Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 396/18.8BECTB |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 10/10/2019 |
Relator: | DORA LUCAS NETO |
Descritores: | PERDA DE MANDATO; ELEITO LOCAL; INCOMPATIBILIDADES E IMPEDIMENTOS; TITULAR DE CARGO POLÍTICO; PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE; PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE; RESPONSABILIDADE DE PENDOR OBJETIVO; SUSPEIÇÃO DE FAVORECIMENTO PESSOAL; ACÇÃO OU OMISSÃO. |
Sumário: | I. Verificando-se que o pai e o sogro do Réu detêm, cada um, uma quota na empresa .........., equivalente, cada uma, a 17% do respetivo capital social. II. O Réu encontrava-se impedido de intervir em qualquer procedimento contratual em que essa empresa fosse interessada - cfr. artigos 69.°, n.° 1, alínea b) do CPA e 4.°, alínea b), subalínea iv) da Lei n.° 29/87, de 01.08. III. Acresce que o artigo 8°, da Lei n.° 64/93, de 26.08 - que aprovou o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Dirigentes -, estabelece que as empresas cujo capital seja detido, numa percentagem superior a 10%, por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva em união de facto, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas IV. Enquanto no primeiro caso os impedimentos em causa abrangem o próprio Réu, dada a posição relativa em que se encontra face aos procedimentos contratuais em apreço, neste último caso, o impedimento atinge a empresa, por se pressupor que a sua participação nessas condições cria um constrangimento no momento da decisão de avaliação das propostas, seja quem for o agente encarregado dessa tarefa; V. Considerando a consagração de tais impedimentos, sob a égide dos princípios da imparcialidade e da transparência, são estes indissociáveis da suspeição de que foi a eventual intervenção do titular do órgão ou do cargo que, em teoria, condicionou ou foi suscetível de ditar o desfecho dos procedimentos em apreço, in casu, três ajustes diretos; VI. Atendendo ainda a que a aplicação das sanções cominadas no n.º 3 do artigo 10.º da mesma Lei n.º 64/93, de 26.08, têm como suporte fáctico um ato ou omissão do Réu, pressupondo, ou a prática de uma conduta merecedora de uma censura política, ou a omissão de um determinado comportamento que lhe era imposto que assumisse, à luz dos seus direitos e deveres funcionais, e que pura e simplesmente descurou; VII. Estamos perante uma responsabilidade de pendor objetivo que visa obviar a que a suspeição de favorecimento pessoal e familiar, por parte do Presidente da Câmara de ..............................., não coloque em causa a imparcialidade da própria Câmara Municipal, e que, por seu turno, não haja o risco de a empresa .............., beneficiar indevidamente de vantagens inerentes à sua particular relação fiduciária com o Réu e que, de outro modo, alegadamente, não obteria; VIII. O legislador valorou tais circunstâncias como relevantes, por portadoras de uma carga axiológica negativa, de molde a justificar a intervenção punitiva da comunidade, associando-as a uma sanção – perda do mandato -, independentemente da consciência do ato e da vontade, in casu, do Presidente da Câmara de .......................... |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I. Relatório L……, R. e ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional da sentença de 19.06.2019 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que na ação administrativa urgente, para declaração de perda de mandato, intentada pelo Ministério Público, julgou procedente a ação procedente e, em consequência, declarou a perda do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de …………………..
As alegações de recurso que o Recorrente apresentou culminam com as seguintes conclusões: 1. Na petição inicial, o Autor alegou que “14. [...] não desconhecia o réu que tais intervenções lhe eram vedadas por lei”, 2. e, na contestação, o Réu alegou o seguinte: “ 74. [...] desconhecia o impedimento consignado no art° 8.º da LII [...]. 78. Quando outorgou os dois referidos contratos com a S….., o Réu não tinha consciência de poder estar legalmente impedido de participar em atos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus. 79. Só depois de celebrado o segundo desses contratos foi alertado pelos Serviços para a possibilidade de existir esse impedimento legal. 80. [...] o Réu procedeu em conformidade com o alerta recebido e ordenou, de imediato, que não fosse, como não foi, pago o preço acordado. 82. [...] mais tarde, foi alertado para o impedimento previsto no art° 8o da Lei n° 64/93, de 26 de agosto, no sentido de que as empresas abrangidas por tal preceito não podiam celebrar contratos com o MUNICÍPIO, independentemente de o Réu os outorgar ou não e intervir ou não em qualquer fase do respetivo procedimento concursal. 83. Por essa única razão, ordenou aos Serviços, em 2017, que não voltassem a consultar nem permitissem a candidatura da S..... para fornecimento de bens ou serviços ao MUNICÍPIO”. 3. A douta sentença recorrida omitiu todos estes factos no elenco dos provados e não provados descrito na sentença, apesar de essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em que assenta a peticionada perda do seu mandato. 4. Ainda, porém, que se os qualifique como complementares ou instrumentais, estariam sujeitos a ponderação e a consequências processuais idênticas. 5. A sentença nada refere, em sede de matéria de facto, sobre: - o alegado conhecimento ou desconhecimento do Réu acerca do impedimento de intervir em procedimentos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus, e, bem assim, acerca do impedimento de tais sociedades participarem em concursos de fornecimentos de bens e serviços ao Município; - os momentos em que o Réu foi alertado pelos Serviços para a existência desses impedimentos; - a razão por que o Réu decidiu excluir a S..... do fornecimento de bens ou serviços ao MUNICÍPIO e o momento em que tomou essa decisão; 6. e deu como não provado o momento temporal em que o Réu ordenou que não fossem pagos os serviços prestados pela S..... no âmbito da execução do contrato “ex-H……”. 7. O processo contém todos os elementos necessários para que o facto alegado pelo Autor no n° 14° da petição inicial (conhecimento da proibição legal) tivesse sido e haja de ser considerado não provado, e para que aqueles factos alegados pelo Réu na contestação, tivessem ficado e tenham de ficar assentes, porque provados. 8. Inculcam decisivamente essa conclusão os depoimentos das testemunhas F....... e A......., cuja coerência, credibilidade e rigor a sentença não coloca em causa, e cujos segmentos mais relevantes foram transcritos no texto desta alegação, com indicação dos minutos da respetiva gravação, e aqui se dão por reproduzidos. 9. Destes depoimentos resulta à evidência que os próprios Serviços administrativos municipais — que, sem qualquer influência ou participação do Recorrente (alínea KK) dos factos provados), promoveram, acompanharam e executaram todas as fases dos procedimentos contratuais em causa — desconheciam os constrangimentos legais decorrentes, designadamente, do art° 8o da Lei n° 64/93, de 26 de agosto. 10. Mais resulta que, quando os Serviços alertaram o Recorrente para a primeira vertente desses constrangimentos (a participação do Réu nos procedimentos concursais), este ordenou imediatamente que não fossem pagas, como não foram, as obras da “ex-H.......”; 11. Resulta também que os Serviços só alertaram o Recorrente para o facto de a S..... não poder celebrar contratos com o Município, depois de ter sido outorgado o terceiro contrato (obra da “Escola Cidade de …………………..”), 12. e que o Recorrente ordenou, imediatamente, que a S..... não voltasse a ser consultada nem contratada, como não voltou a ser. 14. A douta sentença incorreu, assim, em erro de julgamento consubstanciado na omissão no elenco dos factos não provados daquele que o Autor alegou no n° 14 da petição inicial (cfr. nota 11), e de idêntica omissão no elenco dos factos provados daqueles que o Réu alegou e ficaram reproduzidos acima, com a única ressalva da referência ao ano de 2017 (n° 83 da contestação) que ficou indemonstrada. 15. Ao decidir de modo diverso, a douta sentença em mérito ofendeu o disposto nos art°s 94°, 2 e 3, CPTA, e 5o e 607°, 4, CPC, impondo- se que o Tribunal ad quem altere a decisão e considere provados tais factos — art° 662°, 1, CPC. 16. Salvo as decisões de não pagar à S..... o preço da obra executada ao abrigo do contrato da ex-H....... e de proibir essa empresa de voltar a ser consultada e contratada pelo MUNICÍPIO, 17. todas as intervenções do Réu nos procedimentos contratuais sub judice limitaram- se a concordar com as resoluções dos serviços da autarquia, assumidas por iniciativa deles, sem influência nem participação sua. 18. Ora, os art°s 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto, (na redação introduzida pelo art. 248° da Lei n° 42/2016, de 28 de dezembro) e 36° do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, impedem os titulares de órgãos executivos das autarquias locais de decidirem contra a resolução dos técnicos dos respetivos serviços, sob pena de responsabilidade reintegratória. 19. Tais preceitos assentam no princípio geral de que o parecer dos técnicos se presume fundamentado e legal e, por isso mesmo, é não só obrigatório como, em regra, vinculativo. 20. Seguindo o caminho da interpretação enunciativa (pela qual o intérprete deduz de um preceito legal a norma que nela está virtualmente contida) e fazendo apelo ao argumento a minori aã majus (a lei que proíbe o menos, proíbe o mais) não podem restar dúvidas de que se tais preceitos, para o efeito menor da responsabilidade civil reintegratória, proíbe o autarca de decidir contra o perecer dos técnicos, por maioria de razões o proíbe para o efeito maior da responsabilidade tutelar (perda de mandato) ou criminal. 21. Aliás, pertencendo os Ministros e os membros representativos de autarquia local para efeitos criminais à mesma categoria de titulares de cargos políticos — cfr., as alíneas d) e i) do n° 1 do art° 3o da Lei n° 34/87, de 16 de julho -, violaria o princípio constitucional da igualdade consagrado, ia. no art° 13°, 1, CRP, recusar-se nesta matéria aos titulares de órgãos autárquicos o regime-regra do art° 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, que obriga os Ministros a respeitar as resoluções dos técnicos e os iliba de responsabilidade civil e criminal quando as tenham adotado. 22. Até pela razão acrescida da legitimação eleitoral dos órgãos autárquicos, o conjunto normativo formado pelos art°s 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, e 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto (redação atual), assim interpretado, seria inconstitucional. 23. O art° 248° da Lei n° 42/2016, de 28 de dezembro, que alterou a redação do art° 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto, é uma lei interpretativa, que pôs termo a uma controvérsia recorrente da jurisprudência, sendo de aplicação imediata, face ao disposto no art° 13° do Código Civil. 24. Como sempre o seria por aplicação do princípio geral do direito penal e tutelar da aplicação retroativa da lei mais favorável. 25. Não têm, por isso, fundamento as afirmações assertivas e irrestritas constantes da douta sentença, nos termos das quais o Réu “pod[ia] concordar ou não com as propostas efetuadas e, neste último caso, afastar-se das mesmas e decidir de outro modo” (fls 33), e “podia e devia [...] ter obstado a que a empresa S..... fosse convidada a participar [nos] procedimentos” porque “essa obstaculizarão dependia unicamente de s”’ (fls 61). 26. O autarca decisor só pode contrariar a resolução dos técnicos desconforme com a lei, se tiver conhecimento efetivo da lei com a profundidade que lhe permita sustentar o seu dissenso. 27. Se e quando o decisor se limita a concordar com a resolução dos técnicos e esta se revelar ilegal, não pode senão presumir-se que desconhece a lei violada. 28. O ónus do conhecimento da lei impende sobre os técnicos e não sobre o autarca; o desconhecimento da lei pelo decisor é a regra e o seu conhecimento é a exceção. 29. Também por isso e sempre à luz do regime imposto pelos art°s 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, e 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto (redação atual), é indefensável e descabida a tese sobraçada a fls 54 da sentença, segundo a qual “o recorrente, ao aceitar o múnus para que foi eleito, tinha o dever de obter um mínimo de preparação técnica ou de conhecimentos necessários ao seu desempenho, se ainda o não possuía, e de se informar devidamente sobre as obrigações que o mesmo acarretava.” 30. A questão nuclear da culpa grave do Réu enquanto requisito essencial da sanção tutelar da perda de mandato (art° 242°, 3, CRP) não se resolve pela via da sua liberdade decisória (que não existe) nem pelo princípio iluminista de irrelevância do desconhecimento da lei (que se mostra espúrio neste domínio). 31. Porque estamos no domínio de condutas axiologicamente neutras, nem a consciência da ilicitude (vale por dizer: o conhecimento da proibição legal) nem a censurabilidade do erro decorrem naturalmente da violação da norma. 32. Têm de ser alegadas, provadas e demonstradas, ainda que, porventura, através de presunções naturais. 33. O Tribunal a quo omitiu nos factos provados o conhecimento da proibição alegado pelo Autor. 34. Omitiu, por isso, um requisito absolutamente essencial da culpa grave em que se funda a sanção tutelar da perda de mandato. 35. Acresce que a culpa grave postulada pelo art° 242°, 3, CRP, tem de assumir a modalidade do dolo específico, quando a perda de mandato radica na intervenção do autarca em procedimento de que está impedido (art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96, de 1 de agosto). 36. O autarca tem de agir com a intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiro e que constitui um facto a provar e que, no caso vertente, não se provou. 37. Não basta, por isso, sequer que o autarca atue com a consciência da proibição legal e da ilicitude da conduta. 38. A sanção extrema da perda de mandato não é mesmo compaginável com o dolo eventual nem com o dolo necessário. 39. O dolo juridicamente relevante neste campo é — e apenas é — o dolo direto e específico consubstanciado na intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiro. 40. A suposta violação por parte do Réu do “dever de obter um mínimo de preparação técnica ou de conhecimentos necessários ao seu desempenho”, a que alude a sentença e que não existe nesta matéria da conformidade obrigatória das decisões com as resoluções dos técnicos, poderia, quando muito, abrir a porta à discussão dum símile da culpa pela formação da personalidade, mas não permite inferir o dolo direito e muito menos o dolo específico do agente. 41. Este requisito conflitua com a solução propugnada pela douta sentença no sentido de que “mesmo que se considerasse que a intervenção do Réu nos aludidos procedimentos contratuais teve em conta a melhor prossecução do interesse público”, a sua conduta é passível da sanção da perda de mandato. 42. A douta sentença invoca três argumentos para arguir a “intenção [do Réu] de obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem”, que, todavia, não consta sequer — como tinha de constar — do elenco dos factos provados: - a contratação da S..... coloca-a numa “situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação a outros concretos e eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis"; - “a celebração de um contrato público fornece um benefício económico à entidade escolhida: esta acede a uma vantagem económica pelo facto de lhe ter sido adjudicado um contrato público”: - “o Réu decidiu [...] convidar as empresai [ao que interessa aqui, a S.....], logo, “colocou-as numa situação de vantagem perante as demais empresas do setor que poderiam igualmente efetuar as empreitadas em causa e que não tiveram a oportunidade de acesso a esses procedimentos”. 43. Salvo o respeito devido, é clamorosa a inconsistência desta argumentação que nada nos diz sobre a intenção do Réu — sobre se ele atuou com a intenção de proporcionar à S..... aquela suposta vantagem —, 44. e que pressupõe que existiam outras empresas interessadas e com capacidade para concorrerem à execução das obras, o que não está demonstrado, nem sequer foi alegado. 45. Os argumentos em referência apelam a considerações abstratas, de natureza genérica, não se tenho o Tribunal preocupado em conferir da sua verificação no caso concreto. 46. Tais argumentos em que a douta sentença se baseia para dar arguir a culpa do Réu, na modalidade de dolo direito e específico, correspondem a um indisfarçado dolus in re ipsa, tão aberrante em termos de responsabilidade tutelar quanto todos reconhecem sê-lo no plano da responsabilidade penal, disciplinar ou contraordenacional. 47. E tanto mais aberrante quanto é certo que, reforçados pelo apelo à presunção inilidível de parcialidade, inculcam a responsabilidade objetiva do agente que a lei (ia., o art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96) inequivocamente exorciza. 48. Dessa presunção resultaria que a intervenção dum autarca no procedimento administrativo que lhe estivesse vedado, acarretaria sem apelo nem agravo a perda do respetivo mandato, fosse qual fosse a intenção com que tivesse agido. 49. Não é esse o regime legal. 50. Assim sendo, como é, também porque não se provou que o Réu agiu com a intenção de “obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrém, falta um requisito essencial para a declaração da perda de mandato e a douta sentença ofendeu o disposto no art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96, de 1 de agosto. 51. O art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96, de 1 de agosto, na interpretação sufragada expressis verbis pela douta sentença em mérito, nos termos da qual esse normativo consagra uma presunção absoluta e inilidível de parcialidade que implica a culpa grave do autarca que intervenha em procedimento que lhe esteja vedado, é inconstitucional por violação do art° 242°, 3o, CRP, e do princípio da culpa que emana da Constituição e que se deduz da dignidade da pessoa humana (art° 1.º, CRP) e do direito de Uberdade (art° 27°, 1, CRP). 52. Ainda que assim não fosse, sempre teria de reconhecer-se que a sanção imposta ao Réu viola o princípio da relação de adequação proporcionalidade da sanção à falta cometida, que decorre do art° 242°, 3, CRP, que exige que a perda de mandato dos autarcas tenha “por causa ações ou omissões ilegais graves". 53. A sanção da perda do mandato imposta pela douta sentença recorrida mostra-se clamorosamente desadequada e desproporcional às circunstâncias da falta cometida pelo Réu ao intervir nos procedimentos concursais sub judice, porque, sem desconsiderar a questão essencial de ele desconhecer o impedimento legal e de a empresa contratada prestar serviços ao MUNICÍPIO há dezenas de anos, sem que alguém tivesse suscitado dúvidas sobre a legalidade desses contratos, - o Réu limitou-se a concordar com as resoluções dos técnicos; - foi a Divisão de Obras, Equipamentos e Infraestruturas da Câmara Municipal de ……………… quem detetou a necessidade de se fazerem as obras inerentes aos três contratos referidos; - o Réu não teve qualquer influência ou participação nas propostas de abertura dos procedimentos, na indicação dos concorrentes: todas essas propostas foram efetuadas pelos respetivos serviços administrativos; - as obras foram sempre adjudicadas pelo menor preço e executadas com qualidade e nos precisos termos contratados. 54. Também por esta razão, a douta sentença recorrida violou os art°s 8.º, 2, da Lei n° 27/96, de 1 de agosto, e 242°, 3, CRP, pelo que deve ser revogada.»
O Ministério Público, ora Recorrido, apresentou contra-alegações, nos seguintes termos: «A douta sentença recorrida merece a nossa concordância, pois faz correcta apreciação da matéria relevante no caso, aplicando as regras jurídicas que aí se impunham. Na verdade, ao contrário do ali exaustivamente explanado, o certo é que a ignorância da lei não aproveita a ninguém, conforme decorre do princípio geral previsto no artigo 6° do Código Civil. Acresce que mesmo aceitando, conforme alegado, que só após o contrato celebrado em 9 Novembro de 2015 se ter apercebido do impedimento em causa, o certo é que em data posterior- 13-04-2016-, conforme resulta provado na sentença sob o ponto HH), foi novamente assinado contrato pelo Município que leva, em consequência, de acordo com o doutamente decidido pelo tribunal “ a quo” à perda de mandato do recorrente. - não havendo dúvidas sobre a verificação in casu da alegada consciência da ilicitude. Por outro lado, as considerações explanadas pelo recorrente para se eximir de responsabilidades não são susceptíveis de produzir tal efeito atento o disposto no artigo 35°, n° 1 al. a) da Lei n° 75/2013, de 12 de Setembro, nem afasta a obrigação de conhecimento do impedimento em causa por parte do gabinete jurídico. De resto, do depoimento da testemunha F......., oficial público em tais escrituras, resulta que o mesmo tinha conhecimento da previsão legal de tal impedimento em abstracto que devia ter transmitido ao recorrente. Por último, quanto ao afastamento da intenção de obtenção vantagem patrimonial nos termos perfilhados pelo recorrente, sempre se dirá que tal não se verifica uma vez que conceptualmente podemos definir vantagem patrimonial como a “que é susceptível de apreciação pecuniária, isto é, avaliável em dinheiro. Vantagem patrimonial pode definir-se como incremento do património ou proveito económico”- cfr. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 1976, p. 232 e ss., o que se verificou no caso em apreço. De resto, conforme ensina Ernesto Vaz Pereira, in Perda de Mandato Autárquico, Da Dissolução de Órgão Autárquico, Almedina, p. 35, “ A lei não distingue entre vantagem patrimonial lícita ou ilícita. Por isso, para esta previsão legal típica de perda de mandato é indiferente tal natureza.” Mas ainda que se entenda, como parece igualmente entender o Réu, que tal vantagem tem de ser ilícita, será sempre ilícita no sentido de não ser devida- cfr. a tal propósito Ac. do STA de 3-4-97, rec. 41 784 -, conforme ocorre no caso sub judice. No sentido por nós preconizado invocamos os ensinamentos dos Acórdãos proferido pelo Colendo STA, no processo n° 0869/16 de 13-10-2016, 13231/16 de 05-05-2016, e do Venerando TCA Sul no processo n° 13190/16 de 05-05-2016 Por conseguinte, não se verificando qualquer dos vícios apontados, a douta sentença proferida nos autos deve ser mantida na íntegra.»
Com dispensa dos vistos legais atento o carácter urgente do processo, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.
I. 1. Questões a apreciar e decidir: O objeto dos recursos é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635º, 639.º e 608º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC. As questões suscitadas pelo R., ora Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, podem resumir-se da seguinte forma: a) Do erro de julgamento da matéria de facto, por estarem em causa factos essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em causa, ao não ter dado como não provado o facto constante do art. 14.º da petição inicial, e não ter dado por provados os factos alegados nos artigos 74.º, 78.º, 79.º, 80.º, 82.º e 83.º, da contestação: b) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art.s 36.º, n.º 1, do Decreto 22.257, de 25.02.1933 e 61.º, n.ºs 1 e 2, da Lei, n.º 98/97, de 26.08.1997, ao admitir que o Recorrente podia concordar ou não com as propostas efetuadas pelos serviços e, neste último caso, afastar-se das mesmas e decidir de outro modo e que podia e devia ter obstado a que a empresa S....., fosse convidada a participar nos procedimentos, pois essa obstaculização dependia unicamente de si. c) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art. 242.º, n.º 3, da CRP, ao ter decidido a questão da culpa grave do R., ora Recorrente, pela via da sua liberdade decisória e pelo princípio da irrelevância do desconhecimento da lei. d) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art. 8.º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, art.s 1.º, 27.º, n.º 1, e 242.º, n.º 3, da CRP, - ao ter considerado que o R., ora Recorrente, através da sua conduta, teve intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem, com culpa grave do agente, na modalidade de dolo direto e específico, reforçados pelo apelo a uma presunção inilidível de parcialidade, inculcando uma responsabilidade objetiva do agente que a lei inequivocamente exorciza. e) Do erro de direito imputado à sentença recorrida, pois, ainda que assim não fosse, sempre teria de reconhecer-se que a sanção imposta ao R. viola o princípio da relação de adequação e proporcionalidade da sanção à falta cometida, que decorre das disposições conjugadas dos art.s 8.º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 01.08. e art. 242.º, n.º 3, da CRP.
II. Fundamentação II.1. De facto É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, a qual se reproduz: «(…) I. FACTOS PROVADOS. II.2. Questões a apreciar e a decidir O objeto dos recursos é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635º, 639.º e 608º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC. – sem prejuízo do disposto no art. 636.º do CPC, que permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido. As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e respetivas conclusões, são: a) Do erro de julgamento da matéria de facto, por estar em causa factos essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em causa, i) por não se ter dado como não provado o facto constante do art. 14.º da petição inicial- não provado face ao depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação - e ii) por não se terem dado por provados os factos alegados nos seguintes artigos da contestação: - art. 74.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação; - art. 78.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação; - art. 79.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação; - art. 80.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação; - art. 82.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação; - art. 83.º, provado pelo depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação;
b) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art.s 36.º, n.º 1, do Decreto 22.257, de 25.02.1933 e 61.º, n.ºs 1 e 2, da Lei, n.º 98/97, de 26.08.1997, ao admitir que o R., ora Recorrente podia concordar ou não com as propostas efetuadas pelos serviços e, neste último caso, afastar-se das mesmas e decidir de outro modo e que podia e devia ter obstado a que s empresa S....., fosse convidada a participar nos procedimentos, pois essa obstaculização dependia unicamente de si. c) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art. 242.º, n.º 3, da CRP, ao ter decidido a questão da culpa grave do R., ora Recorrente, pela via da sua liberdade decisória e pelo princípio da irrelevância do desconhecimento da lei. d) Do erro de direito imputado à sentença recorrida e consequente violação de lei – art. 8.º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, art.s 1.º, 27.º, n.º 1, e 242.º, n.º 3, da CRP, - ao ter considerado que o R, ora Recorrente, através da sua conduta, teve intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem, com culpa grave do agente, na modalidade de dolo direto e específico, reforçados pelo apelo a uma presunção inilidível de parcialidade, inculcando uma responsabilidade objetiva do agente que a lei inequivocamente exorciza. e) Do erro de direito imputado à sentença recorrida, pois, ainda que assim não fosse, sempre teria de reconhecer-se que a sanção imposta ao R. viola o princípio da relação de adequação e proporcionalidade da sanção à falta cometida, que decorre das disposições conjugadas dos art.s 8.º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 01.08. e art. 242.º, n.º 3, da CRP. Vejamos. II.2.1. Do erro de julgamento da matéria de facto Nos termos dos art.s 636.º, n.º 2 e 640.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi art. 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), podem as partes, nas respetivas alegações, impugnar a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto, desde que, cumpram as exigências que o legislador entendeu consagrar quanto a esta matéria e que impõe ao tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no art. 607.º n.º 4 do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respetivo ónus de impugnação. Por conseguinte, na interposição de qualquer recurso, deve o recorrente, nas suas alegações, concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, a que se reporta o art. 639º do CPC. A este ónus – de alegar e formular conclusões nos termos impostos pelo art. 639º do CPC – acresce o ónus previsto no art. 640º, que foi estabelecido especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida pelas instâncias sobre a matéria de facto. De acordo com este normativo exige-se do recorrente que dê cumprimento ao ónus de alegação, devendo obrigatoriamente especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quer isto dizer que recai sobre a parte recorrente um triplo ónus: 1º - O de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; 2º - O de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; 3º - O de enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. (1)
Neste pressuposto, que consideramos cumprido na sua tríplice exigência, e retomando o caso em apreço, alega o R., ora Recorrente, que «a sentença nada refere, em sede de matéria de facto, sobre: - o alegado conhecimento do R. acerca do impedimento em intervir em procedimentos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus, e, bem assim, acerca do impedimento de tais sociedades participarem em concursos de fornecimentos de bens e serviços ao Município. - como os momentos em que o Réu foi alertado pelos Serviços para a existência desses impedimentos; - a razão por que o Réu decidiu excluir a S..... do fornecimento de bens ou serviços ao MUNICÍPIO e o momento em que tomou essa decisão. E deu como não provado o momento temporal em que o Réu ordenou que não fossem pagos os serviços prestados pela S..... no âmbito da execução do contrato “ex-H.......». Mais alegando que o processo contém todos os elementos necessários para que o facto alegado pelo A., ora Recorrido, no n.º 14° da petição inicial (conhecimento da proibição legal) tivesse sido e haja de ser considerado não provado, e para que aqueles factos alegados pelo Réu na contestação, tivessem ficado e tenham de ficar assentes, porque provados. Porém, compulsados o julgamento da matéria de facto levado a cabo pelo Mmo. Juiz a quo, supra transcrito, e respetiva motivação, e, bem assim, os depoimentos das testemunhas que o Recorrente arroga serem determinantes para a decisão que defende seja tomada quanto aqueles factos, conclui-se que nenhum erro de julgamento quanto à matéria de facto se verifica. Na verdade, do depoimento das testemunhas F......, de minutos 28:48 a 31:58 e 40:41 a 42:05, da gravação, e de A......., de minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação, não resulta que o Recorrido desconhecia os impedimentos em causa – num primeiro momento, de que não poderia intervir em contratos celebrados com a empresa S..... e, num segundo momento, que a empresa S……………… não poderia celebrar contratos com o Município de …………………, onde o é Presidente da Câmara - mas sim que a testemunha F.......os desconhecia (cfr. depoimento – minutos 28:48 a 31:58, da gravação). Também resulta de tal depoimento que, depois de confrontado pela testemunha F......, no sentido de que tais impedimentos (minutos 28:48) ilegalidades/irregularidades (minutos 31:58) se verificavam, o Recorrido reagiu (minutos 28:48 a 31:58, da gravação do mesmo testemunho), sendo isso que resulta das alíneas EE) a NN) da matéria de facto provada e do único facto não provado e respetiva motivação, nada havendo a acrescentar. Ou seja, nada é dito pelas testemunhas sobre o conhecimento ou desconhecimento do R., ora Recorrente sobre tais impedimentos (minutos 28:48) ilegalidades/irregularidades (minutos 31:58 do depoimento da testemunha F......), mas apenas que, quando a testemunha F.......deles se apercebeu, e avisou o Recorrente, este reagiu, na sequência do que foram, aliás, dadas ordens, em conformidade, à testemunha A....... (cfr. respetivo depoimento, minutos 54:38 a 55:57 e 1:07:00a 1:07:18 da gravação). Em face do que, imperioso se torna concluir que nenhum erro se verifica na decisão sobre a matéria de facto levada a cabo pelo Mmo. Juiz a quo.
II.2.2. Dos invocados erros da sentença quanto a matéria de direito É a seguinte, a fundamentação da sentença recorrida, sobre os aspetos que no presente recurso são impugnados: «(…) Nos presentes autos, o Ministério Público pediu que o Tribunal declarasse a perda de mandato do Réu como Presidente da Câmara Municipal de ………………… com fundamento na intervenção do mesmo em três procedimentos contratuais promovidos pelo Município de ……………….., que culminaram na outorga dos respetivos contratos com a empresa S..... – E….., Lda., sendo que esta empresa tem como sócios tanto o pai como o sogro do Réu, pelo que o mesmo encontrar-se-ia numa situação de impedimento legal de intervir nos mesmos (adotamos aqui a designação de “procedimentos contratuais" de modo a englobar “a série ou sucessão ordenada de atos que concorrem para a formação, a conclusão e a produção de uma plena eficácia jurídica de um contrato público", na esteira de Pedro Costa Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Volume I, 2.a edição, 2018, página 102). (…) É no artigo 242°, n.° 1 que a Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) estabelece que “A tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei”. Deste artigo extrai-se que “A tutela administrativa é, assim, uma tutela de legalidade, pois que não visa controlar o mérito das decisões dos órgãos da administração local (a sua oportunidade e a sua conveniência) ou a sua conformidade com os interesses gerais, tal como o Governo os concebe. O seu objectivo é, antes e tão-só, assegurar que essas decisões cumpram a lei. E mais: ela própria - a tutela administrativa - está sujeita ao princípio da legalidade, uma vez que só pode ser exercida "nos casos e segundo as formas previstas na lei" - o que significa que só podem adoptar-se as medidas tutelares constantes da lei, que, assim, tem que definir as diferentes formas de tutela (inspecções, inquéritos, sindicâncias, informações, dissolução de órgãos autárquicos): é o princípio da tipicidade das medidas de tutela” (de acordo com o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no processo n.° 07928/11, em 27-10-2011, disponível em www.dgsi.pt). De facto, “a legitimidade democrática directa das entidades que compõem este tipo de Administração deve afastar qualquer tipo de intervenção tutelar que não se limite a questões de legalidade” (conforme explicita Marta Portocarrero, obra citada, página 65, nota 14). E face ao princípio da tipicidade das medidas tutelares, cabe a lei da Assembleia da República ou a decreto-lei autorizado (dado que se trata de matéria de reserva relativa de lei parlamentar - artigo 165°, n.° 1, alínea q) da CRP), a determinação das concretas modalidades de tutela admissíveis. Essa consagração consta, atualmente, na Lei n.° 27/96, de 01-08, a qual estabeleceu "o regime jurídico da tutela administrativa a que ficam sujeitas as autarquias locais e entidades equiparadas, bem como o respectivo regime sancionatório” (artigo 1°, n.° 1 da Lei n.° 27/96). E é no artigo 7° da Lei n.° 27/96 que nos surge a medida tutelar de perda de mandato, estabelecendo-se que “A prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais ... pode determinar, nos termos previstos na presente lei, a perda do respectivo mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos, ..." e especificando-se, nos subsequentes artigos 8° e 9°, as circunstâncias que podem determinar essa perda de mandato (esta especificação é igualmente uma decorrência do princípio da tipicidade das medidas tutelares, dado que a lei “tem de estabelecer de forma densa, objectiva ou determinada os termos de aplicação dessas medidas, evitando a discricionariedade (administrativa ou judicial) neste domínio”, ou seja, “o princípio de tipicidade legal das medidas sancionatórias exige, ..., a máxima densidade legislativa" - de acordo com Pedro Gonçalves, em O Novo Regime ... citado, páginas 16 e 21, respetivamente). Quanto a esta medida tutelar, várias notas importam desde já realçar. A primeira para pôr em relevo que “a perda de mandato tem carácter sancionatório o que implica a necessidade de ter em conta os princípios do direito disciplinar e Penal’ (conforme adverte o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.° 0248/04, de 2204-2004, disponível em www.dgsi.pt). ou seja, “Tratando-se de direito sancionatório despiciendo se torna referir que valerão aqui também os princípios gerais do direito sancionatório, nomeadamente o princípio da culpa” (de acordo com Ernesto Vaz Pereira, em Da Perda de Mandato Autárquico Da Dissolução de Órgão Autárquico - legislação, notas práticas e jurisprudência, Almedina, 2009, página 22). A segunda, prende-se com o facto de a declaração de perda de mandato ser “compaginável com o direito de acesso a cargos públicos estabelecido constitucionalmente no art. 50, n.° 1, da Lei Fundamental” (o qual consagra que “Todos os cidadãos têm o direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos”). De facto, “o sancionamento com a perda de mandato dos comportamentos legalmente tipificados tem por fim assegurar que não permaneça no cargo quem se mostrou indigno de exercer tais funções por ter violado os deveres de isenção e independência, honestidade e imparcialidade e justiça que lhes são inerentes” (de acordo com Ernesto Vaz Pereira, obra citada, página 24), Em idêntico sentido pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Norte, propugnando que (entre outros) o artigo 8° da Lei n.° 27/96 não contende com os comandos constitucionais insertos no artigo 50° da CRP (o qual “diz respeito ao direito de acesso aos cargos públicos e que constitui expressão do direito à participação na vida pública (cfr. art. 48° da CRP), é um direito de natureza política que integra o catálogo dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, consequentemente, do regime próprio e da força jurídica que o texto constitucional concede aos direitos, liberdades e garantias"), dado que (na parte que agora nos interessa) “os fundamentos de perda de mandato visam, garantir a isenção e a independência com que os titulares dos órgãos autárquicos devem exercer os seus cargos e, assim, gerir os negócios públicos e, bem assim, assegurar a imagem pública dos eleitos locais, prevenindo o perigo de lesão desses valores” (conforme acórdão proferido no processo n.° 00110/06.0BEBRG, de 08-03-2007, disponível em www.dgsi.pt). A terceira nota para evidenciar que, de acordo com o artigo 11°, n.° 1 da Lei n.° 27/96, “As decisões de perda do mandato ... são da competência dos tribunais administrativos de círculo”, ou seja, “A competência para aplicar sanções destinadas a efectivar a responsabilidade dos membros dos órgãos autárquicos cabe agora exclusivamente aos tribunais (princípio da jurisdicionalidade)’’ (conforme sustenta Pedro Gonçalves, em O Novo Regime ... citado, página 20, salientando, na apreciação final que faz quanto ao regime instituído pela Lei n.° 27/96, que “Sem ser perfeito, o novo regime da tutela inspectiva apresenta-se seguramente mais adequado à vertente sancionatória a que continua associado: sobretudo, o princípio da culpa e o princípio da jurisdicionalidade, agora consagrados, representam um avanço importante e necessário numa matéria tão sensível como é a da aplicação de sanções que efectivam uma certa forma de responsabilidade dos titulares de órgãos representativos das populações" - página 44).
Por fim, e como quarta nota, para evidenciar que se trata de “um controlo objectivo. Reporta-se a actos ou à sua falta, a título individual e concreto. Não incide, nem pode incidir sobre os titulares dos órgãos nem generalizadamente sobre toda a actividade administrativa: ...”; ou seja, “as medidas tutelares têm como pressuposto necessário a verificação de um acto ou de uma omissão contrários à lei” (de acordo com André Folque, em Indisciplina Normativa na tutela das autarquias locais, Direito, n.° 05, janeiro/março de 2009, páginas 37 e 39, respetivamente). Em suma - e para finalizar estas considerações introdutórias - não se deve perder de vista que “As autarquias locais, como substrato do poder local, são trave fundamental do Estado Português. Espera-se dos autarcas, face aos desideratos funcionais de apego ao interesse público, uma personalidade insuspeita e irrepreensível, no cumprimento dos desígnios da Constituição e das leis, uma actividade conforme aos princípios subjacentes da igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade” (conforme dimana do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.° 048349, de 09-01-2002, disponível em www.dgsi.pt). (…) Tendo presente as considerações antecedentes (…) Além do artigo 7° da Lei n.° 27/96 acima citado, releva desde logo o artigo subsequente - 8°, n.° 2 - o qual estatui que “Incorrem, ..., em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”. Igualmente relevante é o artigo 10°, n.° 1 da Lei n.° 27/96 que estipula que “Não haverá lugar à perda de mandato ... quando, nos termos gerais de direito, e sem prejuízo dos deveres a que os órgãos públicos e seus membros se encontram obrigados, se verifiquem causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa dos agentes’. Por seu turno, esses preceitos devem ser complementados pelo artigo 242°, n.° 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) o qual prescreve que “A dissolução de órgãos autárquicos só pode ter por causa acções ou omissões ilegais graves’. Assim, da conjugação dos preceitos citados - e tendo em conta igualmente os contributos doutrinais e jurisprudenciais na respetiva concretização -, resulta que os pressupostos para a declaração da perda de mandato que a situação dos autos suscita são os seguintes: em primeiro lugar, que esteja em causa uma atuação do Réu relacionada com a gestão da Câmara Municipal de ………………….. (artigo 7° da Lei n.° 27/96); em segundo lugar, que o Réu tenha intervindo em procedimento contratual relativamente ao qual se constate a existência de um impedimento legal que obstasse a essa intervenção (artigos 7° e 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96); em terceiro lugar, que essa intervenção ilegal tenha sido grave (artigo 242°, n.° 3 da CRP); em quarto lugar, que a mesma tenha sido efetuada com vista a proporcionar alguma situação de vantagem para a empresa S..... (artigo 8°, n.° 2, última parte da Lei n.° 27/96); em quinto lugar, que essa intervenção possa ser imputável ao Réu a título de culpa grave (concretização doutrinal e jurisprudencial da sanção da perda de mandato); em sexto lugar, que não exista nenhuma causa que exclua essa culpa (artigo 10° da Lei n.° 27/96); Vejamos, em seguida, cada um destes pressupostos, nunca perdendo de vista a situação concreta dos autos. (…) Em primeiro lugar, "a perda de mandato só pode ter lugar quando a ilegalidade que a determina esteja relacionada com a gestão daquelas autarquias e que, se assim é, se a ilegalidade tiver origem noutra sede que não a gestão da autarquia a consequência da mesma terá de ser outra que não a perda de mandato” (conforme explicita o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.° 0859/11, de 07-12-2011, disponível em www.dgsi.pt). De acordo com o artigo 36°, n.° 1 do Código dos Contratos Públicos (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 18/2008, de 29-01 - doravante, CCP; a versão aqui tida em conta corresponde à que foi aprovada pelo Decreto-Lei n.° 149/2012, de 12-07, dado o período temporal em que os procedimentos contratuais ocorreram), “O procedimento de formação de qualquer contrato inicia-se com a decisão de contratar, a qual cabe ao órgão competente para autorizar a despesa inerente ao contrato a celebrar, ...”. E o artigo 18°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 197/99, de 08-06 (que estabeleceu o Regime Jurídico de Realização de Despesas Públicas e da Contratação Pública) estipula que “São competentes para autorizar despesas com locação e aquisição de bens e serviços as seguintes entidades: Até 30000 contos [equivalente a € 150.000,00], os presidentes de câmara ...” (este Decreto-Lei foi revogado, com exceção dos artigos 16° a 22° e 29°, pelo CCP; posteriormente, o Decreto-Lei n.° 40/2011, de 22-03, revogou os artigos 16.° a 22.° e 29.°, ficando assim revogado na totalidade; porém, a Resolução da Assembleia da República n.° 86/2011, de 11-04, resolveu fazer cessar a vigência do Decreto-Lei n.° 40/2011 e repristinar as normas por este revogadas, pelo que as normas dos artigos 16° a 22° e 29° voltaram a vigorar; de notar que “apesar de o artigo 4.° do Decreto-Lei n.° 197/99 não ter sido excecionado da revogação, deve entender-se que as normas sobre autorização de despesas se aplicam, igualmente, aos contratos de empreitada de obras públicas" - conforme salienta Pedro Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos citado, página 401). Por seu lado, o artigo 35° da Lei n.° 75/2013, de 12-09 (a qual aprovou o Regime Jurídico das Autarquias Locais, das Entidades Intermunicipais e do Associativismo Autárquico) estabelece que é da competência do Presidente da Câmara Municipal: “Promover a execução, por administração direta ou empreitada, das obras ...” (n.° 2, alínea e)); “Autorizar a realização das despesas orçamentadas até ao limite estipulado por lei ...” (n.° 1, alínea g)); “Aprovar os projetos, programas de concurso, cadernos de encargos e a adjudicação de empreitadas e aquisição de bens e serviços, cuja autorização de despesa lhe caiba’’ (n.° 1, alínea f)); e “Outorgar contratos em representação do município’’ (n.° 2, alínea f)). Como se verá já em seguida em pormenor, a intervenção do Réu perpassou por todos os domínios invocados e, sendo esses da sua competência legal, conclui-se que o fez no âmbito da gestão do órgão executivo colegial a que preside. *** Em segundo lugar - e na decorrência da análise acabada de efetuar - importa averiguar qual a intervenção que o Réu teve nos três procedimentos contratuais que se encontram em causa nos presentes autos e que culminaram na celebração dos respetivos contratos em 14-03-2014, 09-11-2015 e em 13-04-2016, os quais são designados nesta sentença como contrato Escola A......., contrato Pavilhão ex-H....... e contrato Escola Cidade de ……………………., respetivamente. Em todos eles o Réu assumiu a qualidade de órgão competente para a decisão de contratar, nos termos do artigo 36°, n.° 1 do CCP acima transcrito (sendo que no terceiro contrato apenas até ao momento anterior à decisão de adjudicação), e essa qualidade é da maior importância na nossa análise. É fundamental ter presente que a este órgão “o CCP ... atribuiu um vastíssimo elenco de competências, que abrangem, de um modo genérico, todas as decisões da responsabilidade da entidade adjudicante proferidas no contexto da formação de um contrato público” (conforme põe em evidência Pedro Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos citado, páginas 357 e 358). Este Autor, “Em razão da sua preponderância esmagadora no procedimento de adjudicação, e com o propósito de utilizar uma fórmula mais abreviada”, designa-o de órgão adjudicante, identificando-o como “o órgão decisor, ou seja, o órgão da entidade adjudicante competente para tomar as decisões principais ou fundamentais do procedimento de adjudicação, ..." o qual “é, claramente, o órgão principal do procedimento de adjudicação, ao qual cabe, em geral, todo o universo de competências administrativas de decisão com projeção externa, adotadas no processo de relacionamento jurídico com todos os interessados (...)” (obra citada, página 358). Torna-se assim claro que a responsabilidade do Réu em nada é afastada pela circunstância de terem sido os serviços administrativos a proporem a abertura dos procedimentos contratuais em causa, a terem indicado as empresas a convidar ou o tipo de procedimentos a adotar: como se frisará a seguir, era o Réu quem tinha a competência legal para decidir (e, assim, apenas com a sua decisão é que o Município de ……………. se vinculava perante terceiros), podendo concordar ou não com as propostas efetuadas e, neste último caso, afastar-se das mesmas e decidir de outro modo (daí que na alínea KK) do probatório o Tribunal tenha dado como provado que o Réu não teve qualquer influência ou participação nas propostas, e não nas respetivas decisões). Vejamos então quais os atos que o Réu praticou em consonância com a qualidade de órgão adjudicante que assumiu, começando pela análise do contrato Escola A....... e contrato Pavilhão ex-H........ Nestes dois contratos o Réu proferiu despacho a autorizar a abertura desses procedimentos. Esse despacho configura tanto a decisão de autorização das despesas inerentes às empreitadas a realizar (as quais haviam sido previamente cabimentadas em verbas orçamentais próprias), como a decisão de contratar referida no artigo 36°, n.° 1 do CCP. E esta decisão de contratar configura tanto o ato inicial do procedimento de formação de um contrato público, como um ato final “de um procedimento em que a entidade adjudicante atesta ou verifica a existência de uma determinada necessidade que tem de satisfazer, assegura-se de que não dispõe de recursos internos para o efeito e decide satisfazê-la através da prestação a efectuar por um contratante” (conforme explica Pedro Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos citado, página 393). Ou seja, é proferida “no exercício de um poder discricionário da entidade adjudicante”, dado que “envolve uma “escolha” por exercer uma determinada missão com recursos externos em vez de utilizar recursos próprios” e implica a consideração das “exigências financeiras e orçamentais, relativas à despesa que o contrato pretendido vai provocaf’, como “pressupõe ainda uma avaliação sobre a necessidade de contratar, bem como sobre a idoneidade do contrato projetado ou idealizado para a satisfação daquela mesma necessidade" (de acordo com Pedro Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos citado, páginas 395 e 394). Assim o Réu, ao ter autorizado a abertura desses procedimentos, decidiu acolher todas as propostas que constavam nas informações de abertura desses procedimentos e, em consonância, foi o Réu quem escolheu que os procedimentos em causa seriam com recurso ao ajuste direto - com convite a três entidades no contrato Escola A....... e com convite apenas a uma no contrato Pavilhão ex-H....... (artigos 38°, n.° 1 e 112° do CCP); foi quem escolheu as três entidades a apresentar propostas no contrato Escola A....... e quem escolheu a empresa S..... como única entidade a convidar no contrato Pavilhão ex-H....... (artigo 113°, n.° 1 do CCP); foi quem aprovou as peças do procedimento de formação desses dois contratos (artigo 40°, n.° 2 do CCP); foi quem designou o júri do contrato Escola A....... e quem designou o Engenheiro A....... como responsável pelo procedimento do contrato Pavilhão ex-H....... (artigo 67°, n.° 1 do CCP). Outra decisão proferida pelo Réu nesses dois procedimentos consistiu no despacho de adjudicação dos mesmos à empresa S...... Com essa decisão, o Réu acolheu todas as propostas que foram formuladas pelo júri no relatório final (no caso do contrato Escola A.......) ou pelo Engenheiro A....... no projeto de decisão (no caso do contrato Pavilhão ex-H.......), ordenando, no primeiro caso, as duas propostas apresentadas e, em ambos, escolhendo a empresa S..... como adjudicatária (artigo 73°, n.° 1 do CCP). Igualmente foi o Réu quem aprovou as minutas dos contratos a celebrar (artigo 98°, n.° 1 do CCP) e aprovou as respetivas comunicações à empresa S..... do dia e a hora da assinatura dos mesmos (artigo 104°, n.° 3 do CCP). Finalmente, foi o Réu quem outorgou esses contratos em nome e em representação da Camara Municipal de ………………… (artigo 106°, n.° 1 do CCP). Quanto ao contrato Escola Cidade de …………… foi o Réu quem autorizou a abertura desse procedimento e, em consonância (valem aqui as considerações que se fizeram a este respeito anteriormente quanto ao alcance deste despacho de autorização), foi quem autorizou a realização da despesa inerente à empreitada a realizar (artigo 36°, n.° 1 do CCP); foi quem escolheu que o procedimento em causa seria com recurso ao ajuste direto com convite a três entidades (artigos 38°, n.° 1 e 112° do CCP) e quais seriam as entidades a convidar (artigo 113°, n.° 1 do CCP); foi quem aprovou as peças do procedimento de formação desse contrato (artigo 40°, n.° 2 do CCP) e foi quem designou o respetivo júri (artigo 67°, n.° 1 do CCP) Finalmente, foi o Réu quem aprovou uma retificação oficiosa do respetivo convite e caderno de encargos e que decidiu prorrogar o prazo para os concorrentes apresentarem as respetivas propostas (artigos 50°, n.° 3 e 64°, n.° 2 do CCP). A partir deste momento, os atos posteriores deste procedimento contratual passaram a ser praticados pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de ………………, o qual assumiu, assim, a qualidade de órgão adjudicante. Constata-se, deste modo, que a intervenção do Réu perpassou toda a fase pré- contratual nos procedimentos contratuais da Escola A....... e do Pavilhão ex- H......., tendo culminado na outorga dos respetivos contratos, enquanto que no contrato Escola Cidade de ……………… cingiu-se à fase pré-contratual, mais precisamente, até ao momento anterior ao ato de adjudicação. E é este tipo de intervenção que os artigos 7° e 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96, assim como os a seguir referidos quanto aos impedimentos legais, proíbem. De facto, “a tendência é para entender o conceito “intervenção” (da proibição legal) alargadamente, estendendo-o às formalidades da instrução do procedimento, bem como aos actos da execução da sua decisão (para além, obviamente, da autoria desta ou de participação na sua tomada, que são os casos mais evidentes de intervenções proibidas” (conforme explicam Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, em Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.a edição - 3.a reimpressão da edição de 1997 - Almedina, anotação ao artigo 44°, página 246). Ou seja, “O conceito de intervenção é muito amplo. Não se trata apenas de impossibilitar a intervenção na decisão final, o que seria tirar efectividade prática à garantia correspondente, mas também de vedar qualquer intervenção qualitativa anterior que possa conformar a decisão final, seja na (sub) fase instrutória seja noutra. (...) Só não relevam as intervenções que em nada influenciam a decisão final” (conforme expõe Luiz S. Cabral de Moncada, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3a edição, Quid luris, 2019, anotação ao artigo 69°, página 258). Em suma, “No que aos contratos respeita, tal significa que o membro do órgão autárquico deve abster-se de intervir em qualquer momento do iter negocial: negociações, celebração, execução" (nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, proferidas no acórdão de 0701-1997 do recurso n.° 41.478, disponível nos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXXVI, n.° 432, dezembro de 1997, página 1400). **** Assente que o Réu interveio nos três procedimentos contratuais em apreço, cumpre agora analisar a questão dos impedimentos legais que possam contender com essas intervenções. A este respeito, releva o artigo 69°, n.° 1, alínea b) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), o qual, sob a epígrafe “Casos de impedimento”, prescreve que os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes ... não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, ... Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse .., algum parente ou afim em linha reta” (sendo que, para efeitos do CPA, as Autarquias Locais integram o conceito de Administração Pública - artigo 2°, n.° 4, alínea b) do CPA). Este artigo, nesta parte, reproduz o anterior artigo 44°, n.° 1, alínea b) do CPA anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei n.° 4/2015, de 07-01 e que entrou em vigor em 07-04-2015 (conforme artigo 9° do decreto aprovador), pelo que, nenhuma questão atinente à aplicação da lei no tempo se suscita a este propósito. Atente-se que “Os impedimentos (...) previstos no CPA valem, como não podia deixar de ser, para o procedimento pré-contratual versado no CCP, dado que “Patrocinam uma visão mais ética da contratação pública” (nas palavras de Luiz S. Cabral de Moncada, obra citada, página 258). Em igual sentido, o artigo 4°, alínea b), subalínea iv) da Lei n.° 29/87, de 30-06 (a qual definiu o Estatuto dos Eleitos Locais, abrangendo no seu âmbito subjetivo de aplicação os Presidentes das Câmaras Municipais - artigos 1°, n.° 2 e 2°, n.° 1, alínea a) dessa Lei e artigo 239°, n.° 1 e n.° 3 da CRP) dispõe, sob a epígrafe “Deveres” “Em matéria de prossecução do interesse público”, que "No exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios: Não intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado, ... em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu ..., parente ou afim em linha recta ...” Ora, resulta dos autos que o pai e o sogro do Réu detêm, cada um, uma quota de € 51.000,00 na empresa S..... (equivalente, cada uma, a 17% do respetivo capital social). E a empresa S..... tem como objeto social a produção e aplicação de estruturas de alumínio e ferro, nomeadamente caixilharias, portas e janelas, podendo ser exercido qualquer outro ramo industrial ou comercial permitido por lei, pelo que tem um interesse material, económico, em participar no mercado das compras publicas, tal como qualquer outra empresa comercial. E é este interesse direto e pessoal dos sócios da empresa S..... em serem escolhidos nos procedimentos contratuais em que participem que determina o impedimento que impende sobre o Réu em não intervir nos mesmos, de modo a “garantir a objetividade e utilidade pública da decisão administrativa em vista da (melhor) prossecução do interesse público, e por outro lado, de assegurar a imparcialidade e a transparência dessa decisão, face àqueles que nela estão interessados e face à colectividade administrativa em geral’ (conforme põem em destaque Mário Esteves de Oliveira e outros, citado, anotação ao artigo 44°, página 247). Daí que, sendo o primeiro parente em linha reta e, o segundo, afim em linha reta, o Réu encontrava-se impedido legalmente de intervir em qualquer procedimento contratual em que essa empresa fosse interessada (por força dos artigos 69°, n.° 1, alínea b) do CPA e 4°, alínea b), subalínea iv) da Lei n.° 29/87, acima citados). Às duas normas referidas, acresce o artigo 8°, n.° 1 da Lei n.° 64/93, de 26-08 (a qual aprovou o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Dirigentes e que abrange no seu âmbito subjetivo, como titular de cargo político, os Presidentes das Câmaras Municipais - artigo 1°, n.° 2, alínea a) dessa Lei), o qual prevê que “As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10% por um ... titular de cargo político, .., ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de actividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas colectivas públicas”, estendendo, no n.° 2 desse artigo, esse regime aos casos em que o titular da percentagem referida seja um ascendente do titular do cargo político. E a sanção para uma eventual infração a esse impedimento de participação é a perda de mandato do respetivo titular do cargo político (artigo 10°, n.° 3, alínea a) da Lei n.° 64/93). No confronto entre as primeiras duas normas citadas e esta última, constata-se que visam diferentes entidades. De facto, enquanto no primeiro caso os impedimentos em causa abrangem o próprio Réu, dada a posição relativa em que se encontra face aos procedimentos contratuais em apreço, neste último caso, “o impedimento atinge a empresa, o operador económico, por se pressupor que a participação de uma empresa com essa condição cria um constrangimento no momento da decisão de avaliação das propostas, seja quem for o agente encarregado dessa tarefa” (de acordo como Pedro Gonçalves, em Direitos dos Contratos Públicos citado, páginas 649 e 650), Assim, como o pai do Réu detém uma quota superior a 10% no capital social da empresa S....., essa empresa encontrava-se legalmente impedida de participar nos três procedimentos contratuais em causa nos presentes autos (dado o artigo 8°, n.° 1 da Lei n.° 64/93 acima citado). Constata-se, assim, que a participação da empresa S..... e a intervenção do Réu em cada um dos procedimentos contratuais em causa foi ilegal, porque efetuada em violação dos impedimentos legais que sobre os mesmos impendiam. *** (…) A Doutrina assinala-lhe uma vertente negativa ou subjetiva, com o significado de que a “imparcialidade determina uma postura de equidistância ou neutralidade face aos interesses privados que se relacionam ou cruzam com o interesse público que lhe cabe prosseguir, excluindo desvios de motivação derivados de simpatias ou antipatias apenas subjetivamente justificáveis (isto é, sem racionalidade ou objetividade de fundamentação, ante um postulado geral de isenção ou equidistância, gerador de confiança nessa terceiridade” (assim o põe em destaque Paulo Otero, em Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, Almedina, 2016, página 183). Ou, "o princípio da imparcialidade impõe, à Administração Pública, na prossecução dos específicos interesses públicos legalmente definidos, um tratamento equitativo de todas as partes envolvidas, impedindo os seus órgãos ou agentes de favorecer amigos e/ou prejudicar inimigos, bem como proibindo-os de intervir em procedimentos onde se pode suspeitar que tenham comportamentos de favorecimento ou de prejuízo, concretamente procedimentos onde possam ter interesses pessoais ou familiares ...” (conforme põem em evidência Jorge Miranda e Rui Medeiros, em Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, artigos 202° a 296°, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 266°, página 566). E daí o artigo 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96, cuja teleologia “é a evitação de obtenção pelos autarcas ou pessoas próximas de situações de favor, de primazia ou de privilégio em detrimento de terceiros que não têm à autarquia qualquer ligação funcionar (como lhe assinala Ernesto Vaz Pereira, obra citada, página 33). O Supremo Tribunal Administrativo condensa estas ideias da seguinte forma: “Assim, competindo aos titulares da Administração pública no exercício das suas funções, a prossecução do interesse público, este implica que nas suas decisões os agentes administrativos devem actuar com isenção, imparcialidade e neutralidade, não podendo em caso algum favorecer os interesses privados ou pessoais dos mesmos em detrimento dos interesses públicos que sobre aqueles devem prevalecer quando existam interesses em conflito. Pretende-se assim que os agentes administrativos, como se entendeu no Ac. de 14.5.96, rec. 40 135, “face aos desideratos funcionais de apego ao interesse público, uma personalidade insuspeita e irrepreensível, no cumprimento dos desígnios da Constituição e das leis, uma actividade conforme aos princípios subjacentes da igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade. Daí que o impedimento previsto nas citadas disposições vise, no fundamental, acautelar a independência da Administração onde se inclui o poder local, proibindo que o agente administrativo possa eventualmente vir a ser suspeito de utilizar o cargo público para favorecer interesses privados, evitando assim possíveis situações de confusão na mesma pessoa enquanto órgão decidente e beneficiário da decisão. Para o efeito impedem-no de intervir nas decisões do órgão, nomeadamente quando estejam em questão decisões em que e de alguma forma nelas possa ter algum interesse ou que eventualmente possam confrontar com os interesses públicos que representam ou com o desempenho “imparcial" e “justo" que deve prevalecer nas funções exercidas. Daí que os membros dos órgãos autárquicos, como sejam os recorridos, tenham de se abster ou intervir em procedimento administrativo quando nele tenham interesse, já que tal situação se apresenta ou é susceptível de limitar ou afectar a sua capacidade de decidir com isenção e imparcialidade” (no acórdão proferido no processo n.° 0248/04, de 22-04-2004, disponível em www.dgsi.pt). *** Assente a importância do que se encontra em causa nos presentes autos, centremos a nossa análise no terceiro pressuposto referido, qual seja, que a ilegalidade da intervenção do Réu assuma o caráter de grave. Antes de mais, importa clarificar que a vinculação prevista no artigo 242°, n.° 3 da CRP (o qual, recorde-se, estatui que “A dissolução de órgãos autárquicos só pode ter por causa acções ou omissões ilegais graves”) “deve aplicar-se, por identidade de razão, à perda de mandato, que, por isso, também não poderá ser prevista senão para sancionar “acções ou omissões ilegais graves” do titular do órgão” (conforme põe em evidência Pedro Gonçalves, em O Novo Regime citado, páginas 17 e 18). Como ficou demonstrado, o Réu praticou uma ilegalidade ao ter intervindo nos três procedimentos contratuais quando se encontrava legalmente impedido de o fazer. Sucede que “Os impedimentos reportam-se à proibição absoluta de intervir num concreto procedimento, ato ou contrato por existir uma forte probabilidade de parcialidade ou uma impossibilidade de imparcialidade” (conforme advoga Ana Fernanda Neves, em Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Volume I, 3.a edição, 2016, AAFDL Editora, no artigo “Garantias de Imparcialidade”, página 645). Por outras palavras, “estamos perante uma presunção absoluta de parcialidade”, isto é, a intervenção do Réu “justifica uma presunção legal absoluta de contaminação da decisão final’ (de acordo com Luiz S. Cabral de Moncada, obra citada, anotação ao artigo 69°, páginas 258 e 257, respetivamente). Daí que não seja necessário provar, em concreto, uma atuação parcial do Réu. De facto, “A parcialidade é reconhecidamente de prova difícil e para a imparcialidade também relevam as aparências, não só porque “aumentam a possibilidade de uma decisão justa” (Peter Cane), mas igualmente por a imparcialidade ser um importante título de legitimidade democrática (Pierre Rosanvallon). O critério decisivo para aferir da violação da imparcialidade é a possibilidade de parcialidade e, portanto, a idoneidade das “soluções procedimentais e organizatórias’’ para prevenir e preservar “a isenção administrativa e a confiança nessa isenção” (artigo 9.° do CPA)" (recorremos novamente a Ana Fernanda Neves, obra e artigo citado, página 654). Daí que, a intervenção do Réu nos três procedimentos contratuais foi grave, no sentido de que, para todos os efeitos, assume-se que o mesmo atuou com parcialidade (mesmo que, em concreto, não se tenha provado nos autos que tenha havido essa efetiva parcialidade). Para se vincar este ponto que se revela crucial, importa recorrer ao princípio da imparcialidade, atendendo agora à concretização que o Supremo Tribunal Administrativo lhe faz, salientando a dimensão da transparência que o mesmo comporta (…) (no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, proferido no processo n.° 048035, de 10/01/2003, disponível em www.dgsi.pt).
É devido a esta presunção absoluta de parcialidade que recai sobre o Réu, dado que interveio em procedimentos contratuais perante os quais encontrava-se legalmente impedido de o fazer, que a ilegalidade cometida pelo mesmo assume o caráter de grave atendendo aos valores que se encontram em causa (e que foram acima explicitados). *** Analisemos agora o quarto pressuposto, atinente à situação de vantagem proporcionada à empresa S...... É que, verificando-se a intervenção ilegal do Réu nos procedimentos contratuais em causa, cumpre apurar se o mesmo visou a obtenção de alguma “vantagem patrimonial para si ou para outrem” (conforme exigido pelo artigo 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96), o que “pressupõe a existência de uma intenção dirigida a um fim específico ... Daí deriva que essa intervenção, além de ser antijurídica, terá de ser dolosa (dolo directo)’’ (assim o frisa o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.° 0248/04, de 22-04-2004, disponível em www.dgsi.pt). Pelo que importa determinar com precisão qual o alcance do conceito de “vantagem patrimonial’ consagrado no artigo 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96. Ora, “Quando a lei fala da obtenção de vantagem patrimonial, com uma conotação ou valoração negativa em termos de poder desencadear a grave sanção de perda de mandato, apenas pode querer significar que o eleito local, por via de actuação decorrente do exercício das suas funções ou por causa delas, vise obter uma situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação outros concretos ou eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis. Ou ainda quando intervenha em qualquer acto ou contrato favorecendo, em termos patrimoniais, a sua própria posição ou a de terceiro” (de acordo com o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.° 0369/03, de 18-03-2003, disponível em www.dgsi.pt). “Com efeito a expressão «vantagem patrimonial» contida no normativo não pode ser reconduzível ao um conceito de mera obtenção de provento ou de receita. Antes nos há-de reportar para uma situação de favor (favorável) ou de primazia perante os demais, ou noutra aceção de regalia ou de privilégio, que consubstanciam significados de «vantagem» em linguagem comum. E porquanto essa situação de favor ou primazia, para si ou para terceiro seja tencionada pelo membro de órgão autárquico no exercício das suas funções ou por causa delas através de procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado em que interveio mas relativamente ao qual se verificava impedimento legal, a lei sanciona-a com a perda do respeito mandato” (nas palavras do Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no processo n.° 13190/16, de 05-05-2016, disponível em www.dgsi.pt). É uma doutrina que sufragámos e que passámos a justificar. Partindo do artigo 16°, n.° 1 do CCP, Pedro Gonçalves (na obra que temos vindo a citar - Direito dos Contratos Públicos: iremos seguir de perto o seu pensamento expresso a páginas 106 a 108, 191 a 194 e 332 a 334), pondo em destaque o inciso “contratos cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado ”, entende que esse enunciado legislativo pretende traduzir a ideia de “contratos com interesse concorrencial’, ou seja, que há um pluralidade de interessados em celebrar esses contratos, que há um potencial interesse ou eventual aspiração, comum a vários operadores de mercado, em alcançar o benefício económico que deriva da celebração de um contrato público. Ou seja, os operadores económicos têm interesse em participar nos procedimentos de adjudicação, em vender o bem ou o serviço à entidade adjudicante e de obter o benefício económico correspondente. Este benefício económico traduz-se na remuneração que o operador económico escolhido aufere, o preço, e que é a contrapartida da prestação que realiza. Porém, não se confunde com o lucro, dado que o preço poderá limitar-se a cobrir os custos incorridos na execução do contrato pelo contratante. Isto é, a celebração de um contrato público fornece um benefício económico à entidade escolhida: esta acede a uma vantagem económica pelo facto de lhe ter sido adjudicado um contrato público. Ora, quando o Réu decidiu, no procedimento do contrato Escola A....... convidar as empresas A…, D… e S..... ou quando, no procedimento do contrato Escola Cidade de …………………, decidiu convidar as empresas I......& F…., S..... e M......, colocou-as numa situação de vantagem perante as demais empresas do setor que poderiam igualmente efetuar as empreitadas em causa e que não tiveram a oportunidade de acesso a esses procedimentos. De igual modo, quando no procedimento do contrato Pavilhão ex-H....... o Réu decidiu convidar unicamente a empresa S....., atribuiu-lhe uma vantagem de acesso ao mercado que as demais empresas do setor não tiveram. Atente-se que não se põe em causa - face aos elementos que constam dos autos - a decisão do Réu na escolha do procedimento de ajuste direto para a formação dos contratos em apreço: era uma decisão que legalmente lhe cabia (artigo 38° do CCP) e os valores dos contratos em causa situaram-se sempre abaixo do limiar fixado no artigo 19°, alínea a) do CCP de € 150.000,00 (que foi a fundamentação apresentada pelo Município de ………………. para a escolha do ajuste direto, além da ausência de recursos próprios). Apenas se põe em evidência que foi a escolha desse procedimento de ajuste direto que sustenta, neste momento, o juízo de que o Réu proporcionou uma situação de vantagem às empresas que convidou para participar nos procedimentos contratuais referidos, mormente, à empresa S....., juízo que não seria transponível para a eventualidade de terem sido adotados procedimentos abertos de seleção concorrencial, nomeadamente, o concurso público (que é objeto de anúncio num jornal oficial e no qual pode participar qualquer entidade que preencha os requisitos gerais de participação). E essa situação de vantagem que foi proporcionada à empresa S..... assume uma configuração ilícita, no sentido de que não seria devidfa]’ (conforme sustenta alguma jurisprudência - a citação é do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.° 048349, de 09-01-2002 - cuja doutrina é devidamente adaptada à configuração que o Tribunal adotou quanto ao conceito de “vantagem patrimonial" a ter adequadamente em conta; note-se que alguma doutrina põe em causa esta jurisprudência, salientando que “A lei não distingue entre vantagem patrimonial lícita ou ilícita. Por isso, para esta previsão legal típica de perda de mandato é indiferente tal natureza" (de acordo com Ernesto Vaz Pereira, obra citada, página 35), de um duplo ponto de vista: em primeiro lugar, porque essa empresa encontrava-se impedida de participar nesses procedimentos em virtude do 8°, n.° 1 da Lei n.° 64/93 e, em segundo lugar, porque foi o Réu quem decidiu escolhê-la para participar, encontrando-se o mesmo impedido de o fazer, dado os artigos 69°, n.° 1, alínea b) do CPA e 4°, alínea b), subalínea iv) da Lei n.° 29/87. De facto, foi o Réu quem decidiu que, nos contratos Escola A....... e Escola Cidade de ………………, uma das entidades a convidar seria a empresa S..... das três escolhidas. Assim como foi o Réu quem decidiu que no contrato Pavilhão ex-H....... fosse essa empresa a única a ser convidada para apresentar proposta. Deste modo, tendo o Réu consciência e vontade de convidar a empresa S..... para participar nos procedimentos contratuais em causa, encontra-se preenchido o elemento subjetivo doloso inerente à situação de vantagem que proporcionou à empresa S....., de acesso ao mercado de compras públicas. *** De forma a tornar este discurso fundamentador mais percetível, inverte-se a ordem de conhecimento dos pressupostos atinentes à culpa, conhecendo-se em primeiro lugar as causas de exclusão da culpa e, seguidamente, da existência da mesma, dado que esta última análise pressupõe, em alguns pontos, a aferição das primeiras. O Réu alegou que “desconhecia o impedimento consignado no art° 8° da LII” e que "Quando outorgou os dois referidos contratos com a S....., o Réu não tinha consciência de poder estar legalmente impedido de participar em atos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus” (nos artigos 74° [que por lapso consta a seguir ao 77°] e 78° da contestação). Ora - e como vimos - o impedimento que constrangia o Réu não se confinava ao previsto no artigo 8°, n.° 1 da Lei n.° 64/93, sendo igualmente de atender aos impedimentos consagrados nos artigos 69°, n.° 1, alínea b) do CPA e 4°, alínea b), subalínea iv) da Lei n.° 29/87 (já acima postos em evidência). E enquanto o Código de Procedimento Administrativo configura a lei reguladora do processamento da atividade administrativa, o Estatuto dos Eleitos Locais e o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Dirigentes regulam o exercício das funções dos, entre outros, Presidentes das Câmaras Municipais, sendo diplomas básicos para o agir da Administração Autónoma. E já foram emanados em 1991, 1987 e em 1993, respetivamente. Ora, o Réu já exerce funções na Câmara Municipal de ……………… desde 04-011998: primeiro como Vereador e, a partir de 21 -10-2013, como Presidente da Câmara. Ou seja, já exerce funções ligadas à gestão das autarquias locais há mais de 21 anos de forma ininterrupta. Pelo que não é crível que desconhecesse os impedimentos consignados nos normativos referidos. E mesmo que esse desconhecimento efetivamente ocorresse, aplicar-se-ia, em todo o caso, o disposto no artigo 6° do Código Civil, que prescreve que “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas’’. Valem aqui - mutatis mutandi - as considerações tecidas pelo Supremo Tribunal Administrativo, já em 1997, no sentido de que “O recorrente, ao aceitar o múnus para que foi eleito, tinha o dever de obter um mínimo de preparação técnica ou de conhecimentos necessários ao seu desempenho, se ainda não os possuía, e de se informar devidamente sobre as obrigações que o mesmo acarretava. Se o tivesse feito, como qualquer cidadão medianamente avisado e cuidadoso, ficaria de certo a saber que, enquanto membro da Junta de Freguesia, não lhe seria lícito intervir em contratos como o que está em causa. Assim, a invocada ignorância da lei, que, em princípio, não aproveita a ninguém, ainda que corresponda à realidade, não releva, neste caso, como factor de desculpabilização, pois o recorrente não poderá deixar de ser censurado ético-juridicamente por ela. De resto, a ideia de que os autarcas não podem intervir, nessa qualidade, em negócios seus com as respectivas autarquias está já suficientemente impregnada na consciência colectiva, de tal modo, que só por grande e reprovável desleixo o recorrente não estaria ciente disso’’ (no acórdão de 07-01-1997 proferido no recurso n.° 41.478, acima citado, página 1401). (…) Daí que o Tribunal assuma - nas considerações subsequentes e para todos os efeitos -, que o Réu tinha conhecimento (ou devia-o ter) dos três impedimentos legais circunstancialmente aplicáveis durante todo o período em que interveio nos procedimentos contratuais em apreço. Por outro lado, o Réu alegou igualmente que outorgou os contratos Escola A....... e Pavilhão ex-H....... “porque considerava e considera que os contratos salvaguardavam do modo mais proveitoso os interesses do Município’ (no artigo 77° da contestação). Ora, a este respeito, o Tribunal entende que, mesmo que se considerasse que a intervenção do Réu nos aludidos procedimentos contratuais teve em conta a melhor prossecução do interesse público, nem por isso o alcance impeditivo que resulta dos normativos em causa e que salvaguardam o princípio da imparcialidade na vertente da transparência ou de garantia preventiva da imparcialidade, sairia debilitado, dado que permaneceria incólume a necessidade de salvaguardar a imagem e bom nome da Administração Pública, afastando qualquer suspeita de falta de isenção dos seus agentes (conforme se deixou explícito na análise que foi efetuada ao princípio da imparcialidade). É uma doutrina que já foi consagrada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 20-07-1994, quando sustentou que um Vereador da Câmara Municipal que interveio em projetos de construção e no licenciamento de uma edificação em situação de impedimento legal, não deixava de incorrer em perda de mandato “ainda que actuasse em conformidade com o interesse público” (proferido no processo n.° 35.345, disponível na Revista de Direito Autárquico, ano 3, número 4, dezembro de 1994, páginas 53 e 54: apesar de o fundamento invocado para a perda de mandato do Vereador em causa ter sido o artigo 9°, n.° 2, alíneas a) e b) da Lei n.° 87/89, de 09-09, a doutrina que dimana desse acórdão é transponível para o caso presente, dado que essa foi a primeira lei em Portugal que estabeleceu o regime jurídico da tutela administrativa sobre as autarquias locais e que foi revogada pela Lei n.° 27/96, sendo que o artigo 9°, n.° 2, alíneas a) e b) da Lei n.° 87/89 corresponde, grosso modo, ao artigo 8°, n.° 2 da Lei n.° 27/96 em articulação com o artigo 69°, n.° 1, alíneas a) e b) do CPA, normas estas convocadas para a resolução do caso dos autos).
Em seguida, o Réu alegou que após ter sido alertado pelos serviços camarários para a possibilidade da existência de um impedimento legal ordenou que não fosse pago o preço acordado no contrato Pavilhão ex-H.......; que ordenou que a empresa S..... não fosse mais convidada nem admitida a participar no fornecimento de bens ou serviços ao Município de ……………….; e que em 17-09-2018 declarou nulos os contratos em causa nestes autos (nos artigos 79° e 80°, 82° a 84° e 85° da contestação, respetivamente). Todas estas alegações o Tribunal deu como provados, com base na prova produzida no processo. Porém, essas condutas não detêm a potencialidade de desculpabilizar o comportamento assumido pelo Réu. É que, em termos jurídicos - e para efeitos de apreciação do pressuposto ora sob análise -, o Tribunal enquadra esses comportamentos alegados e comprovados pelo Réu na categoria de arrependimento para a sua conduta pretérita. Porém, tem que se ter em conta que “O arrependimento é um comportamento posterior atendível na dosimetria penal, pois releva quanto à personalidade do agente, mas, ..., não diminui em nada a sua culpa” (conforme explicita o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido no processo n.° 07P003, de 15-02-2007, disponível em www.dgsi.pt). E no âmbito da sanção de perda de mandato, não há qualquer medida de pena que possa ser balanceada (ao contrário do âmbito penal, em que são estabelecidas molduras, com um limite mínimo e máximo, para os respetivos crimes): ou se declara, ou não, a perda de mandato, em conformidade com os pressupostos que se dê como verificados, entre os quais, a culpa, que, como decorre da jurisprudência acabada de citar, em nada é diminuída em virtude de um arrependimento do Réu. Acresce que - e relativamente à declaração de nulidade dos contratos em apreço efetuada pelo Réu - a invalidade das adjudicações e contratos em causa decorre diretamente da lei. De facto, “se a intervenção do impedido se verifica em acto que determine ou permite afeiçoar a decisão final, ela leva inexoravelmente à sua ilegalidade” (nas palavras de Mário Esteves de Oliveira e outros, obra citada, anotação ao artigo 44°, página 247). Dai que o artigo 76°, n.° 1 do CPA prescreva que “São anuláveis nos termos gerais os atos ou contratos em que tenham intervindo titulares de órgãos ou agentes impedidos ...” (e que corresponde ao anterior artigo 51 ° do CPA, com idêntico teor). E os termos gerais referidos nesse normativo “compreendem seguramente qualquer tipo de ilegalidade. Nada impede que lei especial preveja a nulidade” (nas palavras de Luiz S. Cabral de Moncada, obra citada, anotação ao artigo 76°, página 271), como sucede com o impedimento aplicável às empresas previsto no artigo 8° da Lei n.° 64/93, cuja infração “... determina a nulidade dos actos praticados ...” (de acordo com o artigo 14° dessa Lei). Em suma, e em jeito de síntese, “a verificação do impedimento tem como base uma suspeita legal que gera automaticamente (sem ser necessária prova efectiva da parcialidade ou da quebra de objectividade) a ilegalidade dos actos ou contratos administrativos (cfr. Artigo 51° do Código do Procedimento Administrativo) eventualmente praticados ou celebrados pelo titular [do] órgão, ...” (de acordo com Pedro Gonçalves, em O Novo Regime citado, página 30). Deste modo, conclui-se pela não verificação de qualquer causa que possa excluir a culpa do Réu, pelo que importa apreciar o último pressuposto exigível para a declaração da perda de mandato. *** Assim, este último pressuposto contende com a imputação ao Réu, a título de culpa, da participação e da intervenção referidas (e o qual decorre do caráter sancionatório que a sanção de perda de mandato tem implícita, como já assinalado). Ora, "A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente, por este, face às circunstâncias específicas do caso, dever e poder ter agido de outro modo, juízo assente no nexo de imputação psicológica existente entre o facto e a vontade do autor” (conforme salienta o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 07-01-1997 proferido no recurso n.° 41.478, acima citado, página 1401). Mas não basta um mero juízo de censura pessoal pela conduta adotada, sem mais, para o Tribunal poder declarar a perda de mandato do Réu. De facto, "é tendo em conta a gravidade da sanção e das suas consequências que a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a afirmar que, exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal. E isto porque a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção visto que, se assim não for, será de questionar a constitucionalidade das normas que permitam declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade (Acórdão de 20/12/2007 (rec. 908/07).). Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando "a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96). Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais”.» (Acórdão de 11/03/99, rec. 44.576, com sublinhados nossos)” (conforme põe em ênfase o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.° 0859/11, de 07-12-2011, disponível em www.dgsi.pt). Ou – pondo em destaque o princípio da proporcionalidade -, “dada a gravidade da sanção de perda de mandato que a lei comina para determinados comportamentos, importa não só determinar se esses comportamentos estão objectivamente tipificados na lei, mas ainda se se verifica o elemento subjectivo que justifique um juízo de censura proporcional à medida sancionatória que só será de aplicar quando, ponderados os factores objectivos e subjectivos relevantes, se conclua pela indignidade do requerido para a permanência no exercício das suas funções” (de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.° 0369/03, de 18-03-2003, disponível em www.dgsi.pt). Propugnando igualmente uma visão centrada no princípio da proporcionalidade, Ernesto Vaz Pereira sustenta que “estando em causa o poder local eleito, sempre como suporte da perda de mandato há-de estar uma razão séria e não negligenciável. Se a consequência sancionatória é grave há-de ser antecedida por uma causa grave, no aforismo popular de que só para grandes males é que poderá haver grandes remédios’’ (obra citada, página 40). Vejamos. O primeiro juízo de censura que se faz ao Réu prende-se com a participação da empresa S..... nos contratos em apreço. De facto, o Réu podia e devia, nos dias 22-01-2014, 15-09-2015 e 16-02-2016 - quando lhe foram apresentadas as informações de abertura dos procedimentos dos contratos Escola A......, Pavilhão da Ex-H....... e Escola Cidade de ……………… pelos serviços administrativos da Câmara Municipal de …………………… - ter obstado a que a empresa S..... fosse convidada a participar nesses procedimentos, dado o seu pai ser detentor de uma quota superior a 10% nessa sociedade e como decorrência do artigo 8°, n.° 1 da Lei n.° 64/93. E essa obstaculização dependia unicamente de si, como entidade responsável pela escolha das entidades a convidar (uma vez que assumiu a qualidade de órgão adjudicante). Ao invés, autorizou a abertura desses procedimentos, com a inerente autorização para a empresa S..... participar em situação de impedimento legal. Apenas posteriormente à assinatura do contrato Escola Cidade de ……………., em 13-04-2016, é que o Réu deu a ordem aos serviços administrativos para não convidarem mais a empresa S..... a participar nos procedimentos contratuais do Município de ………….., após três autorizações para o efeito no espaço de cerca de dois anos e um mês (desde janeiro de 2014 a fevereiro de 2016), com a agravante de que no contrato do Pavilhão da Ex-H....... a empresa S..... ter sido a única convidada a participar, dado que foi adotado um procedimento de ajuste direto com convite a uma única entidade. Acresce que esta participação da empresa S..... é censurável ao Réu de uma outra perspetiva. É que com a revisão do Código de Procedimento Administrativo ocorrida em 2015, o princípio da imparcialidade ganhou uma nova consistência, ao explicitar-se, no respetivo artigo 9°, que “A Administração Pública deve ... adota[r] as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção” (este segmento não se encontrava expressamente previsto no anterior artigo 6° do CPA). Ora, “Assegurar a isenção e a confiança na mesma implica, com concretude, afiançar, dispor no sentido de a parcialidade não ser possível”, o que levanta uma exigência “de que as opções procedimentais e organizatórias sejam (abstrata e concretamente) idóneas para garantir a imparcialidade, reconhecendo que, como nota Kielmansegg, as “estruturas e os procedimentos na Administração Pública são cruciais para uma prevenção efetiva e desocultação” da parcialidade” (conforme salienta Ana Fernanda Neves, obra citada, página 626; esta Autora cita, na nota 26, João Pacheco de Amorim, o qual sustenta que “configura um dever de prévia identificação pela Administração de situações suspeitas e um dever consequente de resolução organizacional e procedimental das mesmas"). Ou seja, a partir de 07-04-2015 (data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 4/2015, como já acima salientado) o Réu tinha a obrigação, como Presidente da Câmara Municipal de …………………, de ter implementado os procedimentos internos necessários a fim de os respetivos serviços administrativos poderem identificar atempadamente situações como a dos autos e, assim que o fizessem, agir em conformidade - através de uma atuação que passasse pela garantia de que as empresas que se encontrassem numa situação de impedimento legal não participassem efetivamente nos procedimentos contratuais do Município. E o que resulta dos autos é que esse alerta dos serviços administrativos ocorreu apenas após a assinatura do contrato Pavilhão ex-H......., em 09-11-2015 (de acordo com a motivação do facto dado como não provado), o que, mesmo assim, não impediu que em fevereiro de 2016, a empresa S..... fosse novamente convidada para o procedimento do contrato Escola Cidade de ……………….. e que apenas após a assinatura desse contrato, em 1304-2016, é que essa empresa deixou de ser convidada para participar nos procedimentos contratuais do Município. O segundo juízo de censura que recai sobre o Réu contende com a intervenção que o mesmo teve nos três procedimentos contratuais em causa nestes autos. Valoremos em primeiro lugar os contratos Escola A...... e Pavilhão da Ex- H........ Nestes procedimentos contratuais o Réu assumiu a qualidade de órgão adjudicante do princípio ao fim, o que implicou a tomada de inúmeras decisões (e que foram pormenorizadamente detalhadas no pressuposto atinente à intervenção do Réu), das quais se destaca: a escolha do ajuste direto como procedimento a adotar para a formação dos contratos; que a empresa S..... seria uma das três entidades a convidar no contrato Escola A...... e a única no contrato Pavilhão da Ex-H.......; a designação do júri no contrato Escola A....... e do Engenheiro A....... como responsável pelo procedimento no contrato Pavilhão ex-H.......; a adjudicação desses contratos à empresa S.....; e, após a aprovação das respetivas minutas, a outorga dos respetivos contratos em nome e em representação da Camara Municipal de ………………. Essas intervenções ocorreram entre janeiro e março de 2014 (no caso do contrato Escola A......) e entre setembro e novembro de 2015 (no caso do contrato Pavilhão ex- H.......) e traduziram-se, assim, numa intervenção reiterada e constante, ao longo de quase dois anos (e nos períodos assinalados). Não se tratou de uma intervenção esporádica ou pontual, mas a assunção da responsabilidade pela tramitação integral de dois procedimentos contratuais que o Réu sabia (ou devia saber) que se encontrava legalmente impedido de o fazer. Note-se que Freitas do Amaral, ao debruçar-se sobre a violação das garantias de imparcialidade da Administração, considera que “Basta violarem uma vez para que o Ministério Público possa propor uma acção de perda de mandato e se siga naturalmente, como sanção, a perda efectiva do mandato” (conforme sustenta em Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, outubro 2001, página 144). Ora, estas intervenções - com esta amplitude - põem seriamente em causa o princípio da imparcialidade na vertente da transparência que acima foi posta em evidência. O Réu não garantiu, preventivamente, a imagem de imparcialidade e bom nome da Administração Pública, como se lhe impunha. Com a sua atuação deu azo a que houvesse o perigo de germinar na opinião pública a suspeita relativamente à falta de isenção na escolha das entidades que contratam com o Município de …………………. Era obrigação do Réu ter projetado para o exterior uma imagem de imparcialidade irrepreensível, de modo a reforçar a confiança dos cidadãos numa atuação imparcial e isenta da Administração Pública, com total independência. Em suma, o Réu podia e deveria ter-se declarado impedido de intervir nos procedimentos contratuais em apreço (nos termos do disposto no artigo 70°, n.° 1 do CPA), autossuspendendo a respetiva intervenção nos mesmos (de acordo com o artigo 71°, n.° 1 do CPA) e assegurar-se que se efetuava a respetiva substituição legal (conforme artigo 72°, n.° 1 do CPA). Em nenhum momento dos dois procedimentos contratuais sob análise - que, em conjunto, tiveram uma tramitação correspondente a quatro meses dentro de um período que não chegou a dois anos - o Réu adotou essa atitude, quando o deveria ter feito em nome dos valores da imparcialidade e da transparência. Note-se que “A arguição do impedimento pelo titular do órgão ou pelo agente da Administração Pública é um acto vinculado” (conforme frisa Luiz S. Cabral de Moncada, obra citada, anotação ao artigo 70°, página 261) e não depende de qualquer juízo de oportunidade pelo titular em causa. Valoremos agora a intervenção do Réu no contrato Escola Cidade de …………………….. Neste procedimento contratual, o Réu interveio até ao momento anterior à respetiva adjudicação (ou seja, durante o mês de fevereiro de 2016), sendo de realçar, nesta análise, o facto de ter sido o Réu quem escolheu que o procedimento a adotar seria o ajuste direto e quais as entidades a convidar. E a partir de março de 2016 - tendo em conta os factos que foram dados como provados - o Réu foi substituído nesse procedimento pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de ………………, o qual praticou, a partir dessa data e na qualidade de órgão adjudicante, os atos subsequentes, onde se incluem a adjudicação e a assinatura do respetivo contrato. Mas a intervenção do Réu neste procedimento não se cingiu à realçada, havendo ainda outros elementos que merecem ser valorados para efeitos de apreciação do pressuposto de culpa grave sob análise. Assim: no dia 16-02-2016 o Réu autorizou a abertura desse procedimento contratual e, em 18-02-2016, as três empresas escolhidas - I......& F…., Lda., S..... – E….., Lda. e M...... - foram convidadas a apresentar as suas propostas até ao dia 29-02-2016, estipulando-se no convite e no caderno de encargos que o prazo de execução da obra era de 150 dias; contudo, no dia 26-02-2016, pelas 16:29 horas, o Réu aprovou uma retificação do convite e do caderno de encargos, alterando o prazo de execução da obra para 90 dias (ao invés dos 150 dias fixado inicialmente) e, em consonância, as empresas convidadas foram informadas que o prazo fixado para a apresentação das propostas havia sido prorrogado até o dia 03-03-2016; sucede que a empresa S..... apresentou a sua proposta às 16:50 horas do dia 26-022016, com um prazo de execução da obra de 90 dias e, posteriormente, a empresa I…… M….. & F…. foi excluída desse procedimento por ter apresentado um prazo de execução da obra de 150 dias, superior, portanto, ao que havia sido fixado na retificação efetuada. Ou seja: o Réu - enquanto entidade competente para definir os termos e condições das peças do procedimento e proceder à respetiva retificação oficiosa (artigos 40°, n.° 2 e 50°, n.° 3 do CCP) - decidiu alterar um dos aspetos fundamentais das peças do procedimento (qual seja, o tempo de execução da empreitada em causa - cfr. artigo 64°, n.° 2 do CCP), e passados vinte minutos dessa retificação e notificação às entidades em causa, a empresa S..... apresenta a sua proposta de acordo com a alteração que foi estipulada, sendo que, posteriormente, outra das empresas convidadas é excluída com fundamento no não cumprimento desse aspeto retificado. Perante estes factos objetivos, o Tribunal entende que qualquer cidadão poderá, fundadamente, pôr em causa a atuação do Réu, suspeitando de uma atuação de favor em relação à empresa S...... E é precisamente para evitar este tipo de suspeições, que o princípio da imparcialidade adquire a importância e valia que detém no ordenamento jurídico, evitando assim, preventivamente, qualquer conotação da Administração Pública com qualquer outro tipo de atuação que não a prossecução do interesse público de forma isenta e imparcial (conforme o impõe o artigo 266°, n.° 1 e n.° 2 da CRP). Deste modo, o Tribunal formula um juízo de censura pessoal ao Réu, por ter agido da forma como se evidenciou, quando podia e devia ter procedido de modo diferente. E é com base na agregação de todos os juízos de valor que foram sendo feitos - os quais denotam uma atuação desconforme com o princípio da imparcialidade e da transparência ao longo de dois anos e um mês e de forma reiterada e persistente - que o Tribunal imputa essa conduta do Réu a título de culpa grave. (…)» A sentença recorrida analisa de uma forma exaustiva e correta, escudada em jurisprudência e doutrina, que cita, e que se aplica inteiramente ao caso em apreço, fundamentado todos os aspetos determinantes para que possa ser declarada a perda de mandato do R., ora Recorrente, análise essa com a qual se concorda nos seus aspetos essenciais. Acresce que, recentemente, o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, chamado a pronunciar-se sobre o regime jurídico das incompatibilidade e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, concluiu o seguinte, com interesse para o sentido que aqui pugnamos, dada a similitude congénita das situações em apreço: “(…) 3.ª) Às questões suscitadas no âmbito do presente parecer, é aplicável o regime decorrente da lei atualmente em vigor, constante da citada Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, de harmonia com os princípios hermenêuticos consagrados no artigo 12.º do Código Civil; 4.ª) O artigo 8.º, da mesma Lei, na sua literalidade, estabelece que as empresas cujo capital seja detido, numa percentagem superior a 10%, por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva em união de facto, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas; 5.ª) Pese embora a inequívoca força conformadora da Lei Fundamental, não se mostra necessário, ou possível, dentro dos quadros de uma interpretação conforme à Constituição, lançar mão a uma interpretação corretiva restritiva deste preceito, com vista à sua eventual compatibilização com o princípio da proporcionalidade; (…) 8.ª) A consagração, sob a égide dos princípios da imparcialidade e da transparência, dos impedimentos estabelecidos no referido artigo 8.º, é indissociável da suspeição de que foi a eventual intervenção do titular do órgão ou do cargo que, em teoria, condicionou ou foi suscetível de ditar o desfecho do concurso público; (…) 10.ª) Descortinam-se, assim, nos domínios objetivo e teleológico, razões ponderosas para impor a destrinça entre as duas situações: i) quando está em causa o próprio titular ou a empresa que detém em percentagem superior a 10%, facto que põe em causa, sobremaneira, os valores subjacentes ao estabelecimento do impedimento e ii) quando o impedimento se reporta às pessoas com quem mantém relações familiares ou de vivência em comum e às respetivas empresas; (…) 12.ª) Mas, na segunda situação configurada na conclusão 10.ª, existe fundamento para uma redução teleológica do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, no sentido de que, em vez de se reportar, indiscriminadamente, a qualquer concurso público de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas, deve referir-se unicamente aos concursos que foram abertos ou correm os seus trâmites sob a direção, superintendência ou tutela de mérito do órgão do Estado ou do ente público em que o titular do órgão ou do cargo exerce as suas funções; (…) 16.ª) As sanções cominadas no n.º 3 do artigo 10.º da mesma Lei n.º 64/93, embora respeitem a uma responsabilidade tendencialmente objetiva, têm como suporte fáctico um qualquer ato ou omissão, pressupondo, ou a prática pelo agente político de uma conduta merecedora de uma censura política, ou a omissão de um determinado comportamento que lhe era imposto que assumisse, à luz dos seus direitos e deveres funcionais, e que pura e simplesmente descurou; 17.ª) Esta responsabilidade de pendor objetivo visa justamente obviar a que a suspeição do favorecimento pessoal e familiar, por banda do titular do órgão ou cargo, não coloque em causa a imparcialidade do próprio órgão e que, por seu turno, não haja o risco de as empresas, em cujo capital social participe, por si ou conjuntamente com pessoas do seu círculo familiar, beneficiarem indevidamente de vantagens inerentes à sua particular relação fiduciária com o titular dos órgãos do poder e que, de outro modo, alegadamente, não obteriam; 18.ª) O legislador valorou tais circunstâncias como relevantes, por portadoras de uma carga axiológica negativa, de molde a justificar a intervenção punitiva da comunidade, associando-as a uma sanção, independentemente da consciência do ato e da volição pelo titular do cargo político;(…)(cfr. Parecer n.º 25/2019, de 19.09.2019, disponível em www.dgsi.pt que aqui se considera integralmente reproduzido, sendo que, na parte transcrita, todos os sublinhados são nossos).
Termos em que, resulta inegavelmente reforçado o acerto da decisão tomada pelo tribunal a quo e, bem assim, a não procedência dos erros de direito que lhe foram imputados em sede de recurso, sem necessidade de mais desenvolvimentos. III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente. Lisboa, 10.10.2019
____________________________ Dora Lucas Neto ____________________________ ____________________________ _____________________________ (1) Seguindo de perto o Ac. STJ, de 03.03.2016, P. 861/13.3TTVIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt |