
7. O despacho com data de 07-12-2023, determinou a notificação Município da ................... e pelo Presidente da Câmara da ..................., do requerimento apresentado pelo Requerente, no dia 05-12-2023.
8. Os requerimentos apresentados no dia 04-12-2023, pelo Município da ................... e pelo Presidente da Câmara da ..................., nunca foram conhecidos judicialmente, nem tão pouco, sobre os mesmos, foi proferida pronúncia judicial..
9. No dia 18-12-2023, o Município da ................... veio opor o incidente de suspeição.
10. No dia 08-01-2024, foi proferido despacho, em resposta ao pedido de suspeição. (…)
E, após transcrever a resposta dada, em 08.01.2024, pela Senhora Juíza recusante, o Il. Advogado do recusado afirma:
“ (…)
12º
Recorda-se que os requerimentos apresentados no dia 04-12-2023, pelo Município da ................... e pelo Presidente da Câmara da ..................., os quais requeriam a notificação do Requerente, para suprimir uma deficiência no seu articulado, nunca tiveram apreciação e pronúncia judicial.
13º
Como mencionámos, consideramos admissível que o Tribunal, em despacho sucessivo:
1. Corrija um lapso de escrita;
2. Corrija um lapso de percepção;
3. Corrija um lapso de expressão.

14º
No entanto, também consideramos que o desentranhamento de documentos, de um processo judicial, somente é admissível, desde que fique registo, desse desentranhamento, com menção do que foi desentranhado. (…)”

Depois de reproduzir o nosso despacho de 24.01.2024, o Il. causídico do recusante responde diretamente, sobre a sua alegada má-fé do modo que segue:
(…) importa responder frontalmente à imputada litigância de má-fé.
17º
Este mandatário desconhece de modo absoluto, por nunca viu ou utilizou, qual é a interface da aplicação informática SITAF, com que os Senhores Juízes interagem, e, quais as permissões, nesse uso, de que dispõem.
18º
O interface da aplicação SITAF, em uso pelos mandatários, e, as permissões detidas por estes, que quanto ao processo, se limitam à consulta do visível no seu interface, à entrega de peças processuais e ao pedido de certidões.
Na consulta do processo, apenas existe a permissão e possibilidade para realizar a descarga de ficheiros em formato PDF, que se encontrem visíveis.
Não é possível como mandatário, observar ou consultar, nada mais.
19º
Como se demonstram os doze documentos, a interface do SITAF, é a visível nas imagens.
20º
Se dúvidas subsistirem, quanto ao que é visível ou permitido, na interface do SITAF, pelos utilizadores mandatários, requer-se que a entidade gestora desta aplicação remeta informação cabal, relativa à sua utilização pelos mandatários.
21º
Desconhecendo de modo absoluto, por nunca viu ou utilizou, qual é a interface da aplicação informática SITAF, com que os Senhores Juízes interagem, e, quais as permissões, nesse uso, de que dispõem, para desentranharam atos e as alegadas justificações ficam mencionadas, mas não visíveis aos mandatários, não se verifica o elemento objectivo, da alegada conduta de má-fé, nessa parte.
22º
Por outro lado, os requerimentos apresentados no dia 04-12-2023, pelo Município da ................... e pelo Presidente da Câmara da ..................., deviam ter sido objecto de uma apreciação judicial, que com a alteração do teor dos despacho, eventualmente prejudicou.
23º
Este mandatário agiu de boa-fé, com o conhecimento que detinha à data da prática dos atos.
24º
Este mandatário desconhecia de modo absoluto, e, não são minimamente cognoscíveis, no seu perfil enquanto mandatário na aplicação SITAF, quaisquer interações, que os Senhores Juízes, possam desenvolver quanto ao desentranhamento de atos, ou, quanto a outras matérias.
25º
Para um advogado, não é de modo algum despiciendo, observador a não visibilidade ou desaparecimento de um despacho, que existia anteriormente, nesse processo, sem lhe ser possível, por mínimo que seja, compreender, o que está a acontecer.
Consideramos pelo exposto,
Que não se verifica, por qualquer modo, um “(…) comportamento processualmente censurável – objectiva e subjectivamente - o que implicará a sua condenação como litigante de má fé.”, como lhe foi imputado.
(…)

2. Face a todo o exposto e, ainda, ao abrigo do preceituado nos artigos 122.° n.° 2 e 123.° do CPC, cumpre decidir, aqui se dando por reproduzidos, por pertinentes à decisão, para além dos factos descritos no ponto I supra, os seguintes:

1) O despacho proferido pela. Sra Juíza a quo, em 6.12.2023, junto pelo mandatário do Réu com o requerimento de recusa, é do seguinte teor:

2) Em 7.12.2023, foi elaborado o seguinte termo de desentranhamento:


3) Imediatamente a seguir ao termo referido em 2), a Sra. Juíza elabora o seguinte despacho:



3. Apreciando:

Como é sabido, e seguramente o escusante o não ignorará, a lei portuguesa consagra o princípio do juiz natural que se traduz na circunstância jurídica seguinte: intervêm na apreciação e decisão da causa o juiz a quem coube, segundo regras de competência legal previamente determinadas, o processo em distribuição.

