Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:522/23.5 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/29/2024
Relator:HÉLIA GAMEIRO SILVA
Descritores:RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
LITIGANTE DE MÁ FÉ
Sumário:A Condenação em litigância de má fé, pressupõe que por parte da AT tenha havido um comportamento intencional, consciente, tendente a induzir ou manter em erro o Tribunal e capaz de enquadrar o conceito de atuação dolosa ou, até, mesmo de diligência grave, suscetível de ser sancionada, a esse título.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de execução fiscal e de recursos contra-ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO


I........, com os demais sinais nos autos, veio, ao abrigo do disposto no artigo 276° e 277.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentar reclamação contra a decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 4 que indeferiu o pedido de suspensão da execução e isenção da prestação de garantia efetuado no âmbito do processo de execução fiscal (PEF) n.º .........64, por com ela, não se conformar .

O Tribunal Tributário (TT) de Lisboa proferida em 24 de agosto de 2023, julgou procedente a reclamação e, em consequência, determinou a anulação do ato reclamado.

Inconformado, o Recorrente, I........, vem recorrer contra a referida decisão, alegando que a sentença não se pronunciou pelo pedido de litigância de má fé da entidade reclamada, situação que configurou como nulidade por omissão de pronuncia nos termos previstos no artigo 615.º n.º 1 alínea d) do CPC.

Por despacho de 09/11/2023, a Mma. Juíza do TT de Lisboa, reconheceu a razão do Recorrente e apreciou o pedido e, suprindo a nulidade suscitada, aditou, o então decidido, ao segmento de direito, da sentença proferida, tendo julgado improcedente a peticionada condenação.

O Recorrente, inconformado, vem interpor o presente recurso jurisdicional, desta decisão tendo apresentado as suas alegações e formulado as seguintes conclusões:

«I. A douta sentença sob recurso não condenou a AT como litigância de má-fé;

II. Na sua resposta à Reclamação a AT rematou assim:

"Deste modo, não tendo o Reclamante efetuado qualquer demonstração probatória relativamente aos fatos constitutivos do direito que alega e demonstrando a AT que não foram apresentados os documentos necessários que permitissem a emanação pelo órgão de execução fiscal de despacho concordante com o requerido, forçoso se torna concluir que o processo de execução fiscal deverá prosseguir os seus termos pois não existe causa suspensiva.";

III. A AT apesar de se encontrar na posse dos nove documentos que fundamentavam o pedido de isenção, alguns por si emitidos na forma de certidão, de os ter junto aos autos no processo instrutor remetido ao Tribunal conforme consta dos factos dados como provados, omitiu de forma consciente e deliberadamente a sua existência, deturpando assim a verdade dos factos, o que consubstancia uma litigância em clara violação dos princípios da boa-fé;

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser revogada a douta sentença sob recurso no segmento que absolveu a AT como litigante de má-fé e substituída por outra que a condene, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»


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Devidamente notificada, a Recorrida nada disse.

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O Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto junto deste Tribunal, pronuncia-se pela improcedência do recurso salientando que “a AT não diz apenas que não foram juntos documentos, mas que não foram juntos documentos que permitam o deferimento do requerido”.

Termos em que conclui que se lhe afigura correta a apreciação efetuada na sentença.


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Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, vem o processo submetido à conferência desta Subsecção, para decisão.

II – QUESTÕES A APRECIAR

Importa, nesta sede referir que, independentemente das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões do recorrente nas alegações de recurso que se determina o âmbito de intervenção do tribunal (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Assim e constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Termos em que, atentas as conclusões das alegações do recurso interposto, a questão que importa aqui decidir se a sentença recorrida errou ao decidir que o comportamento da AT nos presentes autos não atinge o nível da litigância de má fé que lhe vem assacado.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«1. Em 2017-02-07 foi instaurado o PEF n° .........64 contra I........ (Reclamante), por falta de pagamento do ato de liquidação de IRS relativo ao ano de 2012, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2017-01-18.
(cf. certidão de dívida junta aos autos.)

2. O Reclamante apresentou tempestivamente impugnação judicial do ato de liquidação a que se refere o ponto anterior, a qual ainda não teve decisão final.
(cf. doc. junto pelo Reclamante com a petição inicial)

3. Em 2017-03-11, o PEF foi suspenso em virtude de ter sido proferida declaração de insolvência do Reclamante, tendo sido levantada em 29/09/2022, em virtude da exoneração do passivo restante
(cf. artigos 7.° e 8.° da contestação).

