Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:990/10.5BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:04/04/2024
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:PRESTAÇÕES ACESSÓRIAS
NATUREZA GRATUITA
TRANSMISSÃO DE BEM IMÓVEL
TRIBUTAÇÃO EM IMT
Sumário:I - O IMT apenas poderá incidir sobre transmissões, seja de propriedade, seja de figuras parcelares do direito de propriedade, caso essa transmissão seja onerosa, na medida em que é a transmissão da propriedade que constitui o indício de riqueza que justifica a tributação neste âmbito.
II - A exigibilidade de prestações acessórias fica dependente da sua estipulação, no contrato social, mormente, dos seus elementos essenciais e, particularmente, da sua natureza, ou seja, se assumem natureza onerosa ou gratuita, podendo recair apenas sobre alguns dos sócios ou que estas sejam qualitativa ou quantitativamente distintas entre si.
III - Quanto à concreta destrinça entre prestação realizada a título gratuito ou oneroso, há que ter presente que na prestação onerosa, e tal como o próprio nome indicia, existe uma retribuição onerosa da prestação acessória realizada pelo sócio, mediante restituição do dinheiro que lhe foi entregue, acrescido dos competentes juros ou mediante pagamento do preço do bem recebido ou do serviço prestado. Por seu turno, no domínio da prestação gratuita, inexiste qualquer contrapartida financeira para o sócio.
I - O registo contabilístico não tem a faculdade de transmutar a natureza da prestação em contenda, ou seja, de gratuita para onerosa, quando, ademais, resulta do probatório que a sócia não auferiu qualquer contrapartida monetária, seja a título de preço, seja de concessão de juros, logo qualquer prestação pecuniária que permita qualificar a prestação acessória como onerosa.
II - A transmissão de um bem imóvel em cumprimento da entrega de prestações acessórias, devidamente estipuladas contratualmente, e com natureza gratuita, não se inclui na previsão normativa constante no artigo 2.º, nº1, do CIMT.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I-RELATÓRIO

A DIGNa REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (doravante DRFP ou Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “F…, Hotelaria Unipessoal, Lda”, tendo por objeto a liquidação de Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), n.º 160810012325805, no valor €249.022,67, referente a prédio urbano constituído por terreno para construção inscrito na matriz sob o artigo 1… da freguesia e concelho de Cascais.


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A Recorrente, veio apresentar as suas alegações, formulando, as conclusões que infra se reproduzem:

I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença declaratória da procedência da impugnação deduzida relativamente à liquidação de IMT efectuada em resultado da aquisição do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1…, da freguesia e concelho de Cascais, no montante de €249.022,67 euros;

II. A questão a dirimir prende-se com o facto de saber se a entrada do único sócio da sociedade com um imóvel na mesma, a título de prestação acessória, configura uma transmissão onerosa nos termos do nº 1 do art.2º do CIMT (Código de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis).

III. O contrato de sociedade pode impor aos sócios a obrigação de efectuarem prestações além das entradas, desde que fixe os elementos essenciais e especifique se as prestações devem ser efectuadas onerosa ou gratuitamente.

IV. As prestações acessórias efectuadas pelo sócio (nessa qualidade), fazem parte da relação jurídica do sócio para com a sociedade, têm um fim social, e como tal, não podem ser consideradas gratuitas.

V. Por via da obrigação de prestações acessórias ocorre sempre a obtenção de uma vantagem (patrimonial ou não) para a sociedade, mas ocorre também a criação de uma posição de vantagem para o sócio traduzida em melhores condições para obtenção de lucros.

VI. Assim, as prestações realizadas pelo sócio em benefício da sociedade nunca são gratuitas, sejam elas realizadas no cumprimento da obrigação de entrada ou no cumprimento de uma obrigação de prestação acessória. São realizadas no interesse directo da sociedade mas também no interesse patrimonial do sócio enquanto tal.

VII. O sócio pode transmitir para a sociedade a propriedade do bem entregue sem contrapartida imediata, ficando apenas com as vantagens proporcionadas indirectamente pelo estatuto de sócio.

VIII. No dizer de Rui Pinto Duarte “A terminologia legal não é inteiramente feliz já que, no rigor dos conceitos, as prestações acessórias nunca são gratuitas — no sentido em que nunca correspondem a uma liberalidade. Por outras palavras, as prestações acessórias podem ter uma contrapartida directa ou não, sendo o primeiro caso, aquele a que a lei atribui a característica de onerosidade e o segundo aquele a que a lei atribui a característica de gratuitidade” (sublinhado e destacado nosso).

IX. As sociedades P… e F… efectuaram a contabilização do facto patrimonial correspondente à transmissão do imóvel, bem como a respectiva contraprestação. Assim, na contabilidade da impugnante o imóvel foi contabilizado na conta 422 “Imobilizações Corpóreas”, enquanto na contabilidade da sociedade P… foi contabilizada na conta 71113 “Vendas…”

X. A prestação acessória efectuada pelo sócio teve um fim social e, em consonância com esse fim, foi efectuado o correspondente lançamento na conta 531, sabendo-se que as contas da classe 5 são contas de capital.

XI. Fica assim claramente evidenciado que a transmissão do imóvel da esfera patrimonial da sociedade P… para a esfera patrimonial da sociedade F… tem carácter oneroso pelo que está sujeita a IMT, nos termos do art.2º, nº1 do CIMT.

Nestes termos e com o douto suprimento de Vªs Exªs, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que julgue improcedente a presente Impugnação, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA


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A Recorrida devidamente notificada, não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul proferiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida fixou a factualidade que infra se descreve:

“A)Por contrato outorgado em 12.10.2007, foi constituído a sociedade unipessoal por quotas “F…, Hotelaria Unipessoal, Ldª”, sendo sua única sócia a sociedade “P…, Imobiliária, Ldª”, no qual se estipulou, na respectiva cláusula 5ª, que esta última teria de efectuar uma prestação acessória em espécie, a titulo definitivo e gratuito, a favor da 1ª, do prédio urbano constituído por terreno para construção inscrito na matriz sob o artº 1…, da Freguesia de Cascais. –cfr cópia do contrato de sociedade de fls 89 a 97, do P.A. apenso aos autos.

B) Em 24.10.2007, por deliberação da assembleia geral da sociedade, foi aprovado a realização da prestação acessória constante do contrato de sociedade, tendo sido outorgada, em 31.10.2007, a escritura de prestação acessória, pela qual foi transmitida a propriedade do imóvel referido em A), da sócia da impte em beneficio da impte. – cfr Acta de fls 99 e 100, e cópia da escritura de entrega de prestação acessória, de fls 101 a 105, do P.A. apenso.

C) em resultado de uma acção inspectiva realizada à impte, foi constatado que o s.p. havia adquirido o imóvel referido em A), através daquele negócio jurídico de realização de uma prestação acessória por parte da sócia , tendo entendido que tal transmissão está sujeita a IMT por força do artº 1º e do nº1, do artº 2º, do CIMT, em virtude de tal prestação acessória não ser gratuita, tendo resultado uma transmissão de um bem imóvel entre patrimónios distintos em benefício do transmissário , tendo-se determinado a liquidação de imposto no montante de € 249.022,67, notificado ao interessado. –cfr Oficio de fls 60 dos autos e Relatório de fls 74 a 134, e documento para pagamento de fls 140 e 141, do P.A. apenso.”


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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte:

“Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.”


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A motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.”


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Atento o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, acorda-se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II), em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração. (1-Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.)

Nesse seguimento, procede-se à alteração da redação do facto que infra se identifica, por referência à sua enumeração efetuada em 1.ª instância:

C) A sociedade comercial denominada “F…, Hotelaria Unipessoal, Lda”, foi objeto de ação de Inspeção Tributária, credenciada pela Ordem de Serviço 200907094, de âmbito geral aos exercícios de 2007 e 2008, da qual resultaram correções meramente aritméticas em sede de IMT, Imposto de Selo e IRC, nos valores de €3.528.000,00, €28.224,00, e €1.768.250,00, respetivamente, tendo sido emitido o competente Relatório, datado de 23 de dezembro de 2009, extratando-se do seu teor e na parte que para os autos releva, designadamente, o seguinte:


«Imagem em texto no original»


«Imagem em texto no original»


«Imagem em texto no original»


«Imagem em texto no original»



«Imagem em texto no original»


(cfr. RIT, constante na plataforma SITAF, com a referência 000124316);


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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

D) Em resultado do referido em C), foi emitido ato de liquidação de IMT, em nome da sociedade comercial denominada “F…, Hotelaria Unipessoal, Lda”, com o seguinte teor:


«Imagem em texto no original»

(cfr. ato de liquidação, constante na plataforma SITAF, com a referência 000124316);


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de IMT, no valor de €249.022,67.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito, por ter decidido que a transmissão de bem imóvel em cumprimento da entrega de prestações acessórias, efetuadas a título gratuito, não se subsume normativamente no artigo 2.º, nº1 do CIMT.

Apreciando.

A Recorrente advoga, desde logo, que a decisão recorrida padece de erro de julgamento, na medida em que, inversamente ao expendido na decisão recorrida, por via da obrigação de prestações acessórias ocorre sempre a obtenção de uma vantagem (patrimonial ou não) para a sociedade.

Logo, as prestações realizadas pelo sócio em benefício da sociedade nunca são gratuitas, sejam elas realizadas no cumprimento da obrigação de entrada ou no cumprimento de uma obrigação de prestação acessória, na medida em que comportam uma contrapartida imediata, ficando com as vantagens proporcionadas indiretamente pelo estatuto de sócio, proporcionando, por conseguinte, a criação de uma posição de vantagem para o sócio traduzida em melhores condições para obtenção de lucros.

Mais advoga que, a própria contabilização permite inferir no sentido da onerosidade, legitimando, assim, a tributação em sede de IMT, ao abrigo do artigo 2.º, nº1, do CIMT.

Vejamos, então.

Comecemos por convocar a fundamentação jurídica que esteou a procedência da impugnação judicial.

O Tribunal a quo começa por sustentar que, de acordo com a fundamentação contemporânea do ato, não foi feita qualquer analogia com as entradas em espécie dos sócios para a realização do capital social, limitando-se a AT a convocar a “[r]egra geral de incidência objectiva do tributo, aquela obrigação de prestação acessória imposta ao sócio da impte preenche a noção contida no nº1, do artº 2º, do CIMT quanto à transmissão onerosa do imóvel.”

Densificando, depois, por reporte ao recorte probatório dos autos que “[c]onstando do contrato de sociedade os elementos essenciais da obrigação, dando assim cumprimento ao disposto na lei ( Cfr artº 209º, do C.S.C.), ficou aí também expressamente determinado que tais prestações terão carácter gratuito, o que significa que tal entrega do bem imóvel pelo sócio como realização da prestação não obriga a sociedade a efectuar qualquer contraprestação e não tem qualquer outro sentido jurídico senão este, i. e.do contrato resulta que o sócio proporciona uma vantagem patrimonial à sociedade sem qualquer contraprestação ( cfr Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pags 352 e segs), pelo que não se alcança no presente caso aquela onerosidade da transmissão, para mais tendo em conta que, salvo disposição em contrário ( que não se constata no presente caso), a situação do sócio enquanto tal não é afectada pelo cumprimento daquelas obrigações acessórias, nos termos do disposto no nº4, do artº 209º, do C.S.C. Como bem refere Raul Ventura in “Sociedade Por Quotas, Vol. I, 2ª Ed. Pags 216 e segs, uma coisa é a obrigação acessória em si mesma, outra é a prestação, sendo que a obrigação em si é que tem natureza societária e que portanto não se trata de uma liberalidade do sócio, mas já a prestação pode revestir aquela característica de gratuidade.”

Concluindo, assim, que “[a] existência da obrigação acessória no âmbito da relação jurídica societária não foi elegida pela lei “de per si” como facto tributário relevante para efeitos de incidência de imposto, antes apenas releva a prestação em si em bens imóveis e o carácter de onerosidade da mesma”, sublinhando, a final, que a tal não se “[o]põe a sua consideração em contas de imobilizado do imóvel e de fundos aplicados pelos sócios na impte, ainda que seja relevada na sócia em investimentos em imóveis por contrapartida de uma conta de vendas (e não de ganhos em imobilizações e nos termos da sua movimentação conforme conta 794 do POC).”, daí dimanando a ilegalidade do ato impugnado e respetivos juros compensatórios.

Apreciando.

Importa começar por convocar o quadro normativo e tecer os considerandos de direito de relevo para o caso vertente.

Ab initio, cumpre ter presente que segundo o disposto no n.º 1, do artigo 2.º, do CIMT: “O IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional”.

A propósito da incidência subjetiva preceitua o artigo 4.º, nº1, que “o IMT é devido pelas pessoas, singulares ou coletivas, para quem se transmitam os bens imóveis.”

Consignando, por seu turno, o artigo 5.º que “a obrigação tributária constitui-se no momento em que ocorrer a transmissão.”

Daí resultando, portanto, que o IMT apenas poderá incidir sobre transmissões, seja de propriedade, seja de figuras parcelares do direito de propriedade, caso essa transmissão seja onerosa, na medida em que é a transmissão da propriedade que constitui o indício de riqueza que justifica a tributação neste âmbito.

Como doutrina António Santos Rocha, e Eduardo José Martins Brás (2-In Tributação do Património, IMI IMT e Imposto do Selo anotados e comentados, síntese do regime tributário dos organismos de investimento coletivo, 2018, 2.ª edição, página 433.), a riqueza tributada em sede de IMT, tem por base a onerosidade da transmissão do bem, “[o] imposto continua a incidir sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou das figuras parcelares desse direito sobre imóveis, podendo este direito transmitir-se sob qualquer forma legítima de adquirir ou quando ocorra a constituição ou extinção de diversos tipos de contratos.”

No concreto particular do quadro normativo, e respetivas dilucidações atinentes às prestações acessórias importa, desde logo, ter presente que as prestações acessórias se encontram reguladas para as sociedades por quotas e para as sociedades anónimas nos artigos 209.º e 287.º, do CSC, respetivamente.

Preceituando, no que para os autos releva, o citado artigo 209.º do CSC que:

“1-O contrato de sociedade pode impor a todos ou a alguns sócios a obrigação de efetuarem prestações além das entradas, desde que fixe os elementos essenciais desta obrigação e especifique se as prestações devem ser efetuadas onerosa ou gratuitamente. Quando o conteúdo da obrigação corresponder ao de um contrato típico, aplica-se a regulamentação legal própria desse tipo de contrato.

2 - Se as prestações estipuladas forem não pecuniárias, o direito da sociedade é intransmissível.

3 - No caso de se convencionar a onerosidade, a contraprestação pode ser paga independentemente da existência de lucros de exercício.

4 - Salvo disposição contratual em contrário, a falta de cumprimento das obrigações acessórias não afeta a situação do sócio como tal.

5 - As obrigações acessórias extinguem-se com a dissolução da sociedade.”

Daí dimanando, portanto, que a sociedade através do respetivo contrato de sociedade, pode obrigar os seus sócios a efetuar prestações para além das entradas de capital.

É certo que o legislador não teve a preocupação de definir prestação acessória, limitando-se a consagrar o seu regime, quer para as sociedades por quotas, quer para as sociedades anónimas, de todo o modo sempre se infere do concreto recorte legal que as mesmas consistem em quaisquer prestações a que os sócios se obriguem, entre si, para além da obrigação de entrada para realização do capital social.

Promanando, assim, que não se encontra estabelecida qualquer limitação, podendo, portanto, ter por objeto dinheiro ou qualquer outro objeto e corporizar-se, nomeadamente, em obrigações de dare, facere e non facere ou até mesmo em obrigações de suportar ou tolerar.

Sendo certo que, a obrigação de prestações acessórias apenas é válida quando prevista no contrato de sociedade inicial ou, posteriormente, alterado, sendo que nesta última situação as prestações acessórias são estabelecidas através da alteração do contrato de sociedade, preceituando o artigo 86.º, n.º 2, do CSC que apenas ficarão obrigados à sua realização os sócios que as tenham aprovado.

Do supra expendido, resulta, assim, que a exigibilidade de prestações acessórias fica dependente da sua estipulação, no contrato social, mormente, dos seus elementos essenciais e, particularmente, da sua natureza, ou seja, se assumem natureza onerosa ou gratuita, podendo, como visto, recair apenas sobre alguns dos sócios ou que estas sejam qualitativa ou quantitativamente distintas entre si.

Neste concreto particular, elucida RAUL VENTURA (3-in Sociedades por Quotas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, pág. 216) que há que fazer a concreta distinção entre a natureza unilateral e bilateral da obrigação que recai sobre o sócio, existindo, portanto, situações em que o sócio, vinculado contratualmente a realizar uma prestação acessória à sociedade, não tem qualquer contrapartida por parte da sociedade beneficiária, a qual deverá ser qualificada de prestação unilateral, existindo, no entanto, outras em que à prestação do sócio corresponde uma contrapartida por parte da sociedade beneficiária, sendo as mesmas passíveis de qualificação enquanto bilateral.

Sendo que, quanto à concreta destrinça entre prestação realizada a título gratuito ou oneroso, há que ter presente que na prestação onerosa, e tal como o próprio nome indicia, existe uma retribuição onerosa da prestação acessória realizada pelo sócio, mediante restituição do dinheiro que lhe foi entregue, acrescido dos competentes juros ou mediante pagamento do preço do bem recebido ou do serviço prestado. Por seu turno, no domínio da prestação gratuita, inexiste qualquer contrapartida financeira para o sócio.

A propósito desta destrinça elucida Manuel António Pita11 que existirá"[p]restação gratuita se a vantagem para a sociedade fosse apropriada por ela sem contrapartida de uma prestação efetuada ou a efetuar em benefício do sócio; ao contrário, a prestação seria onerosa se a apropriação pela sociedade se realizasse em contrapartida de uma prestação a pagar ao sócio".

Ora, concretizado o respetivo enquadramento normativo, e tecidos os considerandos de direito reputados de relevo para o caso vertente, ter-se-á de concluir que nenhuma censura merece a decisão recorrida na medida em que estabeleceu uma correta interpretação jurídica com a devida transposição para o recorte fático dos autos.

Senão vejamos.

Há, desde logo, que secundar o expendido pelo Tribunal a quo no sentido de que a fundamentação contemporânea do ato constante do Relatório de Inspeção Tributária radica, exclusivamente, na subsunção normativa no artigo 2.º, nº1, do CIMT, dela se extratando, designadamente, o seguinte: “A F…, (…) adquiriu, através de uma prestação acessória efectuada, pelo sócio único P…, um imóvel com um valor atribuído de €2.268.089,00, cujo valor patrimonial, na mesma data, era de €3.528.000,00, o qual não foi sujeito a IMT. (…) Face aos fundamentos financeiros, contabilísticos e jurídicos, que, a transmissão operada pela via da entrada da prestação acessória, configura uma transmissão a título oneroso, conforme definido no artigo 1.º e nº1 do artigo 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis-CIMT, sujeita a IMT. Nos termos do nº1 do artigo 12.º do mesmo normativo, o valor que é sujeito a imposto, é o valor patrimonial à data dos factos de €3.528.000,00, uma vez que é superior ao valor escriturado.”

Sendo que, transpondo a mesma para o recorte probatório dos autos dimana inequívoco que, a realidade de facto em contenda não é passível de subsunção normativa no artigo 2.º, nº1, do CIMT, na medida em que, como vimos anteriormente, o IMT tem como premissa base para efeitos de legitimação da tributação, a onerosidade da prestação, a qual, in casu, não sucede.

Atentemos, para o efeito, no recorte probatório dos autos.

Do acervo fático resulta que, a 12 de outubro de 2007, foi constituída a sociedade unipessoal por quotas “F…, Hotelaria Unipessoal, Ldª”, sendo sua única sócia a sociedade “P…, Imobiliária, Ldª”, tendo sido estipulado no respetivo contrato social, concretamente, na respetiva cláusula quinta, que esta última teria de efetuar uma prestação acessória em espécie, a título definitivo e gratuito, a favor da primeira, do prédio urbano constituído por terreno para construção inscrito na matriz sob o artigo 1…, da Freguesia de Cascais.

E nessa conformidade, a 24 de outubro de 2007, por deliberação da Assembleia Geral da sociedade, foi aprovada a realização da prestação acessória constante do contrato de sociedade, tendo sido outorgada, a 31 de outubro de 2007, a escritura de prestação acessória, mediante a qual foi transmitida a propriedade do imóvel supra aludido, da sócia da Recorrida em benefício da mesma.

Ora, tendo por base a factualidade expendida anteriormente dimana inequívoco que nos encontramos perante a transmissão de um bem imóvel em cumprimento da entrega de prestações acessórias, devidamente estipuladas contratualmente, e com natureza gratuita, não se incluindo, portanto, na previsão normativa constante no artigo 2.º, nº1, do CIMT.

De relevar, neste particular, que carece de relevo o expendido quanto ao concreto registo contabilístico, na medida em que o mesmo não tem a faculdade de transmutar a natureza da prestação em contenda, ou seja, de gratuita para onerosa, sendo que, in casu, dimana perentório que a sócia não auferiu qualquer contrapartida monetária, seja a título de preço, seja de concessão de juros, logo qualquer prestação pecuniária que permita qualificar a prestação acessória como onerosa.

De resto, há que ter presente que não obstante a contabilidade tenha de traduzir, de forma fidedigna, todos os factos patrimoniais concatenados com o exercício da atividade, o certo é que uma errónea contabilização não pode, de todo, servir para alterar, per se, uma qualificação jurídica -particularmente e no que para os autos releva, estabelecer uma concreta requalificação de uma prestação acessória enquanto gratuita para onerosa- quando, como visto, nenhuma asserção de facto, mormente, no domínio financeiro permite legitimar essa assunção, bem pelo contrário.

De salientar, in fine, que carece, outrossim, de relevo o expendido quanto a uma eventual abrangência e integração no artigo 2.º, nº5, alínea e), do CIMT, desde logo, porque como visto, não integra a fundamentação contemporânea do ato, revestindo, portanto, fundamentação a posteriori, insuscetível, por conseguinte, de qualquer consideração e valoração.

De todo o modo sempre se dirá que, uma realidade fática com a visada nos presentes autos não é, de todo, suscetível de integração no aludido normativo, resultando, desde logo, tal asserção de uma mera interpretação literal da qual dimana que a previsão da norma sub judice inclui apenas as entradas dos sócios, com imóveis, que se consubstanciem na realização do capital social do ente societário.

Neste âmbito, vide Acórdão do STA, prolatado no âmbito do processo nº 02163/15.1BEALM, de 13 de janeiro de 2021, cuja fundamentação jurídica se transcreve na parte que para os autos releva:

Revertendo ao caso dos autos, a entrega dos imóveis em cumprimento da obrigação de prestações acessórias (cfr.als.D), E) e F) do probatório), não se enquadra na previsão do artº.2, nº.1, do C.I.M.T., pela razão de que a sua onerosidade (do ponto de vista da sociedade adquirente) não emerge de forma directa e clara do negócio concretamente celebrado (pelo contrário, resulta do contrato a natureza definitiva e gratuita das prestações acessórias, porque não reembolsáveis nem originadoras de qualquer espécie de contraprestação no momento da sua realização ou no futuro - cfr.al.D) do probatório), apesar da mesma onerosidade (transmissão, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, incidente sobre bens imóveis.) se erigir como pressuposto de incidência objectiva da citada norma (cfr.José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3ª. Edição, 2016, pág.244; António Santos Rocha e Outro, Tributação do Património, 2ª. Edição, Almedina, 2018, pág.439).

Passemos ao exame do eventual enquadramento da factualidade constante do probatório na previsão do mencionado artº.2, nº.5, al.e), do C.I.M.T.

De acordo com a previsão da norma são sujeitas a imposto "as entradas dos sócios com bens imóveis para a realização do capital das sociedades comerciais…" (cfr.José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3ª. Edição, 2016, pág.275 e seg.; António Santos Rocha e Outro, Tributação do Património, 2ª. Edição, Almedina, 2018, pág.450).

Ora, conforme já referido supra, o Código das Sociedades Comerciais separa, claramente, a obrigação de entradas dos sócios para o capital social e a obrigação de prestações acessórias. E essa diferenciação ocorre tanto no que respeita à sua origem, como à sua natureza, fins e efeitos, conforme acima se concluiu. Na verdade, a previsão da norma sob exame integra somente as entradas dos sócios, com imóveis, que se consubstanciem na realização do capital social do ente societário. Sendo que esta diferenciação de regime (entre as entradas de capital e as prestações acessórias) deve ser integrada com recurso ao seu sentido original, tal qual consta do Código das Sociedades Comerciais (cfr.artº.11, nº.2, da L.G.T.).

Com estes pressupostos, não pode o intérprete alargar o âmbito da previsão do artº.2, nº.5, al.e), do C.I.M.T., para nela se incluírem as transmissões de imóveis em cumprimento da entrega de prestações acessórias, desde logo, porque o elemento literal do preceito a tal impede (cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil).

Em conclusão, o acto tributário objecto do presente processo padece do vício que se consubstancia no erro sobre os pressupostos de direito, devido a errada interpretação e aplicação dos examinados artºs.2, nºs.1 e 5, al.e), do C.I.M.T. ao caso dos autos (cfr. als.G) e R) do probatório).

Atento o relatado, não vislumbra este Tribunal que a sentença recorrida padeça do examinado erro de julgamento de direito (nomeadamente, violando os artºs.2, nº.5, al.e), e 4, ambos do C.I.M.T.), pelo que se julga improcedente o recurso e mantém-se a decisão objecto da apelação, embora com a presente fundamentação, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.

No mesmo sentido, se doutrinou no âmbito do Acórdão proferido pelo STA, no processo nº 0432/16, de 03 de fevereiro de 2021, cujo sumário, ora, se extrata:

“I - A tributação está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 103.º, n.º 2, da CRP e art. 8.º, n.º 1, da LGT), que na sua vertente da tipicidade significa que não é admissível tributar factos que não estejam expressamente previstos em norma de incidência.

II - As transmissões de imóveis em cumprimento da entrega de prestações acessórias, efectuadas a título gratuito, não se incluem na previsão do art. 2.º, n.º 5, alínea e), do CIMT, desde logo, porque o elemento literal do preceito o não permite (cfr. art. 9.º, n.º 2, do CC).”

Face a todo o exposto, conclui-se, assim, que as transmissões de imóveis em cumprimento da entrega de prestações acessórias, efetuadas a título gratuito, não se incluem na previsão do artigo 2.º, nº1, do CIMT, logo o ato de liquidação impugnado e respetivos juros compensatórios, padecem, efetivamente, de vício de violação de lei.

Destarte, a sentença que assim o decidiu não padece de erro de julgamento, devendo, por conseguinte, ser confirmada.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário, Subsecção Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 04 de abril de 2024

(Patrícia Manuel Pires)

(maria da Luz de Jesus Cardoso)

(Maria Teresa da costa Alemão)