Subjacente à consagração deste princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico estão, sobretudo, razões de protecção da parte cujos direitos visa salvaguardar. Ou seja, são sobretudo os direitos da parte, em especial o direito fundamental a ver a sua causa apreciada de forma isenta que determinaram a consagração daquele princípio.

“A independência do juiz é, acima de tudo, um dever - um dever ético -social. A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz de, ao «dizer o direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores, é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a «densidade» da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz. Com o sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência vocacional».

Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e assegurar a confiança gerai na objectividade da jurisdição.

É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nesta imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado «iudex inhabilis»" (Acórdão n.°135/88 do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. II, de 8.9,1988 e integralmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos)

Evocando também aqui a doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, diga-se que “a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva, mas também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada antes e durante o julgamento. Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes. [...] Deve, pois, recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente receara existência de uma falta de imparcialidade...O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas” (caso Hauschildt - 11/1987/134-188, p. 14, § 48, citado pelo Acórdão n°52/92 do Tribunal Constitucional in DR, I A, de 14.3.1992, integralmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos)

Porém, a efectiva existência de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, determinou, cautelarmente, que o legislador consagrasse, a par daquele principio, mecanismos capazes de garantir a imparcialidade e isenção do juiz, numa dupla vertente: como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa e como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Todavia, a tais mecanismos só é lícito recorrer em situações-limite, isto é, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Ou seja, o pedido de suspeição, tal como o de escusa, apenas contempla situações especiais e excepcionais cuja admissibilidade e procedência está dependente da alegação e prova de qualquer um dos fundamentos previstos no artigo 120.° do CPC ou outro que pela sua seriedade e gravidade deva ser considerado adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Este é um entendimento há muito pacífico na jurisprudência sendo que, não obstante o regime contemplado no referido preceito do actual Código constitua, como é notório, uma alteração ao regime anteriormente plasmado no artigo 127.° do referido diploma legal - o legislador substituiu o elenco fechado de fundamentos que anteriormente se mostravam consagrados, por uma norma aberta, integrada por conceitos relativamente indeterminados - não se recolhe da alteração legislativa qualquer razão para que se entenda que o incidente de suspeição viu alterada aquela sua natureza excepcional e, muito menos, que essa alteração tenha subjacente qualquer intenção de transformar o incidente de suspeição num meio de sindicância da actividade jurisdicional do juiz contra o qual o incidente é deduzido.

Pelo que, considerando que no incidente de suspeição o que importa é averiguar se objectivamente ocorre alguma situação capaz de afectar a imparcialidade do juiz visado e não se são justas, equilibradas ou conforme o direito as decisões por aquele no processo proferida, actividade essa que, porque reservada aos recursos, está manifestamente excluída do objecto destes autos, importaria que apreciássemos se, face ao alegado e ao que se mostra comprovado, existe fundamento para julgar procedente o presente incidente de suspeição.

Ora, na situação sub judice, é por demais evidente que os fundamentos invocados pelo recusante no seu requerimento de recusa e até mesmo no pronunciamento para efeitos da análise da má fé suscitada, que supra se reproduzimos, não cabem em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 120.º do CPC, como o próprio recusante até o afirma quando diz “ter estado presente numa diligência, com a Senhora Juíza de Direito, Drª …………., não existindo qualquer inimizade (sublinhado nosso), como também não ocorre no caso sub judicio, relações de parentesco ou de afinidade, grandes intimidades com o juiz da causa, da parte dos respetivos intervenientes ou dos seus advogados.

Mas haverá “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, como exige a lei no citado nº1 do artigo 120.ºdo CPC, e assim se afastar, por suspeição legal , Senhora Juíza da ação de intimação para prestação de informações e passagem de certidão ?

A resposta terá de claramente negativa.

A ocorrência denunciada, concretamente de a Exma. Senhoa Juíza a quo ter desentranhado o despacho de 6.12.2013, cujo teor, diga-se, foi-nos dado a saber pelo escusante com o requerimento de recusa (ponto 1/II) não se extrai motivo sério e grave que possa gerar no escusante – ou, diga-se, em qualquer interveniente processual - um juízo de imparcialidade sobre a Senhora Juíza a quo. Qual, afinal, o fundamento para a putativa imparcialidade do julgador suscitada? Não sabemos; e não sabemos porque não ocorre!

A sua leitura permite extrair apenas e tão-somente que, por lapso manifesto da signatária, foi ordenada a notificação aos Requerentes do articulado que eles tinham apresentado em juízo no dia anterior (cf. artigo 10º da resposta do recusante).

