Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1053/17.8BELRS-S1
Secção:CT
Data do Acordão:03/14/2024
Relator:VITAL LOPES
Descritores:DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
APELAÇÃO AUTÓNOMA
ADMISSIBILIDADE
Sumário:I - Cabe recurso de apelação das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova (art.º 644/2, al. d), do CPC).
II - Não se reconduz a uma decisão de admissão ou rejeição de meios de prova, susceptível de apelação autónoma, o despacho que o juiz do tribunal tributário de 1.ª instância profere ao abrigo do disposto no art.º 113/1 e 114.º do CPPT, sobre a oportunidade, pertinência, utilidade ou necessidade da prova pretendida pelas partes quando, bem ou mal, conclua que os autos já fornecem todos os elementos factuais para a boa decisão da causa.
III - Esse despacho apenas é impugnável com o que for interposto da decisão final, nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do referido art.º 644.º do CPC.
IV - E se o tribunal de apelação concluir pela insuficiência da matéria de facto ou erro da decisão de facto por falta de produção de prova, relevantes para a decisão, deverá anular todo o processado subsequente ao despacho interlocutório em causa, incluindo a própria sentença.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SUBSECÇÃO COMUM DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

1 – RELATÓRIO

B… – P…, S.A., sociedade de direito francês, recorre do despacho do Mmº juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que na Impugnação Judicial deduzida contra a liquidação adicional de IVA n.º 10769959, referente ao período de Novembro/2011 e a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa desse acto, julgou prescindível a produção da prova testemunhal indicada na douta petição inicial.

Alega, conclusivamente, o seguinte:
«
1.ª Foi proferido despacho a fls. … dos presentes autos no qual se determina que “(…), não tem objeto a produção de prova por meio de pessoas a que se refere o rol apresentado, a qual indeferimos ao abrigo do disposto nos arts. 113.º, n.º 1 e 114.º, a contrario, do Código de Procedimento e Processo Tributário, encerrando-se a instrução;
2.ª O Recorrente não pode conformar-se com o despacho ora recorrido que indefere o pedido de produção de prova, o qual admite recurso autónomo de apelação nos termos do artigo 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alíena e) do CPPT (cf. Acórdão do Tribunal Administrativo Norte, de 25.11.2021, proferido no processo n.º 00455/18.7BECBR-S1).
3.ª Constitui questão essencial que ora se pretende provar a dedutibilidade do IVA suportado pela sucursal portuguesa do Impugnante, ora Recorrente, em bens e serviços adquiridos para a prestação de serviços ao Recorrente e a outras sucursais do mesmo, bem como a entidades terceiras, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA;
4.ª A importância da realização desta diligência probatória surge confirmada e reforçada pelo facto de, no passado, o douto Tribunal recorrido no âmbito de processos de impugnação judicial – processo n.º 1067/15.2BELRS, respeitante ao IVA do período de 2014/08 e, mais recentemente, no processo n.º 2162/19.4BELRS, respeitante aos períodos de 2016/12 a 2018/11 – nos quais as partes intervenientes e os fundamentos de facto e de direito são semelhantes à presente, o douto Tribunal recorrido ter decidido pela realização da mesma;
5.ª A procedência dos fundamentos invocados pelo Recorrente dependem efetivamente da demonstração da natureza e particularidades da atividade da sucursal portuguesa do Recorrente e dos contornos do mesmo para que se possa compreender que tal sucursal e a sua casa-mãe não podem se tratadas como uma realidade jurídica única, e tal comprovação apenas será integral e inequivocamente efetuada, por via da produção da prova testemunhal;

6.ª Em concreto, o Recorrente entende que a prova testemunhal será crucial para demonstrar:
i. a atividade desenvolvida pelo Recorrente e as suas especificidades, designadamente que o Recorrente é um sujeito passivo de IVA registado em França, a qual, presta, no que ora releva, serviços de liquidação e custódia de títulos, bem como serviços conexos, a diversas sociedades, intermediários financeiros e investidores internacionais (cf. artigos 1.º, 3.º e 71.º da p.i.);
ii. que o Recorrente dispõe de sucursais, as quais prestam igualmente serviços de liquidação e custódia de títulos, bem como serviços conexos, a diversas sociedades, intermediários financeiros e investidores internacionais (cf. artigo 1.º, 3.º, 4.º, 9. º e 71.º da p.i.);
iii. o tratamento em sede de IVA das operações levadas a cabo pelo Recorrente e pelas suas sucursais (cf. artigos 3.º e 4.º da p.i.);
iv. a atividade da sucursal portuguesa do Recorrente e sua natureza, face à atividade desenvolvida pelo Recorrente e suas demais sucursais, nomeadamente que, ainda que tais serviços sejam necessários ao exercício da atividade desenvolvida pela casa-mãe e pelas restantes sucursais desta, a atividade da sucursal portuguesa do Recorrente é distinta e destacável da atividade levada a cabo quer pela casa-mãe, quer pelas demais sucursais (cf. artigos 1.º, 2.º, 7.º, 8.º, 18.º, 70.º, 71.º, 73.º, 78.º e 82.º da p.i.);
v. que a sucursal portuguesa funciona como um centro de prestação de serviços de suporte para as demais entidades do grupo, designadamente, ao nível do controlo e reconciliação de contas, da análise das discrepâncias nos movimentos contabilísticos, da investigação de contas, da gestão e limpeza de dados e do processamento de dados, assim como serviços de tecnologias da informação, de que são exemplo serviços informáticos e de suporte (cf. artigo 8.º, 9.º e 71.º da p.i.);
vi. que relações comerciais se estabelecem entre a sucursal portuguesa do Recorrente e a sua sede e demais sucursais e entre a sucursal portuguesa do Recorrente e entidades terceiras, designadamente que a sucursal em Portugal do Recorrente presta os mesmos serviços que presta à sua casa-mãe e demais sucursais daquela a entidades terceiras (cf. artigo 9.º da p.i.);
vii. que, para efeitos do desenvolvimento da sua atividade a referida sucursal dispõe de instalações próprias em território nacional (cf. artigo 11.º da p.i.);
viii. que a sucursal portuguesa dispõe de uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos, que lhe permite receber e utilizar os serviços que são prestados para as necessidades próprias desse estabelecimento, suportando em Portugal os custos da estrutura que aqui possui, designadamente com os serviços que diretamente contrata (cf. artigos 16.º e 17.º da p.i.);
ix. que a sucursal contrata, de forma totalmente autónoma, independente e livre, trabalhadores em território nacional, empregando milhares de pessoas, sendo o processo de recrutamento desses mesmos trabalhadores por si realizado e gerido (cf. artigo 12.º da p.i.);
x. que a sucursal portuguesa do Recorrente possui poderes para praticar todos os atos que a vinculem a si ou ao Recorrente, vista como um todo (cf. artigo 18.º da p.i.);
xi. que, no âmbito da atividade que desenvolve, a sucursal portuguesa do Recorrente contrata diretamente com terceiros os serviços que lhes presta (cf. artigo 13.º da p.i.);
xii. que a sucursal portuguesa do Recorrente emite faturação própria, faturando serviços a entidades do grupo a que pertence, bem como a entidades independentes (cf. artigo 14.º da p.i.);
xiii. que a sucursal portuguesa do Recorrente assume o risco próprio da atividade que desenvolve (cf. artigos 73.º, 74.º, 75.º, 78.º, 79.º e 80.º, 81.º e 82.º da p.i.).

7.ª As testemunhas arroladas são pessoas com conhecimento pessoal e direto dos factos e que lograrão esclarecer os contornos específicos da atividade da sucursal portuguesa do Recorrente e da ligação estabelecida entre este e a atividade da casa-mãe, demais sucursais e entidades terceiras (no sentido da importância de tal prova cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25.11.2021, proferido n.º 00455/18.7BECBR – S1).
8.ª A produção de prova testemunhal nos presentes autos revela-se, pois, indispensável à cabal satisfação do ónus da prova dos factos que configuram os fundamentos de impugnação invocados;
9.ª Ao abrigo dos princípios da celeridade, da economia processual, da cooperação e da boa-fé processual, poderia equacionar-se o aproveitamento da prova testemunhal produzida no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 1067/15.2BELRS, nos termos, no artigo 421.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o que com a decisão ora em crise ficou igualmente prejudicado.
10.ª Ressalvado o eventual entendimento do Tribunal no sentido da procedência quanto aos fundamentos invocados pelo Recorrente, sempre deveria aquele Tribunal determinar a realização da inquirição de testemunhas por se tratar de diligência necessária ou útil à descoberta da verdade material relativamente ao objeto do processo, nos termos do disposto nos artigos 99.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 13.º do CPPT.
11.ª No caso em apreço, o direito a prova testemunhal, enquanto afloramento do direito de defesa e ao processo equitativo previsto nos termos do artigo 20.º, n.º 4 da CRP, deve ser assegurado na medida em que, como demonstrado, pode revelar-se primordial para a correta configuração do facto tributário e, em consequência, para a boa decisão da causa;
12.ª Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido.
Peças do processo de que se pretende certidão para instruir o recurso:
i) petição inicial apresentada em 22.05.2017;
ii) contestação e processo administrativo instrutor apresentados em 23.10.2017;
iii) despacho de 12.07.2023.
NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e, em consequência, ordenando-se a produção de prova testemunhal requerida na petição de impugnação judicial.».
Ao recurso foi atribuído efeito devolutivo e regime de subida imediata, em separado, nos termos do disposto nos artigos 644/2 e 645/2 do CPC, ex vi do art.º 281.º do CPPT e art.º 286/2 do mesmo Código.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer concluindo pela improcedência do recurso, no entendimento de que o despacho recorrido fez correcto julgamento ao considerar que os autos contêm matéria de facto suficiente para a decisão.

Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para decisão (art.º 657/4 do CPC).

2 – QUESTÕES A DECIDIR

Delimitadas pelas conclusões da alegação (artigos 635/4 e 639/1 do CPC), a questão a decidir consiste em saber se o despacho impugnado se reconduz a um despacho de rejeição de meios de prova, susceptível de apelação autónoma.

3 – MATÉRIA DE FACTO

É este o teor do despacho judicial impugnado:
«
Da extensa petição inicial, cujo cerne é a bondade da consideração ou não de uma alteridade entre sucursal e casa mãe para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado nas operações entre si, vemos que a pretensão impugnatória dos atos assenta, a partir daí, na violação de várias normas substantivas, de que viriam a resultar os atos mediatamente impugnados. Está assim em causa a prova de factos por meio de documentos que, não impugnados, de resto, também não contendem com factualidade controversa. Donde que a prova documental ofereça a matéria de facto suficiente e relevante para o julgamento de facto, nos termos que estruturam a petição e o mais necessário à decisão sejam questões de direito.
Pelo exposto, não tem objeto a produção de prova por meio de pessoas a que se refere o rol apresentado, a qual indeferimos ao abrigo do disposto nos arts.113ºnº1 e 114º, a contrario, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, encerrando-se a instrução.
Notifique-se.
::
Lisboa, 12 de julho de 2023

4 – MATÉRIA DE DIREITO

De acordo com o disposto no art.º 644/2, alínea d), do CPC, cabe recurso de apelação do despacho do juiz do tribunal de 1.ª instância de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova.

Os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar a sua convicção acerca de um facto – cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora – “Manual de Processo Civil”, pág.452.
Em processo tributário, são admitidos os meios gerais de prova (art.º 115/1 do CPPT).

De acordo com o CPC, os meios de prova são: a exibição de coisa móvel (art.º 416.º do CPC), os documentos (art.º 423.º e ss. do CPC), a confissão, as declarações de parte (art.º 466.º do CPC), a perícia (art.º 467.º e ss. do CPC e 116.º do CPPT), a inspecção judicial (art.º 490.º e ss. do CPC) e o depoimento das testemunhas (art.º 498.º e ss. do CPC e 119.º do CPPT). E são meios de obtenção de prova, a inquirição das testemunhas (art.º 119/5 do CPPT), a produção antecipada de prova (art.º 419.º do CPC) e todos os instrumentos processuais de recolha de meios de prova.

Ora, em bom rigor, no despacho impugnado o Mmº juiz a quo não rejeitou qualquer meio de prova, nomeadamente a testemunhal requerida, nem desconsiderou provas apresentadas pelas partes por os factos a demonstrar estarem sujeitos a determinado meio de prova ou prova tabelada.

O que o Mmº juiz a quo fez, se bem interpretamos o despacho impugnado, foi prescindir da prova testemunhal para demonstração dos factos relevantes para a decisão, os quais, a seu ver, se colhem, com suficiência, dos documentos juntos aos autos e não impugnados.

Ora, essa decisão interlocutória não é de admissão ou rejeição de algum meio de prova, é antes uma decisão sobre a inutilidade ou impertinência de produção de determinada prova pretendida pelas partes quando o tribunal, bem ou mal não importa agora, considera que os autos já fornecem os elementos factuais necessários à boa decisão da causa – cf. artigos 113/1 e 114.º, ambos do CPPT, que foram, de resto, os convocados no despacho impugnado.

Se esse juízo do Mmº juiz a quo sobre a desnecessidade da prova requerida não se mostra correcto e, afinal, se vem a concluir que os autos não forneciam os elementos factuais relevantes para a boa decisão da causa (por insuficiência da matéria de facto e/ou erro na decisão de facto determinado por falta de produção da prova requerida), tal constituirá erro de julgamento, vício a invocar na impugnação da sentença ou decisão que ponha termo ao processo, determinando a anulação do processado posterior à diligência de prova omitida, incluindo a própria sentença (art.º 195.º do CPC).

Do que vem dito, já se entrevê que, para nós, o despacho impugnado não encontra enquadramento na alínea d) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC porque não se reconduz a um despacho sobre a admissão ou rejeição de meios de prova, mas sim sobre a desnecessidade/ inutilidade da produção de prova para demonstração de factos alegados quando, no entender do tribunal, os autos já fornecem todos os elementos necessários ao julgamento das questões factuais e jurídicas colocadas à sua apreciação (art.º 608/2 do CPC).

E esse juízo sobre a oportunidade da prova, que a lei expressamente prevê no art.º 113/1 do CPPT, não pode deixar de ser feito pelo tribunal, sob pena de incorrer na prática de actos inúteis, sancionados pela lei processual com a ilicitude (art.º 130.º do CPC).

Neste modo de ver, não é, pois, admissível apelação autónoma do despacho interlocutório em causa, com regime de subida imediata, em separado (art.º 645/2 do CPC), o qual, poderá ser impugnado no recurso que venha a ser interposto da decisão de 1.ª instância que ponha termo à causa, conforme art.º 644.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.

Em conclusão, não é admissível o presente recurso tramitado como apelação autónoma, o qual se considera findo por não haver que conhecer do seu objecto.

5– DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em não admitir o recurso e julgar o mesmo findo, por não haver que conhecer do respectivo objecto.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Março de 2024.


_______________________________
Vital Lopes



________________________________
Jorge Manuel Monteiro da Costa



________________________________
Ângela Cristina da Silva Cerdeira