Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:281/20.3BESNT-A
Secção:CA
Data do Acordão:12/16/2021
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:PROVA PERICIAL;
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA;
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I. A prova pericial civil não se encontra subtraída à livre apreciação do julgador, conforme decorre do disposto nos artigos 389.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

II. O princípio da livre apreciação da prova não pode implicar arbitrariedade por parte do julgador, a quem cabe apreciar a prova pericial segundo a sua experiência, prudência e bom senso, com a apresentação da fundamentação devida caso divirja da conclusão do perito.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
J…, representado por A…, na qualidade de tutora legal, intentaram ação executiva para pagamento de quantia certa contra a Caixa Geral de Aposentações, pedindo a sua condenação a pagar-lhe uma cadeira de rodas elétrica, no valor de € 40.567,26, assim executando a sentença proferida em 26/06/2020 e confirmada pelo TCA Sul.
Por sentença de 14/09/2021, o TAF de Sintra julgou a ação parcialmente procedente, absolveu a executada do pagamento ao exequente da quantia de € 40.567,26, para aquisição de cadeira de rodas elétrica, e condenou a executada a atribuir e fornecer ao exequente uma cadeira de rodas elétrica, tipo Dhalia, com as características ali descritas.
Inconformada, a executada interpôs recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“1.ª O presente recurso cinge-se, apenas, à parte da Sentença que condenou a CGA “…a atribuir e fornecer ao exequente J… uma cadeira de rodas eléctrica...”
2.ª O Tribunal a quo decidiu não acompanhar as conclusões vertidas no exame pericial cuja realização foi determinada pelo próprio Tribunal a quo (cfr. ponto 5 dos Factos Assentes)
3.ª A CGA não coloca em causa que a condição do Exequente requeira uma cadeira de rodas “…tipo DHALIA: Cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 45% e reclinação de encosto de 30%; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte gémeos; apoio de pés ajustáveis em ângulo e profundidade; apoio de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multi ajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multi reguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral ( Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável…” (tal é o que se encontra expresso no exame pericial)
4.ª Mas não se pode concordar com a decisão proferida, uma vez que foi o próprio Tribunal a quo a pugnar por uma solução em que fosse dada a palavra aos peritos médicos sobre as especificações técnicas da cadeira de rodas necessárias à condição do Exequente, determinando a realização de um exame pericial a realizar no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
5.ª Exame pericial que se terá ficado a dever – na interpretação deste Instituto Público – ao facto de o Tribunal a quo não ter considerado suficiente a avaliação feita pelo médico assistente designado pela CGA nos termos do n.º 1 do art.º 28.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (Dr. D…, Especialista em Medicina Física e de Reabilitação), plasmada no Relatório pericial produzido em 2021-05-20, a que se alude no ponto 4 dos Factos Assentes.
6.ª No exame pericial determinado pelo Tribunal a quo no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, que consta parcialmente transcrito no ponto 5 dos Factos Assentes, resulta o seguinte:
- Que foram testadas várias opções de cadeira de posicionamento;
- Que foi testada a opção de cadeira de rodas elétrica.
e que na análise efetuada por aquele exame pericial, o Exequente “…não tem, neste momento, capacidade de condução autónoma de cadeira de rodas eléctrica…” tendo apenas “…indicação para utilização de cadeira de rodas de conforto e posicionamento, tipo Dhalia®: Cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 459 e reclinação de encosto de 30°; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte de gémeos; apoio de pés ajustáveis em ångulo e profundidade; apoios de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multi-ajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multi-reguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral (Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável”
7.ª Em face da conclusão alcançada pelo exame pericial determinado pelo Tribunal a quo, segundo a qual o Exequente não tem capacidade de condução autónoma de cadeira de rodas elétrica (cumprindo recordar que pelo médico assistente designado pela CGA nos termos do n.º 1 do art.º 28.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, Dr. D…, Especialista em Medicina Física e de Reabilitação, já alertava para o facto de o mesmo não apresentar “…a aptidão visual e cognitiva necessária para uso de CR elétrica autonomamente, com segurança, e os seus défices poderão configurar fundamento clínico de perigo para o examinando e/ou terceiros.”) – não se compreende por que motivo decidiu o Tribunal a quo seguir uma solução diferente da defendida pela ciência médica, e condenar a CGA a atribuir e fornecer ao Exequente “…uma cadeira de rodas eléctrica…”.
8.ª Em síntese, não pode a CGA concordar com a decisão recorrida, que optou por seguir uma solução que diverge quer das conclusões vertidas no Relatório de 2021-05-20 do médico assistente designado pela CGA nos termos do n.º 1 do art.º 28.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (cfr. ponto 4 dos Factos Assentes), quer das conclusões vertidas no exame pericial cuja realização foi determinada pelo próprio Tribunal a quo (cfr. ponto 5 dos Factos Assentes).
Termos em que deverá ser revogada a decisão recorrida, na parte em que condenou a CGA “…a atribuir e fornecer ao exequente J… uma cadeira de rodas eléctrica...” e substituída por outra que tenha em consideração as conclusões vertidas no exame pericial, sobre as especificações técnicas da cadeira de rodas adequadas à condição do Exequente.”
Não foram apresentadas contra-alegações.

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do erro de julgamento da sentença recorrida ao não seguir as conclusões vertidas no exame pericial.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 26 de Junho de 2020 foi proferida Sentença por este Tribunal, no âmbito do Processo nº 281/20.3 BESNT, interposto pelo ora exequente contra a Caixa Geral de Aposentações, cuja Decisão foi do teor seguinte:
“Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência: a) condena-se a entidade demandada no pagamento de cadeira de rodas de acordo com as especificações técnicas necessárias à condição do Autor, a definir por declaração médica;
b) Condena-se a entidade demandada a pagar ao autor o subsídio de prestação por assistência a terceira pessoa, com os limites previstos no artº 17º do decreto lei nº 503/99, de 20.11” – dá-se por reproduzida a Sentença que consta de fls. 9 a 19
2. A Caixa Geral de Aposentações interpôs recurso para o TCA Sul, mas apenas quanto à matéria que consta da alínea a) supra referida, tendo sido proferido Acórdão em 24 de Setembro de 2020, que “negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida” – dá-se por reproduzido o Acórdão do TCA Sul que consta de fls. 20 a 31.
3. Em 29/04/2021, o exequente J… veio interpor a presente acção executiva (autuada por apenso à acção principal), com o objectivo de fazer cumprir as Decisões Judiciais referidas em 1 e 2, pedindo a condenação da executada CGA a pagar ao exequente a quantia de € 40 567,26, valor, alegadamente, de uma cadeira de rodas eléctrica para o exequente – cf. p.i. que se dá por reproduzida.
4. No decurso da presente acção, e na sequência do Despacho de 26/06/2021, citando os arestos judiciais e o Relatório do médico assistente designado pela própria executada, esta concordou “na realização de exame ao exequente no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a fim de complementar e prosseguir o exame de 2021-05-21 realizado pelo dr. D…” – cf. Requerimento de fls. 66.
5. Realizado tal exame foi elaborado Relatório, onde consta o seguinte, no que ora importa:
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, a questão a decidir cinge-se a saber se ocorre erro de julgamento da sentença recorrida ao não seguir as conclusões vertidas no exame pericial.

No caso dos autos, o Tribunal a quo determinou a realização de exame pericial, constando do respetivo relatório, em síntese (fls. 200/203 SITAF):
- foram testadas várias opções de cadeira de posicionamento;
- foi testada a opção de cadeira de rodas elétrica.
- concluiu-se que o exequente não tem, neste momento, capacidade de condução autónoma de cadeira de rodas elétrica, tendo indicação para utilização de cadeira de rodas de conforto e posicionamento, tipo Dhalia®: Cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 459 e reclinação de encosto de 30°; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte de gémeos; apoio de pés ajustáveis em ângulo e profundidade; apoios de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multi-ajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multi-reguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral (Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável.
Consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
No caso dos autos, as instâncias apenas determinaram a necessidade de atribuir uma cadeira de rodas ao Autor, porém, sem quaisquer especificações, características ou exigências técnicas que permitissem concluir pelo valor peticionado pelo exequente.
Este deveria ter intentado uma execução para prestação de facto ou de coisas (arts. 162º e ss. do CPTA – atribuição de uma cadeira de rodas eléctrica, específica às suas necessidades) e não uma execução para pagamento de quantia certa, porquanto, na acção principal nada tinha ficado determinado a este respeito.
Porém, obedecendo ao Princípio da Adequação Formal plasmado no artº 547º CPC, o Tribunal adoptou a tramitação processual adequada às especificidades do caso dos autos, com a concordância da própria entidade executada – Caixa Geral de Aposentações, I.P. – a qual promoveu e colaborou nos exames médico periciais ao exequente, com o objectivo de se atingir a justa composição do litígio, ou seja, a atribuição de uma cadeira eléctrica ao exequente, com as especificações técnicas adaptadas ao seu caso concreto, independentemente do custo da mesma.
É que, não estando o tribunal sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito ( artº 5º nº 3 CPC), cumpre-lhe o dever de boa gestão processual, servindo-se dos factos alegados pelas partes, e não mais (arts. 5º e 6º CPC).
In casu, tendo-se concluído pelas especificações da cadeira eléctrica a atribuir ao exequente, é esta e não outra qualquer diferente, que o Tribunal deve condenar a executada a fornecer ( cf. nº 5 do probatório).
Tal decisão não se pode manter.
Decorre do artigo 607.º, n.º 5, do CPC, que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, o que não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados.
Nos termos definidos no artigo 388.º do Código Civil, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
Esta prova pericial civil não se encontra subtraída à livre apreciação do julgador, conforme expressamente decorre do disposto no artigo 389.º do Código Civil, ao contrário do que sucede com a prova pericial penal.
Todavia, a fim de evitar que o princípio da livre apreciação da prova resvale em arbitrariedade, a lei exige que a prova pericial seja apreciada pelo juiz, segundo a sua experiência, prudência e bom senso, mas com inteira liberdade, sem se encontrar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, 1981, págs. 566/571, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, pág. 340).
No caso vertente, decorre do exame pericial que o exequente não tem, neste momento, capacidade de condução autónoma de cadeira de rodas elétrica, tendo apenas indicação para utilização de cadeira de rodas de conforto e posicionamento, tipo Dhalia: cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 45% e reclinação de encosto de 30%; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte gémeos; apoio de pés ajustáveis em ângulo e profundidade; apoio de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multiajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multireguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral ( Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável.
Sucede que na decisão recorrida, aparentemente seguindo-se sem quaisquer desvios as conclusões do exame pericial, se acrescentou a característica ‘elétrica’, que não consta das especificações constantes daquele exame.
Sem que seja apresentada qualquer fundamentação, que permita amparar o assim decidido.
Cumpre, pois, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a executada a atribuir e fornecer ao exequente uma cadeira de rodas elétrica e, mantendo o juízo de parcial procedência da presente ação, condenar a executada a atribuir e fornecer ao exequente uma cadeira de rodas de conforto e posicionamento, tipo Dhalia: cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 45% e reclinação de encosto de 30%; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte gémeos; apoio de pés ajustáveis em ângulo e profundidade; apoio de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multiajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multireguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral ( Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a executada a atribuir e fornecer ao exequente uma cadeira de rodas elétrica e, mantendo o juízo de parcial procedência da presente ação, condenar a executada a atribuir e fornecer ao exequente uma cadeira de rodas de conforto e posicionamento, tipo Dhalia: cadeira de rodas de posicionamento versão de trânsito com sistema de basculação de assento até 45% e reclinação de encosto de 30%; apoios de pernas reguláveis em ângulo, destacáveis e rebatíveis com suporte gémeos; apoio de pés ajustáveis em ângulo e profundidade; apoio de braço destacáveis, ajustáveis em altura; apoio de cabeça simples com barra multiajustável; suportes de tronco bilaterais almofadados e multireguláveis; cinto pélvico de 2 pontos Bodypoint tamanho M com fivela metálica e ajuste bilateral ( Rear-Pull); tabuleiro almofadado destacável.
Sem custas, atendendo aos princípios da causalidade e do proveito.

Lisboa, 16 de dezembro de 2021
(Pedro Nuno Figueiredo)

(Ana Cristina Lameira)

(Catarina Vasconcelos)