Como igualmente se constata que tal lapso é a causa do desentranhamento da página 569 do Sitaf, i.e. do despacho de 6.12.2023 (vide termo de desentranhamento- ponto 2/II. e a sequência da numeração dos autos principais -sitaf), dado que a Senhora Juíza escusante, minutos após exarar o termo de desentranhamento, profere despacho, desta vez a ordenar que seja notificada a Entidade Demandada da peça processual apresentada pelos Requerentes, para exercer o contraditório (cf. ponto 3/II).

Ora, nada mais do que isso se passou, ficando, pois muitíssimo longe qualquer possibilidade de desconfiar da imparcialidade da própria juíza.

Nem se poderá dizer que tal actividade processual da Sra. juíza escusante não tenha respaldo na lei, dado que é lícito exercer a retificação de erros escrita, nos termos do artigo 249.º CC.

No caso dos autos, a Senhora Juíza no despacho de 6.1.2023, queria escrever “Entidade Requerida”, pois - repete-se - estava a ordenar a notificação de um articulado apresentado pelos requerentes e, por erro notório, ordenou a notificação destes, i.é, dos “Requerentes”.

Daí que, a nosso ver e em rigor, inexistem na situação controvertida factos concretos que criem o receio de parcialidade, quando é certo que para aferir do respeito ou não afectação da garantia de imparcialidade da Senhora Juiza escusante, para efeitos de recusa da sua intervenção nos autos principais.

Ora, a improcedência da suspeição obriga à apreciação da actuação de má fé por parte do recusante (artigo 123.°, n° 3, parte final, do CPC).

No presente incidente, não nos surge nenhuma dúvida que a respectiva dedução se deva enquadrar na figura da litigância de má fé, enquanto conduta ética e processualmente censurável. A dedução da suspeição do juiz, exige naturalmente uma grande prudência do requerente do incidente, de modo a não provocar, injustificadamente, um lastro de desconfiança relativamente a quem tem por função soberana administrar a justiça e, dessa forma, destruir um dos alicerces do estado de direito democrático.

E o recusante - rectius, o seu advogado – bem sabe o teor do despacho de 6.12.20213 e o motivo pelo qual foi extraído do processo digital, que consta do termo de desentranhamento, como igualmente não ignora o conteúdo do despacho que imediatamente se lhe seguiu, sendo, pois, manifesta aos olhos de qualquer um – leia-se bonus pater familias - a desrazão do seu comportamento ao lançar sobre a Exma. Senhora Juíza recusante o anátema da parcialidade, como é ainda inegável que fez uso dos meios processuais de modo reprovável para entorpecer a ação da justiça e protelar a decisão final do caso.

Aliás, o mesmo já sucedeu – pelo menos – no processo n.º 1027/16.6 BELRA-B, por nós muito recentemente decidido.

Em suma, o recusante ao deduzir o incidente de suspeição de juiz sem que para tal existisse fundamento legal, sendo certo que, sendo patrocinado pelo advogado, não o podia desconhecer, agiu de má fé, devendo por isso ser condenado nos termos do artigo 456.º, n.º 1, do CPC e 27.º n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais.

Litiga de má quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar (art.º 542º, n.º 2, alínea a), do CPC).

A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga, actuação que merece censura e condenação. O que é o caso.

O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça. Ora, na situação presente não há desrespeito pelas regras processuais, com o entorpecimento do instituto da suspeição, como é flagrante o desrespeito pela Justiça, ao apelidar de parcial, sem o mínimo de fundamento, o juiz e o tribunal. Tal circunstancialismo é muito grave e merece veemente censura.

A multa por litigância de má fé deve ser fixada tendo em conta os critérios legais constantes do n.º 4 do art. 27º do Regulamento das Custas Judiciais, nomeadamente, a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património. Como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva e, simultaneamente, preventiva, que apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração aquela situação económica, garantindo que tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo.

Na presente situação, a má fé representa uma modalidade do dolo processual que consiste na utilização maliciosa e abusiva do processo, procurando-se com o presente incidente obter um resultado manifestamente não tutelado pela lei processual.

Sendo que nos termos do n.º 3 daquele art. 27.º, “[n]os casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

Na fixação do quantum da multa, dentro da moldura que lhe foi previamente fixada, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39. “De facto, a multa por litigância de má-fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo ” (cfr. Marta Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, 2014, Coimbra, p. 69; ac. de 30.01.2020 do TRGuimarães, proc. n.º 100/17.8T8VRM.G1).

Assim, considerando, todo o exposto, atendendo à moldura previamente fixada, julga-se adequada e proporcional fixar uma multa processual que se fixará em 20 (vinte) UCs.

5. Decidindo:

– Julgo improcedente a suspeição deduzida;

– Condeno o Município da ................... como litigante de má fé, na multa de 20 (vinte) unidades de conta.

Custas do presente incidente de suspeição pelo Município da ..................., com taxa de justiça que se fixa em 2,00 UC (art.s 1.º e 7.º, n.º 4, e tabela II-A, do RCP).

Notifique.

15 de Março de 2024


O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques