Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:85/18.3BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/07/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA (RELATOR POR VENCIMENTO)
Descritores:TAD
METÓDICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário:
I - A chamada “ponderação de bens” ou de normas-princípios acaba, após uma efetiva atuação autónoma dos três exames ínsitos na metódica da proporcionalidade quanto ao “como” da interferência ou afetação [aptidão; indispensabilidade; e equilíbrio, razoabilidade ou proibição do excesso], a decidir sobre a prevalência em concreto de um dos direitos em colisão, afastando a relevância do outro nesse caso concreto.
II - Ocorre ali um sopesamento comparativo, não dos bens jurídicos em colisão, mas sim dos níveis de afetação recíprocos.
III - Tal como o juiz constitucional face às leis, o juiz administrativo de um Estado democrático de Direito não pode invalidar as atuações administrativas por serem não ótimas, no âmbito dos direitos fundamentais. Mas, ao contrário do juiz constitucional – porque limitado imediatamente pela legitimidade democrática direta do legislador e pelo tipo de linguagem da lei fundamental - o juiz administrativo pode e deve invalidar condutas de administração pública que, sendo desproporcionadas, não o sejam de modo notório ou manifesto.
IV - O único limite imanente à fiscalização jurisdicional administrativa da desproporcionalidade de administração pública é o princípio fundamental da divisão das funções soberanas do Estado ou separação de poderes.
V – Mas não compete nem à Administração Publica [aqui, Conselho de Disciplina da FPF], nem a entidades de arbitragem jurídica de Direito desportivo forçada ou “necessária” [aqui, o T.A.D.], nem aos tribunais previstos nos artigos 110º e 212º da CRP, supor, deduzir sentidos ou opinar sobre o teor e o modo do exercício da liberdade de expressão do pensamento e da opinião dos cidadãos.
VI – Assim, as afirmações: «Nem no tempo do Apito Dourado existe memória de uma semana tão negativa e com decisões tão escandalosas com reflexos diretos nos resultados como esta semana» e, «Os sinais são muito preocupantes, há decisões e escolhas lamentáveis e pouco cuidadosas de árbitros e vídeo-árbitros, relatórios que colocam em causa a veracidade dos mesmos, tudo perante uma grande inércia das estruturas de decisão do futebol», não colocaram em causa a seriedade e honestidade dos árbitros de futebol e, como tal, não interferiram com o direito previsto no artigo 26º, nº 1, da CRP [o direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social].
VII – Portanto, o arguido, dirigente desportivo, exerceu em termos regulares o direito fundamental previsto no artigo 37º, nºs 1 e 2, da CRP [o direito de cada pessoa exprimir livremente as suas ideias e opiniões, independentemente de um dever de verdade].
VIII – Mas, ainda que houvesse ali alguma afetação relevante do direito a não ser ofendido ou lesado na honra, dignidade ou consideração social, isso seria num grau muito leve quando comparado com a alternativa de o arguido estar calado a propósito das mesmas questões [a única alternativa cogitável pelo poder judicial neste tipo de sopesamentos comparativos], alternativa esta que seria de uma intensidade média ou alta de afetação ou constrição do direito fundamental previsto no artigo 37º, nºs 1 e 2, da CRP.
Votação:Maioria
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

JOSÉ…………………………………… intentou no “Tribunal Arbitral do Desporto” [T.A.D.] ação administrativa para impugnação de ato administrativo de natureza disciplinar contra

FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL.

A pretensão formulada no T.A.D. foi a seguinte:

- Anulação do ato administrativo punitivo de 06-06-2018 da autoria do Conselho de Disciplina da FPF [suspensão por 45 dias e multa no montante de 2.870,00 Euros, ao abrigo do artigo 136.º ns 1 e 4, atento o disposto no artigo 112.º n1, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional], com a consequente absolvição do arguido no respetivo processo disciplinar.

Após a discussão da causa, aquela entidade jusarbitral decidiu, pela decisão arbitral colegial ora recorrida, julgar improcedente o pedido.

*

Inconformado com a decisão arbitral, o autor-impugnante interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. No dia 02 de Maio de 2018, por Acórdão tirado no processo disciplinar nº 51-17/18, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, Secção Profissional, deliberou condenar o Recorrente pela prática da infração disciplinar "lesão da honra e reputação" p. e p. pelos no 1 e 4 do artigo 136º , por remissão para o n.º 1 do artigo 112º, ambos do RD da LPFP, na sanção de suspensão por 45 (quarenta e cinco) dias e na sanção de multa de € 2.870,00 (dois mil oitocentos e setenta euros).

2. Concluiu, portanto, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que, atentas as declarações proferidas pelo Recorrente - as quais resultaram provadas - este formulou um juízo depreciativo e injurioso que viola a honra e consideração da equipa de arbitragem.

3. Tal punição foi aplicada pela Recorrida, Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e mantida pelo Tribunal a quo, a saber o Tribunal Arbitral do Desporto (adiante, TAD).

4. Conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, a matéria de facto provada é omissa relativamente a factos relevantes, que permitem enquadrar as declarações proferidas pelo Recorrente, percecionando completamente o seu conteúdo.

5. Não encontra respaldo na factualidade provada a análise efetuada pelas instâncias próprias e pela comunicação social às arbitragens referidas pelo Recorrente;

6. Mais, não encontra respaldo na factualidade provada todo o contexto de condicionamento dos árbitros levado a cabo pelos mais diretos concorrentes, do qual se deu conta em sede de Alegações.

7. O Recorrente não formulou qualquer ofensa aos árbitros em causa, tendo, outrossim, tecido críticas ao seu trabalho, as quais reproduzem a opinião geral sobre a qualidade das arbitragens.

8. O Recorrente agiu, conforme se deu conta em sede de Alegações, ao abrigo da liberdade de expressão, motivo pelo qual não praticou qualquer ilícito disciplinar.

*

A recorrida FPF contra-alegou, concluindo assim:

1) O recurso de José ……………………………….. tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto proferido em 6 de agosto de 2018 que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que os sancionou pela prática de infrações relativas a ofensas à honra e reputação de agente de arbitragem , por aplicação dos artigos 112.º e 136.º. do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante designado por "RD da LPFP").

2) Pretendia o Recorrente, que se averiguasse todo o contexto desportivo do momento para averiguar uma espécie de "justificação" para as afirmações feitas, afirmando que tal é essencial para aferir da ilicitude, ou não, dos factos praticados.

3) Diga-se, desde logo, que se tais factos são públicos e notórios não necessitam, desde logo, de ser incluídos na matéria dada como provada.

4) Em todo o caso, sempre se diga que a factualidade relevante foi assente nos documentos junto s ao processo disciplinar e aos autos e que, naturalmente, foi tida em conta pelo Colégio Arbitral.

5) Toda a "factualidade" alegada pelo Recorrente não são mais do que outras opiniões relativas ao mesmo assunto, veiculadas por outros meios e por outras pessoas - pessoas essas que não são agentes desportivos e não se encontram, portanto, sob aplicação do RD da LPFP nem sob jurisdição do CD da FPF - ou circunstâncias que não diretamente ligadas à prática dos ilícitos em causa.

6) Com efeito, o que o Recorrente pretende é que factos instrumentais fossem considerados factos principais o que naturalmente não pode colher.

7) Não é por não terem sido elencados na matéria de facto dada como provada que o Colégio Arbitral não considerou todas as alegações feitas nas respetivas peças processuais.

8) É obviamente desconexa com o objeto dos autos (e perfeitamente inócua, nessa medida) a matéria que o Recorrente parece pretender que fosse aditada ao elenco de facto provados ou não provados.

9) Resulta claro dos autos que as declarações proferidas e difundidas visam propalar uma teoria construída de que várias decisões por parte de alguns árbitros foram parciais e condenáveis, ligadas a atos de corrupção.

10) Ora, no caso em apreço o Recorrente não imputa quaisquer factos aos visados, limitando-se a fazer juízos de valor, sem qualquer sustentação fáctica, o que limita o exercício da liberdade de expressão quando a mesma concorre com o direito à honra, também ele, constitucionalmente previsto.

11) Apesar da esforçada argumentação do Recorrente em fazer crer que as declarações que proferiram eram uma mera crítica e opinião à atuação da Arbitragem, sempre se dirá que qualquer pessoa minimamente atenta ao fenómeno futebolístico, extrairá das declarações em causa que houve uma clara tentativa - conseguida - de associar determinados factos a atos ilícitos.

12) O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objeto do juízo, sendo certo que tal juízo não é ofensivo quando resulta do exercício da liberdade de expressão.

13) Evidentemente, se é verdade que o direito à crítica constitui uma afirmação concreta do valor da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo (artigo 37. º, n.º 1, da CRP), esse direito não é ilimitado. Ao invés, deve respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção.

14) Assim, o juízo de valor é ilegítimo, ainda que no âmbito do exercício da liberdade de expressão, quando se dirige ao visado em si mesmo.

15) Naturalmente que os agentes desportivos podem exprimir opiniões e formular críticas. As sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir publica e abertamente o que pensam e sentem, estando, porém, adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do Regulamento Disciplinar da LPFP.

16) Quando uma pessoa ou entidade aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc. ... o Recorrente tem de ter noção -e se não têm, sibi imputet- de que está sujeito a regras de respeito pela competição desportiva e pelos outros agentes, incluindo árbitros e a arbitragem.

17) Assim, em concreto, dizer que o árbitro errou, que a arbitragem em Portugal podia melhorar, que existem erros incompreensíveis, que o funcionamento da arbitragem não é o que o autor do texto reputa de correto (ainda que se utilizem palavras mais contundentes), é uma coisa.