4. Em 19/10/2022 o Reclamante apresentou o seguinte requerimento ao Serviço de Finanças de Lisboa 4, destinado a obter a suspensão da execução e a isenção de prestação de garantia:





[…]”.

(doc. com a referência 007644742 do SITAF).

5. Em anexo ao requerimento a que se refere o ponto anterior, o Reclamante juntou, entre outros, os seguintes documentos:

· Sentença do tribunal judicial da Comarca de Lisboa, proferida em 27/05/2016, no processo n.° 7833/16.4TBLSB, que declarou a insolvência do Reclamante;
· Despacho final, proferido em 29/02/2022, no âmbito do mesmo processo, relativo à exoneração do passivo, com o seguinte conteúdo:


“(texto integral no original; imagem)”

· Certidão emanada pela Chefe de Serviço de Finanças de Lisboa 4, em 13/10/2022, certificando que o Reclamante não tem a sua situação tributária regularizada nos termos do artigo 177°.-A e 169.°, n°s 5 e 12 do CPPT.
· Certidão emanada pela Chefe de Serviço de Finanças de Lisboa 4, em 14/10/2022, com o seguinte conteúdo:

· “(texto integral no original; imagem)”


Certidão com o seguinte conteúdo:

“(texto integral no original; imagem)”


· Certidão emitida pelo Instituto de Seguração Social, I.P., relativa à situação contributiva do Reclamante, atestando o registo de 36 anos de salários com a expressa menção dos salários registados nos últimos dez anos para efeitos contributivos, sendo o último ano de salário registado, o ano de 2017.

(cf. doc. com a referência 007644744 do SITAF).

6. Em 27/10/2022 foi proferido despacho de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, pela Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 4, com base na seguinte informação:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. doc. com o n.° 007644741 do SITAF).

*

Inexistem factos não provados com interesse para a decisão.

*

Motivação da matéria de facto:

Conforme especificado nos diversos pontos do probatório, a decisão da matéria de facto efetuou-se com base na análise dos documentos constantes dos autos, não impugnados (cf. artigos 374.° e 376.° do Código Civil), e relativamente aos quais não existem razões para duvidar da respetiva veracidade.»


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De Direito

Tal como deixamos expresso na delimitação do objeto do recurso a questão que ora nos vem colocada consiste apenas em saber se a sentença errou ao julgar improcedente o pedido de condenação da AT, por litigância de má-fé, por considerar que o comportamento desta nos autos, não configura o respetivo conceito.


Alega o Recorrente que “[A]a AT apesar de se encontrar na posse dos nove documentos que fundamentavam o pedido de isenção, alguns por si emitidos na forma de certidão, de os ter junto aos autos no processo instrutor remetido ao Tribunal conforme consta dos factos dados como provados, omitiu de forma consciente e deliberadamente a sua existência, deturpando assim a verdade dos factos, o que consubstancia uma litigância em clara violação dos princípios da boa-fé” ;- concl. III.

E pede a revogação da sentença no segmento que absolveu a AT como litigante de má-fé e sua substituição por outra que a condene.

Quanto a este item diz-nos o texto decisório:

No domínio processual, o princípio geral a observar, decorrente do próprio direito de ação, consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa (CRP) é o de que o processo deve proporcionar às partes a ampla e incondicionada possibilidade de dirimir, com intensidade, liberdade e abrangência, as suas razões de facto e de direito, segundo um espírito de razoabilidade e equilíbrio, mas igualmente sem inibições ou constrangimentos, que possam eventualmente advir do receio de futuras penalizações, assentes no entendimento que o Tribunal vier a adotar sobre os temas em discussão.

O artigo 8° do CPC impõe às partes o dever geral de probidade, enquanto o artigo 542° n.° 1, do mesmo diploma legal prevê a condenação em multa e indemnização à parte contrária, se esta a pedir, para o litigante de má-fé.


Por sua vez, nos termos do n.° 2 do artigo 542° do CPC deve considerar-se como litigante de má-fé aquele que atuando com dolo ou negligência grave: tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [alínea a)]; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factualidade relevante para a decisão da causa [alínea b)]; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou use o processo ou os meios processuais de forma manifestamente reprovável [alíneas c) e d)].

As duas primeiras situações referem-se ao dolo ou negligência grosseira substancial e estão relacionados com a relação material ou de direito substantivo. A terceira situação que se refere ao dolo ou negligência grosseira instrumental diz respeito à relação jurídico-processual.

No primeiro caso o litigante visa a obtenção de decisão de mérito que não corresponda à verdade e à justiça. No segundo a parte procura cansar o seu adversário, somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transação injusta (cfr. neste sentido, acórdãos do TCA Sul de 15.01.2013, proferido no âmbito do processo n.° 6235/12; de 12.06.2014, proferido no âmbito do processo n.° 6726/13; de 04.02.2016, proferido no âmbito do processo n.° 9043/15, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt)

Como tem entendido a jurisprudência, na base da má-fé encontra-se o seguinte vetor essencial: consciência de não ter razão, pelo que é necessário que as circunstâncias do caso induzam o Tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada.


O instituto da litigância de má-fé deve ser, nesta perspetiva, reservado, em moldes relativamente apertados, para as condutas processuais inequivocamente inadequadas ao exercício de direitos ou à defesa contra pretensões, assentando num critério semelhante ao que se encontra subjacente à figura do abuso de direito que se situa apenas no âmbito dos direitos substantivos e está genericamente consagrada no artigo 334°, do Código Civil (neste sentido, Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé , Coimbra Editora, 2008, pág.368 e seguintes).

Em suma, com o instituto da litigância de má-fé pretende-se, pois, acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo Tribunal e pela própria Justiça.

Ora, no caso dos autos, resulta que a AT se limita a emitir posição sobre a relevância probatória de documentos, entendendo que os mesmos, na sua perspetiva, além de não os considerar suficientes, não se revestem da força probatória que o Reclamante invocou, ou seja tal atuação não se subsume à previsão do artigo 542° do CPC.

Ademais, no que concerne à junção de acervo probatório, importa apenas referir que tal atuação também não se subsume a nenhuma das previsões do artigo 542° do CPC, desde logo porque os mesmos foram juntos, estando disponíveis nos autos (tanto assim é que foram considerados em sede de mérito da ação).

Assim, tal como acervou a DMMP, no seu parecer, afigura-se estar apenas em causa uma perspetiva jurídica que não teve acolhimento, na medida em que a prova documental sustenta conclusões diferentes das invocadas pela AT, não se configurando um comportamento que atinja o nível da litigância de má fé por parte desta.”- fim de citação

Concorda-se inteiramente com o assim decidido.

Do mesmo modo, situando-se, como vimos, a situação em apreço no âmbito do procedimento subjacente ao pedido de suspensão da execução fiscal e à isenção de prestação de garantia, não podemos deixar de o equacionar o artigo 104.º da Lei Geral Tributária (LGT) que no seu n.º 1 nos diz que “a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre a litigância de má fé em caso de atuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adotado em situações idênticas.” – o sublinhado é nosso

Contudo, também não se vislumbra em que medida é que procedimento da AT no processo tenha divergido do habitualmente adotado em situações idênticas, tanto mais que conforme também realçou a douta Magistrada do Ministério Publico junto deste Tribunal, a AT não diz, em momento nenhum no despacho de indeferimento do pedido de isenção de garantia que que a impetrante, aqui Recorrente, não juntos documentos, o que diz é que não foram juntos documentos que permitam o deferimento do requerido, entendendo-se a afirmação da AT, como juízo sobre o valor probatório atribuído aos documentos juntos e bem assim, sobre a não junção de outros que, no entender da AT, poderiam levar a outro tipo de conclusão (ponto 6. do probatório).


Em suma, não enxergamos, que por parte da AT tenha havido um comportamento intencional, consciente, tendente a induzir ou manter em erro o Tribunal e capaz de enquadrar o conceito de atuação dolosa ou, até, mesmo de diligência grave, suscetível de ser sancionada, a título de litigância de má fé.

Deste modo, entendemos que o juízo feito no TT de Lisboa, quanto à inexistência de litigância de má fé por parte da AT, não merecem qualquer censura.

Como tal negamos provimento ao recurso e mantemos a decisão recorrida, ao que se provirá na parte do dispositivo do acórdão.

III - Decisão

Termos em que, acordam os juízes da Subsecção de Execução fiscal e Recursos Contraordenacionais do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente

Registe e notifique

Lisboa, 29 de fevereiro de 2024


Hélia Gameiro Silva – Relatora
Lurdes Toscano – 1.ª Adjunta
Catarina Almeida e Sousa – 2.º Adjunta
(com assinatura digital)