Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3013/23.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
REGISTO DO ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 144.º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS, 4.º, 5.º E 15.º DO REGIME JURÍDICO DOS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DE DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE ENTIDADES COMERCIAIS, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 76-A/2006, DE 29-03
Sumário: I – Nos termos do disposto no artigo 144º do Código das Sociedades Comerciais, o regime do procedimento administrativo de dissolução é regulado em diploma próprio, sendo que, como é sabido, o preceito alude ao regime constante do atrás referido RJPADLEC – regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março –, designadamente do disposto nos seus artigos 4.º a 14.º, para a dissolução administrativa voluntária, iniciada através de requerimento, e para a dissolução administrativa oficiosa, iniciada através de auto do conservador do registo comercial.
II – Nos procedimentos iniciados voluntariamente – artigo 4.º e 15.º do RJPADLEC – há interesses opostos, pelo que devem os mesmos ser qualificados logo como jurisdicionais. Já quando o procedimento tenha um início oficioso – artigo 5.º e 15.º, n.º 5, do RJPADLEC –, mormente quando não exista nenhuma contestação, “estaremos em plena função administrativa” e que, portanto, quer nos procedimentos de dissolução administrativa voluntária e facultativa, quer nos procedimentos de dissolução administrativa oficiosa e necessária, o procedimento começa por ser administrativo, podendo assumir contornos jurisdicionais desde que emirja uma contestação.

III – É certo, que a norma do citado artigo 3.º – Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os atos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação – por isso, enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial, a lei dá preferência à dissolução e liquidação judicial, por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados.

IV – Mas, a fase de impugnação judicial da decisão do conservador não poderá ser considerada como tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, sendo para estes casos uma verdadeira fase de recurso – o pedido de declaração de insolvência da A... Unipessoal Lda., não teve lugar durante a tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, o qual terminou com a decisão da Sra. Conservadora do Registo Comercial de ....

V – Resultando atualmente da certidão da matrícula comercial da requerida A... Unipessoal Lda, que se encontra registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação, e cancelada a matrícula comercial, esta encontra-se extinta, pelo que, o presente processo de insolvência não pode prosseguir contra uma sociedade comercial que já não tem personalidade jurídica.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

1. Na sequência da frustração da citação da Requerida, veio a Requerente pedir a citação edital daquela, através de requerimento de 26-12-2023.

2. Após ter sido solicitada a certidão atualizada da matrícula comercial da Requerida, convidou-se a Requerente a pronunciar-se sobre a extinção da instância impossibilidade superveniente da lide.

3. A Requerente pronunciou-se, através de requerimento de 22 de Janeiro de 2024, alegando em resumo o seguinte:

Na pendência da ação de impugnação da decisão do Conservador de dissolução e encerramento da liquidação da Requerida, a Requerente propôs a presente ação de insolvência da Requerida e, nesse conspecto, requereu naquela impugnação judicial que fosse dado cumprimento ao disposto no art. 3º do RJPADLEC. Este requerimento foi indeferido através de despacho de 23-11-2023, sendo que a Requerente interpôs recurso de tal decisão.

Assim, a Conservatória do Registo Comercial não podia ter registado a extinção da sociedade Requerida, dado que a insolvência “tem prevalência absoluta e decisiva sobre o procedimento administrativo de dissolução e liquidação”, tal como decidido em relevante jurisprudência.

“A insolvência da requerida foi pedida pela requerente no exato dia em que foi proferida decisão naqueles autos n.º 1679/23.... – 30/06/2023 - logo, tal decisão não estava transitada em julgado, nem podendo, salvo o devido respeito, transitar posteriormente, pelo facto de ter sido pedida aquela insolvência e por tal facto ter sido comunicado oportunamente pela requerente àqueles autos, conforme se retira do disposto no artigo 3º do RJPADLEC, que impõe que o mero pedido de declaração de insolvência implica que os actos praticados no procedimento de dissolução e liquidação fiquem sem efeito.”

Conclui no sentido de que não deve a presente instância ser declarada extinta.


*

Pelo Juízo de Comércio de Viseu - Juiz ... foi proferida a seguinte decisão:

“Assim, o que resulta atualmente da certidão da matrícula comercial da requerida A... Unipessoal Lda, é que se encontra registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação, e cancelada a matrícula comercial da Requerida. Esta encontra-se, portanto, extinta.

O presente processo de insolvência não pode, portanto, prosseguir contra uma sociedade comercial que já não tem personalidade jurídica, nem se pode considerar que seja algum dos sujeitos passivos da declaração de insolvência elencados no art. 2º, nº1 do CIRE)

Nesta conformidade, e pelo exposto, determino a extinção da presente instância por impossibilidade superveniente da lide.

Custas pela Requerente (art.536º, nº3 do C.P.C.).

Notifique”.


*

B..., LDA, requerente nos autos à margem referenciados, notificada da sentença proferida nos autos e datada de 31/01/2024, que determinou a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, não se conformando com o teor da mesma, dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

I- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos e datada de 31/01/2024, que determinou a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.

II- O tribunal a quo fundamentou a sua decisão no argumento, em suma, de que o artigo 3.º do RJPADLEC deve ser interpretado no sentido de que, “(…) com vista (ou produzindo esse efeito) a inutilizar os atos praticados no procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, o pedido de declaração de insolvência tem que ser efetuado até à decisão administrativa proferida nesse procedimento administrativo”.

III- Nesta medida, tendo a ora recorrente requerido a insolvência da sociedade requerida após ter impugnado judicialmente a decisão da Conservatória do Registo Comercial ... que, por despacho publicado em 31/03/2023, decidiu declarar simultaneamente a dissolução e encerramento da liquidação da requerida, decisão essa que proferiu no âmbito do processo administrativo de dissolução n.º 1/2022, julgou o tribunal a quo que “(…) nesta ocasião já o presente pedido de insolvência não era suscetível de produzir qualquer efeito sobre o procedimento administrativo que já não subsistia, por já ter sido, no mesmo, proferida decisão do Conservador.

Assim, o que resulta atualmente da certidão da matrícula comercial da requerida A... Unipessoal Lda, é que se encontra registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação, e cancelada a matrícula comercial da Requerida. Esta encontra-se, portanto, extinta. O presente processo de insolvência não pode, portanto, prosseguir contra uma sociedade comercial que já não tem personalidade jurídica, nem se pode considerar que seja algum dos sujeitos passivos da declaração de insolvência elencados no art. 2º, nº1 do CIRE).”

IV- Salvo o devido respeito, a recorrente não pode concordar com o acerto de tal decisão.

V- Em 30/06/2023, a recorrente requereu a insolvência da sociedade comercial requerida, tendo sido admitido liminarmente o requerimento inicial e ordenada a citação pessoal daquela sociedade no pretérito dia 19/07/2023, ainda não tendo sido possível citar a requerida até ao momento (como resulta dos factos n.ºs 4 e 5 dos factos relevantes da sentença recorrida) e fê-lo não obstante estar a decorrer o processo de impugnação judicial da decisão da Conservatória do Registo Comercial ... que, por despacho publicado em 31/03/2023, decidiu declarar simultaneamente a dissolução e encerramento da liquidação da requerida, decisão essa que proferiu no âmbito do processo administrativo de dissolução n.º 1/2022.

VI- Com efeito, inconformada com esta decisão administrativa, a recorrente interpôs impugnação judicial da mesma, em 10/04/2023, pedindo a anulação da dita decisão administrativa de dissolução e encerramento da liquidação e que não fosse lavrado o registo de dissolução e encerramento da liquidação da requerida nem que se procedesse ao cancelamento da matrícula desta, impugnação essa que corre termos sob o n.º 1679/23...., junto do Juiz ... do Juízo de Comércio de Viseu deste Tribunal Judicial (como resulta do facto n.º 2 dos factos relevantes da sentença recorrida).

VII- Na verdade, salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo a supra mencionada impugnação judicial efeito suspensivo e considerando-se proposta com a sua apresentação no serviço de registo em que decorreu o procedimento (ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 12.º do RJPADLEC), a recorrente lançou mão do disposto no artigo 3.º do RJPADLEC.

VIII- Pelo que, no momento da instauração dos autos de insolvência, o procedimento administrativo ainda se encontrava pendente, não tendo terminado com a decisão proferida pela Conservatória, a qual foi impugnada, pois a impugnação judicial da decisão da Conservatória tem efeito suspensivo, o que significa que, ao contrário do entendido na sentença recorrida e que diretamente se interliga com os presentes autos, pelas razões supra expostas, o procedimento administrativo ainda se encontrava pendente no momento em que a recorrente pediu a insolvência da sociedade requerida, não tendo terminado com a decisão impugnada da Conservatória. A não ser assim, tal iria, aliás, contra o espírito do próprio RJPADLEC, que estabeleceu expressamente no seu artigo 12.º que a impugnação judicial da decisão do conservador possui efeito suspensivo e considera-se proposta com a sua apresentação no serviço de registo competente em que decorreu o procedimento, sendo de seguida o processo remetido ao tribunal judicial competente.

IX- Logo, no momento em que a recorrente pediu a insolvência da requerida ainda poderia fazê-lo e tal pedido tem os efeitos previstos no artigo 3.º do RJPADLEC.

X- Ou seja e salvo o devido respeito, ao contrário do que foi entendido na sentença recorrida, o mero pedido de declaração de insolvência – note-se que o regime sequer impõe a declaração de insolvência da sociedade comercial, bastando-se com o mero pedido de insolvência – implica que os actos praticados ao abrigo do procedimento de dissolução e liquidação ficam sem efeito, seguindo a insolvência os termos previstos no CIRE.

XI- Dúvidas não restam, salvo melhor opinião, que o pedido de insolvência da requerida foi feito durante a tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais, pois que, não obstante estarmos já na fase de impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Conservatória do Registo Comercial, tendo tal impugnação efeito suspensivo atribuído, o procedimento ainda se encontra pendente, visto que, naquele momento do pedido de insolvência, ainda não se encontrava registado o encerramento da liquidação daquela sociedade e não tinha sido proferida sentença transitada em julgado sobre a impugnação em causa.

XII- Por outro lado, julga-se, salvo melhor opinião, que o tribunal a quo fez igualmente uma errada interpretação das normas jurídicas aqui em causa,ao entender que “(…) o artigo 3º do RJPADLEC confere sim uma “total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação”, mas trata-se de, vamos chamar-lhe assim, de uma supremacia procedimental. Logo, não há que convocar o trânsito em julgado da decisão proferida pela Conservatória, já que, uma vez proferida, extinguiu-se o procedimento respetivo. Ele só será recuperado por força da decisão judicial que venha a afetar a sua validade. Neste caso, nada impedirá o credor de fazer funcionar o art. 3º do RPADLEC no âmbito do procedimento administrativo “repristinado”.

XIII- Na verdade e salvo o devido respeito, nos termos em que aquela disposição legal se encontra redigida, o processo de insolvência tem prevalência absoluta e decisiva sobre o procedimento administrativo de dissolução e liquidação, o que significa, salvo melhor entendimento, que, no limite, caso o pedido de insolvência não tenha provimento, terá de ser iniciado um novo procedimento administrativo de dissolução e liquidação, uma vez que os actos praticados no anterior ficaram sem efeito, pois o regime estabelece-o claramente, seguindo a insolvência os termos previstos no respetivo Código.

XIV- No sentido de todo o supra exposto, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 25-05-2021, proferido no âmbito do processo n.º 5789/19.0T8LSB.L1-1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, do qual, por absoluta clareza de exposição, transcrevemos o seguinte excerto, que sufragamos: “(…) A consequência a retirar do efeito suspensivo atribuído, quer à impugnação contenciosa da decisão do Conservador (nos termos do nº1 do art. 12º do RJPADLEC), quer ao recurso de apelação interposto da sentença proferida no âmbito daquela (nos termos do nº1 do art. 106º do Código do Registo Comercial) é de que o procedimento administrativo de dissolução se encontra ainda pendente.

Aliás, por esse exato motivo, não está ainda registado o encerramento da liquidação desta sociedade comercial C... …, como resulta do facto dado como assente sob o nº 16, mas apenas o facto de estar pendente de dissolução administrativa.

Prescreve o art. 3º do RJPADLEC: «Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os atos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»

A regra estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, não se tendo limitado a extrair consequências da declaração de insolvência, ela própria causa de dissolução imediata no caso das sociedades comerciais (cfr. art. 141º, nº1, al. e) do CSC), mas antes atribuindo relevância ao próprio pedido de declaração de insolvência, independentemente da respetiva proveniência e do respetivo sucesso.

Como escrevem Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo[4] “O estatuído no artigo é uma consequência da natureza universal do processo de insolvência (cf. 1º CIRE): todos os créditos e débitos devem ser apurados, incluindo os que sejam apurados em sede de liquidação societária administrativa, em ordem a determinar o património da sociedade tendo em vista a satisfação dos credores”, no termos previstos no art. 1º do CIRE, mediante plano de insolvência ou liquidação do património do devedor.

E bem se compreende, já que o processo de insolvência se reveste de publicidade, garantias e mecanismos que em muito excedem os disponibilizados em procedimento administrativo, no caso de liquidação.

Sem entrar na discussão da questão primitivamente central deste recurso, a extensão da obrigação de pesquisa de bens pelo Conservador com vista à liquidação (ou “dispensa” da mesma), é notória a diferença entre o disposto no art. 19º do RJPADLEC e o leque de funções conferidas ao administrador de insolvência[5] em processo de insolvência.

Por essa razão a lei consagra uma solução aparentemente tão radical,mas auto-explicativa: enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial a lei “prefere” que, quer a dissolução, quer especialmente a liquidação se façam pela via judicial,por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados.

Assim, e anotando que, caso o pedido de declaração de insolvência venha a improceder, terá que ser iniciado novo procedimento administrativo de dissolução e liquidação (caso se mantenham os respetivos pressupostos),consequência assumida pela lei, há que julgar procedente a questão prévia e, e, em consequência prejudicada a apreciação do recurso interposto.”

XV- Por conseguinte, não estando ainda registada a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade requerida – como de facto, à data de 30/06/2023, data em que deu entrada o pedido de insolvência desta sociedade, não estava registado – tal significa que a recorrente poderia pedir a insolvência desta e que tal pedido terá os efeitos consagrados no artigo 3º do RJPADLEC.

XVI- O regime legal em vigor prefere a insolvência ao procedimento administrativo de encerramento e dissolução, uma vez que o primeiro confere mais proteção, publicidade e direitos aos credores das sociedades comerciais, possibilitando-lhes um leque alargado de mecanismos para efetuar a liquidação da sociedade comercial devedora.

XVII- Não se olvide que a insolvência da sociedade requerida foi pedida pela recorrente no exato dia em que foi proferida decisão naqueles autos n.º 1679/23.... – 30/06/2023 -, logo, tal decisão não estava transitada em julgado, nem podendo, salvo o devido respeito, transitar posteriormente, pelo facto de ter sido pedida aquela insolvência e por tal facto ter sido comunicado oportunamente pela recorrente àqueles autos, conforme se retira do disposto no artigo 3º do RJPADLEC, que impõe que o mero pedido de declaração de insolvência implica que os actos praticados no procedimento de dissolução e liquidação fiquem sem efeito.

XVIII- Com efeito, atenta toda a tramitação que se interrelaciona entre os dois processos judicias em curso, o de insolvência e o de impugnação judicial da decisão da Conservatória, julga-se, ao contrário do entendido pela sentença recorrida, que é necessário convocar o trânsito em julgado da decisão proferida pela Conservatória, trânsito esse que se entende, salvo melhor opinião, que não ocorreu, pelos motivos expostos e, por isso, nunca deveria ter sido registada a dissolução da sociedade requerida e o encerramento da liquidação, bem como nunca deveria ter sido registado o cancelamento da sua matrícula, em 13/10/2023, pois a esta data já a recorrente tinha pedido a insolvência da sociedade comercial requerida nestes autos, com os efeitos supra mencionados.

XIX- Assim, deveriam ter ficado sem efeito todos os actos praticados em tal procedimento administrativo, incluindo a decisão proferida em 30/06/2023, bem como o despacho datado de 23/11/2023, razão pela qual a recorrente interpôs recurso do mesmo, como acima dito, onde peticionou que este fosse revogado e alterado, declarando-se sem efeito todos os actos praticados no procedimento administrativo de dissolução e liquidação da sociedade requerida, tudo com as legais consequências.

XX- Por último, mais se diga que, não obstante a aqui recorrente ser simultaneamente requerente do processo de insolvência da sociedade comercial requerida e impugnante na impugnação judicial da sobredita decisão da Conservatória, a recorrente desconhecia que o procedimento administrativo estava em curso até à data da decisão do Conservador, visto que somente por consulta do Portal MJ é que tomou conhecimento dessa decisão, nunca tendo sido notificada pessoalmente pela Conservatória em questão sobre tal procedimento, tendo-se visto impossibilitada de ir informar aqueles autos sobre os créditos e os direitos que detinha sobre a sociedade requerida (como, aliás, resulta da petição inicial que deu origem a estes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos efeitos). Contudo, a recorrente impugnou tal decisão e informou aqueles autos (e, bem assim, também estes de insolvência), que era credora da requerida e que esta possuía passivo por liquidar, e que, segundo resultava das informações prestadas pela autoridade tributária e pela segurança social à Conservatória do Registo Comercial ..., a requerida possuirá pelo menos um trabalhador e apresentou declaração de rendimentos relativa ao ano de 2021.

XXI- Assim, salvo melhor opinião, o tribunal a quo deveria, ao invés de ter proferido a sentença recorrida, ter proferido decisão que ordenasse o prosseguimento dos autos de insolvência, com as legais consequências.

XXII- A sentença recorrida proferida pelo tribunal a quo mostra-se, assim, violadora, pelo menos, dos artigos 3.º e 12.º do RJPADLEC, 2.º, 3.º e 20.º do CIRE.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, e, consequentemente, deve a sentença recorrida ser revogada e alterada em conformidade.

Assim decidindo, farão V. Exas Justiça!


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O Ministério Público apresenta as suas contra-alegações assim concluindo:

- Deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente e confirmada a decisão objeto de recurso.      

- E, em face do exposto e salvo o devido respeito por diversa opinião afigura-se-nos não assistir razão à recorrente,

Pelo que V. Exas. mantendo a decisão proferida e negando provimento ao recurso interposto,

Farão como sempre, JUSTIÇA.


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2. Do objecto do recurso

Interpretação a dar ao art.º 3.º do RJPADLEC  - Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativo de Dissolução e Liquidação de Sociedades Comerciais - Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os actos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Ou seja, saber se no estado actual da sociedade Requerida - A... Unipessoal Lda. - é possível prosseguir com a acção destinada à sua declaração de insolvência.

A 1.ª instância arrumou, assim, a matéria de facto:

São os seguintes os factos relevantes:

1. A 08 de Novembro 2022 foi registada a pendência do procedimento administrativo de dissolução da sociedade Requerida A..., Unipessoal, Lda.

2. A 10 de Abril de 2023 foi registada a ação de impugnação judicial da decisão do Conservador do Registo Comercial de dissolução da aqui Requerida, a qual havia tomado o nº1679/23.....

3. No dia 30 de Junho de 2023 foi proferida decisão que julgou improcedente o recurso interposto por B..., Lda. da decisão da Ex.ma Sra. Conservadora do Registo Comercial ... proferida no processo administrativo de dissolução/liquidação nº...22 que declarou simultaneamente a dissolução e encerramento da liquidação respeitante à sociedade comercial A... Unipessoal Lda.

4. No dia 30 de Junho de 2023 a B..., Lda. requereu a insolvência de A..., Unipessoal, Lda.

5. A 04 de Julho de 2023 foi proferido despacho liminar na presente ação e ordenou-se a citação da Requerida.

6. A 21 de Julho de 2023 a recorrente B..., Lda. veio, no processo de impugnação da decisão do Conservador nº1679/23...., informar que propôs, em 30-06-2023, ação especial de insolvência contra A... Unipessoal Lda., pedindo que fosse dado cumprimento ao disposto no nº3 do RJPADLEC.

7. A 12 de Outubro de 2023 foi registada a decisão judicial que julgou improcedente a impugnação daquela decisão do Conservador do Registo Comercial.

8. A 13 de Outubro de 2023, com base na decisão judicial, foi registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação.

9. Na mesma data foi registado o cancelamento da matrícula comercial da Requerida.

10. A 23 de Novembro de 2023 foi proferida decisão que indeferiu o requerimento referido em 6, com os seguintes fundamentos:“O art. 3º do RJPADLEC prevê que “Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os actos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas.” / No caso em apreço, o pedido de declaração de insolvência da A... Unipessoal Lda. não teve lugar durante a tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, o qual terminou com a decisão da Sra. Conservadora do Registo Comercial ..., da qual a B..., Lda. recorreu judicialmente. / O pedido de declaração de insolvência afeta apenas os atos constantes do procedimento administrativo e se aquele pedido tiver ocorrido até à decisão aí proferida, o que manifestamente não ocorreu no caso sub judice. / Por outro lado, a situação de prejudicialidade a que faz referência a recorrente coloca-se ao contrário. É a decisão aqui proferida que terá influência decisiva no processo de insolvência em curso.”

11. Da decisão referida em 10, veio a Requerente, a 12 de Dezembro de 2023, interpor recurso, sobre o qual ainda não foi proferido despacho de admissão.

A Apelante alega:

“XV- Por conseguinte, não estando ainda registada a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade requerida – como de facto, à data de 30/06/2023, data em que deu entrada o pedido de insolvência desta sociedade, não estava registado – tal significa que a recorrente poderia pedir a insolvência desta e que tal pedido terá os efeitos consagrados no artigo 3º do RJPADLEC.

XVI- O regime legal em vigor prefere a insolvência ao procedimento administrativo de encerramento e dissolução, uma vez que o primeiro confere mais proteção, publicidade e direitos aos credores das sociedades comerciais, possibilitando-lhes um leque alargado de mecanismos para efetuar a liquidação da sociedade comercial devedora.

XVII- Não se olvide que a insolvência da sociedade requerida foi pedida pela recorrente no exato dia em que foi proferida decisão naqueles autos n.º 1679/23.... – 30/06/2023 -, logo, tal decisão não estava transitada em julgado, nem podendo, salvo o devido respeito, transitar posteriormente, pelo facto de ter sido pedida aquela insolvência e por tal facto ter sido comunicado oportunamente pela recorrente àqueles autos, conforme se retira do disposto no artigo 3º do RJPADLEC, que impõe que o mero pedido de declaração de insolvência implica que os actos praticados no procedimento de dissolução e liquidação fiquem sem efeito.

XVIII- Com efeito, atenta toda a tramitação que se interrelaciona entre os dois processos judicias em curso, o de insolvência e o de impugnação judicial da decisão da Conservatória, julga-se, ao contrário do entendido pela sentença recorrida, que é necessário convocar o trânsito em julgado da decisão proferida pela Conservatória, trânsito esse que se entende, salvo melhor opinião, que não ocorreu, pelos motivos expostos e, por isso, nunca deveria ter sido registada a dissolução da sociedade requerida e o encerramento da liquidação, bem como nunca deveria ter sido registado o cancelamento da sua matrícula, em 13/10/2023, pois a esta data já a recorrente tinha pedido a insolvência da sociedade comercial requerida nestes autos, com os efeitos supra mencionados.

XIX- Assim, deveriam ter ficado sem efeito todos os actos praticados em tal procedimento administrativo, incluindo a decisão proferida em 30/06/2023, bem como o despacho datado de 23/11/2023, razão pela qual a recorrente interpôs recurso do mesmo, como acima dito, onde peticionou que este fosse revogado e alterado, declarando-se sem efeito todos os actos praticados no procedimento administrativo de dissolução e liquidação da sociedade requerida, tudo com as legais consequências.

XX- Por último, mais se diga que, não obstante a aqui recorrente ser simultaneamente requerente do processo de insolvência da sociedade comercial requerida e impugnante na impugnação judicial da sobredita decisão da Conservatória, a recorrente desconhecia que o procedimento administrativo estava em curso até à data da decisão do Conservador, visto que somente por consulta do Portal MJ é que tomou conhecimento dessa decisão, nunca tendo sido notificada pessoalmente pela Conservatória em questão sobre tal procedimento, tendo-se visto impossibilitada de ir informar aqueles autos sobre os créditos e os direitos que detinha sobre a sociedade requerida (como, aliás, resulta da petição inicial que deu origem a estes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos efeitos). Contudo, a recorrente impugnou tal decisão e informou aqueles autos (e, bem assim, também estes de insolvência), que era credora da requerida e que esta possuía passivo por liquidar, e que, segundo resultava das informações prestadas pela autoridade tributária e pela segurança social à Conservatória do Registo Comercial ..., a requerida possuirá pelo menos um trabalhador e apresentou declaração de rendimentos relativa ao ano de 2021.

XXI- Assim, salvo melhor opinião, o tribunal a quo deveria, ao invés de ter proferido a sentença recorrida, ter proferido decisão que ordenasse o prosseguimento dos autos de insolvência, com as legais consequências”.

Será assim?

A questão que importa apreciar e decidir é a de saber se no estado actual da sociedade Requerida A... Unipessoal Lda. - declarada simultaneamente a dissolução e encerramento da liquidação por decisão da Conservadora do Registo Comercial ... proferida no processo administrativo de dissolução/liquidação nº...22-, é possível prosseguir com a presente acção destinada à sua declaração de insolvência.

Nos termos do disposto no artigo 144º do Código das Sociedades Comerciais, o regime do procedimento administrativo de dissolução é regulado em diploma próprio, sendo que, como é sabido, o preceito alude ao regime constante do atrás referido RJPADLEC - regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março - , designadamente do disposto nos seus artigos 4.º a 14.º, para a dissolução administrativa voluntária, iniciada através de requerimento, e para a dissolução administrativa oficiosa, iniciada através de auto do conservador do registo comercial - sendo esta última a situação dos presentes autos,com registo de 08 de Novembro 2022.

Paula Costa e Silva e Rui Pinto - in “Código das Sociedades Comerciais Anotado e Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais”, pág. 1385-1388 - defendem que, nos procedimentos iniciados voluntariamente - artigo 4.º e 15.º do RJPADLEC - há interesses opostos, pelo que devem os mesmos ser qualificados logo como jurisdicionais. Já quando o procedimento tenha um início oficioso - artigo 5.º e 15.º, n.º 5, do RJPADLEC -, mormente quando não exista nenhuma contestação, “estaremos em plena função administrativa” e que, portanto, quer nos procedimentos de dissolução administrativa voluntária e facultativa, quer nos procedimentos de dissolução administrativa oficiosa e necessária, o procedimento começa por ser administrativo, podendo assumir contornos jurisdicionais desde que emirja uma contestação.

Ora, com o registo do encerramento da liquidação, a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios, sem prejuízo das acções pendentes ou do passivo ou activo supervenientes e, em consequência da extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, embora as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extingam.

É certo, que a norma do citado artigo 3.º - Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os atos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, não se tendo limitado a extrair consequências da declaração de insolvência, ela própria causa de dissolução imediata no caso das sociedades comerciais , mas antes atribuindo relevância ao próprio pedido de declaração de insolvência, independentemente da respetiva proveniência e do respectivo sucesso - o processo de insolvência reveste-se de publicidade, garantias e mecanismos que em muito excedem os disponibilizados em procedimento administrativo, no caso de liquidação.

Por isso, enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial, a lei dá preferência à dissolução e liquidação judicial, por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados - caso o pedido de declaração de insolvência venha a improceder terá que ser iniciado novo procedimento administrativo de dissolução e liquidação (caso se mantenham os respetivos pressupostos).

Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 25.5.2021, pesquisável em www.dgsi.pt,  “O art. 3º do RJPADLEC estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, não se tendo limitado a extrair consequências da declaração de insolvência, ela própria causa de dissolução imediata no caso das sociedades comerciais, mas antes atribuindo relevância ao próprio pedido de declaração de insolvência, independentemente da respetiva proveniência e do respetivo sucesso.

Enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial a lei “prefere” que, quer a dissolução, quer especialmente a liquidação se façam pela via judicial, por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados – acórdão da Relação do Porto de 25.5.2021”.

No entanto, teremos de concordar com a 1.ª instância, quando escreve:

“O nó górdio da questão prende-se com a interpretação a dar ao art. 3º do RJPADLEC o qual prevê que “Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os actos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas.”

As hipóteses são duas: ou se entende que, com vista (ou produzindo esse efeito) a inutilizar os atos praticados no procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, o pedido de declaração de insolvência tem que ser efetuado até à decisão administrativa proferida nesse procedimento administrativo; ou se entende que o efeito pretendido pode ser alcançado desde que o pedido de declaração de insolvência seja feito até à decisão transitada em julgado no âmbito de impugnação judicial da decisão administrativa proferida.

Vejamos, agora com mais pormenor, a razão pela qual se entende que a primeira opção é aquela que respeita a opção legislativa.

Em primeiro lugar, o artigo em causa refere, literalmente, a “tramitação dos procedimentos administrativos” e não a pendência do procedimento administrativo. Em segundo lugar o pedido de declaração de insolvência da sociedade produz efeitos, anulando-os, sobre os “atos praticados ao abrigo dos procedimentos”. Tal exclui, parece-nos, os atos praticados posteriormente à própria decisão administrativa, designadamente, a impugnação judicial dessa decisão.

Assim, se à data da decisão do Conservador de dissolução e liquidação da sociedade, nenhum dos credores cujas garantias foram asseguradas no procedimento, veio requerer a insolvência desta, já não o poderá fazer posteriormente. E porquê?

Acompanhamos a argumentação constante do Acórdão citado pela Requerente, e os autores que o mesmo cita, quanto aos motivos pelos quais o pedido de declaração de insolvência da entidade objeto do procedimento administrativo de dissolução produz o efeito a que alude o art. 3º do RJPADLEC: “o processo de insolvência reveste-se de publicidade, garantias e mecanismos que em muito excedem os disponibilizados em procedimento administrativo, no caso de liquidação.” Neste sentido, e enquanto não for proferida decisão administrativa do Conservador, é obrigatório sobrepor a apreciação judicial de uma causa imediata de dissolução como é a declaração de insolvência (art. 141º, nº1, al. e) do CSC) ao próprio procedimento com vista à declaração da dissolução com fundamento em outras causas, pois, como refere Ricardo Costa in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, pag. 564 a dissolução “não e ainda o acto responsável pela extinção dessa personalidade, mas sim a primeira fase ou momento do acto (ou processo) complexo destinado à extinção da sociedade comercial personificada (-registada) e á respectiva cessação do conjunto de direitos e deveres imputáveis à esfera jurídica do ente societário.”

Todavia, se quando é deduzido o pedido de declaração de insolvência existe já, na sequência do procedimento instaurado, a decisão administrativa de dissolução (e no caso também de encerramento da liquidação), a questão da dissolução (que o pedido de insolvência também encerra) já só poderá ser discutida por via de recurso da decisão do Conservador.

O problema coloca-se no âmbito da segurança jurídica. Pensemos na hipótese de, posteriormente à decisão do Conservador, um credor requerer a declaração de insolvência e outro impugnar judicialmente a decisão administrativa. Poderá o pedido de declaração de insolvência afetar, não só a tramitação do procedimento administrativo, mas também a decisão do Conservador, e o recuso judicial interposto? Existe alguma razão para duplicar a tutela dos interessados (sócios e credores) neste domínio? Não será indiferente estabelecer qual a causa de dissolução da sociedade, mormente quando já se estabeleceu no procedimento administrativo que não existem operações de liquidação a efetuar?

A nosso ver, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o artigo 3º do RJPADLEC confere sim uma “total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação”, mas trata-se de, vamos chamar-lhe assim, de uma supremacia procedimental. Logo, não há que convocar o trânsito em julgado da decisão proferida pela Conservatória, já que, uma vez proferida, extinguiu-se o procedimento respetivo. Ele só será recuperado por força da decisão judicial que venha a afetar a sua validade. Neste caso, nada impedirá o credor de fazer funcionar o art. 3º do RPADLEC no âmbito do procedimento administrativo “repristinado”.

Ora, no caso concreto, o credor que veio impugnar a decisão da Ex.ma Sra. Conservadora do Registo Comercial ... proferida no processo administrativo de dissolução/liquidação nº...22, a qual declarou simultaneamente a dissolução e encerramento da liquidação respeitante à sociedade comercial A... Unipessoal Lda., é o requerente na presente ação de insolvência proposta contra esta sociedade.

De acordo com o atrás exposto, nesta ocasião já o presente pedido de insolvência não era suscetível de produzir qualquer efeito sobre o procedimento administrativo que já não subsistia, por já ter sido, no mesmo, proferida decisão do Conservador”.

Assim, o que resulta atualmente da certidão da matrícula comercial da requerida A... Unipessoal Lda, é que se encontra registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação, e cancelada a matrícula comercial da Requerida. Esta encontra-se, portanto, extinta.

O presente processo de insolvência não pode, portanto, prosseguir contra uma sociedade comercial que já não tem personalidade jurídica, nem se pode considerar que seja algum dos sujeitos passivos da declaração de insolvência elencados no art. 2º, nº1 do CIRE)

Nesta conformidade, e pelo exposto, determino a extinção da presente instância por impossibilidade superveniente da lide”.

Como alega o magistrado do M.º P. º:

(…)

O pedido de declaração de insolvência da A... Unipessoal Lda., não teve lugar durante a tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, o qual terminou com a decisão da Sra. Conservadora do Registo Comercial ....

A fase de impugnação judicial da decisão da Sr.ª Conservadora não poderá ser considerada como tramitação do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, sendo para estes casos uma verdadeira fase de recurso.

E, nessa medida, nenhum reparo merece a decisão proferida.

Resultando atualmente da certidão da matrícula comercial da requerida A... Unipessoal Lda, que se encontra registada a dissolução da sociedade Requerida e o encerramento da liquidação, e cancelada a matrícula comercial, esta encontra-se extinta.

Razão pela qual, entendemos, tal como o Tribunal a quo, que o presente processo de insolvência não pode prosseguir contra uma sociedade comercial que já não tem personalidade jurídica”.

Assim, com todo o respeito pelas razões invocadas pela apelante, mantemos o decidido na 1.ª instância.
As conclusões (sumário):
(…).

3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Viseu - Juiz ....

Custas pela apelante.

Coimbra, 7 de Maio de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Maria João Areias – 1.ª adjunta)

(Arlindo Oliveira - 2.º adjunto)