18) Dizer que a arbitragem ou um árbitro em específico erra em favorecimento de um clube em concreto, inculcando na comunidade em geral a ideia de um agir parcial por parte de entidades em que a imparcialidade, a isenção e o rigor são absolutamente vitais e intrínsecos à própria função, é outra bem diferente. E para se passar uma mensagem deste nero não é necessário o uso de quaisquer expressões grosseiras, nem o uso de quaisquer vernáculos (que no caso não foram usados), o que não prejudica o facto de tais declarações serem ofensivas da honra e reputação do árbitro ou da arbitragem em geral.

19) O Recorrente sabia ser o conteúdo dos textos em causa adequado a prejudicar a honra e reputação devida à arbitragem em geral, na medida em que indicia uma atuação a que não presidem critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, colocando assim intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.

20) Como é evidente, não podem os textos serem considerados uma crítica objetiva, mas sim a imputação de um juízo pejorativo à atuação do árbitro e da arbitragem em Portugal, uma vez que deixa m perpassar a ideia de que uma eventual falta de acerto nas decisões são atos intencionais em favorecimento de um determinado clube.

21) Além disso, tais afirmações são potencialmente gravosas para o interesse blico e privado da preservação das competições profissionais de futebol.

22) Esta decisão vem, als, em linha do que já foi decidido por este mesmo TCA Sul, no âmbito do processo 155/17.5BCLSB.

23) O TAD apenas poderia alterar a saão aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.

24) Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação dos Recorrentes.

*

Os autos foram depois enviados a este tribunal.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A entidade jusarbitral recorrida decidiu estar provada a seguinte factualidade:

A. O Demandante integrava o Conselho de Administração da …………………………..- Futebol, SAD em 22/02/20 18 (fls. 38 do processo disciplinar).

B. O Demandante, em entrevista concedida ao programa Bola Branca da Rádio Renascença emitida nesse dia, proferiu as seguintes afirmações:

«Nem no tempo do Apito Dourado existe memória de uma semana tão negativa e com decisões tão escandalosas com reflexos diretos nos resultados como esta semana.

Os sinais são muito preocupantes, há decisões e escolhas lamentáveis e pouco cuidadosas de árbitros e vídeo-árbitros, relatórios que colocam em causa a veracidade dos mesmos, tudo perante uma grande inércia das estruturas de decisão do futebol;

O jogo de Tondela teve um tempo complementar que, de tão incompreensível, tomou-se motivo de chacota. No Estoril, com a data de adiamento difícil de aceitar face aos regulamentos, também não se compreende. Ainda por cima o jogo fica manchado pelo primeiro golo;

(...) há muitas campanhas de intoxicação e falta de pulso da parte de quem tem de decidir medidas mais drásticas, pois há comportamentos inadmissíveis;

Vejo dirigentes desportivos a atuarem como autênticos talibãs e isso tem de terminar. Aquilo que se assistiu no último fim de semana, relativamente a um grande clube de Lisboa, faz lembrar os tempos de Hugo Chávez na Venezuela. Estão a acender-se rastilhos que são inadmissíveis “, segundo a edição do jornal “A BOLA" de 22/02/2018; e

"(...) Há muita intoxicação da opinião pública, dos agentes desportivos, das autoridades desportivas e muita falta de pulso da parte de quem tem de decidir medidas mais drásticas. Vejo dirigentes desportivos atuarem como autênticos talibãs e isso tem de terminar. O que se viu na AG de um grande clube de Lisboa faz lembrar os tempos de Chávez, na Venezuela. Estão a acender-se rastilhos de intolerância inadmissíveis".

"Nem no tempo do Apito Dourado há memória de uma semana tão negativa e com decisões tão escandalosas e com reflexos nos resultados como esta.

O jogo de Tondela teve um tempo complementar que de tão incompreensível foi motivo de chacota.

O jogo do Estoril, entre a interrupção e o adiamento para data difícil de aceitar face aos regulamentos, também não se compreende: 37 dias de espera. Ainda por cima ficou manchado pela decisão do vídeo-árbitro no primeiro golo, num fora de jogo difícil de admitir que não tenha sido observado. (...)

Sinais muito preocupantes com escolhas lamentáveis e pouco cuidadosas de árbitros e vídeo-árbitros, com relatórios que põem em causa a veracidade dos mesmos", segundo a edição do jornal "O JOGO" de 22/02/2018 [cf. fls. 1 a 3 e 16 a 18 e admissão pelo Demandante, a fls. 50 a 52 dos autos do processo disciplinar].

C. As "decisões escandalosas" a que o Demandante se referiu na entrevista à Rádio Renascença transcritas nos referidos jornais são decisões do árbitro do jogo entre as equipas do …………………………..- Futebol, SAD e do ………………………… - Futebol, SAD, bem como a verificada no jogo entre as equipas do ………………. - Futebol SAD e do ……………………… - Futebol, SAD (facto admitido pelo Demandante nos autos do processo disciplinar, fls. 50 a 52 do processo disciplinar).

D. O jogo entre o ………………………… - Futebol, SAD e a …………………………. - Futebol, SAD a que o Demandante se referiu, corresponde à 23.º jornada da Liga NOS, disputada a 19/02/2018.

E. O jogo entre as equipas do …………………….. - Futebol SAD e da …………………………….. - Futebol SAD teve como árbitro principal João ……………… (admissão pelas partes, fls. 54 do Processo Disciplinar).

F. O jogo disputado entre as equipas de futebol da ………………… - Futebol, SAD e do …………………….. - Futebol, SAD corresponde à 18.ª jornada da Liga NOS sendo árbitro principal Vasco ………………., árbitros assistentes Luciano ………….. e Sérgio ………………, Hélder ………………… como 4.º árbitro (fls. 59 a 67 dos autos do processo disciplinar).

G. No jogo disputado entre as equipas de futebol da ……………………. - Futebol, SAD e do ………………………… - Futebol, SAD, Luís …………………… desempenhou as funções de vídeo árbitro (fls. 59 a 67 dos autos do processo disciplinar).

H. Foi divulgado na imprensa desportiva do dia 13/04/2018 que, por causa do teor do relatório subscrito pelo árbitro João ………………. relativo ao jogo entre as equipas da …………………… - Futebol, SAD e da ……………………….. - Futebol, SAD, fora instaurado processo disciplinar àquele árbitro (fls. 120 dos autos do processo disciplinar).

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

São as seguintes as questões a resolver contra a decisão jurisdicional ora impugnada:

- Erro de julgamento quanto à matéria de facto relevante;

- Erro de julgamento de direito a propósito da questão de as afirmações do ora recorrente se não integrarem no lícito exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

*

Temos presente tudo o que já expusemos, bem como que existe uma correta, objetiva e verificável metodologia jurídica para decidir processos jurisdicionais [cf. os essenciais artigos 9º a 11º do CC (1); e Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2018, capítulo I, nº 3, e capítulo III], no âmbito de um Direito positivado em consequência de opções político-legislativas e de opções político-valorativas, ambas sem natureza objetiva ou absoluta.(2)

Passemos, agora, à análise do recurso de apelação.

*

1 - Do erro de julgamento quanto à matéria de facto relevante

Está em causa uma suposta omissão de factos alegados na p.i. e provados.

Ora, vista a p.i. e sobretudo a alegação de recurso perante este tribunal superior não se descortinam factos relevantes para esta causa. E o próprio recorrente não os indica. Apenas refere questões ou episódios laterais relacionados com clubes adversários e o chamado “clima de suspeição” no futebol profissional português, a que, aliás desnecessariamente, o TAD deu relevância.

Pelo que o recorrente não tem razão nesta questão.

2 - Do erro de julgamento de direito a propósito da questão de as afirmações do ora recorrente se integrarem no lícito exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

2.1.

Em síntese, a entidade jusarbitral recorrida, na sua deliberação jusarbitral, invocando o que chamou de “jurisprudência” do “T.A.D.”, considerou haver nas declarações públicas do ora recorrente uma ofensa à honra e reputação dos citados árbitros de futebol [cf. artigo 26º-1 da CRP e artigos 112º-1-4 e 136º-1 do RD/LPFP]. Tal como considerara o ato administrativo impugnado [“acórdão” do C.D./F.P.F., segundo a respetiva linguagem].

Ou seja, considerou que o ora recorrente, com aquelas declarações a jornais [cf. factos B e C], difamou os cits. árbitros, violando o RD. E que tal ofensa ou difamação – num sentido não penal – não caberia simplesmente no direito à crítica, antes sendo um exercício ilícito ou desequilibrado da liberdade de expressão [cf. artigo 37º-1-2 da CRP e artigos 112º-1-4 e 136º-1 do cit. RD], com afetação negativa relevante do bom nome e reputação dos cits. árbitros de futebol.

É que o arguido, com aquelas declarações a jornais [cf. os factos provados B e C], teria posto em causa a seriedade e honestidade dos cits. árbitros de futebol, ao fazer a cit. relação ou associação com o caso Apito Dourado e ao aludir a uma suspeita de alteração do relatório do jogo por parte de um dos árbitros.

E não relevaria a favor do arguido o facto de os árbitros de futebol cits. serem figuras públicas.

Traduzindo a decisão arbitral colegial recorrida segundo a linguagem da metódica dos direitos fundamentais, temos o seguinte: o arguido-autor-recorrente exercitou o seu direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento de um modo que afetou ou atingiu o direito fundamental dos cits. árbitros ao bom nome, honra e reputação; tal concreto exercício foi desproporcionado ou exagerado em desfavor do direito fundamental dos cits. árbitros ao bom nome, honra e reputação e, portanto, inconstitucional e ilegal [neste último ponto, com referência aos cits. artigos do RD/LPFP; v. ainda o artigo 70º-1 do CC].

Será assim?

2.2.

Preliminarmente e ao contrário do que parece ocorrer na decisão arbitral recorrida, devemos sublinhar que, na análise jurídica de um exercício concreto do direito fundamental à liberdade de expressão eventualmente colidente com outro direito fundamental, não se deve atender, logo à partida, a algo que só interessa a final: a teleologia infraconstitucional – portanto, abaixo do tema dos direitos fundamentais – das disposições legais de natureza administrativa disciplinar eventualmente violadas. Sob pena de se minar o raciocínio metódico-jurídico, que é especialmente importante quando pareça estar em questão uma colisão entre direitos fundamentais.

2.3.

Como referido no ato administrativo impugnado e na decisão arbitral recorrida, estão em causa, sobretudo, os direitos fundamentais previstos nos cits. artigos 26º-1 e 37º-1-2 da CRP:

Artigo 26º-1: “A todos são reconhecidos os direitos (…) ao bom nome e reputação (...)”;

Artigo 37º-1-2: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, (…), sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.”

Além disso, relevaram os cits. artigos 112º-1 e 136º-1 do RD/LPFP, normas meramente administrativas, que, como tal, não podem afrontar minimamente a CRP:

Artigo 112º-1: O clube que desrespeite ou use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com os órgãos da Liga ou da Federação Portuguesa de Futebol, respetivos titulares, árbitros, dirigentes e demais agentes desportivos, em virtude do exercício das suas funções, são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 250 UC”;

Artigo 136º-1: Os dirigentes que praticarem os factos previstos no n1 do artigo 112.º contra os membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, dirigentes, jogadores, demais agentes desportivos ou espetadores, são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de um mês e o máximo de um ano e, acessoriamente, com a sanção de multa a fixar entre um mínimo de 25 UC e o máximo de 200 UC”.

2.4.

O efetivo “controlo de proporcionalidade, ou melhor, de desproporcionalidade” não é simplesmente identificável com a chamada “metodologia da ponderação de bens jurídicos”; esta, a ponderação ou sopesamento de direitos ou princípios colidentes, não é a mesma coisa do que controlar a desproporcionalidade das medidas que interfiram com bens ou princípios jurídicos colidentes [cf. assim Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL Edit., 2017, Parte III, maxime pp. 248 ss].

Sobre a chamada “metodologia da ponderação de bens jurídicos”, adota-se a doutrina de E. Grabitz, hoje um lugar-comum, decorrente da jurisprudência alemã dos anos 1950 a 1990, e na prática aceite quase acriticamente há décadas, entre nós, como está sumariada a pp. 249-250, nota de rodapé nº 242, da cit. obra de Jorge Reis Novais:

(1º) quanto maior for a intensidade da restrição, mais significativos devem ser os valores comunitários que a justificam;

(2º) quanto maior for o peso e a premência de realização do interesse comunitário que justifica a restrição, mais intensa ela pode ser;

(3º) quanto mais diretamente forem afetadas manifestações elementares da liberdade individual, mais exigentes devem ser as razoes comunitárias que fundamentam a restrição.

Esta metodologia da ponderação de bens jurídicos colidentes utiliza sucessivamente os três exames próprios da metódica da proporcionalidade no primeiro momento da apreciação judicial dos bens em causa.

Pode, assim, designar-se “mera ponderação de bens jurídicos colidentes, com recurso à ideia de proporcionalidade em sentido amplo”. Na verdade, a ponderação de bens jurídicos fundamentais, como método, pouco controla efetivamente ou pouco limita de um modo jurídico e jurisdicional.

E daí que, a montante do heterocontrolo, no âmbito legiferante, a ideia de otimização dos direitos fundamentais – comandos a otimizar no caso concreto [Alexy] – tenha, na verdade, uma mera função autorregulativa do decisor legislativo, bastando o cumprimento racional dos três segmentos ou testes da máxima metódica da proporcionalidade em sentido amplo [Vitalino Canas, in O Princípio da Proibição do Excesso na Conformação e no Controlo de Atos Legislativos, 2017, pp. 1156-1157 e 1169].

2.5.

Diferentemente, o controlo da desproporcionalidade propriamente dito, o estrito, a propósito de uma medida legislativa ou a propósito de uma medida administrativa, ou ainda a propósito de uma atuação particular correspondente ao exercício de um direito fundamental, coincide, em regra, não com uma “concordância prática ou harmonização” à semelhança do que ocorre com o artigo 335º do CC, mas, sim, com uma análise e ou comparação sopesante de medidas ou atuações que afetem direitos fundamentais ou direitos subjetivos públicos [cf. M. Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, pp. 457 ss; J. Reis Novais, ob. e pp. cits.; Paulo Otero, Manual de D. Admin., I, 2013, pp. 432 ss, maxime pp. 443-449; Vitalino Canas, ob. cit., p. 1164, conclusões nº 46 a 48].

Essa análise ou comparação sopesante atua após a ponderação [abstrata] dos bens, interesses ou valores jurídicos afetados; isto é, o controlo estrito da desproporcionalidade opera, com real utilidade, a propósito da medida ou atividade concreta pertinente relativamente à colisão entre diferentes bens jurídicos fundamentais sujeitos a interferências ou limitações.

Neste segundo momento, que pode ser designado como “controlo estrito da desproporcionalidade de uma medida concreta relativa a bens jurídicos fundamentais colidentes”, onde ocorre uma verdadeira aplicação do postulado aplicativo da proporcionalidade, há já uma grande efetividade no controlo feito sobre a admissibilidade constitucional da medida ou atividade concreta que afete direitos ou bens fundamentais.

Acaba, após uma efetiva atuação autónoma dos três exames ínsitos na metódica da proporcionalidade quanto ao “como” da interferência [aptidão; indispensabilidade; e equilíbrio ou razoabilidade(3) ou proibição do excesso], a decidir sobre a prevalência em concreto de um dos direitos em colisão, afastando a relevância do outro nesse caso concreto.

Essa diferença entre a “mera ponderação de bens colidentes” [ainda que com recurso á ideia da proporcionalidade jurídica] e o “controlo de desproporcionalidade de uma ou mais atuações interferentes em vários bens colidentes entre si” [com recurso ao sopesamento das atuações interferentes, utilizando com utilidade cada um dos três testes do postulado aplicativo da proporcionalidade], na verdade e ao contrário do que parece ser entendimento de Reis Novais [ob. cit., p. 249], não é ignorada por R. Alexy a propósito das limitações legislativas impostas a direitos fundamentais, como se pode ver em “A construção dos direitos fundamentais”, in Direito § Política, nº 6, Loures, 2014, pp. 38 ss, e em “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, in O Direito, 146º, IV, Lisboa, 2014, pp. 817 ss, bem como nas ali abordadas duas “leis da ponderação” e duas “fórmulas do peso”.

Mas, aqui, no presente processo, estamos em sede de “controlo de desproporcionalidade de uma ou mais atuações interferentes em vários bens colidentes entre si” [com recurso ao sopesamento das atuações interferentes, utilizando com utilidade cada um dos três testes do postulado aplicativo da proporcionalidade].

Note-se que falamos sempre de controlo da “desproporcionalidade” e não da “proporcionalidade”.

2.6.

Por outro lado, consideramos, talvez contra a prática ou mesmo contra a teoria comum, que a “fiscalização jurisdicional da desproporcionalidade no exercício da função administrativa” é e deve ser de amplitude normal, ou seja, mais intensa do que a “fiscalização jurisdicional da desproporcionalidade no exercício da função legislativa”.

Trata-se de, quanto ao “dever de não desproporcionalidade na função administrativa”, os tribunais administrativos, com referência (i) ao artigo 7º do CPA e (ii) aos artigos 266º e 268º-4 da CRP, invalidarem todas as decisões administrativas que sejam excessivas ou desproporcionadas, independentemente da sua natureza manifesta ou não manifesta; logicamente sem que o tribunal possa proceder a escolhas administrativas - cf. assim Mário Aroso, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5ª ed., pp. 87-88 e pp. 92-98.

Quer dizer, o juiz administrativo deve concluir pela ilegalidade de uma qualquer medida ou atuação que seja, racional e fundamentadamente, desproporcionada entre os termos da comparação; o que, ainda assim, é diferente, de o juiz poder exigir – positivamente – o proporcional ou o ótimo; isto o juiz não pode fazer, por causa do princípio estruturante da divisão das funções ou poderes do Estado. Quer dizer: aqui, a metódica da proporcionalidade implica que o juiz administrativo invalide aquilo que for desproporcionado no caso concreto, sem recurso à autocontenção ou à ideia de desproporção manifesta ou notória, mas já não o que não seja ótimo.

De menor intensidade, por razões amplamente conhecidas, é a “fiscalização jurisdicional da desproporcionalidade constitucional das leis”, uma vez que a fiscalização da constitucionalidade à luz da máxima metódica da proporcionalidade se guia apenas (i) pela Constituição e (ii) pelo princípio constitucional estruturante da separação de poderes [cf. assim, por ex., Vitalino Canas, O Princípio da Proibição do Excesso na Conformação e no Controlo de Atos Legislativos, 2017, pp. 1141-1157], e não, como se passa na “fiscalização da atividade de administração pública”, pelo central princípio de que a lei infraconstitucional é o pressuposto, o fundamento e o limite das atividades de administração pública.

Com efeito, as normas constitucionais ou legalmente reforçadas que parametrizam a função legislativa são normalmente mais abertas e imprecisas do que as que parametrizam a função administrativa; ao que acresce que o autor da decisão legislativa tem, normalmente, legitimidade democrática direta, mas o autor da decisão administrativa não a tem normalmente.

Haverá, enfim, desrespeito pelo “´princípio´ da juridicidade administrativa” se a concreta tutela jurisdicional efetiva ficar à porta da desproporcionalidade administrativa, mesmo não manifesta, isto é, se a tutela jurisdicional efetiva parar à porta da desproporcionalidade apurada através do exercício regular ou típico da função jurisdicional ante a função administrativa do Estado.

O único limite imanente à fiscalização jurisdicional administrativa regular da desproporcionalidade administrativa é, sublinhe-se de novo, o princípio da divisão das funções soberanas do Estado, vulgo separação de poderes.

Ou seja, o de que, tal como o juiz constitucional face às leis, o juiz administrativo de um Estado democrático de Direito não pode invalidar as atuações administrativas não ótimas no âmbito dos direitos fundamentais. Mas, ao contrário do juiz constitucional – porque limitado imediatamente pela legitimidade democrática direta do legislador e pelo tipo de linguagem da lei fundamental - o juiz administrativo pode e deve invalidar condutas de administração pública que, sendo desproporcionadas, não o sejam de modo notório ou manifesto.

2.7.

O artigo 26º-1 da CRP prevê 9 direitos de personalidade [cf. Ac.TC nº 110/95]. Releva aqui o direito ao bom nome e reputação, o direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social.

O artigo 37º-1-2 da CRP protege, i.a., o direito de cada pessoa exprimir livremente as suas ideias e opiniões, independentemente de um dever de verdade [cf. Gomes Canotilho/V.M., CRP Anotada, 4ª ed., I, p. 572].

2.8.

Aqui chegados, vamos aos factos provados.

2.8.1.

O ora recorrente afirmou, a propósito de concretas situações identificadas no probatório, que:

(afirmação 1) - «Nem no tempo do Apito Dourado existe memória de uma semana tão negativa e com decisões tão escandalosas com reflexos diretos nos resultados como esta semana.»;

(afirmação 2) - «Os sinais são muito preocupantes, há decisões e escolhas lamentáveis e pouco cuidadosas de árbitros e vídeo-árbitros, relatórios que colocam em causa a veracidade dos mesmos, tudo perante uma grande inércia das estruturas de decisão do futebol»;

(afirmação 3, igual à 2) - «Sinais muito preocupantes com escolhas lamentáveis e pouco cuidadosas de árbitros e vídeo-árbitros, com relatórios que põem em causa a veracidade dos mesmos».

Não há dúvidas de que estas afirmações cabem perfeitamente no previsto no cit. artigo 37º-1-2 da CRP: liberdade de expressão do pensamento.

Resta saber se interferem com o direito previsto no artigo 26º-1 da CRP, tendo ainda presente os cits. artigos do regulamento disciplinar citado.

A afirmação 1 significa que “esta semana de arbitragem” foi mais negativa do que na época do “caso Apito Dourado” [processo judiciário de inquérito a propósito de corrupção de árbitros de futebol profissional pelo F C Porto, sem quaisquer condenações no seio deste clube] – 1ª interpretação.

Também significa que estas “atuais” arbitragens de futebol foram mais “escandalosas” do que naquela época do futebol português – 2ª interpretação.

A afirmação 2, tal como a 3, aliás muito pouco claras, significam: 1) que o arguido discorda das escolhas de árbitros e vídeo-árbitros - 3ª interpretação; 2) que um dos sinais que o arguido considera preocupantes é o facto – não falso – de haver relatórios [de árbitros] que parece não serem fidedignos - 4ª interpretação.

2.8.2.

Antes de prosseguirmos, passemos ao contexto relevado pela entidade administrativa e pela entidade jusarbitral: (i) uma relação ou associação com o caso Apito Dourado e (ii) uma alusão a uma suspeita de alteração do relatório do jogo por parte de um dos árbitros.

Ora, não existe qualquer relação, melhor “associação” a casos de corrupção, aliás não provados. Esta associação – que teria sido feita pelo arguido - de um ambiente passado de corrupção com uma atual “semana … negativa” e com atuais “decisões … escandalosas” é uma suposição e conclusão exagerada, injustificada e “policiadora”.

O arguido não colocou em causa a seriedade e honestidade dos cits. árbitros de futebol.

2.8.3.

Simplificando as cits. 1ª e 2ª interpretações que fizemos, sem supor ou deduzir: o arguido disse

(i) que esta semana de arbitragem foi mais negativa do que no tempo em que havia rumores de corrupção e

(ii) que estas decisões de arbitragem foram mais escandalosas do que nesse tempo.

Aquela primeira afirmação não atinge qualquer direito de personalidade dos árbitros, cabendo perfeitamente, sem colisões com outros direitos, na liberdade fundamental de expressão e crítica.

A segunda afirmação [“escandalosas”], também não contendo imputações de corrupção, cabe igualmente no direito fundamental consagrado no artigo 37º-1-2 da CRP e não interfere com o direito consagrado no artigo 26º-1 da CRP. É verdade que o arguido não se limitou a dizer que os árbitros erraram, mas que o exercício da arbitragem de futebol concreta foi “escandaloso”, o que significa que se cometeu vários ou muitos erros graves ou chocantes.

Mas, imputar a um “juiz” de futebol ou a um juiz de direito ou a um jusárbitro uma decisão como sendo grave, escandalosa ou chocante interfere de modo relevante no direito fundamental ao bom nome, honra e reputação de tal “juiz” de futebol, juiz de direito ou jusárbitro?

Não.

Significa apenas que quem discorda ou critica está a discordar muito, que pensa que as decisões do “juiz” de futebol ou do juiz de direito ou do jusárbitro são extraordinariamente erradas.

Portanto, também aqui estamos no lícito exercício da liberdade fundamental de expressão e crítica. E sem interferir com o direito consagrado no artigo 26º-1 da CRP.

Passemos agora às afirmações nº 2 e nº 3, e às 3ª e 4ª interpretações cits.

O arguido discorda das escolhas de árbitros e vídeo-árbitros. Nada mais normal.

Por outro lado, um dos sinais que o arguido considera preocupantes é o facto – não falso – de haver relatórios [de árbitros] que parece não serem fidedignos. É que foi divulgado na imprensa desportiva do dia 13/04/2018 que, por causa do teor do relatório subscrito pelo árbitro João …………… relativo ao jogo entre as equipas da ………………………- Futebol, SAD e da ………………………………- Futebol, SAD, fora instaurado processo disciplinar àquele árbitro (fls. 120 dos autos do processo disciplinar) – cf. facto H.

Portanto, neste contexto objetivo, real e público, a afirmação do arguido – “sinais preocupantes” - também não é uma imputação de uma ilegalidade ou de uma conduta incorreta e ilegal ao árbitro, mas sim o considerar o facto H um sinal preocupante. Nada mais natural e normal, especialmente num dirigente desportivo.

E nada o poderia ou pode impedir de o afirmar daquela maneira, a qual, repete-se, nada de ofensivo imputou ao árbitro. O arguido não colocou em causa a seriedade e honestidade dos cits. árbitros de futebol.

Pelo que o arguido, ora recorrente, não afetou o direito previsto no artigo 26º-1 da CRP e exerceu em termos não desproporcionais o direito previsto no artigo 37º-1-2 da CRP.

E também não violou o RD/LPFP, interpretado sob a égide dos artigos 18º, 26º e 37º da CRP e do artigo 9º do CC.

2.9.

Enfim, não compete (i) nem a Administração Publica [C.D.], (ii) nem à arbitragem jurídica de Direito desportivo forçada ou “necessária” [T.A.D.], (iii) nem aos tribunais previstos nos artigos 110º e 212º da CRP (1) policiar, (2) supor, (3) deduzir em sede de “climas de suspeições” ou (4) opinar sobre o teor do exercício da liberdade de expressão do pensamento e da opinião dos cidadãos.

Por outro lado, quando o objeto da crítica são decisões de figuras públicas ou, mesmo, de tribunais, o direito fundamental de liberdade de expressão só pode ser constrangido, segundo o TEDH e os nossos tribunais superiores, em casos objetivamente claros e graves de afronta a outros direitos fundamentais.

No caso presente, isso não ocorreu.

Nenhuma das afirmações do arguido interfere com o direito previsto no artigo 26º-1 da CRP.

Cf. também assim o Ac. deste TCA Sul de 04-10-2018, p. nº 66/18.7.

E, ainda que interferisse, seria num grau muito leve quando comparado com a alternativa de o arguido estar calado a propósito das mesmas questões, em constrição – que seria de intensidade média ou alta - do direito previsto no artigo 37º-1-2 da CRP; ou seja, haveria desproporcionalidade se entendêssemos como entenderam o CD/FPF e o TAD, porque não haveria desproporcionalidade na concreta relação comparativa entre os direitos em aparente colisão no caso concreto.

Portanto, o ato administrativo colegial do CD/FPF, sindicado pela arbitragem jurídica forçada, aqui recorrida, é ilegal e anulável [cf. artigo 163º-1-2 do CPA].

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão arbitral recorrida e, conhecendo do objeto do processo em substituição do T.A.D., anular o ato administrativo da autoria do C.D. da F.P.F.

Custas a cargo da FPF em ambas as instâncias.

Lisboa, 07-02-2019


Paulo H. Pereira Gouveia [relator por vencimento]

Pedro Marchão Marques

Carlos Araújo - Vencido


Declaração de voto:

(Vencido, conforme projecto de acórdão que elaborei por entender que as declarações em causa constituem uma falta de respeito para com os árbitros)


_________________________________________


(1)Sendo que as fontes imediatas do Direito português atual são as que decorrem dos artigos 8º e 112º da CRP, isto é, as leis no sentido do artigo 1º-2 do CC [todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais ou supraestaduais competentes, onde se incluem os regulamentos de administração pública]. E, nem as decisões dos juizes, nem a “opinio iuris” ou dogmática jurídica, nem o costume “contra-legem”, são fontes internas de Direito na ordem jurídica portuguesa atual.

(2)Isto, porém, num contexto (i) de uma pluralidade não harmonizada de preceitos normativos sobre a mesma matéria, cada vez mais frequente, e (ii) de uma CRP doutrinária e politicamente desfigurada para uma constituição “light” ou flexível, em detrimento da segurança jurídica e de uma liberdade confiável. E em que a Administração Pública é, talvez paradoxalmente, cada vez mais uma gestora de interesses diferentes, privados e ou públicos, para prosseguir o interesse coletivo.

(3)Sobre esta não autonomia da razoabilidade face à proporcionalidade, concorda-se com VITALINO CANAS, in O Princípio da Proibição do Excesso na Conformação e no Controlo de Atos Legislativos, 2017, pp. 1077 ss.