Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1960/08.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/26/2022
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:GERÊNCIA
PROVA
CHEQUES
NON LIQUET
Sumário:I-Inexiste uma presunção legal da administração de facto, verificada que esteja a administração de direito de uma sociedade por determinada pessoa.
II-Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros, cuja prova compete à AT.
III-Se o Recorrido não é acionista da sociedade devedora originária, não integra a sua administração, e sempre negou essa vinculação societária e investidura como órgão atuante, competia à AT fazer prova que o Recorrido era o órgão de gestão atuante que o mesmo, expressamente, refutou.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO



I-RELATÓRIO


O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a oposição ao processo de execução fiscal nº 3301200501003950, inicialmente instaurado contra a devedora “C... S.A.” com a consequente extinção do mesmo, quanto ao revertido P..., ora Recorrido.

A Recorrente, apresentou alegações tendo concluído da seguinte forma:

“A. Salvo a devida vénia, entende a Fazenda Pública que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, dado que da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida.

B. Salvo o devido respeito, não pode a Fazenda Pública, concordar com a douta sentença, quando esta refere que, não obstante, os elementos carreados para os autos, não se encontra demonstrada a gerência de facto do oponente.


C. Salvo o devido respeito, por opinião contrária, não pode a Fazenda Pública concordar com tal decisão, pois resultou provado da inquirição de testemunhas que era o Oponente, aqui recorrido, que dava ordens aos funcionários e a quem competia representar a empresa junto dos fornecedores e clientes e ainda assinar cheques.

D. Perante tal quadro factual não pode a Fazenda Pública concordar com a desconsideração de tais funções percorrida na sentença em mérito, pois provando-se que o oponente foi nomeado gerente e que no período temporal a que se reportam as dívidas exequendas assinou documentos necessários ao giro comercial da sociedade, vinculando-a perante terceiros, tem-se por verificada a gerência de facto.

E. Assim e salvo o devido respeito, a prova ínsita nos autos e, as consequências necessárias que dali se aferem sustentam a posição da Fazenda Pública, enquanto titular do direito de reversão da execução fiscal contra o responsável subsidiário, devendo ser considerada legitima a reversão contra o recorrido.

F. Por todo o exposto, deveria determinar-se a improcedência da oposição pela convicção da gerência de facto do oponente/recorrido, formada a partir do exame crítico das provas.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a oposição judicial totalmente improcedente.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!”


***


O Recorrido, devidamente notificado, optou por não apresentar contra-alegações.

***


O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

***


Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“a) A executada originária nos autos de reversão em apreço foi constituída a 7 de Fevereiro de 2002 por J..., A..., J..., H..., P..., V..., D..., L..., T... (cfr. prova documental fls 149 e seguintes dos autos de execução fiscal).

b) D... era o accionista maioritário sendo que, J..., J... e A... eram detentores de 300 acções cada um e os restantes accionistas eram detentores de 150 acções cada um (cfr. prova documental fls 149 e seguintes dos autos de execução fiscal).

c) O capital inicial da executada originária foi depositado no B... S.A (cfr. prova documental fls 149 e seguintes dos autos de execução fiscal).

d) A executada originária nos autos de reversão em apreço obrigava-se com a assinatura de dois administradores (cfr. prova documental fls 156 e 180 dos autos de execução fiscal em apreço).

e) Os administradores nomeados da executada originária eram A... e J... (cfr. prova documental fls 156 e 180 dos autos de execução fiscal em apreço).

f) O objecto social da executada originária é distribuição de material informático, prestação de serviços, soluções informáticas, formação, programação, desenvolvimento de software, edição e paginação electrónica, artes gráficas, publicidade, assemblagem de computadores (cfr. prova documental fls 156 e 180 dos autos de execução fiscal em apreço).

g) O despacho de reversão consta o seguinte: (cfr. prova documental fls 321 e seguintes dos autos de execução fiscal em apreço)



«Texto no original»


h) Nos autos de execução fiscal são revertidos A... e J... (cfr. prova documental vide autos de execução fiscal e acordo).

i) Em 23/10/2007, e no âmbito do processo n.º 12900/04.4 TDLSB que correu termos no DIAP, foi proferido o despacho de arquivamento do inquérito-crime referente a crime de abuso de confiança, infidelidade e burla movido contra o ora Oponente pelos administradores da executada originária por no seu entender a sociedade C...S.A. ter sido instrumentalizada pelo Oponente uma vez que este era o administrador de facto, não obstante os denunciantes configurarem como representantes legais da mencionada sociedade ( cfr. prova documental fls 305 e seguintes dos autos de execução fiscal em apreço).

j) Os autos de execução fiscal em apreço reportam-se a IVA dos anos 2002 e 2003 (cfr. prova documental fls 1 e seguintes dos autos de execução fiscal em apreço). “


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A decisão recorrida contemplou como factos não provados:

“a) O Oponente exerceu a administração de facto da executada originária nos autos de execução fiscal em apreço.”


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Ficou consignado na decisão recorrida como motivação da matéria de facto provada, que:

“Para convicção do Tribunal, na delimitação da matéria de facto supra provada, foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente e no seu conjunto.

Designadamente nos documentos não impugnados juntos aos autos, referidos nos “factos provados”, com remissão para as folhas do processo onde se encontram.

Relativamente ao facto não provado nºa), a convicção do Tribunal baseou-se na prova testemunhal produzida.

Designadamente no depoimento da testemunha David Valente considerando que o mesmo foi o sócio maioritário e presidente de mesa da assembleia geral da executada originária revelando um conhecimento directo dos factos narrados.

Afirmando, designadamente, que o Oponente foi contratado pelos administradores da executada originária por sua sugestão uma vez que tinha conhecimentos informáticos e era professor de informática, sendo que, o mesmo era apenas funcionário da executada originária, não tendo contratado funcionários ou o contabilista.

O depoimento foi objectivo, coerente, consentâneo com a prova documental existente nos autos e com o depoimento da testemunha João Roque.

Foi tido em consideração o depoimento de João Roque na medida em que revelou um conhecimento directo nos factos por ser gerente de um balcão do Santader Totta no qual a executada originária tinha uma conta bancária e ter ido às instalações da executada originária duas vezes.

Explicitou que a conta bancária tinha sido aberta pelos 2 administradores de direito da executada originária, que se mostravam contentes por estarem a constituir uma sociedade comercial nova.

Referiu que o Oponente não podia movimentar a mencionada conta bancária a qualquer título.

Quando se deslocou fisicamente às instalações da sociedade comercial em apreço notou que os 2 administradores de direito encontravam-se separados fisicamente do Oponente e restantes trabalhadores num espaço físico próprio.

Mencionou, ainda, que quando comprou um computador à executada originária pediu um desconto e o funcionário da executada originária referiu que tal só podia ser autorizado por um dos administradores legais da mesma.

Prestou, assim, um depoimento objectivo, coerente e consentâneo com a restante prova produzida.

O Tribunal não considerou que os depoimentos dos administradores legais da executada originária se mostrassem coerentes, consentâneos com a restante prova produzida e revelando alguns aspectos contraditórios designadamente no concerne à alegada falta de conhecimento da situação económica da executada originária por estes e relativamente à relação com o TOC da empresa, designadamente a sua contratação.

Além de que, os mencionados depoimentos foram vagos e genéricos nada apontando de concreto na actuação do Oponente como sendo administrador de facto resumindo-se a afirmarem que assinavam cheques em branco que depois entregavam ao Oponente, que quem fazia as compras e vendas era o Oponente e seu pai e que ambos estavam sempre nas instalações e que só abriram uma conta bancária por ordem do pai do Oponente.

Ora, desde logo em abstracto o Oponente e estes partilhavam da mesma responsabilidade subsidiária por dívidas da devedora originária.

Com efeito, ambos têm nos presentes autos um interesse contraposto ao do Oponente na imputação da responsabilidade subsidiária por dívidas fiscais da executada originária dos autos de execução fiscal em apreço ( cfr. factos provados nº e) e h) ) e da relação de conflito nas relações com o Oponente, tendo sido ambos no inquérito crime mencionado no facto provado nºi), denunciantes.


***

Elimina-se o facto não provado com o seguinte teor:

“O Oponente exerceu a administração de facto da executada originária nos autos de execução fiscal em apreço”, porquanto o mesmo mais não representa que uma conclusão, inteiramente concatenada com a questão de direito em discussão nos autos, donde insuscetível de integrar o acervo fático.

In casu, o que tem de integrar o probatório são as ocorrências da vida real, devidamente contextualizadas e substanciadas espácio-temporalmente, que permitam ao Tribunal, da sua interpretação conjugada, concluir pela existência ou não da gerência de facto e não a conclusão de direito assumida da sua concreta valoração e ponderação. Ademais, in casu, esse ónus é da AT e não do Recorrido.

Com efeito, “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado (1)”.


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a presente oposição, relativamente ao processo de execução fiscal n.º …., com a consequente extinção do mesmo.

Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir se ocorre o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto arguido pela Recorrente porquanto da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida, resultando demonstrado que o Recorrido foi Administrador de facto da sociedade devedora originária, donde ter-se-á de concluir pela legitimidade do mesmo no âmbito do processo de execução fiscal, com a inerente prossecução do processo executivo.

A Recorrente defende, desde logo, que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, dado que dos elementos carreados para os autos, e da prova produzida resulta demonstrada a gerência de facto do Oponente, ora, Recorrido.

Sublinha, para o efeito, que não pode concordar com tal decisão, na medida em que resultou provado da inquirição de testemunhas que era o Oponente, aqui Recorrido, que dava ordens aos funcionários e a quem competia representar a empresa junto dos fornecedores e clientes e ainda assinar cheques.

E por assim ser, conclui que não pode concordar com a desconsideração de tais funções, visto que o mesmo assinou documentos necessários ao giro comercial da sociedade, vinculando-a perante terceiros, tendo-se, por isso, por verificada a gerência de facto.

Vejamos, então.

Ab initio, importa começar por relevar que pese embora a Recorrente impute erro de julgamento da matéria de facto, a verdade é que não procede à sua impugnação de acordo com os requisitos contemplados no artigo 640.º do CPC.

Senão vejamos.

Atentemos, então, no teor do citado artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT, o qual preceitua que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de primeira Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Tem, por isso, de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida ou o aditamento de novos factos ao acervo probatório dos autos (2).

No caso vertente, compulsado o teor das alegações coadjuvado com o teor das conclusões, constata-se que pese embora a Recorrente aduza que face à prova carreada aos autos o acervo probatório se revele insuficiente, não refletindo toda a factualidade reputada relevante para a lide, a verdade é que não requer qualquer aditamento por complementação, não indicando, como era seu ónus, qual o facto deveria constar no acervo probatório.

Com efeito, limita-se a, genericamente, convocar a prova testemunhal sem qualquer particularização dos depoimentos prestados, dos seus trechos ou mesmo sem a inerente transcrição dos excertos reputados de relevo, e no atinente à prova documental limita-se a aludir que “dos elementos carreados aos autos” se terá de inferir a gerência de facto, porém nada concretiza, neste e para este efeito, ou seja, não densifica, como era seu ónus, qual ou quais os documentos que deveriam ser valorados, em que medida, e qual o facto que, em função dessa valoração, deveria ser refletido no probatório.

E por assim ser, a factualidade vertida no probatório mantém-se inalterada, ressalvada a alteração realizada, ab initio e ao abrigo do artigo 662.º do CPC.


***


Aqui chegados, estabilizada a matéria de facto, atentemos, então, no erro de julgamento de direito, competindo aferir se o Tribunal a quo errou ao decidir que o Recorrido é parte ilegítima porquanto não foi feita prova da gerência de facto.

Apreciando.

A oposição à execução fiscal funciona como contestação à pretensão do exequente e respeita aos fundamentos supervenientes que podem tornar ilegítima ou injusta a execução, devido a falta de correspondência com a situação material subjacente no momento em que se adotam as providências executivas, tendo por efeito paralisar a eficácia do ato tributário corporizado no processo executivo (3).

Sendo que, os fundamentos da execução fiscal são os taxativamente indicados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.

Quanto à questão da ilegitimidade, dispõe o artigo 204.º, n.º 1, al. b), do CPPT, que a oposição pode ter como fundamento a “[i]legitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida”.

Encontramo-nos, assim, face a leis sobre a prova de atos ou factos jurídicos que simultaneamente afetam o fundo ou substância do direito, repercutindo-se, assim, sobre a própria viabilidade deste, pertencendo, por isso, ao direito substancial.

É, com efeito, pacífica a jurisprudência que a responsabilidade subsidiária dos gerentes é regulada pela lei em vigor na data da verificação dos factos tributários geradores dessa responsabilidade, e não pela lei em vigor na data do despacho de reversão nem ao tempo do decurso do prazo de pagamento voluntário dos tributos (4).

No caso sub judice, face à natureza e ao período temporal das dívidas revertidas e em contenda e melhor evidenciadas em j), é aplicável o regime constante na LGT, concretamente o consignado no artigo 24.º, do citado diploma legal.

Convoquemos, então, o regime jurídico aplicável.

De harmonia com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da LGT:

“[o]s administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”

Do teor do normativo legal supratranscrito resultam dois regimes distintos da responsabilidade do gestor, classificados de acordo com o fundamento pelo qual o gestor é responsabilizado, a saber, a responsabilidade pela diminuição do património e a responsabilidade pela falta de pagamento.

Concretizando.

Enquanto, a responsabilidade pela diminuição do património se encontra regulada na alínea a), do nº1, do artigo 24.º da LGT, a responsabilidade pela falta de pagamento está consagrada na alínea b), do nº1, do artigo 24º da LGT.

O citado artigo 24.º da LGT, introduziu nas suas alíneas a) e b), uma repartição do ónus da prova da culpa, distinguindo entre:

- as dívidas vencidas no período do exercício do cargo relativamente às quais se estabelece uma presunção legal de culpa na falta de pagamento (cfr. a parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT);

- as demais previstas como geradoras de responsabilidade, concretamente, aquelas cujo facto constitutivo se tenha verificado no período do exercício do cargo (e não se vençam neste) e aquelas cujo prazo legal de pagamento ou entrega termine já após o termo do exercício do cargo. Nestas situações o ónus da prova impende sobre a AT, ou seja, os gerentes ou administradores podem ser responsabilizados desde que seja feita prova de culpa dos mesmos na insuficiência do património social.

Convoque-se, neste particular, o Acórdão do STA proferido no recurso nº 0944/10, de 2 de março de 2011, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere que:

“I - Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respetivas funções.

II - Não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário.

III - A presunção judicial, diferentemente da legal, não implica a inversão do ónus da prova.

IV - Competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.”

Como doutrinado no citado Aresto, não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário, resultando apenas uma presunção legal, mas apenas da culpa do administrador pela insuficiência do património da sociedade originária devedora.

Uma vez delimitada a matéria de direito que releva para o caso vertente, vejamos, então, se a decisão recorrida padece do erro de julgamento que lhe vem assacado, por resultar demonstrada a gerência de facto.

Atentemos, então, no acervo probatório dos autos, antecipando, desde já, que não se vislumbra qualquer erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo interpretado adequada e corretamente os pressupostos da reversão à realidade fática dos autos e efetuado um correto exame crítico da prova produzida, permitindo-nos concluir pela falta de prova da gerência/administração de facto da sociedade executada originária, por parte do Recorrido no período a que se reportam as dívidas exequendas revertidas enquanto pressuposto da reversão das execuções fiscais contra o responsável subsidiário.

Atentemos, então, nas razões que nos permitem concluir pelo acerto da decisão recorrida.

Para o efeito, importa, desde logo, sublinhar que o Recorrido sempre negou- logo em sede de audição, e, ora, corroborado, em sede de p.i- e de forma expressa, a gerência de facto da sociedade devedora originária, nada tendo sido demonstrado pela AT que permita extrair, de forma inequívoca e segura, que o mesmo exerceu, efetivamente, a gerência da sociedade devedora originária.

Neste particular, importa ter presente que, in casu, e conforme resulta inequívoco do probatório dos autos o Recorrido, nem, tão-pouco, exerce um cargo de gerência/administração. Com efeito, e conforme dimana do probatório o Recorrido nunca foi acionista, nem administrador, competindo essa administração a A... e J....

É certo que o despacho de reversão faz, genérica e conclusivamente, menção à assinatura de alguns cheques por parte do Recorrido, relevando que terá sido o mesmo que assumiu tal factualidade, em sede de audição prévia, porém essa realidade não permite inferir no sentido propugnado pela Recorrente e isto porque, por um lado, carece da devida substanciação espácio-temporal, e por outro lado, o Recorrido, não obstante convoque tal realidade, desagrega e desassocia qualquer animus e representatividade da sociedade devedora originária.

Aliás, no âmbito da presente p.i., o Recorrido releva, neste e para este efeito, o seguinte:

“11.º Em duas ou três ocasiões isoladas, aquando da recepção das encomendas, o executado reparou não existirem cheques preenchidos pelo que entrou em contacto com os seus patrões. 12.º Estes transmitiram-lhe sempre que deveria emitir um cheque pessoal com o valor em dívida, uma vez que posteriormente seria reembolsado pela mesma quantia. 13.º Tendo o executado agido de acordo com as instruções transmitidas pelos seus superiores. 14.º Assim sendo nunca o executado exerceu qualquer gerência de facto ou de direito em relação à sociedade C….. 15.ºLimitou-se a operar na qualidade de trabalhador da mesma, segundo a orientação e na subordinação dos administradores da mesma.”

Ora, como é bom de ver, tais alegações em nada permitem retirar que o Recorrido exercia a gerência de facto.

Ademais, e como referido no processo nº 114/11, de 11 de fevereiro de 2021, relatado pela, ora, Relatora:

“O reconhecimento da assinatura de “poucos” cheques sem a devida mensuração, sem a respetiva expressão quantitativa, e concreta densificação das datas de emissão, e cujo reconhecimento está alocado a um total alheamento do interesse e vinculação societária e a pedido, donde sem o necessário animus, não permite inferir pela gerência de facto. (…)

Acresce, outrossim, que a confissão é indivisível (artigo 360.º do CC), sendo que, conforme analisaremos aquando do erro sobre o julgamento de direito, existindo na aludida confissão factos que são favoráveis e factos desfavoráveis ao confitente, tal determina que a parte contrária, se não quiser ser prejudicada pela parte da confissão favorável ao confitente, tem de provar que ela não é verdadeira.” (destaques nossos).

De relevar, outrossim, que tais inferências são sedimentadas com a própria motivação da matéria de facto, da qual se retira, designadamente, que “[o] mesmo era apenas funcionário da executada devedora originária, não tendo contratado funcionários ou o contabilista”, sem qualquer possibilidade de “movimentar a conta bancária a qualquer título”, coadjuvada, inclusive, com a própria dinâmica empresarial, concretamente, a acautelada e incrementada separação física dos administradores dos demais trabalhadores, incluindo o Recorrido.

Sendo, igualmente, de valorar, o consignado no ponto i) concernente ao arquivamento do processo crime, e isto porque, não obstante a lei não atribua relevância em processo de oposição fiscal ao caso julgado absolutório formado em processo penal, a verdade é que pode consubstanciar um elemento de prova, a valorar pelo tribunal tributário de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consignado no n.º 5 do artigo 607.º do CPC, aplicável subsidiariamente. Neste sentido, vide, designadamente, Acórdãos do STA, prolatados nos processos nºs 540/10, de 09.06.2021, 1930/13, de 08.10.2014 e 08/05, de 16.02.2005.

De resto, há que ter presente que para efeitos de efetivação e legitimação da reversão o que releva “[n]ão é que, em termos jurídico civilísticos os actos praticados órgão estatutário, mas sim que efectivamente exista em termos naturalísticos, uma relação com a sociedade que permita traçar ou determinar o rumo desta (5).” (destaque e sublinhado nosso).

Ademais, face ao alegado pelo Recorrido e à ausência de demonstração, por parte da AT, de qualquer factualidade que indicie, inequivocamente, a gestão, tal falta de prova terá de ser contra si valorada (6).

Acresce que, e socorrendo-nos da doutrina vertida no Aresto deste Tribunal, prolatado no âmbito do processo nº 1961/08, de 20 de fevereiro de 2020:

“Não fica satisfeito aquele ónus da prova quando dos elementos do processo não resultam quaisquer factos que, num juízo de normalidade, permitam inferir essa administração ou gerência, para mais, quando o revertido nem sequer é administrador/ gerente inscrito da sociedade no período a que se reportam as dívidas tributárias.”

De resto, in limite, sempre o recurso estaria votado ao insucesso, porquanto face à matéria de facto provada, no mínimo, sempre existiria uma situação de non liquet, que se resolve contra quem tem o ónus da prova do facto, conforme se doutrina, designadamente, no Acórdão do STA, prolatado no âmbito do processo: 0580/12, datado de 31 de outubro de 2012 (7).

Ora, como visto, in casu, o Recorrido não é acionista da sociedade devedora originária, não integra a sua administração, e sempre negou essa vinculação societária e investidura como órgão atuante, pelo que competia à AT fazer prova que o Recorrido era o órgão de gestão atuante que o mesmo, expressamente, refutou.

Em face do referido, e conforme resulta expresso da factualidade provada, é manifesto que a Entidade Exequente não alegou, nem provou factos, que indiciem, de forma segura e inequívoca, o exercício da gerência de facto.

Resulta, assim, que face à prova produzida a AT não estava legitimada a efetivar a reversão contra o Recorrido devido a falta de prova dos pressupostos da reversão no âmbito do processo de execução fiscal nº …, assim se devendo confirmar a decisão recorrida.


***


IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

-NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 26 de maio de 2022

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Luísa Soares)


(1) Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11.07.2018, proferido no processo nº 1193/16.1T8PRT.P1
(2) António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
(3) Cfr. Ac. do Supremo Tribunal Administrativo datado de 04/06/2008, proferido no recurso n.º 179/08, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
(4) vide, designadamente, Acórdãos do Pleno do STA, proferidos nos processos nºs 58/09, e 945/09, datados de 24.03.2010 e 07.07.2010.
(5) In Acórdão do TCAN, proferido no processo nº 00520/12.4 de 02.03.2017.
(6) Neste particular, vide o Aresto do TCA Norte, proferido no processo nº 01389/04, de 25.05.2016, e Aresto deste Tribunal, prolatado no âmbito do processo nº 1269/12, de 03.12.2020.
(7) No mesmo sentido, vide o recente Aresto deste Tribunal, prolatado no processo nº 1978/05, de 08.10.2020.